Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
160/20.4T8FIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
UNIÃO DE FACTO
ACÇÃO DE RECONHECIMENTO JUDICIAL
JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES
Data do Acordão: 07/15/2020
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso:
TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - F.FOZ - JUÍZO FAM. MENORES - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 60, 64, 65 CPC, 211 CRP, LEI Nº 7/2001 DE 11/5, LEI Nº 23/2010 DE 30/8, ART.122 Nº1 G) LEI Nº 62/2013 DE 26/8
Sumário: 1. - Depois da citação do réu, que deduziu validamente a sua contestação, não é possível o indeferimento liminar da petição inicial.

2. - É o “conceito de família alargada”, fruto da evolução recente das condições sócio-familiares, incluindo as relações de união de facto, que deve operar na interpretação do disposto no art.º 122.º, n.º 1, al.ª g), da LOSJ, que prevê a competência dos juízos de família e menores para preparar e julgar “outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família”.

3. - Tais juízos de família e menores são competentes, em razão da matéria, para uma ação declarativa cível em que é pedido o reconhecimento judicial de união de facto duradoura, mesmo se o fim visado se prende apenas com a obtenção da nacionalidade portuguesa para um dos membros da alegada união de facto.

Decisão Texto Integral:                                                          






   ***

            Recurso próprio, nada obstando ao seu conhecimento.

                                                            ***    

Ao abrigo do disposto no art.º 656.º do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 ([1]), segue decisão sumária, face à simplicidade da questão a decidir.

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I – Relatório

E (…) e R (…), ambos com os sinais dos autos,

intentaram a presente ação declarativa de reconhecimento de união de facto, com processo comum, contra

o Estado Português, representado pelo Ministério Público (doravante, M.º P.º),

pedindo que fosse judicialmente reconhecido que a A. manifestou a sua vontade em ser portuguesa e, bem assim, que os AA. vivem em união de facto há mais de três anos, nos termos do art.º 14.º, n.ºs 2 e 4, do DLei n.º 237-A/2006, de 14-12, tendo em vista possibilitar à A. a aquisição da nacionalidade portuguesa.

Embora na epígrafe da petição inicial fosse referido o Juízo de Família e Menores da Figueira da Foz, a ação veio a ser distribuída ao Juízo Local Cível da Figueira da Foz, J-1.

O M.º P.º, em representação do Estado Português, uma vez citado, contestou ([2]), defendendo-se por exceção e impugnação e concluindo assim:

«Termos em que deve:

a) Ser considerada procedente a excepção da incompetência absoluta em razão da matéria do Juízo Local Cível da Figueira da Foz, ora suscitada na presente peça processual, para tramitação e conhecimento desta acção, determinando-se a remessa dos autos para o Juízo de Família e Menores da Figueira da Foz.

b) Ser decidida, a final, a causa de acordo com o respectivo mérito e a prova que venha a produzir-se em sede de audiência de discussão e julgamento.».

Os AA., por sua vez, vieram seguidamente requerer que fosse determinada a remessa dos autos ao Juízo de Família e Menores da Figueira da Foz, por já terem alegado ser o competente.

Ordenada, por isso, a remessa dos autos, foram os mesmos distribuídos ao Juízo de Família e Menores da Figueira da Foz, J-2, após o que foi aberta vista ao M.º P.º, que, por sua vez, concluiu assim:

«Termos em que, atendendo a que nem o art.º 122.° da LOSJ nem o Código de Processo Civil, atribuem competência ao tribunal de Família para conhecer da presente ação, antes resultando o contrário do art.º 3.º, n.º 3, da Lei n.º 37/81, de 03.10, na redação atual, a competência para conhecer da presente ação será dos tribunais cíveis.

Em consequência do que antecede, atento o disposto nos artigos 96.°, al a), 99.°, n.º l, e 590.°, todos do CPC, importa excecionar a incompetência em razão da matéria deste Juízo e de Família e Menores para conhecer desta ação e, consequentemente, indeferir liminarmente a petição, com custas pela autora.

Importa ainda ter em consideração que no Juízo Cível não houve qualquer decisão, antes se tendo limitado a remeter a ação, pelo que não há conflito de competência.» (cfr. promoção de 12/03/2020, com destaques retirados).

Na sequência, por decisão datada de 13/03/2020, foi assim julgado:

«(…) declaro a incompetência absoluta em razão da matéria deste Juízo de Família e Menores da Figueira da Foz e abstenho-me de conhecer do mérito da causa, indeferindo liminarmente a petição inicial, ao abrigo dos arts. 96.º, al. a), 97.º, 99.º, n.º 1, 576.º, n.º 2, 577.º a), 578.º e 278.º, n.º 1, a), do Cód. Proc. Civil.».

Inconformados, recorrem os AA. do decidido, apresentando alegação e formulando as seguintes

Conclusões:

«1.O que se pretende com a presente ação é o reconhecimento judicial da união de facto entre os Apelantes, conforme exigência da Lei da Nacionalidade – Lei n.º 37/81, de 03 de outubro (atualizada por último pela Lei Orgânica n.º 2/2018, de 05 de julho) –, concretamente do artigo 3.º, n.º 3.

2. Destarte, o reconhecimento judicial de uma união de facto não é, nos termos legalmente determinados, da competência de nenhum dos tribunais de competência territorial alargada (cf., neste exato sentido, artigos 111.º; 112.º; 113.º, 114.º; 116.º; 120.º, n.º 1, da LOSJ).

3. Com efeito, o reconhecimento judicial de uma união de facto, está incluído na competência interna dos tribunais de comarca.

4. O critério da competência em razão da matéria, releva, não só para determinar que os tribunais de comarca são, aqui, competentes, como também para determinar qual o juízo competente (cf., artigo 81.º da LOSJ). Os juízos são, assim, materialmente competentes para a apreciação de determinadas causas, nos termos pré-determinados pelo legislador.

5. Ora, o artigo 122.º, n.º 1, alínea g), da LOSJ, prevê que os juízos de família e menores são competentes para preparar e julgar “[outras] ações relativas ao estado civil das pessoas e família.’’.

6.Na verdade, o legislador determinou a competência material dos juízos de família e menores para o conhecimento e apreciação de ações relativas a uniões de facto, designadamente ao reconhecimento judicial das mesmas.

7. Efetivamente, a união de facto é, na verdade, uma relação familiar (pelo menos em sentido amplo), estando intimamente ligada ao estado civil das pessoas e família.

8. Por conseguinte, havendo juízos cuja competência especializada é, precisamente, matéria de Direito da Família e dos Menores – estando aqui em causa o reconhecimento judicial de uma união de facto –, evidente se torna que o legislador não tenha excluído, da alínea g), do n.º 1, do artigo 122.º, a união de facto. É indubitável que a união de facto diz respeito ao estado civil das pessoas.

9. Desta forma, mal esteve o Mm. Juiz do Tribunal a quo, quando indeferiu liminarmente a P.I. Não só os juízos de família e menores são abstratamente competentes para o conhecimento e apreciação deste tipo de ações – reconhecimento judicial da união de facto – como os efetivamente competentes;

10.Entendemos que a união de facto se inclui no âmbito objetivo do conceito de “estado civil das pessoas e da família’’, do artigo 122.º, n.º 1, alínea g, da LOSJ.

Deste modo, esta não é uma matéria da competência (residual) do juízo local cível da Figueira da Foz, do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra (cfr., artigo 130.º, da LOSJ).

11. Pelo exposto, deve o presente Recurso ser considerado procedente. Em consequência, deve a decisão proferida pelo Tribunal a quo, ser revogada, considerando-se o Juízo de Família e Menores da Figueira da Foz, Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra competente, em razão da matéria, para conhecer, apreciar e decidir a ação de reconhecimento judicial da união de facto proposta pelos apelantes.

12. Caso assim não se entenda, o que por mero dever de ofício se admite, requer-se a V. Exas. a aplicação do regime dos conflitos, conforme previsto no n.º 3 do Artigo 101º do Código de Processo Civil.

Termos em que o presente recurso deve ser considerado procedente e, e, em consequência:

a) Ser revogada a sentença recorrida considerando-se o Juízo de Família e Menores da Figueira da Foz, J2, do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra competente para apreciar a presente ação; Ou,

b) Caso assim não se entenda, o que por mero dever de ofício se admite, ser aplicado o regime dos conflitos, conforme previsto no nº 3 do Artigo 101º do Código de Processo Civil,

Como é de Direito e assim se fazendo JUSTIÇA!».

Sem contra-alegação recursiva, o recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, após o que foi ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, com manutenção do regime recursório.

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.

II – Âmbito do Recurso

Perante o teor das conclusões dos Apelantes – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso, não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso, nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do NCPCiv. –, o thema decidendum consiste em saber, no essencial, se cabe ao Tribunal recorrido, enquanto Juízo de Família e Menores – e não ao Juízo Local Cível (onde a ação teve início de tramitação, com dedução até de articulado de contestação) –, a competência material para a tramitação e decisão do presente processo declarativo.

III – Fundamentação

          A) Matéria de facto

Ante os elementos documentais dos autos, os pressupostos fácticos, a considerar, são os antes explicitados (cfr. relatório supra), aqui dados por reproduzidos.

          B) O Direito

Da competência material para a ação destinada ao reconhecimento judicial da existência de relação de união de facto há mais de três anos, nos termos do art.º 14.º, n.ºs 2 e 4, do DLei n.º 237-A/2006, de 14-12, tendo em vista a aquisição da nacionalidade portuguesa

Os Apelantes defendem, como visto, a revogação da decisão proferida de “indeferimento liminar da petição inicial” – indeferimento esse por via da declarada incompetência absoluta em razão da matéria do Juízo de Família e Menores da Figueira da Foz, ora sob recurso –, por considerarem não se verificar a diagnosticada incompetência material do Tribunal recorrido (sendo incompetente, esse sim, o aludido Juízo Local Cível).

Insurgem-se, pois, contra a fundamentação jurídica da decisão em crise, na qual se expendeu pelo modo seguinte:

«(…) é residual a competência dos Juízos de Família e Menores, não bastando uma conexão ténue com situações de família para que estes Juízos sejam competentes, em razão da matéria, para os fins da al. g) do n.º 1 do art.º 122.º da Lei n.º 62/2013, de 26/8.

(…)

No presente caso, o que os autores pretendem, nesta acção comum contra o Estado Português, é possibilitar à autora a aquisição da nacionalidade portuguesa, só remotamente havendo uma ligação em razão da matéria a uma questão de família, a alegada união de facto entre os autores, mas o pedido refere-se à aquisição da nacionalidade portuguesa, não a qualquer questão relativa ao estado civil ou a situação familiar, para os efeitos da al. g) do n.º 1 do art.º 122.º da L.O.S.J.

O reconhecimento da união de facto é meramente instrumental face ao pedido principal de obtenção da nacionalidade portuguesa. Como acutilantemente refere o M.P. neste Juízo, «o objetivo da autora é a satisfação de um interesse individual e não familiar».

Por outro lado, esta acção comum proposta contra o Estado Português não se enquadra nos processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum, previstos na al. b) do n.º 1 do art.º 122.º da L.O.S.J.

(…)

Trata-se aqui de uma acção cível comum, repete-se, contra o Estado Português (não contra alguma pessoa em situação de relação familiar com qualquer dos autores) destinada a proporcionar à autora a obtenção da nacionalidade portuguesa.

Ora, nos termos do art.º 3.º, n.º 3, da Lei n.º 37/81, de 3/10, na sua actual redacção:

“O estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível.”

A lei é clara na escolha do «tribunal cível» como competente para a tramitação da presente acção e onde o legislador não distingue, não deve o intérprete distinguir, como decorre do estatuído nos n.ºs 1 e 2 do art.º 9.º do Código Civil.».

Neste âmbito, esgrimem os Recorrentes que o pretendido reconhecimento judicial de uma união de facto cabe na previsão normativa do art.º 122.º, n.º 1, al.ª g), da LOSJ, que «prevê que os juízos de família e menores são competentes para preparar e julgar “[outras] ações relativas ao estado civil das pessoas e família.’’». Assim, «a união de facto é, na verdade, uma relação familiar (pelo menos em sentido amplo), estando intimamente ligada ao estado civil das pessoas e família», termos em que, «havendo juízos cuja competência especializada é, precisamente, matéria de Direito da Família e dos Menores – estando aqui em causa o reconhecimento judicial de uma união de facto –, evidente se torna que o legislador não tenha excluído, da alínea g), do n.º 1, do artigo 122.º, a união de facto», sendo «indubitável que a união de facto diz respeito ao estado civil das pessoas.».

Que dizer?

Deve começar por afirmar-se que, salvo o devido respeito, o caso dos autos, vista a sua ocorrida tramitação, nunca poderia merecer uma decisão de “indeferimento liminar da petição inicial”, por muito “acutilantes” que pudessem parecer as referências do M.º P.º junto do Juízo de Família e Menores.

É que não pode olvidar-se que já havia contestação da ação, articulado deduzido pelo mesmo/único R. (o Estado Português), representado pelo M.º P.º, mas junto do Juízo Local Cível da Figueira da Foz ([3]).

Com efeito, dos autos consta termo de citação (do R.) com data de 31/01/2020 e subsequente contestação (do mesmo R.), esta com “Data de Entrega” de “24-02-2020”.

Assim, o caso não é de indeferimento liminar, como é manifesto, posto ter ocorrido citação e ter sido deduzida contestação pelo R., que ainda veio depois intervir nos autos (aludida promoção/ato processual de 12/03/2020).

Por isso, realizada a citação e contestada a ação pelo R., é patente que não seria caso de prolação de decisão de indeferimento liminar da petição, mas, diversamente, absolvição da instância (se fosse o caso), finda a fase dos articulados, atento o disposto nos art.ºs 590.º, 576.º, n.º 2, 577.º, al.ª a), 591.º, n.º 1, al.ª d), e 595.º, n.º 1, al.ª a), todos do NCPCiv..

Com efeito, quando “a lei prevê o indeferimento liminar (…), o que se estabelece” é que «O autor pode apresentar outra petição (…) dentro dos 10 dias subsequentes à recusa de recebimento ou de distribuição da petição, ou à notificação da decisão judicial que a haja confirmado, considerando-se a acção proposta na data em que a primeira petição foi apresentada em juízo». Assim, «havendo fundamento (substantivo e processual) para indeferimento liminar, o respectivo despacho liminar negativo deve ser proferido (sem necessidade de prévia audição da parte destinatária dessa decisão negativa), tendo a parte a faculdade de apresentar nova petição» ([4]), nas condições e com as vantagens legalmente previstas ([5]).

No caso, não ocorreu a formulação de decisão in limine litis ([6]), pois o indeferimento liminar tem lugar depois da distribuição e antes da citação, ou seja, antes de se abrir o contraditório ([7]).

Se vai ocorrer indeferimento in limine, pondo fim à ação à nascença, para quê citar a parte requerida, se ela, perante o juízo negativo (de rejeição/improcedência/inviabilidade), e enquanto este não for posto em causa, não tem de se defender?

In casu, é de meridiana clareza, salvo o devido respeito, que o R. foi citado e contestou, assim se correndo a fase dos articulados, perante o que é de afastar totalmente que uma posterior decisão extintiva dos autos seja ainda de indeferimento liminar.

Não o é, o que exclui o cenário de indeferimento in limine, como o mostra o disposto no art.º “278.º, n.º 1, a), do Cód. Proc. Civil” – aliás, invocado expressamente no dispositivo da decisão em crise –, segundo o qual o juiz deve abster-se de conhecer do pedido e absolver o réu da instância em caso de procedência da exceção de incompetência absoluta do tribunal.

Posto isto, passar-se-á à essência da quaestio a decidir.

E deve dizer-se, desde logo, que se trata de matéria já enfrentada pelos nossos Tribunais superiores, com uma tendência decisória já claramente vincada da jurisprudência.

Assim, no sumário do Ac. TRL de 11/12/2018 ([8]) pode ler-se:

«I. - A acção intentada com vista à obtenção do reconhecimento judicial da situação de união de facto, nos termos e para efeitos dos nºs 2 e 4, do artº 14º, do DL n.º 237-A/2006, de 14 de Dezembro [REGULAMENTO DA NACIONALIDADE PORTUGUESA], integra a previsão do artº 122º, nº 1, alínea g), da LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO;

II - É que, ao aludir a referida alínea g) do nº 1 do art. 122º da Lei 62/2013, a acções relativas ao estado civil das pessoas, o legislador utilizou tal  expressão – na sua acepção mais restrita – atendendo ao seu significado na linguagem corrente e apenas para se reportar a situações em que esteja em causa o posicionamento das pessoas relativamente ao casamento, união de facto ou economia comum,  e, com o sentido e desiderato de abranger toda e qualquer acção que se relacione com essas situações e cuja inclusão nas demais alíneas pudesse, eventualmente, suscitar algum tipo de dúvida.».

No mesmo sentido, consta do sumário do recente Ac. TRL de 30/06/2020 ([9]):

«(…)

3. O conceito de família não é estanque, antes se mostrando recetivo a fenómenos que pela sua evidência social mereçam o seu abrigo.

4. A união de facto atingiu uma proeminência tal que a sua aceitação social como entidade familiar não pode já ser posta em causa, sobretudo a partir do momento em que, nos termos do n.º 1 do art. 36.º da CRP, passou a beneficiar de proteção constitucional, devendo, por isso, ser considerada uma relação familiar, apesar de não constar do elenco das fontes jurídico-familiares do art. 1576.º, do Código Civil.

5. Por conseguinte, os Juízos de Família e Menores são os materialmente competentes para a preparação e julgamento de uma ação em que é pedido o reconhecimento da união de facto.».

E também nesta 2.ª Secção da Relação de Coimbra foi proferido aresto com o seguinte entendimento:

«I - A ação intentada com vista à obtenção do reconhecimento judicial da situação de união de facto, nos termos e para efeitos dos nos 2 e 4, do art. 14º, do DL nº 237-A/2006, de 14 de Dezembro [“REGULAMENTO DA NACIONALIDADE PORTUGUESA”], integra a previsão do art. 122º, nº 1, al. g), da “LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO” [Lei nº 62/2013 de 26 de Agosto - LOSJ].

II - É que, ao aludir a referida al. g) do nº 1 do art. 122º da LOSJ, a acções relativas ao “estado civil” das pessoas, o legislador utilizou tal expressão – na sua acepção mais restrita – atendendo ao seu significado na linguagem corrente e apenas para se reportar a situações em que esteja em causa o posicionamento das pessoas relativamente ao casamento, união de facto ou economia comum, mas sempre com o sentido e desiderato de abranger toda e qualquer acção que se relacione com essas situações e cuja inclusão nas demais alíneas pudesse, eventualmente, suscitar algum tipo de dúvida.» ([10]).

Aliás, já em anterior Ac. TRC de 26/04/2016 ([11]) se considerou que as ações relativas ao estado civil das pessoas, a que alude a alínea g) do nº 1 do art. 122º da Lei 62/2013, são apenas aquelas em que esteja em causa – ou tenham como pressuposto – a situação ou posicionamento das pessoas relativamente ao casamento (estado de solteiro, casado, viúvo, divorciado, separado…), união de facto ou economia comum.

No centro da controvérsia está, pois, o disposto no art.º 122.º, n.º 1, al.ª g), da LOSJ, que prevê a competência dos juízos de família e menores para preparar e julgar outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família.

A respeito, foi expendido em aresto da Relação do Porto que «o legislador terá certamente pretendido abranger o caráter fluído e flexível que hoje carateriza a vida familiar, uma vez que esta não se restringe ao laços decorrentes do casamento, como sucede quando os progenitores não estão casados entre si, podendo essa relação ser ou não estável, e sabido que as relações familiares não acabam com o divórcio dos progenitores. (…) Estamos assim perante uma diversidade constitutiva da família e de distintos níveis de relacionamento da vida em família, que a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) tem vindo a reconhecer a partir do artigo 8.º da CEDH (…). Daí que a leitura mais consistente do segmento normativo em causa ao referir-se a “outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família” se reporta às condições ou qualidades pessoais que têm como fonte as relações jurídicas familiares, incluindo as resultantes das uniões de facto (1576.º Código Civil; Lei 23/2010, de 30/ago. e as alterações legislativas daí decorrentes, com destaque para a Lei 7/2001, de 11/mai.), de modo a individualizar ou a concretizar a situação jurídica pessoal familiar, tendo em atenção a natureza complexa e multinível que atualmente tem a família» ([12]).

E o Supremo Tribunal de Justiça, esgrimindo argumentação “de ordem sistemática ou histórica”, exprimiu-se assim ([13]):

«Os Tribunais de Família foram criados pela Lei nº 4/70 de 29/4 e vieram a ser regulamentados pela primeira vez, pelo Decreto-Lei nº 8/72 de 7/1.

Neste e nos diplomas que se seguiram a regular tal competência especializada e até à presente LOFTJ, se previu como competência dos mesmos, o conhecimento de acções que versassem o ramo do Direito Civil: Direito da Família.». E acrescentou, quanto às «acções relativas às situações de união de facto ou de economia comum», que tais ações «aplicam normas de Direito da Família – nomeadamente, as previstas no art. 2020º do Cód. Civil –, embora no conceito de família alargada pela evolução das condições sócio-familiares.».

Afigura-se-nos ser de seguir aquela corrente jurisprudencial estabilizada, parecendo-nos decisivo, nos tempos que correm, o aludido entendimento no sentido de a união de facto ter atingido uma proeminência tal que a sua aceitação social como entidade familiar não pode já ser posta em causa, sobretudo a partir do momento em que, nos termos do n.º 1 do art. 36.º da CRP ([14]), passou a beneficiar de proteção constitucional, devendo, por isso, ser considerada uma relação familiar, apesar de não constar do elenco das fontes jurídico-familiares do art. 1576.º do CCiv. ([15]).

Assim sendo, não se vendo razões para divergir de tal posição da nossa jurisprudência – designadamente, desta Relação –, resta dizer que se adere à argumentação adotada nos arestos citados, em desfavor da expendida na decisão recorrida, visto que o objeto da ação se reporta ao reconhecimento da alegada relação prolongada de união de facto – que se inclui no dito “conceito de família alargada” –, o que não resulta ensombrado ou prejudicado pelo fim específico visado pelos AA., que se prende com a obtenção da nacionalidade portuguesa para um deles, obtenção essa, precisamente, pela via legal da união de facto (vivência nesse tipo de união há mais de três anos, nos termos do disposto no convocado art.º 14.º, n.ºs 2 e 4, do DLei n.º 237-A/2006, de 14-12).

Em suma, os Juízos de Família e Menores são os materialmente competentes para a preparação e julgamento de uma ação declarativa cível em que é pedido o reconhecimento judicial da união de facto.

Termos em que procede a apelação, com revogação da decisão recorrida, por ser competente para a ação, em razão da matéria, o Tribunal recorrido (Juízo de Família e Menores da Figueira da Foz).

IV – Conclusão (art.º 663.º, n.º 7, do NCPC):

1. - Depois da citação do réu, que deduziu validamente a sua contestação, não é possível o indeferimento liminar da petição inicial.

2. - É o “conceito de família alargada”, fruto da evolução recente das condições sócio-familiares, incluindo as relações de união de facto, que deve operar na interpretação do disposto no art.º 122.º, n.º 1, al.ª g), da LOSJ, que prevê a competência dos juízos de família e menores para preparar e julgar “outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família”.

3. - Tais juízos de família e menores são competentes, em razão da matéria, para uma ação declarativa cível em que é pedido o reconhecimento judicial de união de facto duradoura, mesmo se o fim visado se prende apenas com a obtenção da nacionalidade portuguesa para um dos membros da alegada união de facto.

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V – Decisão

Pelo exposto e ao abrigo do disposto no art.º 656.º do NCPCiv., julgando-se procedente a apelação, revoga-se a decisão impugnada, por ser materialmente competente para a presente ação o Tribunal recorrido (Juízo de Família e Menores da Figueira da Foz, J-2), onde os autos deverão prosseguir a sua legal tramitação.

Sem custas.

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinatura eletrónica.


Coimbra, 15/07/2020

Vítor Amaral ( Relator )


([1]) Cfr. art.ºs 7.º, n.º 1, e 8.º, ambos da Lei n.º 41/2013, de 26-06.
([2]) Articulado de contestação deduzido em 04/02/2020.
([3]) Poderá até parecer algo contraditório que um só (e mesmo) R. na ação – nada menos que o Estado – pugne nos mesmos autos, primeiro (na contestação), pela incompetência material do Juízo Local Cível da Figueira da Foz, para remessa dos autos ao Juízo de Família e Menores da Figueira da Foz, com decisão, a final, quanto ao mérito da causa, de acordo com a prova a produzir, e, depois (na promoção de 12/03/2020), pela incompetência desse Juízo de Família e Menores e consequente indeferimento liminar da petição.
([4]) Vide Ac. TRP de 04/11/2008, Proc. 0826336 (Rel. Mário Serrano), em www.dgsi.pt, embora com reporte às normas pertinentes do CPCiv. revogado, cujo regime, porém, não difere do atualmente em vigor.
([5]) Cfr. ainda o Ac. STJ de 24/02/2015, Proc. 116/14.6YLSB (Cons. Ana Paula Boularot), também em www.dgsi.pt, considerando, embora num outro plano de litigância, que a imposição de um despacho liminar prévio a um despacho liminar constitui uma decisão em si contraditória, porque se o despacho liminar está legalmente previsto como podendo ser de rejeição liminar, não faz sentido a parte ser ouvida preliminarmente sobre a aludida eventualidade de vir a ser produzida uma decisão de rejeição.
([6]) Não há dúvida de que a decisão recorrida foi proferida muito depois do início do processo, em momento apreciavelmente posterior (não imediatamente) à apresentação da petição.
([7]) Assim já o Ac. STJ de 10/03/1994, Proc. 084654 (Cons. Sousa Macedo), em www.dgsi.pt.
([8]) Proc. 590/18.1T8CSC.L1-6 (Rel. António Santos), disponível em www.dgsi.pt.
([9]) Proc. 23445/19.8T8LSB.L1-7 (Rel. José Capacete), em www.dgsi.pt.
([10]) Cfr. sumário do Ac. TRC de 08/10/2019, Proc. 2998/19.6T8CBR.C1 (Rel. Luís Cravo), em www.dgsi.pt.
([11]) Proc. 901/15.1T8LRA.C1 (Rel. Catarina Gonçalves), também disponível em www.dgsi.pt.
([12]) Cfr. Ac. TRP de 05/02/2015, Proc. 13857/14.9T8PRT.P1 (Rel. Joaquim Correia Gomes), em www.dgsi.pt, com itálico aditado.
([13]) Ver Ac. STJ de 13/11/2012, Proc. 13466/11.4T2SNT.L1.S1. (Cons. João Camilo), ainda em www.dgsi.pt.
([14]) Dispõe aquele art.º 36.º (com a epígrafe “Família, casamento e filiação”), no seu n.º 1, que “Todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade”.
([15]) Mas com instituído regime protetivo na lei ordinária (cfr. Lei n.º 7/2001, de 11-05, e art.º 2020.º do CCiv., designadamente na redação dada pela Lei n.º 23/2010, de 30-08, que veio introduzir alterações nesta matéria).