Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
61/10.4TAACN-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE DIAS
Descritores: PROVA
DECLARAÇÃO PARA MEMÓRIA FUTURA
Data do Acordão: 04/24/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE ALCANENA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 271º CPP
Sumário: 1.- As declarações para memória futura constituem uma exceção ao princípio da imediação e, são diligências de prova realizadas pelo juiz de instrução na fase do inquérito, sujeitas ao princípio do contraditório, que visam a sua valoração em fases mais adiantadas do processo como a instrução e o julgamento, mesmo na ausência das pessoas que as produziram;
2.- Constituem requisitos da tomada de declarações para memória futura:
- Que a testemunha a inquirir esteja afetada por doença grave ou que tenha que se deslocar para o estrangeiro;
- Que seja previsível, quer por causa da doença, quer por causa da deslocação, que a testemunha esteja impedida de depor em julgamento;
3.- Tais requisitos são válidos para todos os crimes, com exceção dos crimes sexuais e, atualmente, com exceção dos crimes de tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual. Nestes casos, as vítimas podem ser ouvidas em declarações para memória futura [os ofendidos menores de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual sê-lo-ão sempre, nos termos do nº 2, vigente], sem exigência da verificação daqueles requisitos;
4.- Estando indiciado um crime de lenocínio, crime de natureza sexual, em que está em causa a liberdade sexual das mulheres a quem se pretende tomar declarações, a decisão da tomada de declarações para memória futura não tem de estar fundamentada na previsibilidade de as testemunhas não estarem presentes em julgamento em razão de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Criminal.
No processo supra identificado, foi proferido despacho a ordenar a realização de diligência de inquirição de testemunhas para memória futura e, no decurso desta, despacho a não declarar a irregularidade da mesma.
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Destes despacho interpôs recurso o arguido A..., formulando as seguintes conclusões e, que delimitam o objeto:
1. Na promoção de fls .... a Exma. Magistrada do Ministério Público requereu a inquirição de testemunhas, ao abrigo do disposto no art. 271, n.º 1 do C.P.P., tendo através de despacho datado de 11.01.2012, a Exma. Senhora Juíza de Instrução “a quo" deferido a realização das mesmas.
2 Todavia e salvo o devido respeito, o despacho da Mma. Juíza de Instrução “a quo" não apresenta qualquer argumento que justifique fundamentadamente a realização de tal diligência.
3.Na verdade, do despacho da Exma. Senhora Juíza de Instrução nem sequer se retira o deferimento do requerido pelo Ministério Público, uma vez que o mesmo se limita a convocar as pessoas identificadas para a diligência, dai se retirando, presumindo-se com alguma benevolência, que a diligência requerida pelo M.P. foi deferida.
4. Estabelece, o art. 97, n.º 5 do C.P.P. que os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.
5. Assim, deveria a Exma. Senhora Juíza “a quo" ter fundamentado a sua decisão com expressa alusão aos factos que conduziram à sua decisão, bem como os fundamentos de direito, o que efetivamente não ocorreu.
6. Estando perante a tomada de declarações para memória futura é consabido que tal diligência tem uma natureza excecional - pelo que, existem mais motivos ainda para que tal decisão fosse devidamente fundamentada.
7. Ao não especificar os motivos de facto e de direito da sua decisão tal consubstancia falta de fundamentação do despacho recorrido nos termos do art. 97, n.º 5 do C.P.P..
8. A violação do art. 97 n.º 5 do C.P.P. constitui o vício da irregularidade que foi suscitada em sede de diligência e aqui se renova, o que ao abrigo do art. 123 n.º 1 do C.P.P. determina a invalidade do ato a que se refere e dos seus subsequentes termos.
9. O fundamento invocado pela Digna Magistrada do Ministério Público para a inquirição das testemunhas para memória futura prende-se com o facto de tais testemunhas serem alegadas vítimas do crime de lenocínio agravado p. e p. pelo art. 169, n.º 1 e n.º 2, alínea a) do C.P. (ATÉ AGORA DESCONHECENDO-SE COM QUE FUNDAMENTO).
10. O Mandatário do Arguido arguiu também a irregularidade da diligência de declarações para memória futura das testemunhas, pelo menos, de B... e C... realizada no âmbito dos presentes autos, uma vez que não se verificavam de todo os requisitos da mesma, como estipula o art. 271 do C.P.P. - tendo tal requerimento sido indeferido pela Exma. Juíza a quo.
11. No entendimento da Digna representante do Ministério Público existia a forte suspeita de as cidadãs supra referidas praticarem prostituição, uma vez que as mesmas se encontravam no estabelecimento comercial "LR - W...".
12. Entende o Arguido que não faz sentido considerar que tais cidadãs se dedicam à prostituição tendo, somente, em linha de conta o facto de se encontrarem no momento das buscas no estabelecimento comercial.
13. Para se poder aferir se determinada cidadã é ou não vítima de um crime de lenocínio é necessário ter em conta outros indícios, ainda para mais QUANDO NÃO RESULTA DO DESPACHO RECORRIDO QUE AS IDENTIFICADAS CIDADÃS TENHAM SIDO ENCONTRADAS EM TRAJES OU PREPAROS MENOS PRÓPRIOS, OU MESMO ANGARIANDO CLIENTES OU EM PRÁTICAS SEXUAIS DECLARADAS, AINDA PARA MAIS QUANDO A MMA. JUÍZA DE INSTRUÇÃO "A QUO" PRESIDIU A TAL DILIGÊNCIA E NADA DISTO VERIFICOU PARA ALÉM DO "CENÁRIO DECORATIVO" DO ESTABELECIMENTO LHE CAUSAR TAL SUGESTIONAMENTO.
14. Motivo pelo qual, entende o Arguido que deveria de ter sido realizado como que um juízo de prognose fundamentado criticamente em mais indícios para se averiguar da probabilidade de tais cidadãs poderem ser vítimas ou não de um crime de lenocínio e não se limitar o Tribunal recorrido a, cegamente, concordar com o requerido pelo M.P..
15. E o certo é que aquando da inquirição, nenhuma das testemunhas declarou que se dedicasse à prostituição ou a atividade de alterne por conta do bar, muito pelo contrário.
16. Após, a arguição da irregularidade pelo Mandatário do Arguido o Tribunal "a quo" podia e devia de acordo com o supra referido preceito legal ter interrompido a tomada de declarações, uma vez que após o depoimento de duas das testemunhas, alegadamente vitimas de um crime de lenocínio, se veio a demonstrar efetivamente o contrário através das suas declarações -Todavia, a Mma. Juíza de Instrução "a quo" assim não decidiu.
17. O instituto da tomada de declarações para memória futura não serve o desiderato requerido pelo M.P. e nesses termos deferido pelo Tribunal recorrido de aquilatar se determinada testemunha é ou não vítima de um crime de lenocínio.
18. Pelo contrário, as declarações para memória futura são tomadas SE PREENCHIDOS O REQUISITOS DO ART. 271 N° 1 DO C.P.P., por forma a evitar o constrangimento das testemunhas em terem que repetir a sua história e reviver a sua dor vezes sem conta, ganhando-se na espontaneidade e na veracidade do depoimento prestado e evitando-se também que possam faltar ao julgamento.
19. Ademais, as testemunhas não foram interrogadas quer pela Mma. Juíza de Instrução "a quo", quer pela Exma. Sra. Procuradora relativamente ao facto de alegadamente se dedicarem à prática de alterne ou de atos sexuais a troco de dinheiro.
20. Se na promoção da Digna Representante do Ministério Público a requerer a tomada de declarações para memória futura a mesma referiu que existiam fortes suspeitas de que as indicadas cidadãs se dedicavam à prostituição, do mesmo passo, cumpria-lhe o dever enquanto garante da legalidade de requerer que tal diligência judicial não tivesse lugar logo que tomou conhecimento que não o eram.
21.Na verdade o que se fez foi judicializar a fase de inquérito, transformando-se uma simples diligência de investigação e que consistia no M.P. ouvir aquelas pessoas, numa diligência judicial, violando-se a lei por manifesta falta dos requisitos elencados no art. 271 n. 1 do C.P.P., assim se preterindo o princípio da imediação e do contraditório pleno, pois é consabido que durante a fase de inquérito e encontrando-se os autos em segredo de justiça não existe igualdade de armas entre o M.P. e a defesa do arguido, o qual DESCONHECE POR COMPLETO OS AUTOS.
22. Ora, é óbvio que se fosse essa a intenção do legislador ele não teria restringido a sua admissibilidade a determinados requisitos específicos e concretos, não o fazendo apenas em relação a um catálogo muito fechado de crimes, por se entender que em tais casos torna-se imperioso proceder desde logo à tomada de declarações para memória futura - crime de tráfico de pessoas e crime contra a liberdade e a autodeterminação sexual.
23. O carácter excecional da tomada de declarações para memória futura advém do facto de a prestação das mesmas constituir uma exceção ao princípio constitucional da imediação.
24. A tomada de declarações para memória futura tem natureza excecional e só deve ser determinada quando se encontrem verificados os pressupostos legais da diligência, o que in casu não se verifica e que em tempo se arguiu.
25. Ademais, só o princípio da imediação permite o indispensável contacto com o arguido, com a assistente e com as testemunhas. Daí as testemunhas deverem ser inquiridas na audiência de discussão e julgamento, precisamente para garantir a receção direta e imediata da prova pelo Tribunal.
26.Por outro lado, só em audiência de discussão e julgamento o contraditório se torna pleno, existindo nesta fase igualdade de armas entre o M.P. e a defesa do arguido, desde logo o direito mais elementar - O ACESSO AOS AUTOS!
27. Saliente-se que a inquirição de testemunhas para memória futura retira às partes o poder de as arrolar em sede de audiência de discussão e julgamento, mesmo que no decurso do inquérito ou instrução e com o acesso aos autos pelo arguido seja fundamental ouvir essas pessoas, pois agora tal juízo de necessidade.
28. Não estando reunidos os pressupostos para a inquirição de testemunhas ao abrigo do art. 271 do C.P.P., tal vício é no entendimento do Arguido gerador de irregularidade, uma vez que a irregularidade é o efeito e vício formal do ato processual que não produz nulidade (art. 118, n.º 2).
29. Irregularidade que foi tempestivamente arguida pelo Mandatário do Arguido, no próprio ato, nos termos do art. 123, n.º 1 do C.P.P., e mesmo que não tivesse sido, conforme se citou supra Paulo Pinto de Albuquerque a falta de pressupostos legais da diligência de declarações para memória futura é sempre sindicável por via de recurso.
30. Consequentemente, a declaração de irregularidade produz a invalidade do ato a que se refere e dos temos subsequentes que possa afetar (cfr. art. 123 do C.P.P.).
Deve o recurso ser julgado procedente e, em consequência, serem os despachos recorridos revogados quer por falta de fundamentação quer por falta dos requisitos previstos no art. 271 do C.P.P., assim determinando a invalidade da tomada de declarações para memória futura e, dos seus subsequentes termos
Foi apresentada resposta pelo Magistrado do Mº Pº, onde conclui:
1. A omissão de fundamentação de um qualquer ato decisório constitui uma (mera) irregularidade que, para ser conhecida, impõe que seja arguida pelo próprio interessado no próprio ato, nos termos do que dispõe o art. 123, n.º 1, do Código do Processo Penal, sob pena de sanação do vício.
2. Considerando que a irregularidade efetivamente suscitada pelo recorrente foi delimitada à suposta ausência dos requisitos legais para as declarações para memória futura, e que nada teve a ver com uma eventual deficiente fundamentação, não pode agora o recorrente fazer-se valer de um (suposto) vício com o qual se conformou, sob pena de violação das mais elementares normas de lealdade processual, impondo-se, por isso, considerar sanada a irregularidade eventualmente existente.
3. Ainda que assim não fosse, é inequívoco que o sentido que se pode retirar do despacho da M.ma juiz a determinar a realização da diligência em causa não é outro se não o de implicitamente deferir o que havia sido requerido pelo Ministério Público, aderindo aos respetivos fundamentos de facto e de direito.
4. E tanto assim, que foi com este sentido que o ora recorrente entendeu o despacho ora em crise, interpretando-a convenientemente.
5. Concorde-se ou não com ele, o despacho ora em crise não carece de fundamentação, já que raciocínio argumentativo que a M.ma juiz fez seu, pode ser entendido e reproduzido pelos destinatários da decisão.
6. Não é legítimo condicionar ex ante a verificação dos requisitos legais das declarações para memória futura, subordinando-a ao que as testemunhas vierem a declarar posteriormente.
7.Independentemente do que as testemunhas possam efetivamente declarar, dizem-nos as regras da experiência e do normal acontecer que qualquer mulher que seja encontrada num bar, cuja natureza de «bar de alterne» está já abundantemente comprovada nos autos, poderá estar (e em regra estará), associada a este tipo de práticas (da prostituição), quando é certo, também, que, além do espaço físico em questão, tais mulheres estavam ainda na posse de uma quantidade, no mínimo, não habitual, de preservativos e de gel lubrificante.
8. Estando as cidadãs, cujas declarações ora se censuram, durante a madrugada, no interior de um estabelecimento noturno amplamente referenciado como «casa de alterne», na posse, além do mais, de preservativos e gel lubrificante, é de supor que as mesmas ali se encontrassem a praticar alterne e trato sexual, mediante retribuição (a prostituírem-se), devendo ser consideradas, portanto, como possíveis vítimas de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual.
9. Nessa medida, está perfeitamente legitimada a respetiva tomada de declarações para memória futura, ao abrigo do disposto no art. 271, n.º 1, 2.ª parte, do Código do Processo Penal, por estarem verificados, no caso concreto, os respetivos requisitos legais, isto independentemente de qualquer obstáculo que impeça tais testemunhas de, posteriormente, serem ouvidas em julgamento.
10. Não se mostram violados, por qualquer forma, quaisquer preceitos legais, nomeadamente os referidos pelo recorrente.
11. Bem andou, assim, a M.ma Juiz de Instrução ao deferir a realização das requeridas declarações para memória futura, por, in casu, estarem verificados os respetivos pressupostos legais, e, dessa forma, ao desatender, subsequentemente, a arguida irregularidade.
Deve negar-se provimento ao recurso.
Nesta Relação, o Ex.mº Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso, por nenhum reparo merecerem os despachos recorridos.
Foi cumprido o art. 417 nº 2 do CPP.
Foi apresentada resposta, na qual o recorrente mantém e sustenta o alegado no recurso.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre decidir:
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São do seguinte teor os despachos recorridos:
I
“Conforme determinado nas buscas efetuadas esta madrugada, para inquirição das pessoas identificadas na douta promoção ficou designado o dia de hoje pelas 13h 30m.
(…)”.
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II
“No que respeita aos fundamentos para as atuais declarações cumpre referir o seguinte:
O processo encontra-se em fase de inquérito.
Das buscas às quais a aqui signatária presidiu, as testemunhas indicadas encontravam-se dentro do estabelecimento noturno referenciado como sendo casa de alterne.
Perante o cenário decorativo do estabelecimento (varões de striptease, privados com divisórias, entre outras) é forçoso suspeitar que as mesmas se dedicariam a essa atividade.
Acrescentar que os depoimentos das testemunhas até agora ouvidas foram contraditórios e, infelizmente, não é o facto de prestarem juramento perante o Juiz que impede as testemunhas de omitirem factos sobre o modo de vida, o qual é indiciado por todos os outros elementos já carreados para o inquérito, nesta fase.
Dir-se-á, também, que as questões colocadas pelo Juiz e pelo M.P. sobre a condição de vítima destas testemunhas são formuladas de acordo com os critérios definidos pela estratégia da inquirição não sendo a ausência de formulação direta motivo legal para acarretar qualquer irregularidade na determinação destas declarações.
Ainda de referir que o despacho a que alude o ilustre mandatário do arguido A... foi disponibilizado no inicio desta diligencia dele constando por razoes de economia processual o deferimento da pretensão do M.P. já alvitrada em sede de buscas pela aqui signatária.
A motivação que deu origem ao deferimento desta tomada declarações parece inequívoca não se suscitando qualquer irregularidade ou nulidade a não ser a necessidade imperiosa neste tipo de criminalidade de tomada de declarações céleres a quem eventualmente se dedicaria a estas praticas de alterne e tem conhecimento do modus operandi dos arguidos ( os "organizadores").
Finamente se dirá, na esteira do salientado pelo M.P. nas promoções que a antecedem, que nada impede a prestação de depoimento por parte destas testemunhas em sede julgamento sendo contudo de extrema importância conservar prova inicial porquanto são conhecidas os mecanismos de condicionar as vitimas muitas vezes forçando-as a desaparecer ou a não colaborar com a Justiça.
Nestes termos, indeferem-se as arguidas irregularidades e nulidades invocadas.
Notifique”.
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Conhecendo:
As questões suscitadas no recurso respeitam a:
- Não fundamentação do despacho que agendou a tomada de declarações para memória futura, o que constitui vício de irregularidade e determina a invalidade do ato;
- Não verificação dos requisitos previstos no art. 271 do CPP, o que também constitui vício de irregularidade e determina a invalidade do ato;
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- Não fundamentação do despacho que agendou a tomada de declarações para memória futura:
Conforme se verifica, o despacho limita-se a agendar data para a realização do ato de tomada de declarações para memória futura, embora se possa inferir que faz esse agendamento por adesão aos fundamentos elencados pelo M. P. na sua promoção.
Porque essa tomada de declarações constitui exceção à marcha normal do processo, melhor seria que tivesse sido fundamentado.
No entanto temos que tal situação foi colmatada com a fundamentação ocorrida através do despacho proferido imediatamente antes da tomada de declarações, despacho esse de que também se recorre.
Verificar-se-ia a irregularidade invocada caso a questão não tivesse sido suscitada antes da tomada de declarações e não tivesse havido a justificação (fundamentação) para a realização da diligência.
Tendo sido suscitada a questão e fundamentada a necessidade da tomada de declarações para memória futura, antes da inquirição, sanada fica a eventual irregularidade que existia.
Agendar uma diligência não ofende ou viola qualquer princípio processual penal ou constitucional. O que tem de ser fundamentado é a realização do ato e, este foi fundamentado, nos termos do segundo despacho recorrido.
Irregularidade haveria se se tivesse realizado a diligência (tomado as declarações) sem qualquer justificação/fundamentação.
Acrescendo que a não fundamentação de um despacho não pode configurar uma proibição de prova.
Por outro lado, refere o Ac. desta Relação, recurso nº 2721/2001 de 19-12-2001 (relator Cons. Oliveira Mendes), “I- Em matéria de invalidade da prova há que distinguir entre regras de produção de prova, proibição de produção de prova e proibição de valoração de prova.
II- A prova obtida através de método proibido é insuscetível de valoração pelo tribunal.
III- A prova obtida contra legem, mas através de método não proibido, pode ser valorada sempre que suscetível de se obter através de meio ou procedimento conforme à lei, suposto, evidentemente, que a irregularidade do ato de produção de prova não haja sido arguida”.
Acrescendo que nada impede, caso haja essa possibilidade, de as testemunhas ouvidas nestas circunstâncias poderem prestar depoimento na audiência de julgamento, hoje expressamente prevista no nº 8 do art. 271 do CPP (redação da lei 48/07), mas já anteriormente admissóvel.
Conferir neste sentido o Ac. desta Relação, de 20-05-2009, proferido no processo nº 5/02.7ZRCBR.C1, “A tomada de declarações para memória futura não impede que a testemunha possa prestar depoimento em audiência de julgamento, desde que o tribunal considere a repetição necessária para a descoberta da verdade, nos termos do art. 340, nº 1, do C. Processo Penal, oficiosamente ou a requerimento, e desde que repetição não ponha em risco a saúde da testemunha”.
Assim que nesta parte se julgue improcedente o recurso.
- Não verificação dos requisitos previstos no art. 271 do CPP:
As declarações para memória futura constituem uma exceção ao princípio da imediação e, são diligências de prova realizadas pelo juiz de instrução na fase do inquérito, sujeitas ao princípio do contraditório [reforçado pela nova redação do nº 3 do artigo citado], e que visam a sua valoração em fases mais adiantadas do processo como a instrução e o julgamento, mesmo na ausência das pessoas que as produziram.
Neste acórdão da Relação de Coimbra se indicam os requisitos da tomada de declarações para memória futura: “- Que a testemunha a inquirir esteja afetada por doença grave ou que tenha que se deslocar para o estrangeiro;
- Que seja previsível, quer por causa da doença, quer por causa da deslocação, que a testemunha esteja impedida de depor em julgamento.
Os requisitos são válidos para todos os crimes, com exceção dos crimes sexuais e, atualmente, com exceção dos crimes de tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual. Nestes casos, as vítimas podem ser ouvidas em declarações para memória futura [os ofendidos menores de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual sê-lo-ão sempre, nos termos do nº 2, vigente], sem exigência da verificação daqueles requisitos”.
Salienta-se que na redação da lei 48/2007 a expressão “crimes sexuais” foi substituída por “crimes de tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual”, o que pode não constituir alteração de grande relevância porque a norma atual abrangerá crimes contra a liberdade sexual e crimes contra a autodeterminação sexual.
No caso vertente, as testemunhas a quem foram tomadas declarações para memória futura teriam sido vítimas de crime em que era colocada em causa a sua liberdade sexual. Em causa o crime de lenocínio, indiciado, e que é um crime de natureza sexual, conforme se verifica da sua inserção sistemática no código penal, neste tipo de crime está em causa a liberdade sexual das mulheres aliciadas a se prostituírem.
Neste sentido se fundamenta a promoção do Mº Pº e se tem em conta tal fundamentação no despacho recorrido, “é, pois, legítimo concluir-se serem tais cidadãs as vítimas do crime de lenocínio objeto do presente inquérito, por serem elas as titulares do direito à liberdade e autodeterminação sexual, enquanto bem jurídico protegido por tal incriminação”.
Tratando-se de crime, indiciado, em que está em causa a liberdade sexual das mulheres a quem se pretende tomar declarações, a decisão da tomada de declarações para memória futura não tem de estar fundamentada na previsibilidade de as testemunhas não estarem presentes em julgamento em razão de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro.
Questão diferente é a de saber se são relevantes, ou não, as declarações prestadas, circunstância que só após serem prestadas as declarações se saberá e, se nada de relevante foi referido nessas tomadas de declarações (como o entende o recorrente),tal só funcionará em benefício da defesa.
Na redação vigente do art. 271, a tomada de declarações não pode ser levada a efeito sem a comparência do defensor, o qual pode formular perguntas adicionais, após a inquirição feita pelo juiz.
Pode não ser o contraditório pleno, dada a fase processual em que se encontra o processo e as limitações à consulta integral do mesmo, mas é o contraditório possível e suficiente para assegurar os direitos de defesa do arguido.
Como se refere no Ac. desta Relação nº 1312/06 de 10 de Maio de 2006 (relator Dr. Esteves Marques) “A tomada de declarações para memória futura não legitima a consulta, pelo arguido, de peças do inquérito em segredo de justiça e a que aquele não tem acesso nos termos gerais”.
Face ao exposto entende-se não se verificar qualquer irregularidade na tomada de declarações para memória futura.
Pelo que temos o recurso como improcedente.
Decisão:
Atentos ao exposto, acordam os Juízes desta Relação e Secção Criminal em julgar improcedente o recurso do arguido A... e, em consequência, mantém-se o despacho que determinou a tomada de declarações para memória futura, bem como a validade destas.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça fixada em 5 Ucs.
Coimbra,