Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
253/07.3TBSVV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: SEGURO
MEDIADOR
COMISSÃO
REVOGAÇÃO
JUSTA CAUSA
CASO JULGADO
Data do Acordão: 02/11/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CBV - AVEIRO - JGIC - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS. 762, 1170 CC, DL Nº 388/91 DE 10/10, DL Nº 144/2006 DE 31/7
Sumário: 1 - O mediador de seguros é um intermediário comercial, imparcial, cuja actividade consiste na prática de actos tendentes à aproximação dos contraentes, para a conclusão, por estes, de contratos de seguro.

2.- O contrato de mediação é um contrato atípico, regulado pelas suas cláusulas contratuais, pelo apoio do D.L. nº 388/91, de 10.10, revogado pelo D.L. nº 144/2006, de 31.7, que entrou em vigor a 27.1.2007, pela sua afinidade com a prestação de serviços, regulado pelas regras gerais e, por fim, pela decisão judicial.

3 - O interesse do mandatário de que fala o art.1170º, nº2, do Código Civil, para a irrevogabilidade do mandato, tem subjacente um direito subjectivo daquele, que se interpõe e penetra no mandato e não decorre apenas do facto do mesmo ser remunerado pela execução deste.

4.- O poder conferido ao mediador para cobrar os prémios dos seguros pode ser retirado livremente pela mandante seguradora.

5. A justa causa de que fala aquela norma legal é o comportamento da parte que afecta gravemente a relação contratual, porque contrário aos deveres de correcção e lealdade e que, segundo a boa fé, torna inexigível para a outra parte a sua manutenção, não obrigada a tão relevante e desproporcionada violação.

6. Salvo disposição especial da lei, a justa causa pode ser dada a conhecer ao mandatário por qualquer forma.

7. - Não provada uma acção determinante da Seguradora, o esvaziamento da carteira de clientes do Mediador junto daquela é resultado da vontade dos segurados e não configura um prejuízo deste de que seja responsável a primeira.

8 - A autoridade do caso julgado tem o efeito (positivo) de impor a primeira decisão transitada.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

F (…), com domicílio na Rua (...), Sever do Vouga, intentou acção contra A...– Companhia de Seguros, S.A., com sede na Rua (...), Porto, pedindo a condenação desta a pagar-lhe: a) € 163.900,00, a título de danos patrimoniais; b) € 20.000,00, a título de danos não patrimoniais.

Alega, em síntese:

Exerce a função de mediador de seguros.

Celebrou, no ano de 1994, um contrato de mediação de seguros com a R. (então "B..."), actividade que vem desenvolvendo até ao presente.

A Ré retirou-lhe, em Dezembro de 2005, a possibilidade de cobrança de seguros.

Desde Março de 2006, à medida que cada um dos contratos de seguro com os seus clientes, que faziam parte da carteira do Autor, se vai vencendo, a Ré transfere-los de mediador, sem que os clientes tenham solicitado a alteração de mediação, perdendo o Autor a mediação e a respectiva comissão.

A carteira de clientes do Autor teve, por este motivo, uma quebra de mais de 90%.

A carteira global de clientes que o A. possuía na Ré ascendia a valor superior a € 120.000,00 anuais e tinha, para efeitos de transferência, um valor de € 21.000,00.

Actualmente, a carteira de clientes não ultrapassa o valor de € 9.668,36 e não ultrapassa, em termos de transferência, quantia superior a € 1.900,00.

A Ré vem ainda denegrindo, sem motivo, a imagem do A. junto de clientes, balcões e outras seguradoras, tendo levado mesmo a que este já se incompatibilizasse com alguns clientes que o apelidam de desonesto.

A Ré contestou, em síntese:

Foram praticados pelo Autor, no exercício das suas funções de mediador de seguros da A..., ilícitos graves (falsificações e burla). A Ré apresentou queixa-crime a 31 de Julho de 2006, contra ele e outro, a qual na presente data corre seus termos sob o nº180l/06.1TAAVR, na 2ª secção dos Serviços do Ministério Público do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro.

A presente acção não passa duma desesperada estratégia de “defesa” do arguido face à gravidade dos factos por si praticados e denunciados em tempo à justiça pela A....

E deduziu pedido reconvencional, pedindo a condenação do A. a pagar-lhe uma indemnização, “em valor a apurar posteriormente”, uma vez que este tem vindo a denegrir a imagem da Ré junto do público em geral, da área da sua actuação como mediador, e em particular junto dos Segurados da A... e por danos patrimoniais sofridos em resultado: 1º - da perda de prémios resultante da emissão pelo Autor de certificados provisórios de seguro sem respectiva proposta ou seguro; 2º - das despesas que suportou para investigar a ilícita conduta do Autor, designadamente com aqueles desvios à conduta que dele era de esperar e para desmontar a tentativa de burla no acidente de viação com o (...) UM.

Procedeu-se a julgamento e foi proferida sentença com o seguinte teor:

a) – Julgar totalmente improcedente a acção, absolvendo a Ré A...– Companhia de Seguros, S.A., de todos os pedidos;

b) – Julgar parcialmente procedente a reconvenção, condenando o Autor F (…) a indemnizar a Ré A...– Companhia de Seguros, S.A., no que vier a ser liquidado, quanto aos danos patrimoniais (prejuízos) por esta sofridos em resultado: 1º - da perda de prémios resultante da emissão pelo A. de certificados provisórios de seguro; 2º - das despesas que suportou para investigar a ilícita conduta do A., designadamente com aqueles desvios à conduta que dele era de esperar e para desmontar a tentativa de burla no acidente de viação com o (...) UM.

Absolver o Autor do demais que contra ele vem pedido.


*

            Inconformado, o Autor recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

(…)


*

Contra-alegou a Ré, concluindo do seguinte modo:

(…)


*

            As questões a resolver são as seguintes:

            A) Reapreciação da matéria de facto nos quesitos apontados.

            B) Implicações da decisão cível do processo penal.

           

C) Natureza jurídica da relação constituída entre as partes.

            D) Retirada da cobrança ao Autor; sua forma e efeitos.

            E) Pretensa resolução da relação de mediação. Razões do esvaziamento da carteira do Autor junto da Ré. Prejuízos.


*

            A) Reapreciação da matéria de facto nos quesitos apontados.

            (…)

Em conclusão e repetindo, não encontramos razões para alterar a matéria de facto, como pretendido pelo Autor.


*

São então estes os factos provados, ordenados por nós:

1 - O Autor nasceu a 12.3.1958. O Autor foi sempre pessoa respeitada no meio onde vive e, desde sempre, junto dos seus conterrâneos e clientes de Sever do Vouga, foi um homem respeitado e de elevada consideração. Esteve sempre ligado à vida pública associativa e municipal.

2 - O Autor exerce, devidamente licenciado, a função de mediador de seguros. Esta função é exercida pelo Autor desde 1987.

3 - O Autor celebrou, no ano de 1994, um contrato de mediação de seguros com a Ré (então " B..."), actividade que vem desenvolvendo até ao presente, sem exclusividade.

4 - Exerceu, desde então, tamanha actividade nos ramos vida e não vida, e foi-lhe igualmente entregue pela Ré a cobrança dos seus seguros.

5 - Esta possibilidade de cobrança dos seguros foi-lhe retirada pela Ré em Dezembro de 2005.

6 - No ano de 2004, o Autor adquiriu a C..., igualmente mediador da R., pelo montante de € 6.000,00, a carteira de clientes que este aí detinha. A Ré acompanhou o processo de transferência, que foi devidamente regularizado no Instituto de Seguros de Portugal.

7 - A Ré pagou ao Autor, desde o início da mediação, a título de comissões, os seguintes montantes:

- Ano de 1994 - Esc. 18.500$50;

- Ano de 1995 - Esc. 171.241 $70;

- Ano de 1996 - Esc. 185.530$05;

- Ano de 1997 - Esc. 184.706$07;

- Ano de 1998 - Esc. 164.098$52;

- Ano de 1999 - Esc. 164.226$83;

- Ano de 2000- Esc. 102.398$18;

- Ano de 2001 - € 872,47;

- Ano de 2002 - € 1.513,30;

- Ano de 2003 - € 2.999,29;

- Ano de 2004 - € 5.861,94;

- Ano de 2005 - € 10.606,74;

- Ano de 2006 e até 28.02.2007 - € 4.453,28.

8 - Desde o ano de 2002 que o Autor vinha aumentando substancialmente as suas comissões como mediador da Ré, o que logrou conseguir, quer por força do seu empenho e dedicação aos clientes, quer por força da carteira de clientes que adquiriu a C....

9 - A partir de 2006, as comissões do Autor, como mediador da Ré, vêm baixando de forma drástica, sendo irrisórias quando comparadas com os objectivos conseguidos nos anos anteriores.

10 - A carteira de seguros mediada pelo Autor, a 31.12.2005, proporcionava à Ré uma facturação no valor de € 125.743,88.

11 - Atendendo ao valor médio das comissões, a referida carteira, para efeitos de transferência, tinha um valor de € 21.000,00.

12 - Da carteira do Autor, como mediador da A..., deixaram de fazer parte, entre 31/12/2005 e 28/02/2007, as apólices identificadas no quadro 1 do relatório pericial (fls. 436 dos autos).

13 - A 28 de Fevereiro de 2007, a carteira de clientes mediada pelo Autor na A... era composta pelas apólices identificadas no quadro 2 do relatório pericial (fls. 437 dos autos).

14 - Foi celebrado contrato de seguro entre a firma E..., Lda., e a Ré A..., nos termos do qual havia sido transferida para esta a responsabilidade civil decorrente da circulação rodoviária do veículo (...) UM, tendo também ficado cobertos os danos próprios daquela viatura por choque, colisão e capotamento.

15 - O mediador de tal contrato de seguro foi o Autor.

16 - A Ré recebeu, no dia 03/10/2005, no seu balcão sito em Aveiro, documento constituído por "Declaração Amigável de Acidente Automóvel" onde se declarava a ocorrência de um acidente de viação, a 23/09/2005, pela 15,00 horas, no IP5, Vouzela.

17 - Tal acidente havia ocorrido com o veículo com a matrícula (...) UM, de marca e modelo Toyota Hiace, quando era conduzido por D..., sócio-gerente da firma proprietária da viatura, E..., Lda.

18 - O qual se tinha despistado sem intervenção doutro veículo, sofrendo o (...) UM danos materiais em consequência do acidente.

19 - Da participação do acidente, resultava que a A... tinha que indemnizar a sua segurada E... pelos danos próprios do (...) UM, atenta a contratada cobertura facultativa de danos próprios da viatura, bem como os danos sofridos pelo terceiro lesado, Pontave, nos rails de protecção do IP5.

20 - A frente do documento é assinada por (…)enquanto condutor e no seu verso enquanto membro da gerência da firma segura E....

21 - Foi elaborado pela Brigada de Trânsito da GNR de Viseu o auto de participação do acidente de viação sofrido pelo (...) UM, a 6 de Setembro de 2005, pelas 16,15 horas, ao km 60,780 do IP5, concelho de Vouzela.

22 - Face à participação recebida, a A... começou a regularizar o sinistro, contratando a firma Luso-Roux para que esta avaliasse os danos a indemnizar do (...) UM.

23 - A Luso-Roux apurou existir perda total do veículo, atento o facto dos danos serem tão elevados que tomavam a reparação desaconselhável, por excessivamente onerosa.

24 - Pois a reparação do veículo ascendia, já deduzida a franquia de € 1.000,00, ao valor de €15.671,07, o veículo tinha o valor de € 14.733,33, e o salvado o valor de € 2.651,00.

25 - O valor a indemnizar ao segurado, descontada a franquia contratada e o dito valor do salvado, era de €11.082,33.

26 - Isso mesmo foi comunicado pela A... à E... a 20/10/2005.

27 - A A... estava também constituída na obrigação de pagamento das seguintes quantias:

a) € 242,00, a título de despesa tida com o reboque do (...) UM;

b) € 1.990,62, a título de reparação dos danos dos rails do IP5.

28 - O pagamento das quantias referidas em 25º) e 27º) foi reclamado pelo Autor, mediador do contrato de seguro, à A....

29 - A A... veio a apurar que a data do acidente mencionada na participação - dia 23 de Setembro de 2005 - era falsa, porquanto aquele tinha ocorrido no dia 6 de Setembro de 2005.

30 - O Autor e (…), em conluio entre si, declararam uma data falsa do acidente na participação.

31 - E no verso da participação, quando é perguntado se foi levantado auto pelas autoridades, falsa e propositadamente declaram que "não".

32 - O D... encontrava-se munido à data do acidente (06/09/2005) dum certificado provisório que foi emitido e lhe foi entregue pelo Autor, sem que tivesse efectuado para tal qualquer proposta de seguro e tivesse sido pago à Ré qualquer prémio de seguro correspondente àquele período.

33 - Ao mediador F (…), Autor, são confiados, pela A... os livros que contêm impressos de certificados provisórios de seguro, os quais se destinam a ser preenchidos e emitidos por este quando é proposto/outorgado um novo contrato de seguro com a A....

34 - O Autor forjou o certificado provisório de seguro referido em 32º), ao preencher um impresso do dito livro, com o nº 071136, sem que para isso fosse proposto ou celebrado qualquer correspondente contrato de seguro.

35 - O certificado destinava-se apenas a transmitir a falsa aparência da existência de seguro, caso aos seus portadores (ao aludido (…) e à firma que representa, E...) viesse a ser exigido por autoridades policiais a prova da existência de seguro.

36 - Assim, (…) e a firma, na data do acidente, estavam munidos dum documento forjado de certificado provisório de seguro com o nº 071136, onde foi aposto pelo Autor que aquele era emitido no dia 27/08/2005, e tinha o seu início pelas 00,00 do dia 29/08/05 e término a 27/09/2005.

37 - No dia do acidente, (…) apresenta às autoridades o documento falso de certificado provisório de seguro com o nº 071136, como sendo um documento comprovativo do seguro assim efectuado.

38 - Após o acidente, o (…) informou o Autor que tinha tido um acidente e que apresentara o dito certificado falso.

39 - É então que aqueles, com o objectivo de determinar a A... a arcar com os prejuízos resultantes do acidente, em conluio entre si, induzem em erro esta, para tal elaborando proposta de seguro, nela apondo a data falsa de 29/08/2005, com vista a cobrir o risco de responsabilidade civil obrigatório e o risco (facultativo) de danos próprios do (...) UM, dado que este se tinha despistado sozinho e os danos eram extremamente elevados.

40 - Eram falsas as seguintes datas apostas na proposta:

a) Data de início do contrato;

b) Data da vistoria do (...) UM pelo Autor F (…), em como não tinha quaisquer danos, para aceitação do risco de danos próprios;

c) Data de assinatura da proposta de seguro.

41 - A proposta de seguro só dá entrada dois dias após a data do verdadeiro acidente, em 08/09/2005, no balcão de Aveiro, sendo ali dito que se pretende que o seguro produza efeitos a partir do dia 29/08/2005.

42 - No seguimento do plano acordado e para que o sinistro ficasse - sem margem para dúvidas - coberto pelo seguro feito, no dia 03/10/2005 é participado aquele acidente como tendo ocorrido em data posterior e falsa de 23/09/2005.

43 - O prémio de seguro é pago posteriormente no dia 07/10/2005.

44 - A proposta é assinada por (…), enquanto representante da firma E... e pelo A., na qualidade de mediador.

45 - O Autor e (…), em comunhão de esforços e em conluio entre si, consciente e premeditadamente, através de erro sobre factos por si astuciosamente provocados, pretenderam determinar a A... no pagamento de indemnizações no valor total de €13.314,95.

46 - E falsificaram o aludido certificado provisório de seguro existente à data do verdadeiro acidente.

47 - A A... começa por suspeitar que o A. teria como prática a emissão de certificados provisórios de seguro falsos, aos quais não corresponderia qualquer proposta/contrato de seguro/prémio de seguro, como troca de favores com aquele portador de tal documento.

48 - Através dos seus serviços internos de averiguação, e depois através dos seus serviços internos de Auditoria (departamento mais especializado neste tipo de averiguação), analisa os livros de certificados provisórios de seguro que estavam na posse do Autor e conclui que, na realidade, assim sucedia.

49 - O A. elaborou falsos certificados provisórios de seguro, utilizando, para tanto, os impressos respectivos que lhe foram confiados pela seguradora e estavam na sua posse, enquanto mediador da A....

50 - Tais certificados falsos, corresponderiam, conforme os casos, à celebração de novos contratos de seguro ou a alteração do veículo seguro na apólice mas a A... nunca recebeu qualquer proposta de celebração de contrato de seguro ou de alteração do veículo seguro.

51 - Como a qualquer certificado tem que corresponder uma proposta e contrato de seguro ou documento de proposta de alteração do veículo seguro em conformidade daquele, o Autor preencheu aqueles impressos, dando a aparência de que se tratava de verdadeiros certificados provisórios de seguro.

52 - O Autor falsificou aqueles documentos para poder melhor determinar a A... a responder por indemnizações decorrentes de sinistros que pudessem ocorrer no prazo de validade dos certificados.

53 - Com claro benefício para os respectivos detentores daqueles certificados, dado que, assim, podiam circular livremente, aparentando ter o seguro da sua viatura válido, em especial perante as autoridades policiais.

54 - Foram emitidos os seguintes impressos pelo Autor, em conluio com o (…), para o veículo (...) MR, em nome deste e/ou da sua firma E..., como se tratasse de certificados provisórios de seguro, sem que tivesse sido efectuado junto da A... qualquer proposta ou alteração de contrato de seguro:

a) Certificado provisório nº 6032, emitido a 07/10/2004, válido de 08/10/2004 a 08/11/2004, em nome de (…);

b) Certificado provisório nº 60302, emitido a 11/11/2004, válido de 11/11/2004 a 11/12/2004;

c) Certificado provisório nº 155109, emitido a 13/12/2005, válido de 13/12/2005 a 13/01/2006, em nome de E....

55 - A 08/10/2005, como já não precisasse (…) e a sua firma E..., de continuar a segurar o (...) UM na apólice atrás aludida (apólice 4510224339), apresentam alteração de substituição deste veículo pelo (...) MR, deixando ainda - por força de tal alteração ao contrato de seguro - de ficar coberto o risco de danos próprios daquele veículo.

56 - Também no que respeita ao veículo (...) UM foram emitidos os seguintes impressos, como se tratasse de certificados provisórios de seguro, pelo Autor em conluio com D..., em nome do deste e/ou da sua firma E..., sem que tivesse sido efectuado junto da A... qualquer proposta ou alteração de contrato de seguro para o veículo:
a) Certificado provisório nº 119681, válido de 18/12/2004 a 18/01/2005;

b) Certificado provisório nº 119687, emitido a 28/02/2005, válido de 28/02/2005 a 28/03/2005, em nome de E...;

c) Certificado provisório nº 4631, emitido em 24/03/2005, com o veículo (...) UM, válido de 24/03/2005 a 24/04/2005, em nome de E...;

d) Certificado provisório nº 4653, emitido em 06/06/2005, válido de 06/06/2005 a 06/07/2005, em nome de E...;

e) Certificado provisório nº 4950, emitido a 05/05/2005, válido de 05/05/2005 a 05/06/2005, em nome de E...;

f) Certificado provisório nº 24695, emitido a 17/07/2005, válido de 18/07/2005 a 18/08/2005, em nome de E...;

g) Certificado provisório nº 71136, emitido a 27/08/2005, válido de 27/08/2005 a 27/09/2005, em nome de E....

57 - A viatura (...) UM é propriedade da firma E... desde 20/02/2003 e o único seguro efectuado para aquele veículo é o relativo à aludida apólice 4510224339.

58 - A faculdade de cobrança (já referida em 4 e 5) foi retirada ao Autor em consequência da prática por este dos factos referidos em 29º e seguintes, após cuidada averiguação dos mesmos por perito averiguador e pelos serviços de Auditoria Interna da A....

59 - Quem escolhe o mediador é o Segurado, quem determina que quer mudar de mediador é o Segurado, sendo a Seguradora obrigada a observar a escolha ou a mudança de escolha do mediador feita pelo Segurado.

60 - Um mediador como o Autor perde clientes, não só pela sua transferência de mediador, mas também porque os contratos de seguro são resolvidos (por falta de pagamento de prémio de seguro, nomeadamente), o que sucedeu com o Autor.

61 - O Autor sabe que as alterações de uma mediação para outra sucedem por escolha e determinação do respectivo segurado.

62 - A A... nunca perseguiu nem difamou o Autor em público.

63 - A A... é uma empresa seguradora de dimensão internacional.

64 - Ao emitir certificados provisórios de seguro falsos o ora Autor criou situações de perigo para a A..., já que poderiam ocorrer sinistros - como ocorreu com o (…) - sem que houvesse qualquer seguro, mas sim uma mera aparência consubstanciada em certificados provisórios sucessivamente falsos.

65 - Estas situações lesam a A... que não recebe os prémios correspondentes a tais seguros, porquanto não são estes realizados.

66 - E pode ser chamada a responder por indemnizações de sinistros pela falsa aparência criada pelo certificado de seguro ou até pela falsa participação de acidente de viação.


*

            Resultado da prova documental já feita nesta Relação, devemos considerar ainda assente:

67 – Pelos factos descritos sob os nº14 a 57, a aqui Ré apresentou queixa crime a 31 de Julho de 2006 contra o aqui Autor e o identificado (…), a qual deu lugar ao processo nº 180l/06.1TAAVR.

68 – Neste processo, a Seguradora veio a deduzir pedido de indemnização civil contra os arguidos (o aqui Autor e o (…)), já acusados por aqueles factos, no valor de 2.273,06€, relativo a custos que aquela alega ter tido com a sua investigação do caso.

69 – Realizado o julgamento naquele processo, apesar de condenados criminalmente (decisão de 9.1.2013, sujeita a recurso penal), os identificados arguidos foram ali absolvidos do referido pedido de indemnização. Nesta parte, a decisão já transitou em julgado.


*

B) Implicações da absolvição cível no processo penal.

Invoca o Autor o caso julgado.

Em primeiro lugar, nos termos do n.º 1, do artigo 671º, do Código de Processo Civil anterior, “transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 497º e 498º, sem prejuízo do disposto nos artigos 771º a 777º”.

Depois, o caso julgado constitui uma excepção dilatória que tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer uma decisão anterior (artigo 497º, nº 2, da mesma lei).

O seu artigo 498º prevê os requisitos do caso julgado:

“Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir”.

“Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica”.

“Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.

“Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico.”

Por fim, “a sentença constitui caso julgado nos precisos termos em que julga”(art.673º da mesma lei).

Tem-se entendido que a determinação dos limites do caso julgado e da sua eficácia passam pela interpretação do conteúdo da sentença e, concretamente, dos fundamentos que se apresentem como antecedentes lógicos necessários à parte dispositiva do julgado. (ver acórdão do STJ, de 20.6.2012, no processo 241/07.0TTLSB.L1.S1, em www.dgsi.pt.)

O processo penal em causa é o nº1801/06.1TAAVR, no qual é arguido o Autor deste nosso processo.

No nosso processo, a Seguradora A... deduziu pedido reconvencional, pedindo a condenação do A. a pagar-lhe uma indemnização, “em valor a apurar posteriormente”, por 3 fundamentos distintos, em síntese:

1) o Autor tem vindo a denegrir a imagem da Ré junto do público em geral, da área da sua actuação como mediador;

2) por danos sofridos em resultado da perda de prémios, resultante da emissão pelo Autor de certificados provisórios de seguro sem respectiva proposta ou seguro;

3) por despesas que suportou a Ré para investigar a ilícita conduta do Autor e para desmontar a tentativa de burla no acidente de viação com o (...) UM.

No processo penal em questão, a Seguradora A... deduziu pedido de condenação do Autor (ali arguido) a pagar-lhe uma indemnização de 2.273,06€, relativa a custos com as averiguações dos factos praticados pelo arguido.

Os factos nucleares julgados no processo penal são os mesmos que foram julgados aqui e relativos à emissão de certificados provisórios de seguro e aos procedimentos do sinistro ocorrido com o veículo de matrícula (...) UM.

Aqui foi julgada parcialmente procedente a reconvenção, condenando o Autor F... a indemnizar a Ré A...– Companhia

de Seguros, S.A., no que vier a ser liquidado, quanto aos danos patrimoniais (prejuízos) por esta sofridos em resultado: 1º - da perda de prémios resultante da emissão pelo A. de certificados provisórios de seguro; 2º - das despesas que suportou para investigar a ilícita conduta do A., designadamente com aqueles desvios à conduta que dele era de esperar e para desmontar a tentativa de burla no acidente de viação com o (...) UM.

No processo penal, o pedido de indemnização foi julgado improcedente e, neste particular, não houve recurso.

Na confrontação, apura-se que a identidade dos casos ocorre apenas na instância relativa ao pedido de indemnização das despesas que a Seguradora alegou suportar para investigar a ilícita conduta do Autor. Para além disto já não há identidade de pedidos e de causa de pedir nos dois processos.

No processo penal não se provaram aqueles custos da Seguradora e não se provou que eles fossem no valor de 2.273,06€ (valor ali liquidado mas não no nosso processo, o que justificou a decisão deste, de remissão para futura liquidação).

Neste ponto, dos custos de investigação do caso, devemos considerar a autoridade do caso julgado de que beneficia a decisão já transitada do processo penal.

A autoridade do caso julgado tem o efeito positivo de impor a primeira decisão transitada. (L.Freitas, M.Machado, R.Pinto, C.P.C. Anotado, vol.2º, 2ªedição, C.E., página 354.)

Em consequência, no nosso processo, nos limites do caso julgado apurado, o Autor deverá ser absolvido do pedido das ditas despesas de investigação.


*

C) Natureza jurídica da relação constituída entre as partes.

            Não é questionado que o Autor é um mediador de seguros.

O Autor é um intermediário comercial, cuja actividade consiste na prática de actos tendentes à aproximação dos contraentes, no caso para a conclusão de contratos de seguro.

O mediador de seguros não actua por conta de outrem, o segurado ou a seguradora. E, por isso, se distingue do agente no contrato de agência.

A actividade do mediador é caracterizada pela imparcialidade e não é sua característica típica a estabilidade inerente a uma prestação duradoura.

(Ver Carlos Barata, Sobre o contrato de Agência, Almedina, 1991, páginas 109 e 110.)

O Autor acordou com a Ré praticar actos tendentes à aproximação de interessados nos seus seguros, para conclusão depois, entre aquela e estes, dos respectivos contratos de seguro.

O contrato de mediação de seguros em causa nesta acção foi celebrado na vigência do D.L. nº 388/91, de 10/10.

(Este diploma foi revogado pelo art. 106.º do D.L. nº 144/2006, de 31/07, que só entrou em vigor a 27/01/2007; tendo em vista a sua análise, ver Moitinho de Almeida, Contrato de Seguro, Coimbra Editora, 2009, páginas 154 a 161.)

Aquela lei define (art.2º) a mediação de seguros como “a actividade remunerada tendente à realização, através da apreciação dos riscos em causa, e assistência, ou apenas à assistência, dos contratos e operações referidos no nº 1 do art. 1º.

A já referida característica da imparcialidade/independência do mediador aflui de diversos preceitos desta lei, como os dos arts. 2º, 4º, 8º, 18º e 30º.

Esta lei regula o acesso e a actividade de mediação e não directamente o contrato de mediação entre o mediador e a seguradora. Este é um contrato atípico, regulado pelas suas cláusulas contratuais, pelo apoio daquela lei e de figuras contratuais afins, pelas regras gerais e, por fim, pela decisão judicial.

Pode entender-se que o contrato de mediação é uma subespécie do contrato de prestação de serviços, oneroso, aleatório e “intuitu personae”, como o fez a sentença recorrida e o acórdão do STJ, de 6.12.2012, no processo 370001/09.6YIPRT.L1.S1, em www.dgsi.pt.

A lei em análise divide os mediadores em três categorias: agentes de seguros; angariadores de seguros e corretores de seguros.

O agente de seguros está definido no nº 1 do art. 18.º: é o mediador que exerce a sua actividade apresentando, propondo e preparando a celebração de contratos, podendo celebrá-los em nome e por conta da seguradora, com prestação de assistência a esses mesmos contratos, podendo intervir, a pedido da seguradora, na regularização de sinistros, em nome e por conta, ou, unicamente, por conta daquela.

No caso, a par da mediação, as partes acordaram que o Autor faria  cobranças de prémios de seguro em nome e por conta da Ré, o que lhe dá uma feição especial (cfr. art.4º, nº2, da lei em análise), mais próxima do agente já referido.

A mediação do Autor ocorre em regime de não exclusividade e abrangia os ramos de “vida” e “não vida”.

O Autor tinha direito a comissões de mediação e de cobrança.


*

D) Retirada da cobrança ao Autor; sua forma e efeitos.

Como já vimos, no caso, o Autor tinha um poder de representação da Ré bem definido: o mesmo procedia à cobrança dos prémios dos seguros em nome da credora.

Esta representação podia ter sido retirada livremente?

Não conhecemos cláusulas contratuais específicas para esta questão e o D.L. nº 388/91 também não nos ajuda. Diz-nos então o art.1170º, nº2, do Código Civil (aplicável subsidiariamente, no âmbito da afinidade com o contrato de prestação de serviços – art.1156º deste código):

“Se, porém, o mandato tiver sido conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro, não pode ser revogado pelo mandante sem acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa.”

Nesta faceta do seu contrato, o Autor é um mero agente executivo de actos isolados (cobranças). O interesse é do credor mandante.

Apesar da sua comissão, a cobrança não constitui um interesse do Autor, no sentido daquela norma. Aquele interesse tem subjacente um direito subjectivo do mandatário que se interpõe e penetra no mandato.

O direito à comissão de cobrança é exterior ao mandato. Neste, o interesse perceptível ou o direito subjectivo em causa é apenas o do mandante. (Ver M. Januário Gomes, Revogação do Mandato Civil, Almedina, 1989, páginas 97, 145 a 153, 219 a 223 e 267 e seguintes; acórdãos do STJ, de 11.12.2003 e de 2.3.2011, nos processos 03B3634 e 2464/03.1TBALM.L1.S1, em www.dgsi.pt.)

Assim, aquela representação podia ter sido livremente retirada (art.1170º, nº1, do Código Civil).

Está assegurado pelo próprio Autor que a Ré retirou-lhe, em Dezembro de 2005, a possibilidade de cobrança de seguros (revogação expressa).

O conhecimento do Autor decorre ainda do facto de, nessa altura, conhecer a nova cobradora indicada em sua substituição, para o mesmo local (ver art.1171º do Código Civil – revogação tácita).

De qualquer maneira, mesmo que assim não fosse, a revogação concretizada pela Ré está ainda fundamentada em justa causa.

A justa causa é o comportamento de uma das partes que afecta gravemente a relação contratual, porque contrário aos deveres de correcção e lealdade e que, segundo a boa fé, torna inexigível para a outra parte a sua manutenção, não obrigada a tão relevante e desproporcionada violação.

Considerando os factos provados (em síntese, a falsificação de documentos e a emissão de certificados provisórios sem proposta de seguro, por parte do mediador, em benefício de certo segurado), não era exigível à Ré manter no Autor o respectivo poder de cobrança, quebrada que estava a confiança naquele, pela falta de lealdade e de correcção que aqueles factos revelam.

São violados os deveres do mediador (cfr. art.8º do D.L. nº 388/91), a sua natural imparcialidade e, em geral, a boa fé que preside à execução dos contratos – nº 2 do art. 762.º do Código Civil.

Sendo assim, também por esta via, a Ré tinha o direito de revogar o questionado poder de cobrança conferido por si ao Autor.

Alega o Autor que a Ré nunca lhe enviou qualquer comunicação escrita onde invocasse a alegada justa causa.

No que a esta diz respeito, o acordo das partes, o DL 388/91 e as normas da revogação do mandato no Código Civil não exigem a forma escrita para a sua invocabilidade e comunicação.

Bastará o conhecimento dela por qualquer forma. (ver P.Lima, A.Varela, Código Civil Anotado, vol.II, 3ª edição, página 732.)

Sobre este conhecimento, da revogação do poder de cobrança, com aquela causa, podemos constatar:

Por um lado, é o próprio Autor quem o alega, indicando que tal aconteceu em Dezembro de 2005 (embora o diga que sem fundamento);

Esta alegação temporal está de acordo com o alegado pela Ré;

O facto coincide com o final da provada auditoria;

Aquele conhecimento decorre ainda para o Autor do facto de, nessa altura, conhecer a nova cobradora indicada em sua substituição, para o mesmo local.

Neste contexto, sendo certo que, como veremos, não está em causa a resolução do contrato de mediação, mostra-se demonstrado que foi dado a conhecer ao Autor a revogação do poder de cobrança e os respectivos motivos, o que teve efeito nas cobranças futuras, que o Autor já não fez e das quais já não recebeu a respectiva comissão.


*

E) Pretensa resolução da relação de mediação. Razões do esvaziamento da carteira do Autor junto da Ré. Prejuízos.

Nenhuma das partes alegou a resolução da relação de mediação.

A Ré alegou apenas a retirada ao Autor do já analisado poder de cobrança.

Apesar desta revogação, aquela relação de mediação manteve-se, mantendo-se o pagamento das respectivas comissões de mediação.

Entendem as partes que a relação de mediação foi condicionada pela vontade dos segurados. O Autor alegou (mas não demonstrou) que esta vontade foi determinada por acção da Ré, levando ao esvaziamento da sua carteira e consequente perda de comissões.

Efectivamente, as características da mediação conjugadas com a perda da confiança (mútua) conduziram ao esvaziamento da carteira de clientes do Autor junto da Ré.

A vontade dos segurados tem influência na composição daquela carteira – ver art.5º do DL 388/91.

A perda de confiança condiciona a motivação do mediador e da seguradora.

Lembremos como se esvaziou a carteira do Autor junto da Ré:

Cerca de 50 contratos foram anulados por falta de pagamento do prémio de seguro. Cerca de 29 segurados passaram para outras seguradoras. Cerca de 50 tiveram transferência de mediação dentro da própria Ré, por vontade dos segurados. Cerca de 187 segurados transferiram-se para a G..., sendo certo que o Autor passou a ter uma loja de rua desta seguradora, em exclusividade.

Disto resulta que a maior parte dos clientes da carteira do Autor na Ré passaram a fazer parte da sua carteira na G.... O valor que o Autor deixou de receber na Ré é praticamente o mesmo que foi receber a mais na G....

Ora, a vontade dos segurados é determinante, admitindo-se que a perda de confiança tenha levado as partes, especialmente ao Autor, a dar uma motivação extra aos segurados para a mudança.

As comissões mantêm-se relativamente aos prémios vencidos até à data legal da mudança, em função da referida vontade dos segurados – o já referido art.5º do DL 388/91.

Neste contexto, além de não provada uma acção determinante da Ré, não vislumbramos quais sejam os prejuízos do Autor, pelo que a acção tinha de improceder, como foi decidido.


*

            Decisão.

            Julga-se o recurso parcialmente procedente, revoga-se parcialmente a decisão recorrida (o seu segmento b), 2º) e, por força do caso julgado, mantendo o demais decidido, absolve-se ainda o Autor do pedido de indemnização feito pela Ré e relativo às despesas que esta alegou suportar para investigar a conduta descrita daquele.

            Custas pelo Autor, quanto à acção; quanto à reconvenção, custas por ambas as partes, em partes iguais.

Coimbra, 2014-2-11

 (Fernando de Jesus Fonseca Monteiro ( Relator )

(Luís Filipe Dias Cravo)

(Maria José Monteiro Guerra)