Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
33/09.1PEFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: CRIME DE TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES DE MENOR GRAVIDADE
CANNABIS
Data do Acordão: 11/17/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA FIGUEIRA DA FOZ – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 25º, AL. A), DL Nº 15/93, DE 22/1
Sumário: 1. A opção pelo tipo privilegiado, tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. p. pelo art. 25º, al. a), DL nº 15/93, de 22 de Janeiro, não poderá resultar exclusivamente da natureza do estupefaciente em presença, cannabis,
2. A lei não prevê uma desqualificação automática da gravidade do crime em função da natureza do estupefaciente traficado, ainda que aponte para uma menor gravidade dos crimes envolvendo estupefacientes menos danosos para a saúde pública.
3. O tráfico de cannabis não tem o carácter menosprezável do ponto de vista criminal que frequentemente se pretende atribuir-lhe. A ideia actualmente muito generalizada de que o consumo de cannabis não tem efeitos perniciosos nem gera dependência não tem fundamento científico.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO:

Nestes autos de processo comum que correram termos pelo 1º Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz, após julgamento com documentação da prova produzida em audiência foi proferido acórdão do Tribunal Colectivo em que se decidiu nos seguintes termos:
(…)
Consequentemente, o Tribunal Colectivo julga provada e procedente a douta acusação, embora com qualificação jurídica mais favorável aos arguidos e decide:
Absolver ambos os arguidos da prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art. 21º, nº 1, do DL nº 15/93, de 22/1.
Condenar a arguida A… na pena de dois (2) anos e seis (6) meses de prisão, pela prática em co-autoria de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido pelo art. 25º, a) do DL nº 15/93, de 22/1.
Suspender a execução da pena de prisão aplicada à arguida pelo prazo de dois (2) anos e (6) seis meses, sob condição de demonstrar nos autos de seis em seis meses, a contar do trânsito em julgado desta decisão, ter continuado o curso de formação profissional, até seu término e sob regime de prova, sujeita a plano de reinserção social a elaborar pela D.G.R.S., ficando obrigada a apresentar-se mensalmente, nesse período, nas instalações do Instituto da Droga e da Toxicodependência da sua área de residência e seguir os conselhos que ali lhe derem para despistar o consumo de haxixe.
Condenar o arguido M... na pena de três (3) anos e seis (6) meses de prisão, pela prática em co-autoria de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido pelo art. 25º, a), do DL nº 15/93, de 22/1.
Suspender a execução da pena de prisão aplicada ao arguido pelo prazo de três (3) anos e seis (6) meses, sob condição de demonstrar nos autos ter começado a trabalhar no prazo de três meses a contar do trânsito em julgado desta decisão e sob regime de prova, sujeito a plano de reinserção social a elaborar pela D.G.R.S., ficando obrigado a apresentar-se mensalmente nesse período, nas instalações do Instituto da Droga e da Toxicodependência da sua área de residência e seguir os conselhos que ali lhe derem para despistar o consumo de haxixe.
(…)

Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, retirando da respectiva motivação as seguintes conclusões:
1 - Recorre-se do douto acórdão deste Tribunal de Circulo da Figueira da Foz, proferido a 19-05-2010, constante dos autos de Processo Comum Colectivo n° 33/09.1PEFIG, do 1º Juízo Criminal, do Tribunal Judicial da Figueira da Foz.
2 - Mas apenas na parte em que condenou os arguidos A… e M... como co-autores de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, do artigo 25°, alínea a), do Decreto-Lei na 15/93, de 22 de Janeiro, nas penas de dois (2) anos e seis (6) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo prazo de dois (2) anos e seis (6) meses, sob condição de demonstrar nos autos de seis em seis meses, a contar do trânsito em julgado da decisão, ter continuado o curso de formação profissional, até seu término e sob regime de prova, sujeita a plano de reinserção social a elaborar pela D.G.R.S., ficando obrigada a apresentar-se mensalmente, nesse período, nas instalações do Instituto da Droga e da Toxicodependência da sua área de residência e seguir os conselhos que ali lhe derem para despistar o consumo de haxixe e de três (3) anos e seis (6) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sob condição de demonstrar nos autos ter começado a trabalhar no prazo de três meses a contar do trânsito em julgado da decisão e sob regime de prova, sujeito a plano de reinserção social a elaborar pela D.G.R.S., ficando obrigado a apresentar-se mensalmente, nesse período, nas instalações do Instituto da Droga e da Toxicodependência da sua área de residência e seguir os conselhos que ali lhe derem para despistar o consumo de haxixe, respectivamente.
3 - O recurso é restrito à matéria de direito.
4 - Entende-se, em primeiro lugar, que face à factualidade provada, a conduta dos arguidos A… e M... integra o crime de tráfico de estupefacientes, do artigo 21°, nº l, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, que lhes foi imputado na acusação, e não o crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, do artigo 25°, alínea a), do mesmo diploma legal, por que vieram a ser condenados.
5 - Na verdade, considerando sobretudo a quantidade de substância estupefaciente que lhes foi apreendida suficiente, pelo menos, para 1317 doses individuais - demonstrativa do elevado número de consumidores com que os arguidos contactavam, terá de concluir-se que a sua actividade ia muito para além do tipo de tráfico de dealer de rua.
6 - O conjunto de factos dados por provados revela, aliás, uma dedicação intensa e exclusiva à actividade de venda de estupefacientes e é de todo incompatível com o grau menor de ilicitude exigido pela previsão típica do artigo 25°, do Decreto-Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro.
7 - Não poderá, pois concluir-se, relativamente aos arguidos, como fez o tribunal recorrido, por um menor grau de ilicitude.
8 - Acresce que tendo o crime de tráfico de estupefacientes consequências sociais e de saúde pública tão graves, só quando da factualidade provada resultar que a ilicitude se encontra consideravelmente mitigada é que será possível enquadrá-la no tráfico de menor gravidade, o que não é manifestamente o caso dos autos.
9 - Tanto mais que a distinção entre traficantes deve resultar das penas concretamente aplicadas, atendendo à maleabilidade do sistema no que respeita à amplitude das penas e não de uma catalogação pré definida de tipos de crime previstos no Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, cujos objectivos são diferentes dos defendidos pelo Tribunal recorrido.
10 - De resto, já o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra entendeu que o crime em causa, nestes autos, era o de tráfico de estupefacientes, do artigo 21°, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, quando julgou improcedente, por douto Acórdão de 4 de Novembro de 2009, o recurso apresentado pelo arguido M..., mantendo a decisão que lhe aplicou a medida de coacção de prisão preventiva.
11 - Entende-se, por outro lado, que, na sequência do exposto, deverão ser alteradas as penas aplicadas àqueles arguidos.
12 - Com efeito, considerando a moldura penal do crime de tráfico de estupefacientes do artigo 21°, nº 1, do D.L. 15/93, de 22 de Janeiro; a ilicitude - elevada - da conduta dos arguidos; a circunstância destes nunca terem assumido os factos que lhe eram imputados ou sequer denotado arrependimento; à sua culpa, revelada pelos seus comportamentos, levados a cabo com dolo directo; o seu enquadramento familiar e o seu contexto vivencial; o consumo de estupefacientes por parte dos arguidos; as anteriores condenações; as necessidades, muito significativas, de prevenção geral e especial que se fazem sentir, entendemos dever aplicar-se à arguida A… uma pena de 4 (quatro) anos e 2 (dois) meses de prisão e ao arguido M... uma pena de 4 ( quatro) anos e 8 ( oito) meses de prisão.
13 - No que concerne à arguida A..., pelas razões avançadas no douto acórdão de que se recorre, acreditamos que a simples censura do facto e a ameaça da prisão bastarão para a afastar da prática de novos crimes e satisfazer as necessidades de reprovação e prevenção do crime em causa nestes autos.
14- Afigura-se-nos, pois, que se deverá suspender a execução da pena de prisão que lhe for imposta por um período de duração igual ao da pena de prisão, acompanhado de regime de prova, nos termos do artigo 53°, nº 1, do Código Penal.
15- Porém, no que concerne ao arguido M…, a pena de prisão nunca poderá ser suspensa na sua execução, por não ser possível formular um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento daquele arguido.
16- Com efeito, a opção de suspender tal pena de prisão na sua execução seria certamente vista pela comunidade, relativamente a este arguido, como sinal de impunidade, retirando toda a sua confiança ao sistema repressivo penal, face à gravidade do crime em causa; à personalidade daquele arguido, que praticou os factos destes autos em pleno período de suspensão da pena que lhe foi imposta no âmbito de um outro processo; à perigosidade por eles revelada e às necessidades de prevenção geral;
17 - Exigências de prevenção geral essas tão notórias e evidentes que nos parece não ser sequer necessário enfatizá-las, assolando de resto esse flagelo este Círculo Judicial com muitíssima frequência.
18 - De resto, as circunstâncias invocadas pelo tribunal recorrido para fundamentar a suspensão da execução da pena de prisão, relativamente àquele arguido são de pouco valor, sabido como é que a inserção familiar e até social não são invulgares nos agentes deste tipo de criminalidade.
19 - Aliás, não se vê, de modo algum, que o arguido se encontre socialmente enquadrado, ou que evidencie hábitos de trabalho.
20 - Na verdade, o arguido não se encontra actualmente inserido no mundo laboral, sendo ainda evidente, no seu caso, algum desnorte existencial acicatado pelo consumo de drogas.
21 - Acresce que o arguido M…, à data da prática dos factos ora em discussão, já havia sido condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, no âmbito do Processo Sumário nº 61/0S.4PTBRR, do 2º Juízo Criminal do Tribunal do Barreiro, por sentença de 27-1 0-200S, transitada em julgado, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de € 5, num total de € 400 e na pena acessória de proibição de conduzir durante três meses e quinze dias e pela prática, em 15-04-2007, de crimes de detenção de arma proibida, de detenção de munições de arma de fogo e de ofensa à integridade física qualificada, por acórdão de 21-04­-2008, transitado em julgado, na pena única de dois anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período e sob regime de prova, no âmbito do Processo Comum Colectivo nº 301/07.7PBFIG, do 2° Juízo, do Tribunal Judicial da Figueira da Foz.
22 - Demonstrou, pois, este arguido, de forma clara, a sua indiferença e total insensibilidade às condenações sofridas, ao reiterar a sua conduta ilícita.
23 - Se as condenações anteriores não foram suficientes para cumprir os objectivos de prevenção geral e especial subjacentes à aplicação das penas, não se descortina como tais objectivos possam ser concretizados com a imposição de outra pena de prisão suspensa na sua execução, mesmo se acompanhada de regime de prova;
24- A personalidade do arguido M..., as suas condições de vida, o seu comportamento anterior ao crime por que agora foi condenado, os objectivos da punição do crime de tráfico de estupefacientes do art. 21°, nº 1, do D.L. nº 15/93, mormente as elevadas exigências preventivas, especiais e sobretudo gerais, desaconselham, de forma clara e evidente, segundo nos parece, a suspensão da execução da pena de prisão.
25 - Pelo que apenas a aplicação de uma pena de prisão efectiva é susceptível de acautelar os mencionados objectivos da punição.
26 - De resto, como é sabido, o STJ vem entendendo que, não se verificando no caso circunstâncias excepcionais, não deve suspender­-se a execução da pena de prisão aplicada pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, por a tanto se oporem as expectativas comunitárias da norma violada.
27 - Decidindo diferentemente, violaram os M.mos Juízes recorridos, por erro de interpretação, os artigos 21°, nº 1; 25°, ambos do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro; 40°, 71°, nºs 1 e 2 e 50°, nº 1, todos do Código Penal.
Termos em que, e nos mais de direito, deve o recurso ser provido, reformando-se o douto acórdão recorrido conforme o proposto e condenando-se os arguidos A… e M... como autores de um crime de tráfico de estupefacientes, do artigo 21°, nº 1, do Decreto-Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro, numa pena de quatro (4) anos e dois (2) meses de prisão e numa pena de quatro (4) anos e oito (8) meses de prisão, respectivamente, esta última nunca suspensa na sua execução, com o que se fará a costumada justiça.

Os arguidos responderam pugnando pela improcedência do recurso, com a consequente manutenção do decidido pelo Tribunal Colectivo.
Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer sufragando a posição assumida pelo M.P. em 1ª instância, pronunciando-se pela procedência do recurso.

Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, há que decidir as seguintes questões:
- Qualificação jurídica dos factos provados;
- Alteração da medida das penas de prisão aplicadas aos arguidos;
- Imposição de pena de prisão efectiva ao arguido Mauro.

*
*

II - FUNDAMENTAÇÃO:

No acórdão recorrido tiveram-se como provados os seguintes factos:
Os arguidos A… e M..., até 14.08.2009, viviam em condições análogas às dos cônjuges, na Estrada de M…, na Figueira da Foz, sendo pais do filho comum I…, nascido a 09.08.2008.
A última remuneração do arguido M... data do mês de Março de 2009, altura em que trabalhou por conta da sociedade «J…, Lda.», com sede em P…, Barreiro, encontrando-se, desde então, desempregado.
No ano de 2008, o arguido M... declarou, ao nível de IRS, rendimentos na ordem dos €3.879,23, que auferiu desde Maio até Dezembro, inclusive, de 2008, como trabalhador da sociedade «Q…, Ld.ª», com sede em Montemor-o-Velho, da qual ainda recebeu mais €1.350 pelo trabalho prestado de Janeiro a Março de 2009.
Em 2005, entre Outubro e Dezembro, inclusive, trabalhou para a sociedade «C…, Ld.ª», da qual auferiu a remuneração global de €1.015,39.
Trabalhara igualmente para a sociedade «T…, Ld.ª», com sede em Lisboa e estabelecimento no Parque Industrial da C…, Seixal, entre Maio e Dezembro de 2004, inclusive, da qual recebeu o montante remuneratório global de €2.450,88.
A gerência desta empresa informou que o arguido foi seu empregado a partir de 2003 e sempre demonstrou grandes qualidades tanto no desempenho das suas funções como no relacionamento com os colegas, considerando-o pessoa com grande potencial de desenvolvimento tanto humano como profissional e que merece a oportunidade de desenvolver este potencial numa equipa onde o seu trabalho foi muito apreciado, estando disposta a contratá-lo de novo como seu trabalhador.
A arguida A… completou o 6º ano de escolaridade e foi empregada de mesa no restaurante «O Púcaro», pertencente a sua mãe, auferindo então o montante mensal de €350,00.
Frequenta o Curso de “Acompanhante de Acção Educativa”, CEF Tipo 2 de dupla certificação (equivalência ao 9º ano de escolaridade e certificação profissional) que decorre entre 15/2/2010 e 4/8/2011, sendo promovido e ministrado pela F…, em Lisboa, co-financiado pelo Fundo Social Europeu e o Ministério do Trabalho e da Solidariedade, no âmbito do QREN – POPH, Região do Centro.
A arguida aufere nesse curso o subsídio de alimentação de €4,27 por dia e recebe mensalmente €420 a título de Rendimento Social de Inserção.
Recebe ajuda da sua mãe e da mãe do companheiro.
É dona de um automóvel Fiat, modelo Punto, de 1995, cujo preço está pago.
Os arguidos pagam, relativamente à sua habitação, uma renda mensal de €250,00.
No dia 14.08.2009, entre as 11h20 e as 11h45, durante a efectivação, por elementos da Esquadra de Investigação Criminal da Figueira da Foz da PSP, de uma busca domiciliária judicialmente autorizada, na sobredita residência dos arguidos, na sequência de factos que se encontravam a ser investigados no âmbito do Inquérito n.º 595/09.3PBFIG, dos Serviços do Ministério Público da Figueira da Foz, foram apreendidos a M... e a A… os seguintes valores, bens e substâncias:
- na cozinha, sita no rés-do-chão daquela habitação, numa bancada ali existente, por trás do micro-ondas, cinco placas de um produto acastanhado, com o peso líquido de 479,800 gramas – que, uma vez sujeito a exame, no Laboratório de Polícia Científica, revelou tratar-se de canabis (resina) –, tendo sido o arguido M... quem indicou aos elementos da PSP o local onde guardava tal produto e o retirou dali;
- no móvel da sala de entrada, sita também no rés-do-chão, concretamente na estante, dentro de um copo, 10 (dez) notas de €20,00 (vinte euros), perfazendo a quantia de € 200,00 (duzentos euros);
- na sala do piso superior, junto a um móvel localizado junto da porta de sacada ali existente, uma bolsa de nylon (térmica), da marca «Coca-Cola», contendo três pedaços de um produto acastanhado, com o peso líquido de 167,135 gramas, o qual, uma vez sujeito a exame, no Laboratório de Polícia Científica, revelou tratar-se de canabis (resina);
- na mesa-de-cabeceira existente do lado esquerdo da cama do quarto dos arguidos, sito no piso superior, uma bolota em ouro amarelo, com o peso de 6,07 gramas;
- dentro da mala pessoal da A…, uma carteira em tecido de cores variadas, contendo seis pedaços de um produto acastanhado, com o peso líquido de 11,279 gramas, o qual, uma vez sujeito a exame, no Laboratório de Polícia Científica, revelou tratar-se de canabis (resina).
O produto estupefaciente apreendido seria suficiente para cerca de 1317 doses individuais.
A bolota em ouro amarelo, com o peso de 6,07 gramas, foi avaliada em €130,00 (cento e trinta euros).
As quantias monetárias e a bolota em ouro amarelo apreendidas aos arguidos provinham da venda de produtos estupefacientes.
Agiram os arguidos A… e M... de forma livre, concertada, em comunhão de esforços, conhecendo a natureza e as características da substância que lhes foi apreendida, a qual lhes pertencia e que os mesmos detinham na sua posse com vista à revenda a terceiros, no propósito de auferirem vantagem económica, sendo igualmente conhecedores da danosidade social em termos de saúde pública decorrente da cedência deste tipo de produto, o que representaram.
Apesar desse conhecimento, os arguidos não se coibiram de levar a cabo a conduta acima descrita.
Os arguidos bem sabiam que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
A arguida A… evidencia uma acentuação de traços de personalidade passivo-agressivos e consumos esporádicos de haxixe.
O arguido M... evidencia um padrão de uso e abuso de canabinóides (haxixe), com consumo actual da substância, num fundo de personalidade onde revela uma acentuação de traços de desconfiança e imaturidade.
No Processo Comum Colectivo n.º 301/07.7PBFIG, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz, o arguido M..., por acórdão datado de 21.04.2008 e com trânsito em julgado de 12.05.2008, foi condenado na pena única de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo prazo de 2 (dois) anos e sob regime de prova, assente num plano executado pelos serviços de reinserção social, pela prática de factos datados de 15.04.2007 e integradores dos crimes de detenção de arma proibida, de detenção de munições de arma de fogo e de ofensa à integridade física qualificada.
Foi ainda condenado no Processo Sumário nº 61/08.4PTBRR do 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro, por sentença de 27.10.2008 e com trânsito em julgado de 2.12.2008, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de €5, num total de €400 e na pena acessória de proibição de conduzir durante 3 meses e 15 dias, pela prática em 19.10.2008 de um crime de condução em estado de embriaguez.
A arguida A… foi condenada no Processo Sumaríssimo nº 816/06.4PBFIG do 3.º Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz, por sentença de 5.06.2007, logo transitada em julgado, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de €3, num total de €150, que pagou em 28.07.2007, tendo sido declarada extinta a pena.

Relativamente ao não provado foi consignado o seguinte:
O haxixe apreendido daria para 1330 doses individuais.
A arguida ainda trabalha no restaurante da mãe.

A convicção do tribunal recorrido quanto à matéria de facto foi fundamentada nos seguintes termos:
A nossa convicção está alicerçada nos depoimentos das seguintes testemunhas ouvidas em julgamento:
J…, Subcomissário da PSP e comandante da esquadra de investigação criminal da …, já conhecia os arguidos por via da sua actividade profissional, o qual referiu que a busca em casa dos arguidos veio no decurso da busca em casa do irmão da arguida A... (havendo mandado judicial para a busca em ambas as habitações, como se vê a fls. 10).
Em casa dos arguidos estava o arguido M...e os agentes da PSP vinham com a A... de casa do B... (irmão dela). Perguntaram-lhe se ele tinha algo que o comprometesse e o M...indicou haver placas de haxixe atrás do micro-ondas, que encontraram, com o peso de 400 e poucos gramas. O arguido disse que não tinha mais nada, mas no móvel da sala encontraram 10 notas de €20 dentro de uma lata; um telemóvel “Express Music” que fora roubado em Coimbra; no quarto encontraram um crucifixo e uma bolota, ambos em ouro e 60 e tal gramas de haxixe; na mala da A... encontraram 6 pedaços de haxixe e um telemóvel roubado na Figueira da Foz, que ela estava a utilizar.
Do M...havia informação recente de que traficava, antes não. A busca não fora realizada por esse motivo e sim por causa de objectos roubados pelo irmão da A....
*
V…, agente principal da PSP na …, conhece os arguidos de os ver nesta cidade.
Na sequência de busca à casa do irmão da arguida, no fim daquela disseram-lhe que teriam de ir à residência dela.
O Comissário perguntou ao M...se ele tinha algo que o comprometesse e ele indicou a quantidade de haxixe que tinha na cozinha. Continuaram a busca e no armário da sala, numa lata, havia 10 notas de 20 euros e um telemóvel, sendo apurado depois que fora roubado em Coimbra; a arguida tinha uma saquinha em tecido com 6 pequenas barras de haxixe com 11 gramas e um telemóvel roubado na Figueira da Foz; no quarto havia uma cruz e uma bolota em ouro, tendo apurado que aquele telemóvel e a cruz foram roubados pelo B...e o outro telemóvel fora roubado em Coimbra por um grupo de jovens.
O arguido era do «grupo dos bonés» que andava no Bairro Novo a fazer desacatos e furtos, relacionados com droga. Colaborou com os agentes, mas só disse da maior quantidade de haxixe, eles é que descobriram mais.
Por vezes encontra a arguida junto ao restaurante onde a mãe trabalha; ia lá regularmente.
*
J…, agente principal da PSP na …, conhece os arguidos em resultado da sua actividade profissional.
Fez as fotografias que ilustram a busca e apreensão na residência dos arguidos (fls. 21 e segs.).
Confirmou que foi feita uma busca no âmbito do processo relativo ao B…, irmão da arguida e depois outra, na casa da irmã.
O Comissário perguntou por algo que os comprometesse e o M...disse logo o que estava na cozinha, o resto não.
Disse que o M...era referenciado como traficante há algum tempo. Há meses.
*
D…, agente principal da PSP na …, conhece os arguidos em resultado da sua actividade profissional.
Disse que, no seguimento de mandados de busca, foram a casa deles, onde encontraram estupefaciente, dinheiro e tudo o mais que consta dos autos (estão a fls. 17 e segs).
A arguida assistira a buscas em casa da mãe e começou a chamar o companheiro por telemóvel. A A..., com chaves da casa dela em sua posse, não abriu a porta, mas tinham mandados para as duas residências.
Um colega entrou na casa deles e abriu a porta por dentro, por ter visto que o M...estava a querer desfazer-se de algo e depois o arguido disse o que tinha na cozinha. Seguidamente encontraram uma mala térmica com 167 g de haxixe, uma bolota de ouro que fora roubada (e de que havia queixa), um crucifixo e dois telemóveis, um roubado em Coimbra e outro na Figueira da Foz, apesar de ele dizer que não tinha mais nada.
Referências sobre tráfico só existiam relativamente a ele e ao B…, mas não tinham provas até à data sobre o M…; sabiam por conversas com indivíduos «pequenos», que não conseguiam agarrar os «grandes».
*
Estes depoimentos dos agentes policiais são dignos de crédito, confirmando-se o que disseram através do mandado de busca, dos autos de busca e apreensão, das fotografias e dos testes rápidos (fls. 10 e 17 a 27), estes últimos depois confirmados, com pesagem rigorosa, pelo exame pericial de fls. 225/226. A fls. 273 está o auto de exame directo e avaliação da bolota em ouro, que se entende ter sido obtida pelos arguidos mediante a venda de haxixe, pois fora roubada.
Quanto ao que informalmente os arguidos lhes disseram sobre a proveniência de alguns objectos apreendidos e que espontaneamente os agentes referiram em julgamento, não pode valorar-se como prova (artº 356º, nº 7, do C.P.P.). As informações que obtiveram sobre os arguidos antes das buscas não constituem senão suspeitas, não sendo provas contra os mesmos, valorando-se, antes, o que consta dos respectivos certificados de registo criminal e da certidão do acórdão que condenou o arguido em pena de prisão com suspensão da sua execução, respectivamente a fls. 506, 516 e 193.
*
Ouvimos as seguintes testemunhas abonatórias:
R…, divorciada, ajudante de cozinha na Figueira da Foz, mãe da A..., disse que a filha está a tirar um curso relativo a crianças, recebendo a alimentação e €60 por isso. É a testemunha que a ajuda e paga a creche do neto, nascido em 9/8/2008.
O neto fez anos no dia 9 (antes da busca), a testemunha fez-lhe a festa de aniversário e deu-lhe 100 euros de prenda, em notas de 20 e 10 euros (parece que a testemunha quis demonstrar que o dinheiro apreendido tinha essa proveniência, mas não se entende assim, porque a quantia encontrada pela PSP foi de €200 e só em notas de 20 euros).
A filha trabalhava com ela no seu restaurante e pagava-lhe o «ordenado» de 350 euros.
Desde que menino o nasceu o M...ficou doente e depois teve vergonha de se apresentar ao serviço (não é assim, pois só deixou de trabalhar em Março de 2009).
A filha, à sua frente, não consome haxixe, mas sabe que o faz com as amigas.
O M...consome desde que o conhece.
*
V…, divorciada, frequenta um curso de formação familiar, residindo na Figueira da Foz.
É amiga da A... e conhece o M…. Ia comer ao restaurante da mãe e conhece-a desde pequena. Trabalharam ambas nesse restaurante. A A... estava sempre pronta a ajudar, sendo responsável como mãe. Nunca lhe disse consumir haxixe.
São colegas e «pensa» que ela ganha 300 ou 330 e pouco euros na formação (o que a arguida não confirmou).
A A... tem formação na área da infância (há documento comprovativo a fls. 494), onde «pensa« vir a ter emprego, mas não sabe ainda de oferta dele.
*
G…, solteiro, militar, irmão do M…, reside no Barreiro.
Com o pai falecido, o irmão M...desde muito novo tomou posição de pai face à testemunha, ensinando-lhe electricidade e mecânica.
Ofereceu-lhe o primeiro carro, dava-lhe mesada, ensinou-o sobre o trabalho e a vida.
Tem muito orgulho nele, embora o M...tenha os seus defeitos, como toda a gente (aqui nota-se o exagero da testemunha em defesa do irmão: nem toda a gente tem, felizmente, um cadastro e o vício do consumo de haxixe, como o M…).
O M...sempre foi melhor que a testemunha a matemática e apoiou-o na disciplina, aconselhando-o a ir para a Marinha, que era o melhor para si.
O irmão sempre trabalhou nas obras desde os 17 anos, sempre fez IRS (há declarações a fls. 355 e segs., de 2007 e 2008) e ajudou a mãe, deixando boa imagem em todas as empresas onde passou - sempre foi bom trabalhador (há uma declaração de uma antiga entidade patronal a fls. 496 que o confirma).
Desde muito cedo, antes dos 15 anos, por andar com más companhias, o M...iniciou o consumo de haxixe, que reconhece ser vício prejudicial, embora seja visto como banal no bairro, onde toda a gente fumava.
Não trabalha desde Março de 2009, mas diz que vai deixar a droga e a testemunha espera que sim.
*
O…, solteiro, distribuidor no armazém Recheio, na Figueira da Foz, conhece e é amigo de ambos os arguidos, dela desde a infância e dele há 4 ou 5 anos.
Sabe que o M...consome haxixe, dela não tem conhecimento que o faça.
A testemunha fuma haxixe muito raramente e já consumiu com o M…, mas este possivelmente é consumidor no dia-a-dia (tal não convence o Tribunal de que a quantidade de droga detida pelos arguidos fosse apenas para consumo próprio, pois daria para cerca de 1317 doses).
O M...é excelente pai, dá toda a atenção do mundo ao filho.
Andava à procura de emprego, mas nunca lhe disse ir deixar o consumo de haxixe.
*
Pelo exposto, somente se aproveitou dos depoimentos das testemunhas de defesa o que se mostrou compatível com a demais prova feita em julgamento e constante dos autos.
Os arguidos prestaram declarações a final sobre as suas condições sócio-económicas e familiares.
A arguida referiu ter completado o 6º ano de escolaridade e estar a frequentar um curso de acção educativa (fls. 494), auferindo apenas o subsídio de alimentação de €4,27 por dia, mas recebendo €420 por mês de Rendimento Social de Inserção.
Paga €250 por mês de renda de casa (de fls. 155 a 158 está o contrato de arrendamento).
Recebe ajuda da mãe e da «sogra».
Tem um filho, nascido em 9/8/2008, que está consigo (a fls. 160 há cópia da certidão de assento de nascimento).
É dona de um automóvel Fiat, modelo Punto, de 1995, cujo preço está pago.
*
O M...referiu que com 9 anos estava internado na Casa Pia de Lisboa, tendo conseguido obter um curso técnico-profissional de mecânica automóvel.
Trabalhou como ajudante de electricista, em transformação automóvel, em obras de construção civil, como ajudante técnico de sistemas de frio e, um mês, como empregado de mesa.
A mãe pediu ajuda ao primeiro patrão dele e aquele disse estar disposto a recebê-lo.
É o Dr. D…, da empresa T…, no parque industrial da zona do Barreiro, que labora na transformação de automóveis em veículos a gás, ambulâncias, carros funerários e vários outros (há declaração a fls. 496, que se aceita).
Só tem este filho (seu e da A...).
*
Tivemos ainda em conta:
- de fls. 336 a 340, a perícia psiquiátrica médico-legal à arguida A... e de fls. 373 a 377 a perícia psiquiátrica médico-legal ao arguido M... .
- a fls. 346 e 347, a pesquisa computadorizada na base de dados da Segurança Social, relativa ao M...e os documentos que este juntou em complemento daquela a fls. 492 e 493, comprovativos dos empregos que tem tido.
*
Para o cálculo das doses de droga tivemos em consideração a Portaria nº 94/96, de 26/3.

*
*

O recurso interposto é restrito à matéria de direito.
A primeira das questões suscitadas pelo recorrente prende-se com a qualificação jurídica dos factos provados. A acusação deduzida imputava aos arguidos a prática em co-autoria material de um crime de tráfico de estupefacientes p. p. pelo art. 21º, nº 1, do DL nº 15/93, de 22 de Janeiro. Tendo os arguidos sido condenados pela co-autoria de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. p. pelo art. 25º, al. a), do mesmo diploma, sustenta o recorrente que a correcta valoração da matéria de facto provada deveria ter conduzido à sua condenação pelo crime que lhes havia sido imputado na acusação, alegação que se vem a traduzir na invocação de erro de direito na subsunção jurídica do provado.

Não tendo sido impugnada a matéria de facto, deverão os factos provados ter-se por definitivamente assentes, visto também não se evidenciar qualquer dos vícios enumerados nas alíneas do nº 2 do art. 410º do CPP. É essa, pois, a matéria de facto que apreciada numa visão de conjunto, determinará a subsunção jurídica que ao caso cabe.
Nas suas alegações de recurso refere com toda a pertinência o recorrente que o DL nº 15/93, de 22 de Janeiro, parte de um tipo fundamental, desenhado no respectivo art. 21º, temperando a punição do crime por recurso a dois outros preceitos, vertidos nos arts. 24º e 25º, que contemplam, respectivamente, a agravação e a menor gravidade do ilícito, a determinar em função da danosidade social evidenciada pelo grau de ilicitude e da especificidade da acção em concreto desenvolvida pelo agente.
Segundo o art. 21º, “quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder, ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no art. 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos”.
Trata-se, como é sabido, de crime formal, de perigo abstracto ou presumido, na medida em que é indiferente a realização de um certo evento, de um certo resultado, de uma modificação do mundo exterior, causada pela actividade contida no tipo legal de crime - Cfr. Eduardo Correia, “Direito Criminal”, Vol. I, pag. 286., não se exigindo para a sua consumação a existência de um dano real e efectivo; a sua consumação basta-se com a produção do perigo que a norma supõe, sendo o bem jurídico tutelado, fundamentalmente, o da saúde pública, na dupla vertente física e moral - Cfr. o Ac. do STJ de 24 de Novembro de 1999, in BMJ, nº 491, pág. 88 e ss.. A ilicitude do facto resulta da simples detenção de substância estupefaciente que, pelas suas características, é nociva para a saúde humana, e do perigo que tal situação potencia.
O art. 24º contempla situações de gravidade acrescida relativamente ao padrão normal tido em vista pelo legislador na caracterização típica do crime fundamental, prevendo uma agravação da pena para situações em que à verificação do tipo acresce a verificação de circunstâncias que conduzem a um juízo de censurabilidade mais intenso.
Por seu turno, o art. 25º contempla os casos de menor gravidade, orientando-se no sentido permitir que tais situações - identificadas pela apreciação global da conduta criminosa, por recurso a todos os elementos que as compõem, tais como os meios utilizados, modalidade de acção, qualidade e quantidade das drogas, etc. - não sejam tratadas com penas desproporcionadas ou exijam do julgador a utilização indevida do instituto da atenuação especial das penas. A verificação deste tipo legal de crime, partindo da tipicidade prevista nos arts. 21º e 22º da Lei nº 15/93, pressupõe, no entanto, uma ilicitude do facto consideravelmente diminuída em função dos meios utilizados, da modalidade ou das circunstâncias da acção e da qualidade ou quantidade das plantas, substâncias ou preparações.

A opção por esse tipo privilegiado não poderá resultar exclusivamente da natureza do estupefaciente em presença, cannabis, como em larga medida parece resultar da decisão recorrida. A lei não prevê uma desqualificação automática da gravidade do crime em função da natureza do estupefaciente traficado, ainda que aponte para uma menor gravidade dos crimes envolvendo estupefacientes menos danosos para a saúde pública. Diga-se, de todo o modo, que o tráfico de cannabis não tem o carácter menosprezável do ponto de vista criminal que frequentemente se pretende atribuir-lhe. A ideia actualmente muito generalizada de que o consumo de cannabis não tem efeitos perniciosos nem gera dependência não tem fundamento científico. Por contraposição, pode ler-se em “Consumo Ilícito de Drogas” - Ed. do Gabinete de Planeamento e de Coordenação do Combate à Droga, pag. 37. , a propósito deste estupefaciente, cujos preparados estão classificados como perturbadores do sistema nervoso central ou psicodislépticos, o seguinte:
“A dependência psíquica é mais forte do que a física. Em caso de consumo prolongado em altas dosagens pode-se observar um sindroma amotivacional (sindroma deficitário dos grandes fumadores que se traduz em: falta de estímulos, apragmatismos, diminuição de eficiência e fraca tolerância à frustração).
Em personalidades predisponentes pode ocorrer uma psicose cannábica em que são patentes a ansiedade, intranquilidade, delírio e alucinação.
Em casos pontuais, quando a personalidade de base é de estrutura psicótica, pode existir uma experiência delirante, mesmo que a droga não esteja a ser consumida na altura (flashback)”.
De todo o modo, sabido que a defesa da saúde pública é uma das vertentes de protecção visadas pela norma, o potencial maléfico das substâncias estupefacientes detidas pelos arguidos constitui elemento a atender pelo tribunal na qualificação da conduta.
Registe-se, no entanto, que a opção pelo tipo previsto no art. 25º, al. a), do DL nº 15/93, não se basta com uma diminuição da ilicitude do facto, antes exigindo que esta se revele consideravelmente diminuída.
O facto de os arguidos serem, eles próprios, consumidores de cannabis, não tem a virtualidade de implicar uma acentuada redução da ilicitude do facto.
No caso dos autos avulta sobretudo a apreciável quantidade de substância estupefaciente encontrada, que se demonstrou ser suficiente para cerca de 1317 doses individuais e que os arguidos destinariam essencialmente à venda a terceiros. Perante a quantidade de estupefaciente em presença não há como afirmar uma menor relevância do ilícito. Bem pelo contrário, aquela quantidade de estupefaciente, pela quantidade de transacções que proporcionaria, é reveladora de uma forte intenção criminosa, não havendo, assim, como afirmar a verificação de uma ilicitude consideravelmente diminuída, pelo que os requisitos do tipo privilegiado previsto no art. 25º, al. a), do DL nº 15/93, se deverão ter por afastados.
O crime em presença é, pois, o previsto no tipo fundamental previsto e punido pelo art. 21º, nº 1, do citado DL nº 15/93.

A moldura penal prevista para este crime é a de prisão de 4 a 12 anos, revelando-se desajustadas as penas encontradas num distinto enquadramento dos factos em sede de primeira instância. Entremos, pois, na apreciação da medida concreta das penas, a fazer segundo o critério fornecido pelo art. 71º do Código Penal, através da ponderação dos dois vectores que basicamente a conformam, a saber, a culpa do agente e as exigências de prevenção, com ponderação ainda de todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, todavia deponham a seu favor ou contra ele, tendo-se ainda presente que a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (cfr. art. 40º, nºs 1 e 2).
À culpa é cometida a função de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena.
A prevenção geral (dita de integração) fornece uma moldura de prevenção cujo limite é dado, no máximo, pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos - dentro do que é consentido pela culpa - e no mínimo, fornecida pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Por seu turno, à prevenção especial cabe a função de encontrar o quantum exacto da pena, dentro da referida função, isto é, dentro da moldura de prevenção que melhor sirva as exigências de socialização - Cfr. o Ac. do STJ de 10 de Abril de 1996, C.J.- Acórdãos do S.T.J., ano IV, tomo 2, pág. 168 e ss..
Os arguidos conheciam as características do produto que detinham, não ignorando que a posse de tal produto é proibida por lei. Assim, desde logo no que concerne ao elemento intelectual do crime, cabe notar que actuaram com dolo, na sua modalidade mais grave - dolo directo.
Quanto à ilicitude penal, como observa Cavaleiro de Ferreira - “Lições de Direito Penal”, I, págs. 66 e ss, desdobra-se em dois juízos ou qualificações: de ilicitude objectiva e de culpa ou culpabilidade, que correspondem à função valorativa e à função imperativa da norma jurídica. O primeiro, é indispensável para a existência do crime e prende-se com a tipicidade do facto. O segundo, respeita à sua quantidade ou gravidade. Nesta acepção a gravidade da conduta ilícita, ou seja o “grau de ilicitude”, afere-se pelo resultado final da conduta, que no caso em apreço encontra expressão na quantidade de substância estupefaciente detida, sem que se esqueça, no entanto, a natureza da droga em causa, apresentando uma perigosidade muito inferior à das chamadas drogas duras.
As necessidades de prevenção geral ditadas pela necessidade de protecção dos bens jurídicos tutelados pela norma violadas pelos arguidos e pela frequência com que crimes desta natureza se vêm sucedendo são inegáveis.
As necessidades de prevenção especial assumem particular relevância no que concerne ao arguido M..., cujos antecedentes criminais revelam já alguma propensão para o crime. Com efeito, para além da condenação no Processo Sumário nº 61/08.4PTBRR do 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro, por sentença de 27.10.2008, transitada em julgado, em que lhe foi imposta a pena de 80 dias de multa pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, foi ainda condenado no Processo Comum Colectivo n.º 301/07.7PBFIG, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz, por acórdão de 21.04.2008, transitado em julgado, na pena única de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo prazo de 2 (dois) anos e sob regime de prova, assente num plano executado pelos serviços de reinserção social, pela prática de factos datados de 15.04.2007 e integradores dos crimes de detenção de arma proibida, de detenção de munições de arma de fogo e de ofensa à integridade física qualificada.
No que concerne à arguida A..., os imperativos de prevenção especial evidenciados pelos seus antecedentes são mínimos.
Tudo isto ponderado e consideradas ainda as demais circunstâncias pessoais dos arguidos tal como constam do provado, oferecem-se como ajustadas as penas de 4 (quatro) anos e 2 (dois) meses de prisão para o arguido M...e de 4 (quatro) anos de prisão para a arguida A....

Segundo o art. 50º do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Temos, pois, como condicionadores da suspensão da execução da pena de prisão, um pressuposto de natureza formal – pena aplicada não superior a cinco anos de prisão – e um conjunto de requisitos materiais, cuja concretização casuística permitirá formular o juízo de prognose em que se vem a traduzir a decisão de suspensão, a saber, a personalidade do agente, as suas condições de vida, a conduta anterior e posterior ao facto criminoso e as circunstâncias deste.
Descodificando os apontados requisitos materiais à luz dos elementos atendíveis, haverá que equacionar num primeiro momento a personalidade do agente, a valorar de acordo com os indícios reunidos susceptíveis de fornecer elementos concernentes à seriedade e vontade do próprio arguido em lograr a sua reintegração social, adoptando uma postura que se identifique com os valores comummente aceites pela sociedade, mas sobretudo que opere uma definitiva cisão com a vertente da sua personalidade que o determinou ao cometimento do crime. Nesta acepção, o conceito de personalidade atendível será o da personalidade por referência ao facto.
Ora, a análise possível da personalidade dos arguidos por recurso ao provado, longe de permitir o juízo de prognose favorável à reinserção social do arguido M...como decorrência de uma eventual suspensão da execução da pena, antes evidencia uma personalidade que encararia essa suspensão como desculpabilização. Na verdade, o crime de que se conhece nos presentes autos foi cometido volvido pouco mais de um ano sobre a data da anterior condenação em pena suspensa, revelando que o arguido não interiorizou o desvalor da sua conduta nem foi capaz de conformar a sua actuação de acordo com os valores postulados pelo direito. Vale tudo isto por dizer que a finalidade da reinserção social, a equacionar por força da necessária referência ao art. 40º, nº 1, do Código Penal, se apresenta comprometida ab initio, não se satisfazendo as finalidades da punição com a simples censura do facto e com a ameaça da prisão. Assim, quanto a este arguido, a suspensão da pena não só não é merecida como não é aconselhável, face à concomitante necessidade de tutela dos valores jurídico-criminais subjacentes à norma violada.
Já no que concerne à arguida A..., o provado não contende com um juízo de prognose favorável, que o futuro se encarregará de confirmar ou desmentir. Haverá assim que suspender a execução da pena de prisão que lhe foi imposta pelo período de 4 (quatro) anos, mantendo os condicionalismos fixados pela primeira instância para essa suspensão.

*
*

III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, concede-se provimento ao recurso interposto pelo M.P. e consequentemente, revoga-se a sentença recorrida no que tange ao enquadramento legal e às penas impostas aos arguidos, condenando-se estes nos seguintes termos:
A – Condena-se a arguida A… na pena de 4 (quatro) anos de prisão, pela prática em co-autoria de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art. 21, nº 1, do DL nº 15/93, de 22/1.
Suspende-se a execução da pena de prisão aplicada à arguida pelo período de 4 (quatro) anos, sob condição de demonstrar nos autos de seis em seis meses, a contar do trânsito em julgado desta decisão, ter continuado o curso de formação profissional, até seu término e sob regime de prova, sujeita a plano de reinserção social a elaborar pela D.G.R.S., ficando obrigada a apresentar-se mensalmente, nesse período, nas instalações do Instituto da Droga e da Toxicodependência da sua área de residência e seguir os conselhos que ali lhe derem para despistar o consumo de haxixe.
B – Condena-se o arguido M... na pena de 4 (quatro) anos e 2 (dois) meses de prisão, pela prática em co-autoria de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art. 21º, nº 1, do DL nº 15/93, de 22/1.
Sem tributação nesta instância.

*
*

Coimbra, ____________
(texto processado e revisto pelo relator)




__________________________________
(Jorge Miranda Jacob)




­__________________________________
(Maria Pilar de Oliveira)