Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
635/19.8T8CNT-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: MAIOR ACOMPANHADO
AUDIÇÃO DIRECTA E PESSOAL DO BENEFICIÁRIO
PRINCÍPIO DA IMEDIAÇÃO
NULIDADE PROCESSUAL
Data do Acordão: 09/08/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - CANTANHEDE - JL CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADO
Legislação Nacional: ARTS. 143, 145 CC, 195, 897, 898 CPC, LEI Nº 49/2018 DE 14/2
Sumário: I – Em processo de Maior Acompanhado [cf. Lei nº 49/2018, de 14/02], a diligência de audição pessoal e direta do requerido/beneficiário (art. 898° do n.C.P.Civil) é obrigatória e em caso algum pode ser dispensada, isto é, deve ocorrer em todos os processos, sem exceção.

II – Isto porque entre os vários princípios que orientam/norteiam o processo especial de Acompanhamento de Maiores encontra-se o da imediação (pelo tribunal/juiz) na avaliação da situação física e/ou psíquica do requerido/beneficiário.

III – Qualquer eventual impossibilidade de proceder àquela audição deve ser pessoalmente verificada pelo juiz, aquando da diligência.

III – A falta de audição do requerido/beneficiário, nos termos vindos de referir, constitui uma irregularidade que influi no exame e decisão da causa, pelo que configura nulidade processual nos termos do disposto no art. 195° do n.C.P.Civil.

Decisão Texto Integral:            






Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                                       *

            1 - RELATÓRIO

            Em 17/06/2020, M (…), propôs ação de acompanhamento de maior relativamente a L (…), nascido em 03.01.1955, casado, residente (…) (...) , atualmente internado no Centro (…) (...) .

Para o efeito alegou, em síntese, que o requerido, seu marido, em 04.09.2018 tentou cometer suicídio e ficou em estado vegetativo, situação esta que determina a incapacidade para o governo da sua pessoa e para administração dos seus bens, tendo-lhe já sido atribuída incapacidade na Suíça, país onde residia, sendo certo que o mesmo se encontra acamado/internado no já referido Centro (…), dependendo de cuidados de terceiros para tudo.

Pediu, a final, que fosse aplicado ao requerido o regime do maior acompanhado, aplicando-se as medidas de acompanhamento previstas no art. 145º do C.Civil, nomeadamente as necessárias à administração dos seus bens e outras situações do dia-a-dia, sendo nomeada ela requerente, nos termos do art. 143º, nº1 do mesmo C.Civil, como acompanhante do beneficiário.

                                                           *

Ordenada a citação do requerido, e não tendo sido possível efetuar-se, em virtude do requerido se encontrar impossibilitado de a receber, veio a ser ordenado o cumprimento do disposto no art. 21º, nº1 do n.C.P.Civil, isto é, foi citado a Magistrada do Ministério Público, em representação do requerido, para no prazo de 10 dias contestar os autos (sem que tivesse apresentado articulado de oposição/resposta).

                                                           *

Foi então, pela Exma. Juíza de 1ª instância, ordenada a realização de exame pericial ao beneficiário, pelo INML de Coimbra (cf. «Considerando os elementos juntos aos autos, e exigindo os factos a apurar conhecimentos médicos especializados que o julgador não dispõe, afigura-se necessária a realização de exame médico com as finalidades previstas no art. 899º, nº 1 do CPC, o que se determina (art. 897º, nº 1 do CPC).»).

                                                           *

Foi junto aos autos o respetivo relatório pericial, do qual consta, em termos conclusivos, que:

«1. O requerido evidencia sequelas neurológicas graves subsequentes a tentativa de suicídio por arma de fogo.

2. Este estado vegetativo permanente e irreversível, impossibilita-o de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos, ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres.

3. De igual modo, impossibilita-o para a celebração de negócios de vida corrente e para o exercício dos seus direitos pessoais, como, entre outros, todos os elencados no nº2 do artigo 147.º do Código Civil.

4. A data provável de início da impossibilidade pode ser fixada a 9 de abril de 2018.

5. É recomendável que continue a beneficiar do apoio, supervisão e cuidados por parte de familiares e de instituição vocacionada para o seguimento deste tipo de casos.»

                                                                       *

Por despacho de 27/04/2020, a Exma. Juíza a quo decidiu notificar as partes para informarem se se opunham à dispensa pessoal e directa da audição do requerido face, além do mais, do teor do Relatório pericial, sendo que a requerente informou não se opor, e a Magistrada do Ministério Público manifestou a sua oposição.

                                                                       *

            Na imediata sequência processual, foi, sem mais, com data de 04.05.2020, solucionada a questão pela Mmª Juiza a quo através do seguinte despacho:

«(…)

A audição pessoal e directa do beneficiário vem prevista no art. 898º do CPC nos seguintes termos:

(…)

De acordo com o nº 2, a audição pessoal e directa do beneficiário realiza-se através da colocação de questões ao beneficiário e auscultação/recolha das respectivas respostas. Infere-se da forma como é regulada a diligência de audição, que este meio de prova atípico, próprio do processo especial do regime do maior acompanhado, pressupõe uma afecção e um nível mínimo de consciência que ainda permita uma comunicação eficaz entre o Juiz e o beneficiário.

Como refere Margarida Paz, no artigo “O Ministério Público e o Novo Regime do Maior Acompanhado”, págs. 130-131, incluído no e-book “O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado”, CEJ, fevereiro de 2019, disponível em www.cej.mj.pt, “A audição pessoal e direta do beneficiário, na concretização dos princípios constantes do artigo 3.º da Convenção1, constitui o respeito pela dignidade inerente, autonomia individual, incluindo a liberdade de fazer as suas próprias escolhas, e independência da pessoa com deficiência [alínea a)], bem como a sua participação e inclusão plena e efetiva na sociedade [alínea c)]. Neste contexto, audição pessoal e direta do beneficiário não deve apenas ocorrer relativamente à tomada de decisão da medida ou medidas de acompanhamento a decretar pelo tribunal. Na verdade, o acompanhado deve ser ouvido relativamente a todas as decisões que sejam tomadas e que lhe digam diretamente respeito”.

A audição do beneficiário destina-se também a facultar-lhe a participação na definição da sua situação e nas decisões a tomar em respeito pela sua autonomia e autodeterminação, o que implica que o mesmo tenha alguma capacidade de se expressar.

O beneficiário encontra-se internada na Unidade de Cuidados Continuados Integrados do Centro (…) em (...) , (...) .

Da informação clínica datada de 16.09.2019 da referida instituição consta além do mais que o requerido é “um doente consciente, não colaborante e afásico. Está acamado, totalmente dependente de 3ª pessoa para assegurar as suas necessidades mais básicas de alimentação, higiene e medicação.

É portador de Sonda Vesical crónica e é alimentado por PEG” (…) “sem interação com o meio que o rodeia”.

Realizada prova pericial na instituição onde o requerido está internado, consta no respectivo Relatório, que não foi objecto de reclamação, que “o requerido está acamado, não responde a estímulos, está algaliado, é alimentado por PEG (gastrostomia endoscópica percutânea), usa fralda, permanecendo totalmente alheado. Um tal estado vegetativo, permanente e irreversível, tem repercussões graves no funcionamento e autonomia do beneficiário” (…).

Assim, estando clinicamente comprovada a absoluta incapacidade de comunicação do requerido e o seu alheamento do meio envolvente, afigura-se que a diligência da audição pessoal e directa do beneficiário, é de execução impossível.

A tal não obsta, evidentemente, que se recorra a outro meio de prova [(atento o princípio do inquisitório e a circunstância de nos encontrarmos no âmbito dos processos de jurisdição voluntária – cfr. art. 986º, nº 2 do CPC – e dado que não é só através da “audição pessoal e directa” (meio de prova) que a lei permite que se apure a situação do beneficiário (objecto da prova)], caso os elementos constantes dos autos denunciem divergências quanto à extensão da incapacidade e grau de dependência a suprir, regime de acompanhamento a aplicar, e acompanhante a nomear, ou outras, que levantem suspeitas quanto à coincidência entre a situação real e a plasmada no processo ou ainda relativamente a um hipotético aproveitamento/manipulação dos familiares, o que manifestamente não sucede no caso concreto.

Prevendo a impossibilidade de audição explica Miguel Teixeira de Sousa, no artigo “O regime do acompanhamento de maiores: alguns aspectos processuais”, págs. 44-45, incluído no e-book “O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado”, CEJ, fevereiro de 2019, disponível em www.cej.mj.pt, que “(…) O regime do processo de acompanhamento de maiores comporta igualmente uma prova atípica: a audição pessoal e directa do beneficiário (art.º 897.º, n.º 1, e 898.º). Trata-se de um meio de prova que é obrigatório em qualquer processo de acompanhamento de maiores (art.º 139.º, n.º 1, CC; art.º 897.º, n.º 2), dado que, por razões facilmente compreensíveis, se pretende assegurar que o juiz tem conhecimento efectivo da real situação em que se encontra o beneficiário. Isto não impede, no entanto, que, se estiver comprovado no processo que essa audição pessoal e directa não é possível (porque, por exemplo, o beneficiário se encontra em coma), o juiz, fazendo uso dos seus poderes de gestão processual (art.º 6.º, n.º 1) e de adequação formal (art.º 547.º), não deva dispensar, por manifesta impossibilidade, a realização dessa mesma audição”.

Em convergência, escreveu-se no Acórdão da RL de 16.09.2019, proc. 12596/17.3T8LSBA.L1.L1-2, referindo-se aos casos em que comprovadamente a audição não se possa realizar ”não deixará de ter aqui aplicação o princípio da limitação dos atos, não sendo lícito realizar no processo atos inúteis (cf. art. 130.º do CPC).

Por exemplo, se do relatório de exame pericial resultar que o Beneficiário não tem condições médicas para ser ouvido (v.g., por estar numa situação de coma), não se justificará obrigar o Juiz (e demais intervenientes processuais) a uma deslocação a um hospital apenas para constatar isso mesmo”.

Ora, no caso em apreciação, resulta dos elementos constantes dos autos, designadamente do Relatório pericial, que o requerido/beneficiário não tem condições médicas para ser ouvido. Com efeito, estando o mesmo em estado “vegetativo”, não seria possível ouvi-lo, estabelecer qualquer tipo de contacto com o mesmo, pelo que a realização da diligência redundaria na prática de actos inúteis, para além dos inevitáveis transtornos às rotinas próprias de uma instituição deste tipo e devassa do beneficiário e demais utentes que não deixaria de implicar a presença de, e observação por, pelo menos 5 (cinco) pessoas (Juiz, Procurador, Funcionário, requerente e mandatário).

Face a todo o exposto, e ao abrigo do disposto nos arts. 6º, nº 1, 547º e 130º do CPC, dispenso a audição do beneficiário.

Notifique e abra nova conclusão.»

                                                                       *

            Inconformado com essa decisão proferida, dela interpôs recurso a Exma. Magistrada do Ministério Público, a qual finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões:

            «1. O recurso versa sobre o despacho proferido em 04.05.2020 (referência citius 82641601), o qual, ao abrigo do disposto nos artigos 6.º, n.º 1, 130.º e 547.º do Código de Processo Civil, dispensou a audição pessoal e direta do requerido.

2. Entendemos que o tribunal não pode dispensar a audição direta e pessoal do beneficiário.

3. Fazendo-o, incorre numa nulidade processual, por violação expressa de uma norma legal – artigos 195.º, n.º 1 e 897.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil e 139.º do Código Civil.

4. A letra da lei é clara ao determinar que o juiz deve proceder, “em qualquer caso” e “sempre”, à audição pessoal e direta do beneficiário.

5. Se o legislador quisesse admitir exceções, tê-lo-ia feito.

6. O objetivo desta diligência não é apenas “ouvir” o beneficiário, mas sim averiguar a sua situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas.

7. Tendo, a Mma. Juiz, dispensado, ao contrário da lei, a audição pessoal e direta do beneficiário, entendemos que tal configura uma nulidade processual, nos termos do disposto no artigo 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, por violação expressa das normas contidas nos artigos 897.º, n.º 2, do Código de Processo Civil e 139.º, n.º 1 do Código Civil.

8. Devendo o despacho de que ora se recorre ser declarado nulo e substituído por outro que designe data para audição direta e pessoal do beneficiário.

Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente e consequentemente ser declaro nulo o despacho recorrido e substituído por outro que designe data para audição direta e pessoal do beneficiário, como é de JUSTIÇA!»

                                                                       *

            Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

                                                                       *

            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                           *

            2QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelo Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:

- podia ou não a Exma. Juíza a quo dispensar (como dispensou) a audição pessoal e direta do requerido/beneficiário e, em caso negativo, qual a consequência jurídico/processual daí decorrente (designadamente se tal consubstancia a nulidade do  art. 195°, n° 1, 2ª parte, do n.C.P.Civil)?

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A factualidade que interessa ao conhecimento do presente recurso é a que consta do precedente relatório, para o qual se remete, por economia processual, sendo certo que alguns dos elementos nele referidos derivaram da consulta dos autos principais, por via do acesso ao processo eletrónico que nos foi disponibilizado.                

                                                                       *                   

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Consabidamente, a Lei nº 49/2018, de 14/02, criou o regime jurídico do Maior Acompanhado, eliminando os pré-existentes institutos da interdição e da inabilitação (art. 1º).

Lei essa que veio introduzir uma mudança de paradigma e uma nova filosofia no estatuto das pessoas portadoras de incapacidade, dando assim consagração àquilo que já há muito vinha sendo reclamando pela doutrina, e sobretudo pelas Convenções Internacionais (vg. a Convenção das Nações Unidas de 30 de março de 2007, sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência - Convenção de Nova York -, entrada em vigor na nossa ordem jurídica nacional, juntamente com o “Protocolo Adicional”, a 3 de maio de 2008) e pela nossa Magna Carta.

De referir que da referida Convenção emergem os seguintes princípios fundamentais relativos à capacidade jurídica das pessoas com deficiência:

• Todas as pessoas com deficiência, sem exceção, têm capacidade jurídica, em condições de igualdade com as outras, em todos os aspetos da vida;

• A pessoa com deficiência deve ser apoiada nas suas decisões relativas ao exercício da capacidade jurídica;

• A pessoa com deficiência tem o direito a escolher a pessoa que a acompanhará na tomada de decisões da sua vida;

• A pessoa com deficiência tem o direito a participar ativamente em todas as decisões que lhe digam respeito a nível pessoal, familiar e económico;

• A pessoa com deficiência tem o direito a ser ouvida sobre todas as questões que sejam decididas, por qualquer autoridade, sobre a sua capacidade jurídica;

• As medidas de apoio devem ser flexíveis e de acordo com as necessidades individuais de cada pessoa com deficiência;

• As medidas de apoio apenas devem ser tomadas se forem absolutamente necessárias e proporcionais;

• Todas as medidas de apoio devem respeitar os direitos, a vontade e as preferências da pessoa com deficiência” – cfr. als. n), o) e y) dos considerandos do preâmbulo, e arts. 12°, 13°, 19°, e 21° a 23° da Convenção.

Será, pois, à luz destes princípios, que cumprirá interpretar e aplicar o regime do Maior Acompanhado.

No caso vertente, está em causa a aplicação dos arts. 897° a 899º do n.C.P.Civil [cuja redação decorreu da entrada em vigor da citada Lei nº 49/2018], os quais preceituam, respetivamente, nos seguintes termos:

«Artigo 897.º

         Poderes instrutórios

1 - Findos os articulados, o juiz analisa os elementos juntos pelas partes, pronuncia-se sobre a prova por elas requerida e ordena as diligências que considere convenientes, podendo, designadamente, nomear um ou vários peritos.

2 - Em qualquer caso, o juiz deve proceder, sempre, à audição pessoal e direta do beneficiário, deslocando-se, se necessário, ao local onde o mesmo se encontre.

Artigo 898.º

           Audição pessoal

1 - A audição pessoal e direta do beneficiário visa averiguar a sua situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas.

2 - As questões são colocadas pelo juiz, com a assistência do requerente, dos representantes do beneficiário e do perito ou peritos, quando nomeados, podendo qualquer dos presentes sugerir a formulação de perguntas.

3 - O juiz pode determinar que parte da audição decorra apenas na presença do beneficiário.

Artigo 899.º

          Relatório pericial

1 - Quando determinado pelo juiz, o perito ou os peritos elaboram um relatório que precise, sempre que possível, a afeção de que sofre o beneficiário, as suas consequências, a data provável do seu início e os meios de apoio e de tratamento aconselháveis.

2 - Permanecendo dúvidas, o juiz pode autorizar o exame numa clínica da especialidade, com internamento nunca superior a um mês e sob responsabilidade do diretor respetivo, ou ordenar quaisquer outras diligências.»

Desde logo importa sublinhar que no caso vertente a Exma. Juíza a quo, no que ao Relatório pericial diz respeito, não seguiu a ordem temporal prevista para a sua realização, pois que determinou a sua realização em momento prévio e precedente a quaisquer outras diligências instrutórias, utilizando-o mesmo para certificar a indiciada incapacidade de comunicação do requerido, e já de forma pré-ordenada à prolação da decisão recorrida.

Ora, salvo o devido respeito, ainda que tal tivesse sido feito ao abrigo do dever de gestão processual e no quadro da «situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS -CoV -2 e da doença COVID -19», não correspondeu tal à melhor interpretação e aplicação do regime legal, pois que tal como previsto neste, s.m.j., a elaboração deste Relatório deve ficar reservada para situações controvertidas, mais complexas ou de difícil avaliação, sendo perfeitamente dispensável numa situação como a ajuizada, em que o quadro clínico do requerido/beneficiário, alegado pela Requerente, não foi impugnado, acrescendo que um exame por perito médico permitiria a este verbalizar sumariamente as atinentes conclusões, com economia de meios, pois que tudo poderia ser realizado na prevista diligência de «Audição pessoal» do requerido/beneficiário…

Em todo o caso, que dizer da recorrida decisão de dispensar a audição pessoal e direta do requerido/beneficiário?

Em nosso entender – e releve-se o juízo antecipatório! – que não deveria a mesma ter sido tomada.

Senão vejamos.

Temos presente a opinião doutrinária invocada no despacho recorrido – emitida pelo Prof. Miguel Teixeira de Sousa, no sentido de «se estiver comprovado no processo que essa audição pessoal e directa não é possível (porque, por exemplo, o beneficiário se encontra em coma), o juiz, fazendo uso dos seus poderes de gestão processual (art.º 6.º, n.º 1) e de adequação formal (art.º 547.º), não deva dispensar, por manifesta impossibilidade, a realização dessa mesma audição» - porém, s.mj., a mesma não pondera devidamente todos os dados destas situações, nem corresponde à melhor interpretação do espírito do legislador quando preceituou sobre a questão.

Com efeito, salvo o devido respeito, e independentemente das manifestas diferenças[2], não é caso para se apodar a realização da dita diligência de «Audição pessoal» do requerido/beneficiário, num caso como o ajuizado, como sendo a realização de um ato inútil, donde ilícito (cf. art. 130º do n.C.P.Civil).

É que, como expressamente decorre do art. 898º, nº1 do n.C.P.Civil, «A audição pessoal e direta do beneficiário visa averiguar a sua situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas.»

Ora, a promoção desta finalidade – que consiste na ponderação «das medidas de acompanhamento mais adequadas» – aconselha a que se proceda a uma observação da situação real em que se encontra o beneficiário, sendo certo que, s.m.j., só é possível ao juiz observar a situação real em que vive o beneficiário, deslocando-se ao meio onde ele vive…[3]

Donde, mesmo que não se consiga estabelecer interação com o requerido/beneficiário, a deslocação/contacto pessoal e direto cumpre o objetivo processual para cuja realização foi prevista, como, aliás, a cumpre quando o requerido/beneficiário podendo, não responde às perguntas que lhe sejam colocadas, por opção voluntária ou outra razão qualquer!

E nem se argumente que a “audição” se restringe e limita à “colocação de questões pelo juiz”, pois que, se sobre tal regula mais diretamente o nº2 do preceito, daí não decorre que a «Audição pessoal» a tal diligência se circunscreva, ou que antevendo-se a mesma como inútil (dado o indiciado “estado vegetativo” do requerido/beneficiário) não tenha e deva tal que ser certificado in locu, direta e pessoalmente pelo juiz, «sendo certo que o objectivo da audição pessoal é apurar a situação concreta do beneficiário, nomeadamente a sua capacidade de entendimento e de reacção às perguntas que lhe sejam efectuadas por forma a que as medidas de acompanhamento aplicadas sejam as mais adequadas»[4].

O que tudo serve para dizer que a eventual impossibilidade de proceder àquela audição deve ser pessoalmente verificada pelo juiz, aquando da diligência.

Ademais, existe uma ampla ordem de razões para considerar que o espírito do legislador (mais concretamente os elementos teleológico e sistemático da interpretação) quando preceituou sobre a questão era o de pretender que o beneficiário fosse sempre ouvido pelo juiz.

Na verdade, como já foi sublinhado em aresto que aprofundou esta análise,

«Acerca da audição do beneficiário, o Conselho Superior de Magistratura no parecer que emitiu aquando da preparação da futura Lei n.º 48/2018, de 14 de agosto, referiu o seguinte:

«A obrigatoriedade de audição do visado vem consagrar a revogação do criticado regime actual, no sentido da dependência do contacto pelo juiz (interrogatório judicial) da circunstância de ter havido contestação.

Aplaude-se a nova inversão do paradigma, consagrando-se a necessidade de contacto directo entre o juiz e o putativo beneficiário de acompanhamento.

Tratando-se de norma processual, será explicitada no respectivo regime.

De qualquer forma e para que dúvidas não restem e como forma de sublinhar a importância estrutural desse contacto directo, o Executivo aceitou a sugestão do CSM de aditamento da expressão “pessoal e directa” após “audição”, afastando a possibilidade de redução dessa mesma audição ao chamamento (ou convocação) aos autos e subsequente resposta do requerido – pois também com esta formalidade ele é ouvido» ([2]).

Na mesma linha de pensamento o parecer da Ordem dos Advogados, datado de 7 de maio de 2018, sobre a mesma proposta de lei referiu: «Terceira nota tem a ver com o mecanismo procedimental pelo qual se decreta judicialmente o regime do acompanhamento, porquanto (i) não só a audição “pessoal e directa” prevista no artigo 139.º deve ser obrigatória (ii) como ainda obrigatória deve ser [o que não resulta dos artigos 897.º e 899.º da proposta] a prova pericial para apoio à decisão…».

Verifica-se, pois, que a letra da lei não deixa lugar a dúvidas quando diz que o juiz em pessoa procede à audição «pessoal e direta» e fá-lo «sempre», «em qualquer caso», obrigatoriedade esta que também resulta dos dois mencionados pareceres, emitidos por entidades relevantes na formação da vontade do legislador.

(…)

[2] Parecer do CSM sobre a proposta de Lei n.º 110/XIII/3.ª (GOV) relativa ao regime do maior acompanhado, em substituição dos institutos da interdição e da inabilitação, emitido em 4 de Março de 2018 e remetido à Assembleia da República, ao Presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias.»[5]

 Por último, subscrevemos plenamente o que foi igualmente sustentado em outro aresto jurisprudencial que sobre esta temática se pronunciou, a saber, «As expressões “em qualquer caso” e “sempre” empregues pelo legislador (vg. no nº 2 do citado artº. 897º o CPC), não deixam, a nosso ver, qualquer margem dúvidas sobre a intenção determinada do legislador em tornar obrigatório que a decisão final a proferir neste tipo de processos especiais de acompanhamento de maior seja sempre precedida da obrigatória audição do beneficiário pelo juiz, respondendo, assim a algumas criticas feitas ao pretérito regime da interdição ou da inabilitação em que essa audição só se tornava obrigatória se fosse deduzida contestação (cfr. nº. 2 do artº. 896º do CPC, na sua versão anterior). Ao contrario, neste novo regime criado, e ao contrário do que sucedia no anterior, a nomeação de peritos e a realização de relatório pericial deixou de ser obrigatória (cfr. artºs 897º, nº. 1- fine -, e 899º, nº. 1, do CPC, na sua atual redação).»[6]

 A esta luz, constituindo, como constitui, a audição direta e pessoal do requerido/beneficiário por parte do juiz, a concretização de um principio estruturante em que assenta o novo regime de Acompanhamento dos Maiores, e decorrendo ela ainda de uma norma de cariz imperativo, fica vedada ao juiz a possibilidade de, através de invocação das regras de adequação formal ou outras, prescindir dessa diligência instrutória, cuja realização se lhe impõe, diríamos, como um autêntico dever.

Sob pena de postergar a realização de um processo equitativo, na medida em que este, na circunstância, não se concretiza sem a imediação pelo tribunal/juiz na avaliação da situação física e/ou psíquica do requerido/beneficiário…

É à luz deste entendimento que também já foi doutamente sublinhado que

«I- Entre os vários princípios que orientam/norteiam o processo especial de acompanhamento de maiores encontra-se o da imediação (pelo tribunal/juiz) na avaliação da situação física e/ou psíquica do beneficiário.

II- Princípio esse que impõe obrigatoriamente ao juiz que, em qualquer caso e circunstância, proceda (direta e pessoalmente) à audição do beneficiário, sem que a possa dispensar.»[7]

A omissão da referida diligência configura uma nulidade processual, nos termos previstos no art. 195°, n° 1, 2ª parte, do n.C.P.Civil, por ter manifesta influência no exame e decisão da causa, pelo que, se decide revogar o despacho recorrido, anulando-o (e bem assim de outros atos porventura praticados subsequentemente que dele dependam absolutamente – cf. nº2 da pré-citada norma), o qual deve ser substituído por outro que designe dia para a audição pessoal e direta pelo tribunal/juiz do requerido/beneficiário.

Termos em que se conclui pela total procedência do presente recurso.

                                                                       *

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – Em processo de Maior Acompanhado [cf. Lei nº 49/2018, de 14/02], a diligência de audição pessoal e direta do requerido/beneficiário (art. 898° do n.C.P.Civil) é obrigatória e em caso algum pode ser dispensada, isto é, deve ocorrer em todos os processos, sem exceção.

II – Isto porque entre os vários princípios que orientam/norteiam o processo especial de Acompanhamento de Maiores encontra-se o da imediação (pelo tribunal/juiz) na avaliação da situação física e/ou psíquica do requerido/beneficiário.

III – Qualquer eventual impossibilidade de proceder àquela audição deve ser pessoalmente verificada pelo juiz, aquando da diligência.

III – A falta de audição do requerido/beneficiário, nos termos vindos de referir, constitui uma irregularidade que influi no exame e decisão da causa, pelo que configura nulidade processual nos termos do disposto no art. 195° do n.C.P.Civil.

                                                                       *

6 - DISPOSITIVO

            Pelo exposto, julga-se procedente o recurso e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido (e bem assim de outros atos porventura praticados subsequentemente que dele dependam absolutamente), o qual deverá substituído por outro que determine a audição pessoal e direta do requerido/beneficiário.

Sem custas – art. 4°, n°1, al. l), e n°2, al. h), do RCP.                                                                                                       *

            Coimbra, 8 de Setembro de 2020  

Luís Filipe Cravo ( Relator )

Fernando Monteiro

Ana Márcia Vieira


[1] Relator: Des. Luís Cravo
   1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
   2º Adjunto: Des. Ana Vieira
[2] Para além da diferença de grau sempre existente ente um estado de “coma” e um estado “vegetativo”…
[3] Atente-se que o art. 139º do C.Civil, sob a epígrafe “Decisão Judicial”, dispõe que «O acompanhamento é decidido pelo tribunal, após audição pessoal e direta do beneficiário, e ponderadas as provas.» (sublinhado nosso)
[4] Citámos o acórdão do TRL de 10.09.2019, proferido no proc. nº 14219/18.4T8LSB-A.L1-7, acessível em www.dgsi.pt/jtrl.
[5] Trata-se do acórdão do TRC de 04.06.2019, proferido no proc. nº 647/18.9T8ACB.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc, no qual o aqui Relator interveio como 2º Adjunto.
[6] Assim no acórdão do TRC de 03.03.2020, proferido no proc. nº 858/18.7T8CNT-A.C1, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
[7] Citámos agora os pontos do sumário do acórdão referido na precedente nota.