Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1504/09.5TBFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: CONTA BANCÁRIA
TITULARIDADE
PROPRIEDADE
SALDO
DOAÇÃO
Data do Acordão: 01/29/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA FIGUEIRA DA FOZ – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 940º E 947º DO C.CIVIL.
Sumário: I – O facto de na data do óbito existirem contas de depósitos bancários em nome do falecido não permite que se conclua que o saldo dessas contas pertencia necessariamente ao seu titular, integrando por isso o acervo da herança aberta pela sua morte.

II - A titularidade de uma conta de depósito bancário pode nada ter a haver com a propriedade das quantias nela existentes.

III – É válida a doação verbal do saldo de uma conta bancária desde que acompanhada da subscrição e entrega à donatária dos documentos para esta proceder à transferência ou levantamento da respectiva importância.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

A…, por si e na qualidade de cabeça-de-casal da Herança Ilíquida Indivisa aberta do óbito de J…, falecido em 6 de Outubro de 2008, intentou a presente acção de reivindicação com processo ordinário contra I…, pedindo:
a) que conjuntamente com M… sejam jul­gados habilitados como únicos herdeiros de J…; 
b) a condenação da Ré a restituir-lhes os bens que identifica, sendo-o as ver­bas em dinheiro com os respectivos juros vencidos e vincendos até à data da entrega.
Para tanto alegou, em síntese:
Ø        No dia 6 de Outubro de 2008 faleceu sem testamento ou qualquer outra disposição de última vontade J…, no estado de divorciado de F…, da qual tinha dois filhos, o ora co-A., nascido em 05 de Março de 1959, e M…, no estado de divorciada, nascida em 3 de Setembro de 1966, que deverão ser considerados habili­tados como únicos e universais herdeiros daquele J...
Ø        Da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do falecido faziam parte, entre outros bens, o saldo de uma conta bancária no Banco… de € 106.783,19, um saldo de outra conta bancária no Banco… de € 7.745,00, uma mobília de sala de jantar no valor de €5.000,00, uma mobília de escritório no valor de €2.500,00, um terno de sofás de cabedal, no valor de €1.000,00, um faqueiro em prata e várias peças de serviço de mesa, tudo no valor de €12.500,00, várias jóias e relógios, tudo no valor €3.500,00, um quadro de parede, em pastel, no valor de €2.500,00 e uma biblioteca no valor de €5.000,00.
Ø        Todos estes objectos e saldos bancários encontram-se na posse da Ré, que se recusa a restituir aos seus legítimos proprietários – Herança Ilíquida Indivisa aberta por óbito daquele J...

A Ré contestou nos seguintes termos, em síntese:
Ø        Excepcionando a ilegitimidade do Autor A…, por estar desa­companhado dos restantes herdeiros, invocando preterição de litisconsórcio necessá­rio.
Ø        Alegou que vivia maritalmente com o falecido, pelo menos, desde mea­dos de 1968, tendo-se ambos mudado por fim para a casa de habitação sita na Rua …, que era propriedade do falecido e onde ainda hoje reside, casa onde viveram em comunhão de mesa e leito durante os últimos vinte anos e até falecimento do referido J…, sendo a Ré que tratava das lides domésticas, da confecção e preparação das refeições, cuidando e tratando da casa e da roupa.
Ø        Alguns dos móveis da casa são propriedade exclusiva da Ré que os adqui­riu e os utilizou durante anos no seu domicílio.
Ø        Por questões de saúde, nos seus últimos anos de vida, o companheiro incumbiu-a de organizar todos os aspectos relacionados com a vida do casal, já que não tinha mais ninguém a quem recorrer e era ela também que cuidava do referido J…, face ao seu estado de doença, e, por esse motivo e dado que a considerava como sua esposa, o falecido J… quis beneficiá-la, doando-lhe as suas poupanças, facto que era do conhecimento de todos os que com ele privavam.
Ø        Consequentemente, o companheiro habilitou-a com os instrumentos necessários para proceder à transferência para a sua conta das importâncias que o casal havia poupado ao longo de mais de vinte anos de vida em comum, com a ajuda da Ré na condução da economia doméstica do casal, não fazendo parte da herança do compa­nheiro, nem as verbas, nem os bens móveis, alegados na petição inicial, desconhecendo a Ré onde se encontram esses objectos.
Concluiu pela procedência da excepção de ilegitimidade, ou, não se enten­dendo assim, pela improcedência da acção.
Foi apresentada réplica, em que o Autor concluiu como na p. inicial, alegando que quem intentou a acção foi a Herança Ilíquida Indivisa de J…, por intermédio do cabeça-de-casal, filho mais velho, não existindo ilegitimidade na causa.
Reafirmou a existência dos depósitos bancários do falecido e que o seu cartão de multibanco numa das instituições bancárias foi usado depois do decesso daquele, em diversas compras e levantamentos, tendo sido emitido em 8.08.2008 um cheque com o saldo exacto de € 91.638,19, que era o remanescente da sua conta bancária numa das instituições, montante que só viria a ser movimentado definitivamente pela Ré em 13.10.2008, depois do falecimento daquele.
Na sequência de despacho proferido para o efeito, o Autor veio deduzir inci­dente de intervenção principal provocada da sua irmã, a qual foi admitida, tendo a interveniente feito seus os articulados já apresentados.
Foi elaborado despacho saneador, concluindo-se pela falta de personalidade judiciária da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de J...
Veio a ser proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo a Ré do pedido.
Inconformados os Autores interpuseram recurso, formulando as seguintes conclusões:

Concluem pela procedência do recurso.

A Ré apresentou resposta, pugnando pela confirmação da decisão.
1. Do objecto do recurso
Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das ale­ga­ções dos Recorrentes cumpre apreciar a seguinte questão:
A Ré deve ser condenada a restituir aos Autores as quantias correspondentes aos saldos das contas bancárias tituladas pelo falecido à data do óbito deste?
2. Os factos
Os factos provados são os seguintes:

3. O direito aplicável
Os Autores, invocando a sua qualidade de únicos herdeiros de J… visam com a presente acção a condenação da Ré a restituir-lhes, entre outros bens, o montante correspondente ao saldo das contas bancárias, cujo titular era o falecido, existentes à data do óbito e que aquela levantou.
Estamos diante de uma acção de petição de herança por via da qual, nos ter­mos do artigo 2075º do C. Civil, o herdeiro pode pedir judicialmente o reconhecimento da sua qualidade sucessória e a consequente restituição de todos os bens da herança ou de parte deles, contra quem os possua sem título.
A petição de herança envolve dois pedidos: o reconhecimento da qualidade de herdeiro, que não está aqui em causa, e a restituição de bens da herança, o que é o caso dos valores que existiam em depósitos bancários que foram levantados pela Ré.
A decisão recorrida entendeu que as quantias levantadas pela Ré das contas bancárias existentes em nome do falecido não deviam ser restituídas à herança, uma vez que já eram propriedade da Ré à data do óbito daquele, porquanto lhe tinham sido dadas pelo mesmo.
Os Recorrentes defendem neste recurso que as quantias em causa lhes devem ser restituídas, invocando o disposto no art.º 2031º do C. Civil, o qual dispõe que a sucessão se abre no momento da morte do seu autor.
Na verdade, conforme resulta dos factos provados, na data do óbito do pai dos Autores, existiam duas contas bancárias de que ele era titular, cujos saldos ascen­diam a € 106.283,19 e € 7.589,48, saldos estes que foram integralmente levantados pela Ré após a morte daquele.
No entanto, e independentemente da ligação daquele à Ré, foi demonstrado que, ainda em vida, o pai dos Autores deu à Ré as quantias que se encontravam deposi­tadas nas referidas contas bancárias, tendo subscrito e entregue à mesma documentos para esta fazer a transferência dessas importâncias, para a conta desta.
Perante o conjunto dos factos que resultaram provados não interessa neste recurso ponderar a vivência em união de facto da Ré com o autor da sucessão, mas somente averiguar a quem pertencia o dinheiro depositado nas referidas contas bancárias à data do óbito daquele.
É indiscutível que a sucessão se abre no momento da morte do seu autor, con­forme resulta do art.º 2031º do C. Civil, sendo chamados à titularidade das relações jurídicas do falecido, aqueles que gozam de prioridade na hierarquia dos sucessíveis (artigo 2032º, n.º 1 do C. Civil).
Contudo, o facto de nessa data existirem contas de depósitos bancários em nome do falecido, não permite que se conclua que o saldo dessas contas pertencia necessariamente ao seu titular, integrando por isso o acervo da herança aberta pela sua morte.
A titularidade de uma conta de depósito bancário pode nada ter a haver com a propriedade das quantias nela existentes.
A faculdade que um titular de uma conta bancária tem, para dispor dos montantes depositados, não lhe confere, nem significa que tenha sobre esses montantes um direito de propriedade.
Tal poder de disposição deriva exclusivamente do contrato que celebrou com o banco e que lhe confere um mero direito de crédito sobre a contraparte, sem eficácia erga omnes, sendo alheio à relação dominial sobre tais quantias.
Estas podem ou não pertencer ao titular da conta[1].
Ora, provou-se que, ainda em vida, o pai dos Autores deu à Ré as quantias que se encontravam depositadas nas referidas contas bancárias, tendo subscrito e entregue à mesma documentos para esta proceder à transferência dessas importâncias, para a conta desta.
Poder-se-á, perante esta factualidade, afirmar-se que o pai dos Autores fez uma doação à Ré dos saldos daquelas contas bancárias?
Dispõe o n.º 1 do art.º 940º do C. Civil:
Doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente.
A doação de coisas móveis não depende de formalidade alguma externa, quando acompanhada de tradição da coisa doada; não sendo acompanhada de tradição da coisa, só pode ser feita por escrito – art.º 947º do C. Civil.
Da análise dos factos que se provaram resulta inequívoco que o pai dos Auto­res doou em vida à Ré os montantes que constituíam os saldos daquelas contas bancárias e fê-lo subscrevendo e entregando à Ré documentos para esta proceder à transferência das importâncias.
O facto de ter entregue à Ré os documentos em causa equivale à tradição dos valores objecto da doação, uma vez que esta não tem necessariamente que ser material – pela entrega da própria coisa –, podendo ocorrer a tradição ficta, que consiste na entrega de documentos ou na prática de actos que passam a pôr a coisa na disponibilidade do donatário[2].
Na verdade, fundando-se a exigência da tradição da coisa na circunstância da doação verbal poder ser imponderada se não houver um facto que chame especialmente a atenção das partes para a gravidade do acto[3], numa doação de quantias depositadas numa entidade bancária, a entrega dos documentos necessários para o donatário proceder ao levantamento ou transferência dessas quantias para uma conta sua é suficiente para alertar o doador das consequências da sua declaração negocial.
Ora, entendendo-se que houve tradição dos bens doados para a Ré, consubs­tanciada na entrega e recepção por esta dos documentos necessários para proceder à transferência dos valores correspondentes aos saldos, conclui-se que também houve aceitação da doação, pelo que a mesma tem que ser considerada válida.
Sendo o efeito principal de um contrato de doação a transmissão do direito de propriedade sobre os bens doados – art.º 954º, a) do C. Civil –, face à demonstração que o pai dos Autores, em vida, doou os saldos das suas contas bancárias à Ré, conclui-se que a propriedade desses saldos já não pertencia ao titular dessas contas, à data da sua morte, mas sim daquela para cuja esfera jurídica haviam sido entretanto transferidos por efeito da liberalidade efectuada, pelo que não integram o acervo da herança.
Pelo exposto, não integrando aquelas quantias o património do de cujus à data da sua morte, a acção deve improceder, confirmando-se a decisão recorrida.
Decisão:
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas do recurso pelos Recorrentes.

                      
Sílvia Pires (Relatora)
Henrique Antunes
José Avelino


[1] Neste sentido, Pinto Coelho, in R.L.J., Ano 81, pág. 277, Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, vol. I, pág. 439-441, 4.ª ed., Almedina, Paula Ponces Camanho, in Do contrato de depósito bancário, pág. 134, nota 395, ed. 1998, Almedina, Domingos Carvalho de Sá, in Do inventário, pág. 101-102,  5.ª ed., Almedina, e os seguintes Acórdãos, todos acessíveis em www.dgsi.pt :
- do S.T.J., de 13.11.2003, relatado por Ferreira de Sousa, proc. n.º 03B3040;
- do S.T.J., de 10.12.2003, relatado por Lucas Coelho, proc. n.º 04B1464;
- do S.T.J., de 27.6.2004, relatado por Afonso Correia, proc. n.º 04A3101;
- do S.T.J. de 19.5.2009, relatado por Salazar Casanova, proc. n.º 2434/04.2TBVCD.S1;
- do S.T.J. de 12.9.2009, relatado por Hélder Roque, proc. n.º 08A3714,
- do S.T.J., de 1.7.2010, relatado por Serra Baptista, proc. n.º 1315/05.7TCLRS.L1.S1,
- do S.T.J., de 22.2.2011, relatado por Sebastião Povoas, proc. n.º 1561/07. 9TBLRA.C.1.S.1;
- do S.T.J. de 31.3.2011, relatado por Serra Baptista, proc. n.º 281/07.9TBSVV.C1.S1,
- do S.T.J., de 15.3.2012, relatado por Maria dos Prazeres Beleza, proc. n.º 492/07.TBTNV.C2.S1.

[2] Menezes Cordeiro, in Direitos Reais, pág. 524, ed. de 1979, LEX.

[3] Vaz Serra, na R.L.J. n.º 110, pág. 212.