Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
134/10.3TAGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
Data do Acordão: 04/27/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 311º, DO C. PROC. PENAL
Sumário: Se os factos em causa assumem um conteúdo cuja interpretação não é incontroversa, não podendo, por isso, de forma inequívoca, afirmar-se que os mesmos não constituem o crime imputado, a acusação não deve ser considerada manifestamente infundada e, como tal, rejeitada, nos termos do art.º 311º, n.ºs 2, al. a) e 3, al. d), do C. Proc. Penal.
Decisão Texto Integral:

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I. RELATÓRIO.
No processo comum singular nº 134/10.3TAGRD, tendo sido deduzida acusação pelo Ministério Público contra MN..., solteiro, filho de JN... e de RL…, residente em …, em Gouveia, imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsificação de documento, previsto e punido, pelos artigos 256°, n° 1, alínea d), do Código Penal, o senhor juiz rejeitou a acusação, por se revelar manifestamente infundada, nos termos do artigo 311, n.° 2, al. a) e n.° 3, alínea d), do CPP.
Não se conformando com esta decisão, interpôs o Ministério Público recurso para este Tribunal da Relação.
Na sua motivação conclui:
«1a
O Ministério Público deduziu acusação pública contra o arguido MN..., porquanto, na fase de inquérito recolheu indícios suficien­tes de o arguido ter cometido, em autoria material e na forma consumada, um crime de falsificação de documento, p. e p. no art. 256°, n.° 1, al. c), do Código de Proces­so Penal.
2a
O Tribunal "a quo" rejeitou a acusação por manifestamente infundada por considerar que os factos descritos na acusação não constituem crime.
3a
Para tanto entendeu a decisão recorrida que o requerimento do arguido a declarar não ter recebido a carta de condução que acompanhava o pedido de 2a via da carta de condução não pode ser considerado um documento, para efeitos do cri­me de falsificação de documento.
4a
Salvo o devido respeito por opinião contrária, esta asserção não é correc­ta, pois que o documento, junto a fls. 6, corporiza uma declaração escrita, que per­mite reconhecer o emitente e é idónea para provar um facto juridicamente relevante - art. 255°, al. a), do Código Penal.
5a
Foi precisamente com base nesse documento (declaração nele corporizada) que a DVG emitiu a 2a via da carta de condução do arguido, o que significa que o documento serviu para prova de um facto juridicamente relevante (não recebimen­to da carta de condução), pois que, sem a prova desse facto a DGV não emitia, como emitiu, a 2a via da carta de condução.
6a
O deferimento da pretensão do arguido de emissão da 2a via da carta de condução apenas ocorreu por a DGV ter considerado provado o não recebimento da carta, facto atestado pelo arguido no documento junto a fls. 6, a que se refere a acu­sação, e indiciariamente falso.
7a
Do despacho de acusação consta a descrição do dolo especifico exigido pelo tipo legal do crime de falsificação de documento, previsto no art. 256°, n.° 1, al. d), do Código Penal, como seja a intenção de obter um beneficio a que não tinha direito.
8a
O dolo específico está descrito a fls. 34, na parte da acusação onde se refere que o arguido actuou de forma livre, deliberada e consciente... o que lhe permitiu conduzir veículos automóveis depois de a acarta de condução ter caduca­do.
9a
Os factos descritos na acusação serão suficientes para que o arguido venha a ser condenado pela prática do crime que lhe é imputado na acusação, sem prejuízo, se necessário, se proceder ao seu complemento em audiência de julgamen­to, nos termos permitidos pelo artigo 358°, do Código de Processo Penal.
10a
Apenas quando de forma inequívoca os factos que constam da acusação não constituem crime é que o tribunal pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeita-la.
11a
Os factos não constituem crime quando, entre outras situações, se verifi­ca qualquer causa de extinção do procedimento ou se a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificada como crime, o que não é o caso dos autos.
12a
Esse juízo tem de assentar numa constatação objectivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efectuada.
13a
O Mmo. Juiz ao rejeitar a acusação por manifestamente infundada, por inexistência de crime, violou ou interpretou de forma incorrecta o disposto nos arti­gos 255°, al. a), 256°, n.° 1, al. d) do Código Penal e 283°, 31 Io, n.° 2, al. a) e n.° 3, al. d), todos do Código de Processo Penal.

Nestes termos e nos demais de direito, deverá o presente recur­so ser julgado procedente e, em consequência, revogado o des­pacho recorrido e substituído por outro que receba a acusação pública deduzida e designe data, hora e local para a audiência.
Assim, farão V. Ex.cias JUSTIÇA.”
».

O arguido contra-alegou, concluindo que:

A) Não resultam do teor da acusação rejeitada elementos objectivos e subjectivos que permitam imputar ao arguido a prática de um facto tipificado na lei como crime.
B) Desde logo, não logrou o arguido obter, com a sua conduta, a emissão de qualquer documento que titulasse um facto falso: apenas foi emitida uma 2.a via de um documento que titulava uma habilitação legal para conduzir veículos automóveis que, efectivamente, o arguido detinha.
C) Igualmente, nenhum dos documentos mencionados nos presentes autos é um documento (nos termos legalmente definidos) falso, antes sendo ambas as cartas de condução documentos verdadeiros e autênticos.
D) Mesmo que se entendesse que a 2.a via da carta de condução foi obtida por acto ilegítimo do arguido, sempre a acusação seria omissa quanto a elementos objectivos e subjectivos essenciais, na exacta medida em que é completamente omissa relativamente a factos integradores do tipo de crime. Desde logo, nem sequer resulta da mesma que o arguido, à data de preenchimento do requerimento através do qual solicitou a 2.a via da carta de condução, tivesse já em sua posse a 1.a via da sua carta de condução e que, tendo consciência da ilicitude, soubesse e quisesse actuar por forma a obter benefício a que sabia não ter direito.
E) Assim, deve a decisão de rejeição da acusação ser mantida nos seus precisos termos, devendo ser negado provimento ao recurso, assim se fazendo
JUSTIÇA!”
*
A Exma Senhora Procuradora Geral Adjunta neste Tribunal emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, concluindo que o despacho que entendeu faltar na acusação deduzida pelo MP, em âmbito de processo comum, o elemento subjectivo do tipo legal imputado - crime de falsificação de documento, p. p. pelo art0 256°, n°l do C. Penal - e, por isso rejeitou a acusação deduzida, por manifestamente infundada, art0 311°, n°2 , al. a) do Código de Processo Penal, deverá ser substituído por outro que, considerando suficiente o requerimento acusatório efectuado a fls. 32/35, designe dia para julgamento, o que propugnamos ainda, na esteira do decidido pelo TRL Ac. de 07.12.2010, proc. 475/08.0TAAGH.L1.5, relator Vieira Lamim, in www, dgsi.pt que assim entendeu:
"Ao proferir o despacho a que alude o art. 311°, n° 2 CPP, o tribunal só pode rejeitar a acusação por manifestamente infundada, por os factos não constituírem crime, quando a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora de um crime, juízo que tem de assentar numa constatação objectivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efectuada".
*
II. FUNDAMENTAÇÃO
A questão a decidir é tão só a de saber se existe fundamento para rejeição da acusação.

O despacho recorrido é do seguinte teor:
“Registe e autue como processo comum, com intervenção do tribunal singular.
O tribunal é o competente.
O Ministério Público, em processo comum e com intervenção do tribunal singular, deduziu acusação contra o arguido MN..., imputando-lhe a prática de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256°/1º, d) do Código de Processo Penal.
Para o efeito, alega, em síntese, que o arguido, na data dos factos, era titular de carta de condução válida para a condução de veículos da categoria "B", emitida no dia 4/3/2004.
Alega que, no dia 3 de Setembro de 2004, o arguido entregou na delegação da DGV da Guarda um requerimento solicitando uma 2a via da sua carta de condução, alegando, para o efeito, que não havia chegado a receber a 1a via (cfr. fls. 6).
Alega que a DGV emitiu a 2a via da carta de condução no dia 13/9/2004.
Alega, ainda, que o arguido entregou na DGV, no dia 28/11/2006, a 1a via da carta de condução (altura em que a DVG deveria ter ficado a saber que o arguido teve duas cartas de condução em seu poder, tendo ficado ainda com a 2a via) para cumprimento de uma sanção acessória de inibição de conduzir - estando implícito na acusação que tal carta de condução não viria a ser entregue ao arguido, por ter praticado uma contra-ordenação muito grave no período em que a mesma tinha carácter provisório e ter caducado.
Alega que, mais tarde, em 3 de Janeiro de 2007, as autoridades alemãs remeteram ao IMTT a 2a via da referida carta de condução, que havia sido "retirada" ao arguido por decisão de um tribunal alemã.
Alega, finalmente, que «o arguido actuou de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que ao solicitar a 2a via da carta de condução, prestava falsas declarações, com o propósito que fosse emitida novo título de condução, o que acabou por acontecer, fazendo constar do mesmo facto juridicamente relevante, o que lhe permitiu conduzir veículos automóveis depois de a carta de condução ter caducado, uma vez que a mesma era provisória. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal».
Cumpre apreciar e decidir se é de receber/rejeitar a acusação.
Dispõe o artigo 311°/1 do Código de Processo Penal, sob a epígrafe «saneamento do processo», que, recebidos os autos, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
A seguir, se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução (como acontece no caso em apreço), nos termos do n.° 2 do mesmo artigo, o presidente despacha no sentido: a) de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada; b) de não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.° 1 do artigo 284° e do n.° 4 do artigo 285°, respectivamente.
Dispõe o artigo 311°/3 do Código de Processo Penal que, para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada: a) quando não contenha a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos; c) quando não indicar as disposições legais ou as provas que a fundamentam; ou d) se os factos não constituírem crime.
A questão que se coloca é a de saber se a acusação não deve considerar-se manifestamente infundada, porque os factos imputados não constituem crime, impondo a sua rejeição.
Dispõe o artigo 256°/1-d) do Código Penal (crime imputado ao arguido) que comete o crime de falsificação de documento «quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante».
Para efeitos penais, documento é a declaração corporizada em escrito, inteligível para a generalidade das pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea a provar facto juridicamente relevante - cfr. artigo 255°/a) do Código Penal.
O Ministério Público não clarifica qual a forma de cometimento do crime, se em autoria imediata, se em autoria mediata.
Perspectivando-se a acusação sob o ponto de vista da autoria imediata, então o documento, para efeitos acusatórios e penais, teria que ser o requerimento apresentado pelo arguido - que continha uma declaração prestada pelo arguido que não teria correspondência com a verdade.
Acontece, porém, que a acusação não refere que o (se) arguido, no momento em que requereu a segunda via já tivesse em seu poder a 1a via da carta de condução (podia não ter).
Por outro lado, ainda que o arguido tivesse a 1a via em seu poder, o requerimento apresentado pelo arguido não pode ser visto como um documento. Trata-se, antes, de uma pretensão a ser apreciada pela administração pública, que pode deferir ou indeferir, ainda que o deferimento possa ter por base falsas declarações.
Tal requerimento não é «idóneo a provar facto juridicamente relevante», razão pela qual, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 2557a) do Código Penal, não pode ser visto como um documento.
O documento relevante para efeitos criminais, neste caso, só pode ser a carta de condução e, então, teremos que perspectivar a acusação do ponto de vista da autoria mediata, ou seja, do comportamento do arguido para instrumentalização da DGV a emitir-lhe uma carta de condução com declarações corporizadas que não tinham correspondência com a realidade.
Ora, a este respeito, a carta de condução, quer na sua 1a via, quer na sua 2a via, configura um documento que não contém qualquer facto juridicamente falso -o arguido havia tirado carta de condução válida para condução de veículos da categoria "B" e a 2a via da carta de condução emitida permitia-lhe a condução de tal tipo de veículos.
Ainda que se entenda que está em causa um documento falsificado, sempre teríamos que concluir que os factos imputados ao arguido não constituem crime.
Efectivamente, o crime de falsificação de documento é um crime doloso, exigindo a lei um dolo específico: «intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime».
Analisando a acusação deduzida verifica-se que ela é completamente omissa relativamente a este elemento subjectivo, donde se conclui que os demais factos imputados não constituem crime, impondo a rejeição da acusação por manifestamente infundada - cfr. AcRL de 19/3/2003 (www.dqsi.pt.trl.itrl00048214), AcRC de 17/9/2003 (www.dqsi.pt.itrc.2359/03). AcRC de 31/10/2001 (www.dgsi.pt); AcRC de 5/11/2003 (www.dgsi.pt); AcRL de 30/1/2002 (www.dgsi.pt.itrl00039224). cfr. AcRL de 12/11/2008 (www.dgsi.pt: É manifestamente infundada a acusação que, pelos próprios termos, não tem viabilidade, uma vez que é completamente omissa quanto à narração dos elementos subjectivos do crime imputado, sendo portanto de rejeitar a mesma ao abrigo do artigo 311°/2-a) e 3-d) do Código de Processo Penal); AcRP de 10/1/2007 (www.dqsi.pt: I. A acusação deve ser rejeitada, por ser manifestamente infundada, quando não descreve os factos que integrem o elemento subjectivo do crime imputado ao arguido. II. E não deixa de ser assim se, sendo a acusação do assistente, este, no requerimento em que formulou o pedido de indemnização civil narrar aqueles factos); AcRL de 30/1/2007 (www.dgsi.pt: I. É nula a acusação pública ­conduzindo à sua rejeição por ser de reputar manifestamente infundada - quando a mesma é omissa quanto aos factos que integram o elemento subjectivo do crime imputado ao arguido); AcRP de 19/10/2005 (www.dgsi.pt: É manifestamente infundada, devendo por isso ser rejeitada, a acusação por crime de injúria que não descreve factos integradores do dolo).
É ainda de rejeitar independentemente da materialidade existente nos factos integradores dos elementos objectivos do tipo legal de crime. Na verdade, como se decidiu no AcRG de 7/4/2003 (CJ, 2003, 2o, 292), seguindo no AcRL de 12/11/2008 (supra referido), o elemento subjectivo não pode resultar como extrapolação e efeito lógico do conjunto dos factos objectivos que são imputados ao arguido na acusação. No nosso direito o dolo não se presume. Não é admissível a ideia de um "dolus in re ipsa", ou seja, a presunção do dolo resultante da simples materialidade de uma infracção. Os factos integradores do dolo têm de ser alegados, ainda que de forma sintética. A lei exige a narração de todos os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, não se contentando com «subentendimentos» ou «factos implícitos».
Não sendo alegada tal materialidade, ainda que sujeito o arguido a julgamento e provada toda a factualidade constante da acusação, mesmo se viesse a admitir ter havido falsificação de um documento, concluir-se-ia que a acusação seria sempre julgada improcedente, pois, seguindo os referidos arestos, mesmo que tais factos fossem levados à audiência, sob pena de violação do princípio da estrutura acusatória do processo penal, o juiz do julgamento (não podendo substituir-se ao acusador) não poderia tê-los em consideração para efeitos de condenação - não tendo qualquer aplicação na situação em apreço o mecanismo previsto nos artigos 358° e 359° do Código de Processo Penal.
Deve ainda dizer-se que, não constituindo os factos crime de falsificação de documento, também não constituem crime de falsidade de declaração, crimes previstos e punidos pelos artigos 359° e 360° do Código Penal, por não se mostrarem preenchidos os elementos típicos dos tipos legais de crime em apreço, que constituem crimes contra a realização da justiça.
Pelo exposto, nos termos do artigo 311/2-a) e 3-d) do Código de Processo Penal, por manifestamente infundada, o tribunal rejeita a acusação deduzida pelo Ministério Público.
Sem custas.
Notifique e deposite.
Guarda, d.s.”
*
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Dispõe o artigo 311º nº 2 do CPP que «se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) de não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284º e do n.º 4 do artigo 285º, respectivamente».
A acusação considera-se manifestamente infundada, segundo a norma do nº 3 do referido artigo:
a) quando não contenha a identificação do arguido;
b) quando não contenha a narração dos factos;
c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam;
d)se os factos não constituírem crime».
O modelo processual penal vigente em Portugal desde 1987 estrutura-se no princípio do acusatório, mitigado pelo princípio da acusação (artigo 2º n.º 2 ponto 4 da Lei 43/86 de 26 de Setembro, Lei de Autorização legislativa em matéria de processo penal) reflectido na clara separação entre acusação e julgamento, entre a função de acusar e a de julgar, com incidência constitucional, com nítida indicação da entidade que tem a seu cargo a fase investigatória eventualmente a culminar numa acusação e da entidade que julga, em audiência pública e contraditória, os factos objecto de tal acusação.
Porém e como se alerta no Ac desta Rel de 14-04-2010, na vigência da redacção originária do art. 311º do CPP suscitaram-se dúvidas sobre os poderes do juiz de julgamento, no despacho inicial, quando recebe o processo sem que tenha sido requerida a instrução – caso em que o J.I.C. goza de amplos poderes da apreciação dos indícios do crime acusado, mas não pode, por outro lado, intervir na fase de julgamento, quer porque a lei não apresentava qualquer esboço de definição do conceito de manifesta improcedência.
Com efeito o nosso sistema penal consagra uma estrutura acusatória do processo, ou seja, o juiz tem de ser imparcial relativamente às posições assumidas pela acusação e pela defesa e, por isso, não pode nunca assumir a veste de acusador, ainda que indirectamente, provocando a acusação pelo Mº Pº ou definindo-lhe os termos – cfr. Germano M. Silva, Curso de Processo Penal, I, 58.
Assim, perante as dúvidas e questões de constitucionalidade do preceito que se vinham suscitando (cfr., em síntese, Maia Gonçalves, CPP Anotado, 16ª ed. em anotação ao citado art. 311º) na revisão operada pela Lei 59/98 de 25.08, o legislador tenha sentido a necessidade de aditar ao preceito o actual n.º 3, com a redacção supra reproduzida, que contém, precisamente, a definição do que o legislador considera manifesta improcedência, para efeito de rejeição da acusação. De que resultou a inequivocidade do modelo pretendido para o processo penal e a caducidade do Assento do STJ n.º 4/93.
Logo, sem pôr em causa o modelo acusatório estabelecido, o legislador elencou os casos de rejeição por manifesta improcedência, e definiu-os taxativamente no n.º 3 do art. 311º.
“Impediu-se assim, entre outras situações, que o juiz quando profere o despacho ao abrigo do artigo 311º, tenha um papel equivalente ao sujeito processual “Ministério Público” fazendo um juízo sobre a suficiência ou insuficiência de indícios que sustentam a acusação proferida.” – Ac Rel Coimbra de 25 de Março de 2010.
Por outro lado, importa considerar que as referidas previsões do n.º 3 do art. 311 têm correspondência nas alíneas do nº 3 do artigo 283º, que definem as nulidades da acusação.
O art. 283º nº3 prevê, de forma genérica, as nulidades da acusação - as quais, na falta de preceito que as regule especificamente, deverão ser tratadas de acordo com o regime geral das nulidades processuais, por referência ao regime da taxatividade e, por isso dependentes de arguição e sanáveis.
O art. 311º nº3 prevê apenas os casos extremos pois a rejeição liminar se justifica em casos limite insusceptíveis de correcção sem prejudicar o direito de defesa fundamental, que a falta dos elementos referidos naquelas alíneas acarretaria. Trata-se de um tipo de nulidade sui generis, extrema, insuperável ou insanável, ainda que susceptível de correcção pelo Ministério Público, a ponto de permitir ao juiz de julgamento a intromissão na acusação, de forma a evitar um julgamento sem objecto fáctico e probatório [al. b) e segunda parte da al. c) - provas], sem acusado [al. a)], sem incriminação [al c)], ou sem objecto legal [al. d)].
Daí que o regime de qualquer outro vício da acusação - previsto no art. 283º ou eventualmente em outras disposições legais - terá que ser procurado, fora da previsão do n.º 2, al. a) do art. 311º, por não coberto nem pela letra nem pelo espírito do referido preceito na perspectiva de inserção no direito de defesa e na estrutura acusatória do processo. - Ac cit de 14-04-2010.
Assim, o nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal, ainda que o legislador não o diga de forma expressa, veio a consagrar um específico regime de nulidades da acusação que, face à gravidade e à intensidade da violação dos princípios processuais penais contidos na Constituição da República Portuguesa, são insuperáveis/insanáveis enquanto a acusação mantiver o mesmo conteúdo material.
Daí que a rejeição liminar apenas possa ter lugar naquelas situações típicas extremas e não relativamente a outros vícios de menor densidade.
Decorre da taxatividade legalmente estabelecida, um obstáculo inultrapassável à substituição por outra interpretação que não aquela que o legislador pretendeu.
Quanto às alíneas a) a c) não se suscitam grandes dúvidas sobre o seu conteúdo e quanto à alínea d) o limite da interpretação do seu conteúdo coincide com o que a estrutura dos princípios processuais admite, a significar que o Tribunal só pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeitá-la quando a factualidade respectiva não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora do crime imputado ou quando, entre outras situações, se verifica uma qualquer causa de extinção do procedimento.
“Sublinhe-se que este juízo tem que assentar numa constatação objectivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efectuada. Não se trata, nem se pode tratar de um juízo sustentado numa opinião divergente, por muito válida que seja. Só assim, numa interpretação tão restritiva se assegura o princípio do acusatório, na vertente referenciada.” – Ac Rel Coimbra de 25 de Março de 2010.
No caso em apreço, o tribunal recorrido não respeitou os limites impostos pela Lei.
O que a decisão recorrida revela é tão só uma interpretação divergente sobre os factos imputados e que resultam do inquérito, absolutamente legítima, diga-se, mas que não permite nesta fase e à face do normativo referido a subsunção ao conceito de «manifestamente infundado».
Basta aliás considerar as posições divergentes plasmadas no Ac da rel do Porto de 9 de Março de 2005.
Para melhor percepção da questão, transcreve-se a acusação:
“O MINISTÉRIO PÚBLICO, EM PROCESSO COMUM COM INTERVENÇÃO DO TRIBUNAL SINGULAR, ACUSA,


MN..., solteiro, filho de JN... e de RL…, residente em …, em Gouveia,


Porquanto, indiciam suficientemente os autos que:
No dia 03 …de 2004, em hora não concretamente apurada, o arguido MN..., dirigiu-se à Delegação de Viação da Guarda da Direcção-Geral de Viação, actual IMTT, onde solicitou a emissão da 2a via da carta de condução com o n° …, tendo preenchido, assinado e entregue a declaração no qual refere que "...não cheguei a receber a carta de condução, depois de a ter adquirido com exame efectuado de condução no Centro de Exames de Tábua no dia 27-02-2004", conforme declaração de fls. 3 que se dá por integralmente reproduzida para os legais efeitos.
Em 13-09-2004, pela então DGV, foi emitida a 2a via da carta de condução, conforme fls. 10, que se dá por integralmente reproduzida para os legais efeitos.
Acontece, porém, que em 28 de Novembro de 2006, o arguido, entregou a carta de condução n° …, emitida em 04-03-2004, para cumprimento de 30 dias de inibição aplicados no auto de contra-ordenação n° 345866207, pela prática de uma contra-ordenação muito grave, cometida em 28-09-2005.
Uma vez que a carta de condução era provisória, a mesma caducou, tendo sido lançado o respectivo impedimento no registo do condutor.
O arguido ficou com a carta de condução emitida em 13-09-2004, o que lhe permitiu conduzir veículos automóveis.
Em 05 de Janeiro de 2007, as Autoridades Alemãs devolveram ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres - IMTT, a carta de condução emitida em 13-09-2004, alegando que a mesma foi retirada ao arguido por decisão final do Tribunal de Alsfeld.
O arguido actuou de forma deliberada, livre e consciente bem sabendo que ao solicitar a 2a via da carta de condução, prestava falsas declarações, com o propósito que fosse emitida novo titulo de condução, o que acabou por acontecer, fazendo constar do mesmo facto juridicamente relevante, o que lhe permitiu conduzir veículos automóveis depois de a carta de condução ter caducado, uma vez que a mesma era provisória.
O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por Lei Penal.
Pelo exposto, incorreu o arguido MN..., em autoria material e na forma consumada, na prática de um crime de falsificação de documento, previsto e punido, pelos artigos 256°, n° 1, alínea d), do Código Penal.



Como se constata, os indícios recolhidos subsumidos nos factos imputados podendo ser insuficientes para o tribunal para, no seu juízo, configurarem o crime de falsificação de documento, p. e p. no art. 256°, n.° 1, al. c), do Código de Proces­so Penal., não devem ser postos em causa nesta fase porque não é inequívoco que não sejam passíveis de não configurarem o crime imputado.
PP Albuquerque dá disso nota a fls 670 ao considerar que o pedido de segunda via da carta de condução declarando falsamente o extravio não é uma conduta ilícita porque a declaração não consubstancia um “documento” com a função probatória, mas logo ali assinala outra posição jurídica, a vertida no Ac RP de 9-03-2005 in CJ XXX,2,206.
De resto, também há quem considere o requerimento da 2ª via um documento particular integrando uma narração de facto falso, juridicamente relevante – o extravio – “que cria, modifica ou extingue uma relação jurídica” ou desde que fosse susceptível de produzir algum dano publico ou privado “ Manzini, tratado cit -, apud Helena Moniz in “O crime de falsificação de documentos dano”, pág 231 e 232.
“A relevância jurídica desenha-se sempre que o facto inserto no documento produza uma alteração no mundo do Direito, isto é, que abra ensejo à obtenção de um benefício.” (Manuel Leal-Henriques e Manuel Simas Santos, in Código Penal, 2º volume, 1996, pág. 731)
Finalmente, sendo certo que o crime de falsificação de documento é um crime doloso, exigindo a lei um dolo específico, certo é também que da acusação consta que “ O arguido actuou de forma deliberada, livre e consciente bem sabendo que ao solicitar a 2a via da carta de condução, prestava falsas declarações, com o propósito que fosse emitida novo título de condução, o que acabou por acontecer, fazendo constar do mesmo facto juridicamente relevante, o que lhe permitiu conduzir veículos automóveis depois de a carta de condução ter caducado, uma vez que a mesma era provisória.
O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por Lei Penal.”
O que manifestamente não pode deixar de significar que o arguido bem sabia que tal não correspondia à verdade, ou seja, que o alegado extravio não se verificara, mantendo em seu poder a carta de condução em questão, com o propósito de poder obter para si próprio um benefício ilegítimo.
A propósito da falta da indicação da data do recebimento da 1ª via da carta dir-se-à apenas que não é elemento típico do crime imputado, e que a discussão sobre as várias soluções de direito reservou-a o legislador para a audiência de julgamento – art 339º, nº 4, do CPP.
Em suma, os factos em causa assumem um conteúdo cuja interpretação não é incontroversa, por isso que não pode sem mais, afirmar-se que não constituem o crime imputado.
Assim sendo e em conformidade a decisão em causa deve ser substituída por outra que não rejeitando a acusação, por inadmissibilidade legal, designe data para julgamento, se não se verificarem outras circunstâncias que impeçam a designação dessa data.
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III DECISÃO
Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso, revogando a decisão recorrida, devendo o senhor Juiz, caso não encontre qualquer outro motivo que imponha a rejeição da acusação, dar seguimento aos termos do processo, tendo em conta ao artigo 311º do CPP.
Sem tributação.
Notifique.

(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.).
Coimbra, 27/04/2011
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(Isabel Valongo)



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(Paulo Guerra)