Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
264/13.0TBPCV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DE DANOS
LOCAÇÃO FINANCEIRA
PRIVAÇÃO DE USO
Data do Acordão: 10/18/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - INST. CENTRAL - SECÇÃO CÍVEL - J3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: DL Nº 72/2008 DE 16/4, ARTS. 405, 804, 806 CC
Sumário: 1. - No seguro de danos, o interesse no seguro respeita à conservação ou à integridade da coisa, direito ou património seguros, relevando a relação económica existente entre uma pessoa e um bem exposto ao risco.

2. - O locatário em contrato de locação financeira tem interesse relevante, como segurado, em contrato de seguro facultativo de danos respeitante à coisa locada (seguro de coisa, com cobertura de furto e roubo).

3. - Se, em contrato de seguro de danos próprios, não foi convencionada a cobertura do dano da privação do uso do veículo seguro, também não poderá pretender-se indemnização desse dano como decorrência do atraso do devedor/segurador no pagamento da prestação convencionada a seu cargo em caso de sinistro.

4. - Em tal caso, do que se trata é de mora debitoris quanto a obrigação pecuniária (a dita prestação convencionada), correspondendo então a indemnização pelo dano da mora aos juros legais, pois que valor mais elevado não se mostra ser devido.

Decisão Texto Integral:



Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:


***

I – Relatório ([1])

T (…) Lda.”, com os sinais dos autos,

intentou ([2]) ação declarativa condenatória, com processo ordinário, contra

G (…), Companhia de Seguros SPA”, também com os sinais dos autos ([3]),

pedindo a condenação da R. a pagar-lhe:

“1.1. a quantia de Euros 36.842,90, correspondente ao valor do veículo e juros desde 21/09/2012, acrescida de juros legais desde citação até efetivo e integral pagamento.

1.2. a quantia de Euros 39,562,32, derivada do incumprimento contratual até à presente data, acrescida de € 235,49 diários até efetivo e integral pagamento da quantia referente à perda total do (....) LX” ([4]).

Para tanto, alegou, quanto ao agora relevante:

- ser a A. locatária de um veículo pesado de mercadorias – de que é proprietária a aludida “C (....) ” –, tendo celebrado com a R. contrato de seguro automóvel, com transferência para esta da responsabilidade civil decorrente da circulação da viatura, bem como com cobertura facultativa de danos próprios, referentes, designadamente, a furto ou roubo;

- ter, em 23/07/2012, aquela viatura sido parqueada em local identificado, do qual foi depois retirada, por pessoa desconhecida e não autorizada;

- já não possuir o veículo, para além do mais, quando foi recuperado, os respetivos motor e caixa de velocidades, o que foi participado à R., que, embora considerando ocorrer situação de perda total e fixando o valor venal da viatura (deduzido do valor do salvado) em € 35.855,00, apesar de interpelada, nada pagou;

- estar o veículo imobilizado desde a data do sinistro, com a inerente privação do uso, embora a A. continue a pagar a renda mensal resultante do contrato de locação financeira, o que a impede, por falta de capacidade económica, de adquirir um novo veículo.

Contestou a R., impugnando, no essencial, a factualidade alegada referente ao desaparecimento do veículo (furto), excecionando a nulidade do contrato de seguro facultativo de danos próprios por falta de interesse seguro pela A. (a tomadora do seguro e segurada, mas não proprietária, pois que apenas locatária financeira do bem), a nulidade, por impossibilidade legal, da cláusula de indicação da “C (....) ” (proprietária) como credora hipotecária (qualidade que não tem), a não cobertura, por não convencionada, do invocado dano decorrente de incumprimento contratual (privação do uso da viatura), não podendo ser devidos, nesta parte, mais que os juros legais moratórios, por estar em causa responsabilidade meramente contratual, a existência de dolo ou, ao menos, culpa grave do condutor do veículo e sócio-gerente da A., por omissão dos seus deveres de guarda e vigilância do bem, levando à exclusão da garantia de cobertura do seguro, e a existência de franquia (no valor de € 774,90), a dever ser descontada, como descontado deve ser o valor do salvado, que ficou para a A., e concluindo, assim, pela total improcedência da ação.

A A. exerceu o contraditório, mantendo o vertido na petição inicial e concluindo pela improcedência da matéria de defesa por exceção.

Realizada audiência prévia, saneado o processo e fixados o objeto do litígio e os temas da prova, procedeu-se depois à realização da audiência final.

Da sentença – proferida em 22/03/2016 – consta, no relevante, o seguinte dispositivo:

«B) Julgo a ação parcialmente procedente por provada e em conformidade, condeno a ré G (…) - Companhia de Seguros, S.A. a pagar à autora:

- A quantia de € 36.014,29 (correspondente ao valor do veículo, deduzida a franquia convencionada e juros desde 1/10/2012 até à data da propositura da ação), acrescida de juros legais desde citação até efetivo e integral pagamento;

- A quantia de Euros 8,800,00, derivada do incumprimento contratual até à data da propositura da ação, acrescida de € 50,00 por cada dia útil, até efetivo e integral pagamento da quantia referente à perda total do (....) LX.

- Absolvo a R. do resto do pedido.».

Inconformada, vem a R. interpor recurso (fls. 264 e segs.), apresentando alegação, culminada com as seguintes

(…)

A A./Apelada contra-alegou, pugnando pela total improcedência do recurso.

Este foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, tendo então sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foi mantido o regime e efeito fixados.

Colhidos os vistos, e nada obstando ao conhecimento da matéria recursória, cumpre apreciar e decidir.


***

II – Âmbito do Recurso

Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso, não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito recursório, nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil atualmente em vigor e aqui aplicável (doravante NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 ([5]) –, o thema decidendum, incidindo sobre a decisão da matéria de facto e de direito, consiste em saber ([6]):

a) Em matéria de facto:

1. - Se devem ser dados como não escritos, por conclusivos, segmentos da matéria julgada provada (parte dos pontos fácticos n.ºs 4.- e 14.-);

2. - Se deve proceder a impugnação da decisão de facto (pontos 3.- a 6.- e 8.- dos factos provados, a deverem ser agora julgados não provados, por total ausência de prova);

b) Em matéria de direito:

3. - Se não se demonstra, por falta de prova de factos de suporte, o invocado furto/sinistro;

4. - Se ocorre nulidade do contrato de seguro por falta do interesse seguro (não se mostrar ser a A./Apelada proprietária ou locatária financeira do veículo);

5. - Se a conduta do motorista do veículo merece um juízo de culpa grave (omissão de vigilância e cuidados de segurança quanto à coisa segura), determinando a exclusão da garantia do seguro;

6. - Se, em matéria de seguro de danos, com responsabilidade meramente contratual do segurador, está afastada a indemnização pela privação do uso do bem, desde que não convencionada, desencadeando a não entrega do capital seguro apenas a reparação pela mora, através dos respetivos juros;

7. - Se foi fixada dupla indemnização pelo mesmo dano, o do não pagamento do capital seguro (juros moratórios desse capital e indemnização pela privação do uso).


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III – Fundamentação

         A) Aspeto conclusivo de segmentos do quadro fáctico

Pretende a R./Apelante, desde logo, sejam dados como não escritos, por conclusivos, dois segmentos da matéria julgada provada (parte dos pontos fácticos n.ºs 4.- e 14.-).

Trata-se, assim, quanto ao facto 4.-, da expressão “sem que ninguém devidamente autorizado” e, quanto ao facto 14.-, do segmento “imprescindível para a atividade exercida”.

É o seguinte o teor integral desses pontos dados como provados:

4º No entanto, sem que ninguém devidamente autorizado tenha movido o veículo, no dia 25 de Julho de 2012, pelas 14 horas, a viatura já não se encontrava naquele local”; e

14º O veículo (....) LX irremediavelmente imobilizado desde a data do sinistro, estando a Autora impedida de utilizar o veículo de que é locatária e que é imprescindível para a atividade exercida pela mesma (transporte internacional de mercadorias)”.

Ora, dir-se-á que o termo devidamente autorizado contém, efetivamente, uma dimensão inevitavelmente conclusiva, já que faz apelo ao que é devido (ou não devido) com reporte a um ato de autorização (existente ou não).

Na verdade, se o termo (não) autorizado – obviamente, reportado à ora A./Apelada, como (não) concedente de autorização –, contextualizado perante as circunstâncias do caso e do contrato de seguro celebrado, ainda assume dimensão fáctica, é certo que o segmento devidamente, como qualificador da não autorização, já assume uma dimensão conclusiva/valorativa, que não deve ter assento no quadro fáctico da decisão, mas na subsequente fundamentação de direito, onde – aí sim – devem ser extraídas as conclusões e operadas as valorações jurídicas adequadas (cfr. art.º 607.º, n.ºs 3 a 5, do NCPCiv., com inequívoca separação entre o âmbito fáctico e o de direito da sentença, tal como, do mesmo modo, o art.º 659.º do CPCiv. revogado).

Por isso, deve apenas expurgar-se o segmento devidamente, mantendo-se o termo autorizado, que ainda consente dimensão factual, pois que reportado à A./Apelada.

Donde que, assim corrigido, o ponto 4.- aludido passe a ter a seguinte redação:

4º No entanto, sem que ninguém autorizado pela A. tenha movido o veículo, no dia 25 de Julho de 2012, pelas 14 horas, a viatura já não se encontrava naquele local”.

Sem prejuízo, obviamente, da subsequente apreciação da respetiva impugnação recursória da decisão de facto.

Quanto ao mais (ponto 14.-), deve dizer-se ainda que, como é consabido, o uso de adjetivos – como irremediável (o que não tem remédio ou solução, que não se pode evitar) ou imprescindível (que é absolutamente necessário) – haverá de ser evitado em sede de enunciação dos factos concretos provados, pois que tais adjetivos comportam uma evidente dimensão conclusiva/valorativa, que não deve ter assento na parte fáctica da sentença, mas apenas na sua fundamentação jurídica.

Assim sendo, devem tais adjetivos ser suprimidos, pela via recursória, deste ponto fáctico julgado provado, com o que procede parcialmente, nesta vertente, a impugnação recursiva.

E, visto o que consta de 31.- a 33.- do quadro fáctico julgado provado pela 1.ª instância – matéria contratual, de que haverá de extrair-se, no plano jurídico, em jeito conclusivo (e qualificativo jurídico), a relação da A./Apelada com a viatura segura (proprietária, locatária financeira, ou não) –, também parece claro, salvo o devido respeito, que não deve ter assento no corpo fáctico da sentença que a A. é locatária da viatura.

O mesmo se diga quanto à referência ao sinistro, cuja noção está enunciada no art.º 99.º do RJCS ([7]) e cujo recorte conceitual, assim legalmente definido ([8]), faz dele uma figura jurídica, a ser integrada em sede de fundamentação de direito, impedindo a sua aquisição, sem mais, no plano fáctico concreto.

Termos em que o questionado ponto 14.- passará a ter a seguinte redação:

14º Com o veículo (....) LX imobilizado desde 25/07/2012, ficou a Autora impedida de o utilizar na atividade exercida pela mesma (transporte internacional de mercadorias)”.

B) Impugnação da decisão de facto

(…)

Em suma, nenhuma razão se encontra, ante a impugnação deduzida, para alterar a decisão da matéria de facto, termos em que improcede nesta parte a pretensão recursória.

C) Matéria de facto

Vistas as correções operadas pela Relação, é o seguinte o quadro fáctico provado a considerar:

«1º A Autora era a locatária de uma viatura pesada de mercadorias, marca M (....) , modelo 18.480, 4x2 Bls 36, matrícula (....) LX.

2º O proprietário do veículo (....) LX era a C (....) S.A., com sede na A (....) .

3º No dia 23 de Julho de 2012, pelas 18:30 horas, a referida viatura, composta por todos os seus elementos, foi regularmente parqueada na Rua do emigrante, em Serem de Baixo, Macinhata do Vouga, nesta comarca.

4º No entanto, sem que ninguém autorizado pela A. tenha movido o veículo, no dia 25 de Julho de 2012, pelas 14 horas, a viatura já não se encontrava naquele local.

5º Foi encontrada, no mesmo dia, num parque existente em Lamas do Vouga, junto ao restaurante Marnel.

6º No entanto, quando foi recuperada, a viatura já não possuía o motor, caixa de velocidades, 6 pneus, um frigorífico, um leitor de cd, o tacógrafo e respetivo cartão.

7º De imediato foi apresentada queixa no Posto Territorial de Arrancada do Vouga da GNR. doc. 3 que faz fls. 10 e 11 cujo teor se dá por reproduzido

8º Não obstante eventuais diligências investigatórias, não foi possível determinar qual/quais os autores de tal ato.

9º A Autora participou o ocorrido à Ré a 27 de Julho de 2012.

10º A Ré, em 30/08/2012, enviou carta à Autora em que considera o veículo (....) LX uma perda total e fixa o valor venal da viatura deduzido do valor do salvado, em € 35.855,00.

11º Mais “sugerem” nessa carta que a Autora “regularize” a situação de recolha do veículo da oficina, conforme documento cuja cópia consta de fls. 12 e 13 e se dá aqui por reproduzido.

12º A ré não disponibilizou o valor referido em 10º.

13º A ré enviou à autora carta cuja cópia constitui o documento junto aos autos a fls. 15 cujo teor se dá por reproduzido.

14º Com o veículo (....) LX imobilizado desde 25/07/2012, ficou a Autora impedida de o utilizar na atividade exercida pela mesma (transporte internacional de mercadorias).

15º Continuando, no entanto, obrigada ao pagamento da renda mensal resultante do contrato de locação financeira, no montante de euros € 1.075,85. cfr. doc 8.

16º Obrigação mensal essa que continuou a cumprir.

17º No acordo de paralisação Antram-APS para o ano de 2009 está previsto o valor de Euros 235,49 diários para o serviço internacional.

18º O sobredito parque aonde foi deixado o veículo seguro situava-se a mais de 70 km da casa do respetivo motorista.

19º E era um parque público, aberto, ao ar livre, sem qualquer vigilância ou controle, com pouca iluminação elétrica noturna e situado a mais de 70 metros da casa de habitação mais próxima.

20º A retirada das peças atrás indicadas foi feita com elevador.

21º Tendo sido prévia e cuidadosamente tapado todo o sistema de tubagem de ligação ao motor, à caixa de velocidades, travões, depósitos, etc, para que não fossem vertidos líquidos na via (óleo e gasóleo).

22º Não foram encontrados vestígios de óleo ou gasóleo do veículo seguro no pavimento do parque aonde veio a ser encontrado e no trajeto de acesso ao mesmo.

23º O módulo eletrónico do mesmo veículo estava em boas condições.

24º O mesmo permitiria saber as suas anomalias.

25º A análise deste módulo eletrónico só podia ser feita pela M (....) Portugal (concessionária portuguesa da M (....) alemã), por autorização da M (....) Alemanha, a pedido da autora.

26º A ré solicitou à autora autorização para proceder à análise do módulo eletrónico.

27º A autora retirou o veículo seguro, em 10.09.2012 da sobredita oficina da M (....) , de Oiã.

28º Entre a autora, na qualidade de tomadora e segurada, e a ré, na qualidade de seguradora, foi celebrado o contrato de seguro titulado pela apólice nº 00 (....) , tendo por objeto seguro o veículo de marca M (....) , modelo TGA 18480 e matrícula (....) LX, e, além do mais, por cobertura facultativa adicional a de furto ou roubo, pelo capital seguro de € 38.745,00, com a franquia, por sinistro, de € 774,90

29º Nesse contrato figura a indicação como credora hipotecária da C (....) , S.A.

30º Esse contrato estava em vigor na data dos factos invocados na petição.

31º O referido veículo foi objeto de um contrato de locação financeira celebrado em 16 de Junho de 2011 entre a aqui Interveniente, na qualidade de proprietária e locadora, e a empresa "T (....) , Lda.", na qualidade de locatária.

32º No âmbito do mencionado contrato de locação financeira mobiliária, tal como em todos os contratos de locação financeira, a referida empresa locatária, "T (....) , Lda.", estava obrigada ao pagamento de 36 rendas mensais, acrescidas do valor residual no caso de a mesma optar pela aquisição do veículo locado.

33º A Locatária ora A., antecipou o cumprimento do mencionado contrato de locação financeira, procedendo em 30 de Maio de 2014 ao pagamento dos valores em falta, acrescido do valor residual.».


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D) Impugnação de direito

1. - Da não demonstração do furto/sinistro

Confiante na procedência da sua impugnação da decisão de facto, a Apelante pugna, em matéria de direito, pela não verificação do evento (furto) invocado pela contraparte.

Dependia, pois, este segmento da impugnação de direito do acolhimento da impugnação da matéria de facto julgada provada, o que, no essencial, a Recorrente não logrou conseguir, pois que se mantém, ainda agora, a factualidade referente à subtração invocada quanto ao bem/veículo seguro.

Situação que, logicamente, compromete tal segmento impugnatório de direito.

Com efeito, se vem provada a existência e vigência do contrato de seguro alegado – celebrado entre a A./Apelada, na qualidade de tomadora e segurada, e a R./Apelante, na qualidade de segurador, aqui relevante enquanto seguro facultativo automóvel, por danos próprios, de furto ou roubo, com um capital seguro de € 38.745,00 e uma franquia, por sinistro, de € 774,90 –, também se apurou que a viatura segura foi levada do local onde se encontrava parqueada, por pessoa(s) de identidade não apurada, sem autorização da A..

Encontrado, depois, noutro local, foi o veículo recuperado pela aqui Apelada, mas já não possuía o motor, a caixa de velocidades e outros bens que nele se encontravam, os quais, como tem de inferir-se, foram subtraídos (furto).

Assim sendo, só pode ter-se por demonstrada a existência do evento/sinistro, tal como contratualmente previsto, pelo que improcede a argumentação da Recorrente em contrário.

2. - Da nulidade do contrato de seguro por falta do interesse seguro

Defende a Apelante que não se demonstra ser a A./Apelada proprietária ou locatária financeira do veículo, motivando a nulidade do contrato de seguro por falta do interesse seguro.

Posiciona-se assim perante o entendimento, na decisão recorrida, de que, entretanto, pagas pela A./Apelada à locadora as rendas e o valor residual, terminou (pelo cumprimento) a relação contratual de locação financeira, com a decorrente transmissão da propriedade da coisa/viatura locada para a locatária.

Entendeu, pois, a 1.ª instância que ocorreu superveniente transmissão do direito de propriedade para a A./locatária.

E, quanto ao interesse seguro, foi esta a argumentação, apoiada em jurisprudência desta Relação ([9]), vertida na sentença:

«“Na busca do interesse do segurado, não deve abstrair-se da função que a prestação desempenha no contexto do seguro: a função de satisfação de uma necessidade eventual, aferida, em abstrato, pela existência de uma relação de natureza económica entre o segurado e o bem seguro: o objecto do interesse que entre nós se exige ao segurado não é o próprio bem seguro, ou sequer a prestação do segurador, se desligada da sua finalidade própria, mas antes e sobretudo, a sua atribuição característica: a cobertura. A exigência do interesse do segurado, refere-se a algo de bem mais específico: exige-se que, na realidade, possa dizer-se que sobre o segurado impende o risco que o seguro se destina a cobrir e, como consequência desse risco, a cobertura, tenha para ele alguma utilidade. Sendo o segurado o titular, não necessariamente do risco primário, mas necessariamente do risco coberto pelo seguro, exige-se, naturalmente que o risco exista, no sentido de que seja de molde a causar algum impacto de natureza adversa na esfera do segurado”».

Tudo para concluir que, in casu, «…o facto de a autora não ser, à data em que foi celebrado o contrato de seguro, a proprietária do bem seguro sinistrado – detendo o direito de fazer o seu uso normal – não tolhe o seu interesse de seguro: o direito àquele uso é suficiente para lhe assegurar uma relação económica relevante com a coisa segura, exposta ao risco, e, portanto, um interesse na integridade ou indemnidade da coisa segura, dado que a destruição dessa mesma coisa lhe causa um dano de conteúdo económico: apesar de a tomadora do seguro e segurada não ser titular do direito real de propriedade sobre a coisa segura na qual se concretizou o risco objeto da cobertura, ainda assim tem interesse no seguro, dado que a concretização daquele risco se reflete negativamente na sua esfera jurídico-patrimonial».

O princípio do interesse em matéria de contrato de seguro está consagrado no art.º 43.º, n.º 1, do RJCS, que dispõe dever o segurado “ter um interesse digno de proteção legal relativamente ao risco coberto, sob pena de nulidade do contrato”.

Quanto a tal interesse, dispõe o n.º 2 do mesmo art.º 43.º que, no seguro de danos, o interesse respeita à conservação ou à integridade da coisa, direito ou património seguros.

Assim, se o interesse que aqui releva consiste numa relação económica existente entre uma pessoa e um bem exposto ao risco, relação essa apta a satisfazer uma necessidade ([10]) ou a proporcionar uma utilidade, ou numa justificação para se fazer o seguro com referência à coisa segura ([11]), então o interesse relevante nesta sede é o que deriva da relação (eco­nómica) que existe entre o segurado e essa coisa (no caso, o veículo identificado), aquela a que se reporta a transferência do risco quanto à conservação/integridade.

Entre nós, o legislador não definiu o interesse, estabelecendo, porém, o conteúdo típico do contrato (art.º 1.º do RJCS) e a necessidade de existência do interesse, sob pena de nulidade de tal contrato (art.º 43.º do RJCS), assim dando algumas pistas para solução da questão.

Com efeito, se, quanto ao objeto do contrato, deve distinguir-se entre objeto jurídico (correspondente ao conteúdo ou substância do negócio jurídico) e objeto material (traduzido no bem de cuja fruição o negócio
trata) (
[12]), então alguns elementos podem retirar-se da nossa lei no sentido de melhor encontrar o lugar do interesse no seio do contrato.

Assim, integrando o risco o objeto do contrato, tendo referência expressa em sede de conteúdo típico do mesmo, o interesse, por sua vez, para além de claramente pressuposto no art. 1.º do RJCS ([13]), é tratado, em sede de conteúdo do contrato de seguro, lado a lado com o risco – cfr. inserção sistemática de ambos no RJCS.

E, se a inserção sistemática do interesse, no RJCS, é junto do risco, e dentro do conteúdo do contrato, também é certo que são semelhantes as consequências legais previstas para a falta de qualquer deles: em ambos os casos ocorre nulidade ([14]) do contrato de seguro (arts. 43.º, n.º 1, e 44.º,
n.º 1, do RJCS, tratando-se de normas absolutamente impe­rativas).

Ora, assim sendo, parece dever concluir-se que o interesse e o risco são elementos de uma mesma realidade: ambos fazem parte do objeto jurídico do contrato de seguro, já que ambos integram o seu conteúdo, juntos formando, pois, a substância desse negócio jurídico ([15]).

O interesse justifica mesmo, na sua relevância, um princípio orientador do contrato de seguro, o dito princípio do interesse ([16]), e liga-se a um outro princípio importante nesta matéria contratual, o princípio indemnizatório (cfr. art.ºs 128.º e segs. do RJCS), por força do qual a indemnização a cargo do segurador não pode ultrapassar o montante do dano decorrente do sinistro.

Como salienta a doutrina, a nossa lei não explicita o momento em que deve existir o interesse no seguro, devendo distinguir-se entre os seguros que garantem prestações de natureza indemnizatória – âmbito em que o interesse deve existir “durante a vigência do contrato e, particularmente, no momento do sinistro” – e, por outro lado, os seguros de prestações de valor predeterminado não dependente do efetivo montante do dano – caso em que “a existência de interesse releva aquando da celebração ou início da produção de efeitos do contrato, mas não no momento do sinistro” ([17]).

No caso dos autos, vem provado – aliás, sem controvérsia – que a viatura em causa foi objeto de contrato de locação financeira, celebrado em 16/06/2011, entre a aludida “C (....) ”, como proprietária e locadora financeira, e a A./Apelada, na qualidade de respetiva locatária, âmbito em que tal locatária estava obrigada ao pagamento de 36 rendas mensais, acrescidas do valor residual no caso de optar pela aquisição do veículo locado.

Ora, ocorrido o sinistro em julho de 2012, a A./locatária veio a antecipar o cumprimento desse contrato de locação financeira, tendo completado, em 30/05/2014, o pagamento dos valores em falta, acrescido do valor residual, com o que se tornou, posteriormente a tal sinistro, dona da coisa segura (como referido na sentença, foi-lhe então transmitida a propriedade da viatura).

Quer dizer, se ao tempo do sinistro e até 30/05/2014 a A./Apelada era a locatária financeira do veículo, a partir de então passou a ser a respetiva proprietária, donde que não possa acolher-se a posição da Apelante no sentido de não ter ficado provada a relação de locação financeira, nem de propriedade, entre a tomadora do seguro e segurada e a coisa segura.

A demonstrada posição de locatária financeira (ao tempo da celebração do contrato de seguro e do sinistro) já confere a A./Apelada, a nosso ver – e como entendido na sentença e no Ac. desta Relação em que se suportou –, um interesse próprio, de natureza patrimonial, respeitante à integridade da coisa segura, seja na perspetiva da relação entre o sujeito e o objeto desse interesse, seja na do valor pecuniário (do interesse) exposto ao risco ([18]).

Assim, sendo inequívoca a relação económica/patrimonial entre a locatária financeira e a coisa locada/segura, com o contrato de locação financeira a conceder-lhe o uso/gozo e a faculdade de ulteriormente se tornar – como tornou – proprietária, bem como o dever, no caso de não exercício dessa faculdade, de restituir o bem locado no final do contrato locativo, com a inerente obrigação de conservação/manutenção da coisa, deve concluir-se por assistir à A./Apelada um interesse digno de proteção legal relativamente ao risco coberto, respeitante à conservação e integridade da viatura locada, não podendo aderir-se a um entendimento restrito no sentido de neste tipo de casos só ao proprietário/locador financeiro assistir o interesse relevante, entendimento que, aproveitando ao segurador, deixaria – em caso de sinistro – totalmente desprotegido o locatário tomador/segurado.

Donde, pois, a improcedência das conclusões da Apelante em contrário.

3. - Da culpa grave do motorista do veículo seguro

Argumenta ainda a Apelante que a conduta do motorista da viatura merece um juízo de culpa grave, por omissão de vigilância e cuidados de segurança quanto à coisa segura, determinando a exclusão da garantia do seguro.

Que dizer?

Dir-se-á que não se trata aqui de questão nova, que apenas em sede de recurso houvesse sido suscitada, pois que logo na contestação – onde deve ser concentrada a defesa da parte demandada – foi invocada a exclusão da garantia do seguro por via de dolo ou, ao menos, culpa grave do condutor da viatura quanto à omissão dos seus deveres de guarda e vigilância da coisa segura (cfr. art.ºs 129.º a 131.º da contestação).

É, pois, esta exclusão que novamente vem invocada (agora limitada à culpa grave), pelo que deverá aqui ser apreciada, não obstante a sentença não conter expressa pronúncia nesta parte, mas tendo tacitamente considerado improcedente tal exceção de exclusão da garantia do seguro, vista a condenação do segurador na prestação correspondente ao valor do veículo.

Ora, afastada a hipótese de dolo, adianta-se desde já que não vemos que ocorra a invocada culpa grave, em termos de exclusão da garantia do seguro, de molde a desonerar o segurador da prestação convencionada a seu cargo para o caso de ocorrência do sinistro.

Na verdade, o que se prova é que a viatura – pesado de mercadorias, usado na atividade da A./Apelada (transporte internacional de mercadorias) –, composta por todos os seus elementos, foi parqueada na Rua do emigrante, em Serem de Baixo, Macinhata do Vouga, de onde foi retirada, por pessoa(s) não identificada(s), sem autorização, vindo a ser posteriormente encontrada noutro local, porém já sem motor e caixa de velocidades (para além do mais), que lhe foram retirados e não foram encontrados/recuperados.

É certo que o parque onde foi inicialmente deixado o veículo – este ficaria ali por período inferior a dois dias, já que foi detetado o seu desaparecimento pelas 14 horas do dia 25/07/2012 (havia sido aparcada no dia 23/07/2012, às 18,30 horas) – se situava a mais de 70 km da casa do respetivo motorista, sendo um parque público, aberto, ao ar livre, sem qualquer vigilância ou controle, com pouca iluminação elétrica noturna e situado a mais de 70 metros da casa de habitação mais próxima.

A culpa grave, justificadora da exclusão da garantia do seguro, pressupõe um juízo de censura agravado relativamente à conduta do agente, por violação acentuada dos deveres a seu cargo, de tal modo que torne inexigível, à luz da ideia de justiça contratual, a manutenção da prestação a cargo do segurador.

Por isso, não será qualquer comportamento negligente do segurado – ou dos seus auxiliares – relativamente à coisa segura que permitirá a desoneração do segurador uma vez verificado o sinistro.

Este haverá então de resultar – sendo imputável a esse título – de conduta gravemente culposa do segurado, de grave violação dos deveres invocados de guarda e vigilância.

Neste âmbito, invoca a Apelante jurisprudência que parece referente ao contrato de transporte rodoviário de mercadorias ([19]).

Ora, nas prestações de resultado, como no contrato de transporte de mercadorias, vem sendo entendido que ao obrigado à prestação (o transportador, com uma obrigação de guarda, até à entrega, da mercadoria transportada), “impõe-se a guarda e a conservação da mercadoria, protegendo-a da acção dos elementos da natureza ou de terceiros, tal como o faria um profissional experiente, conhecedor e responsável, com o padrão de diligência adoptado por um bonus pater famílias”. Âmbito este em que se aceita que “o furto de mercadorias transportadas num reboque, coberto por lona, ocorrido durante a noite, quando o veículo estava estacionado num lugar público, sem vigilância, estando o motorista a dormir em casa, situada a uma distância de 80 metros, não exclui a culpa do transportador” ([20]).

O caso dos autos, porém, não se reporta ao furto de mercadoria transportada, com obrigação de guarda e entrega a cargo do transportador. Reporta-se, noutro plano de interesses contratuais, à subtração de veículo automóvel pesado, enquanto coisa segura, no âmbito de contrato de seguro com cobertura de furto e exclusão de danos resultantes de subtração originada por culpa grave do segurado, de molde a afastar a prestação contratual a cargo do segurador.

Neste âmbito, é bem sabido que nem todos os veículos automóveis (ligeiros ou pesados) são guardados, de dia e/ou de noite, em garagens ou espaços fechados, vigiados ou policiados. Muitos deles, com efeito, não dispondo os proprietários de garagens ou espaços similares, são imobilizados e deixados, mesmo de noite, na rua, sem que o respetivo dono ali fique a vigiá-los ou contrate alguém que o faça para si.

No caso dos autos, o veículo pesado ficou parqueado, por menos de dois dias, dentro de localidade (Rua do Emigrante, Serem de Baixo, Macinhata do Vouga).

E se tal ocorreu em parque público, aberto, ao ar livre, sem vigilância, com pouca iluminação elétrica noturna e a mais de 70 metros da casa de habitação mais próxima – sem que se saiba se foi subtraído de noite ou não –, afastando a consideração da subtração como facto imprevisível e admitindo até alguma possível negligência do motorista, nem por isso se deve qualificar a sua conduta como eivada de culpa grave em termos de ocasionar/originar o furto da viatura.

Doutro modo – responsabilizando-se o motorista, com imputação de culpa grave na ocorrência da subtração – estaria encontrada a forma de desonerar as seguradoras em relações contratuais de seguro semelhantes em que os veículos seguros ficassem, naturalmente de portas fechadas, durante a noite (ou o fim-de-semana) na rua (e são, como é sabido, aos milhares ou até milhões em Portugal e nos demais Estados-Membros da UE), nas grandes cidades ou em pequenas localidades periféricas ([21]).

Assim, visto o balanço de prestações contratuais e o necessário equilíbrio de interesses contrastantes das partes ([22]), à luz do princípio da boa-fé na execução contratual – e inerente subprincípio da justiça contratual (cfr. art.º 762.º, n.º 2, do CCiv.) –, entendemos que seria excessiva, no caso, uma solução de liquidação da relação de seguro que passasse pela desoneração do segurador por via da exclusão da garantia do seguro, para o que não se encontra justificação bastante ([23]).

Improcedem, pois, as conclusões em contrário da Recorrente.

4. - Da indemnização pela privação do uso

Cabe agora saber se, em matéria de seguro de danos, com responsabilidade meramente contratual do segurador, deve ter-se por afastada a indemnização pela privação do uso da coisa segura, desde que não convencionada, desencadeando a não entrega do capital seguro apenas a reparação pela mora, através dos respetivos juros.

Perante sentença que a condenou em indemnização a este título, continua a pretender a Apelante a sua absolvição, por nada haver nesta parte a reparar pelas forças do seguro.

Argumenta que, tratando-se de contrato de seguro facultativo de danos próprios e seu incumprimento – é esta a vertente em causa, de nada importando o seguro obrigatório automóvel, não sendo caso de responsabilidade extracontratual –, o respetivo clausulado não contempla cobertura do dano da privação do uso do veículo.

Vejamos.

Na sentença adotou-se o seguinte percurso lógico:

«Da factualidade provada resulta que a A./lesada está impedida de usar e fruir aquela viatura, e a ré ainda não lhe entregou a quantia devida nos termos contratuais, que seria necessária para a compra ou locação de um veículo substitutivo.

Pode afirmar-se que a privação do uso de uma viatura substitutiva, necessária ao exercício da atividade da empresa, decorre do incumprimento do dever contratualmente assumido pela ré de pagar uma indemnização ocorrendo furto, furto ou roubo, integrando-se tal prejuízo na categoria de dano concreto», nada obstando a que, a par das situações de responsabilidade extracontratual (normalmente ligadas a sinistros rodoviários), “sejam também tuteladas as situações geradoras de privação decorrentes de incumprimento de contrato”.

Dispõe a art.º 130.º do RJCS (norma especial do seguro de coisas):

«1 - No seguro de coisas, o dano a atender para determinar a prestação devida pelo segurador é o do valor do interesse seguro ao tempo do sinistro.

2 - No seguro de coisas, o segurador apenas responde pelos lucros cessantes resultantes do sinistro se assim for convencionado.

3 - O disposto no número anterior aplica-se igualmente quanto ao valor de privação de uso do bem».

O regime supletivo legal é, pois, o da não cobertura dos lucros cessantes, regime que vale para o dano da privação de uso do bem seguro ([24]), sem prejuízo de as partes no contrato de seguro, ao abrigo do princípio da liberdade contratual (art.º 405.º, n.º 1, do CCiv.), poderem estipular regime diverso (convenção de cobertura daquele dano da privação do uso).

Tudo dependerá, pois, do teor do contrato de seguro de coisas, por força de lei especial aplicável, que, como tal, não pode ser afastada pela lei geral em matéria obrigacional.

Assim, no silêncio do contrato valerá o regime supletivo legal especial aplicável, afastando a indemnização pela privação do uso da coisa segura, assim como por lucros cessantes, restringindo-se o dano a atender ao valor do interesse seguro ao tempo do sinistro, em decorrência de princípio indemnizatório ([25]).

Ora, no caso dos autos, na falta de previsão contratual para o dano da privação do uso da coisa segura (teria de haver convenção ex ante quanto ao valor da privação de tal uso), restará, então, aplicar o dito regime supletivo legal especial, afastando a reparação a esse título ([26]).

Nesta perspetiva, a privação em que se encontra a A./Apelada reporta-se, vista a natureza do vínculo contratual de seguro, tal como pactuado, apenas à específica prestação convencionada a cargo do segurador, que é, inequivocamente, uma prestação pecuniária ([27]). É desta que o segurado/credor se encontra privado, enquanto não ocorrer cumprimento contratual, o qual ainda é, como é manifesto, possível, reconduzindo-nos, por isso, salvo o devido respeito, para o campo da mora no cumprimento (art.ºs 804.º e segs. do CCiv.).

Para esta prevê a lei a indemnização pela mora, medida pelos consabidos juros moratórios (art.º 806.º do CCiv.).

Mas, assim sendo, só pode ter-se como ajustada a conclusão expressa na alegação de recurso no sentido de a compensação pela não entrega da prestação (atraso no cumprimento) dever ser realizada através do pagamento de juros de mora, determinados na sentença sob recurso (cfr. ponto B), primeira parte, do dispositivo daquela decisão).

Com efeito, havendo de recair, como dito, a pretensão reparatória na invocada mora debitoris quanto à satisfação da prestação convencionada em dinheiro – atraso no pagamento do respetivo capital do seguro –, do que se trata, na realidade, é de uma situação de mora do devedor (a R./Apelante) quanto a obrigação pecuniária.

Ora, para tal mora quanto a obrigações de natureza pecuniária logo prevê o art.º 806.º do CCiv. que a indemnização do dano (cfr. também art.º 804.º, n.º 1, do mesmo Cód.) tem de corresponder aos juros a contar da constituição em mora (n.º 1), sendo devidos os juros legais, exceto se antes da mora for devido um juro mais elevado ou houver convenção de juro moratório diverso do legal (n.º 2), ou se o credor provar que a mora lhe causou dano superior a tais juros e exigir a indemnização suplementar correspondente, desde que, neste último caso, se trate de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco (n.º 3).

No caso dos autos não se demonstra nenhuma destas exceções, pelo que vale a regra da indemnização medida pelos juros moratórios legais, os quais, com efeito, já resultam fixados na sentença, como decorre do respetivo dispositivo, sejam os vencidos ou os vincendos, até integral pagamento (à taxa supletiva legal).

Donde a procedência do recurso neste particular, devendo revogar-se parcialmente a decisão recorrida, com supressão da parcela indemnizatória referente à privação do uso, expressa na quantia de «… Euros 8,800,00, derivada do incumprimento contratual até à data da propositura da ação, acrescida de € 50,00 por cada dia útil, até efetivo e integral pagamento da quantia referente à perda total ...”.

No mais, haverá de manter-se a sentença em crise, ficando, obviamente, prejudicada a remanescente questão da dupla indemnização pelo mesmo dano.

                                               ***

IV – Sumariando (cfr. art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

1. - No seguro de danos, o interesse no seguro respeita à conservação ou à integridade da coisa, direito ou património seguros, relevando a relação económica existente entre uma pessoa e um bem exposto ao risco.

2. - O locatário em contrato de locação financeira tem interesse relevante, como segurado, em contrato de seguro facultativo de danos respeitante à coisa locada (seguro de coisa, com cobertura de furto e roubo).

3. - Se, em contrato de seguro de danos próprios, não foi convencionada a cobertura do dano da privação do uso do veículo seguro, também não poderá pretender-se indemnização desse dano como decorrência do atraso do devedor/segurador no pagamento da prestação convencionada a seu cargo em caso de sinistro.

4. - Em tal caso, do que se trata é de mora debitoris quanto a obrigação pecuniária (a dita prestação convencionada), correspondendo então a indemnização pelo dano da mora aos juros legais, pois que valor mais elevado não se mostra ser devido.

***
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência:
a) Revogar o segmento da sentença recorrida referente à condenação da R./Apelante na quantia de «… Euros 8,800,00, derivada do incumprimento contratual até à data da propositura da ação, acrescida de € 50,00 por cada dia útil, até efetivo e integral pagamento da quantia referente à perda total ...”;
b) Manter no mais a decisão apelada.

As custas da ação e do recurso serão suportadas por A./Apelada e R./Apelante na proporção do respetivo decaimento.


Coimbra, 18/10/2016

Escrito e revisto pelo relator

Elaborado em computador

Vítor Amaral (Relator)

Luís Cravo (1.º Adjunto)

Fernando Monteiro (2.º Adjunto)


([1]) Segue-se, no essencial, nesta parte, por economia de meios, o relatório da decisão recorrida.
([2]) Em 31/05/2013 (cfr. fls. 28 dos autos em suporte de papel).
([3]) Figurando como interveniente principal “C (…) S. A.”, também com os sinais dos autos (intervenção admitida por despacho de fls. 158 e seg. dos autos em suporte de papel), que veio, na sentença proferida, a ser declarada parte ilegítima e, como tal, absolvida da instância (cfr. dispositivo de fls. 263 e v.º), segmento decisório de que não foi interposto recurso e que, por isso, transitou em julgado.
([4]) E, subsidiariamente, “relativamente ao pedido formulado em 1.1.”, a “pagar à C (…) S.A. a quantia de Euros 36.842,90, acrescida de juros legais desde citação até efetivo e integral pagamento”, pedido que não releva para a economia do recurso visto o mencionado trânsito em julgado da decisão absolutória da instância de tal “C (....) ”.
([5]) Processo instaurado após 01/01/2008, mas antes de 01/09/2013 e decisão recorrida posterior a esta data (cfr. sentença de fls. 250 a 263 v.º dos autos, bem como art.ºs 5.º, n.º 1, 7.º, n.º 1, este por argumento de maioria de razão, e 8.º, todos da Lei n.º 41/2013, de 26-06, e Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, ps. 14-16, Autor que refere que, tratando-se de decisões proferidas a partir de 01/09/2013, portanto, após a entrada em vigor do NCPCiv., em processos instaurados anteriormente, mas não anteriores a 01/01/2008, se segue integralmente, em matéria recursória, o regime do NCPCiv.).
([6]) Caso nenhuma das questões resulte prejudicada pela decisão das precedentes.
([7]) Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo DLei n.º 72/2008, de 16-04, com entrada em vigor em 01/01/2009 (cfr. art.ºs 1.º e 7.º deste DLei).
([8]) Reportado à verificação (total ou parcial) do evento que desencadeia o acionamento da cobertura do risco prevista no contrato de seguro (art.º 99.º referido).
([9]) O Ac. TRC, de 03/03/2015, Proc. 15/13.9TBSBG.C1 (Rel. Henrique Antunes), em www.dgsi.pt., em cujo sumário pode ler-se: “I - No seguro de danos, o interesse de seguro – sem o qual o contrato será nulo – respeita à conservação ou à integridade da coisa, direito ou património seguros, o mesmo é dizer à relação existente entre o segurado e o valor patrimonial seguro. II - Tendencialmente, essa relação consubstanciar-se-á na propriedade ou de outra forma de titularidade, incluindo posições activas em obrigações ou valores imateriais, pelo que o interesse – legitimidade – como segurado, pertencerá, pois, não só ao titular de direito real sobre a coisa – propriedade, direito real menor de gozo ou de garantia – mas também, por exemplo, ao credor ou ao devedor da prestação que tenha por objecto a coisa segura, mesmo que não sejam proprietário – locatário, comodatário, transportador, expedidor, destinatário, etc.” (itálico aditado).
([10]) Veja-se José Vasques, Contrato de seguro, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 131. Também Joaquín Garrigues alude a relação económica com a coisa segura, em termos de um interesse subjetivo ou concreto – cfr. Contrato de seguro terrestre, Imprenta Aguirre, Madrid, 1982, p. 128.
([11]) Assim Pedro Romano Martinez, Direito dos seguros, Principia, Cascais, 2006, p. 59.
([12]) Cfr. José Vasques, op. cit., p. 137.
([13]) De facto, ao aludir a um risco do tomador do seguro ou de outrem, este preceito tem em vista o interesse do segurado relativamente ao risco coberto.
([14]) Cfr. Ac do STJ, de 22/03/2007, Proc. 07A230 (Cons. Silva Salazar), em www.dgsi.pt, embora reportando-se ainda ao art. 428.º, n.º 1, do CCom.
([15]) Cfr. Joaquín Garrigues, op. cit., p. 132. De notar que a Lei do Contrato de Seguro espanhola contém, no seu art.º 25.º – tal como o art.º 1904.º do Codice Civile italiano –, um pouco à semelhança do art.º 43.º do nosso RJCS (este, porém, com um âmbito mais amplo, pois que abrange todas as modalidades de seguros), um preceito que estabelece a nulidade do contrato de seguro contra danos se, no momento da sua conclusão, não existir um interesse do segurado à indemnização do dano (o Cód. italiano, por sua vez, alude ao momento em que o seguro deva ter início).
([16]) Cfr., por todos, Pedro Romano Martinez, Direito dos seguros, cit., p. 59, e José Vasques, Contrato de seguro, cit., p. 142 e ss.. Este princípio significa que todo o segurado deve ter uma justificação para efetuar o seguro, um interesse relevante ou segurá­vel.
([17]) Assim, Pedro Romano Martinez e outros, Lei do Contrato de Seguro Anotada, Almedina, Coimbra, 2009, p. 188.
([18]) Cfr. Pedro Romano Martinez e outros, Lei do Contrato de Seguro…, cit., p. 187.
 
([19]) Reporta-se, designadamente, a Ac. do STJ que diz disponível em www.dgsi.pt, mas que não identifica totalmente (nem quanto ao relator, nem ao n.º completo do Proc.), o que impede a respetiva localização e consulta.
([20]) Cfr. Ac. STJ, de 05/06/2012, Proc. 3303/05.4TBVIS.C2.S2 (Cons. Azevedo Ramos), disponível em www.dgsi.pt. No mesmo sentido, o Ac. STJ, de 03/05/2001, Proc. 01A1142 (Cons. Afonso Melo), em www.dgsi.pt., em cujo sumário consta: “(…) 3. Deixar durante o fim de semana, por três noites, a galera estacionada no parque da auto-estrada com a carga, valiosa, sem qualquer precaução de segurança, não é próprio do homem médio, prudente e avisado, muito menos tratando-se de profissional de transportes rodoviários de mercadorias. 4. Logo, o furto da mercadoria ocorrido nessas circunstâncias não constitui caso fortuito ou de força maior”. E também o Ac. STJ, de 17/05/1984, Proc. 071645          (Cons. Octávio Garcia), em www.dgsi.pt, constando do respetivo sumário que “Não se pode considerar facto imprevisivel o furto de mercadorias tiradas de um veículo em que eram transportadas deixado estacionado toda a noite numa praça de Lisboa, ainda que iluminada e policiada, e daí também furtado”.
([21]) Sendo ainda que um veículo pesado, quando utilizado no transporte internacional de mercadorias, naturalmente pode, por vezes, ter de ficar, por força das circunstâncias, imobilizado de noite em espaços abertos e não vigiados.
([22]) Obviamente, diversos dos emergentes do contrato de transporte de mercadorias.
([23]) À luz da boa-fé, a vida do contrato de seguro deve ser perspetivada sob o signo da cooperação entre as partes, como instrumento direcionado para o cumprimento comprometido com a realização satisfatória do fim contratual, focando-se a boa-fé no modo de realização das utilidades contratuais, sem, pois, sacrifício injustificado/excessivo do interesse contratual de qualquer das partes.
([24]) Assim, Pedro Romano Martinez e outros, op. cit., p. 368.
([25]) Vide, ainda, Pedro Romano Martinez e outros, op. cit., p. 367, Autores que defendem ainda – cfr. p. 368 –, quanto ao valor de privação do uso, que a respetiva “cobertura no caso outro do seguro de responsabilidade civil é obrigatoriamente assegurada pelo previsto no n.º 3 do art. 146.º (concretamente pela inclusão do dano correspondente à privação de uso no perímetro da obrigação de restitutio in integrum, art. 562.º CC).
([26]) Neste sentido, o Ac. TRC, de 23/05/2006, Proc. 1323/06 (Rel. Ferreira de Barros), em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário: «1.                A seguradora apenas está obrigada, face ao tomador do seguro, nos precisos termos do contrato de seguro de dano próprio celebrado, não sendo devida indemnização por danos que não estejam cobertos; 2.      Assim, se nos termos do contrato e no caso de furto, é estabelecido o valor máximo garantido do automóvel seguro, e prazo a partir do qual é devida a indemnização, o tomador do seguro não tem direito a ser indemnizado pelas despesas havidas com o aluguer de outras viaturas; 3. O seguro cobrindo o risco de coisas ou objectos apenas visa a garantia e conservação do património do segurado, ficando excluída a aquisição de lucro, a não ser que seja expressamente convencionada». Também neste sentido, o Ac. TRL, de 25/06/2009, Proc. 1515/05.0TBMTJ.L1-2 (Rel. Ezagüy Martins), em www.dgsi.pt, sustentando que, no âmbito do seguro facultativo de danos próprios em viatura automóvel, «II- A obrigação da seguradora, em caso de destruição total do veículo ou de opção pelo pagamento do respectivo valor, resolve-se numa obrigação pecuniária, “de soma ou quantidade”» e que, «III- Nessa hipótese, e não se tratando assim de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, a indemnização pela mora no cumprimento da obrigação da seguradora corresponde apenas aos juros a contar do dia da constituição em mora». Cfr. ainda o Ac. TRP, de 28/10/2013, Proc. 2965/12.0TBMTS.P1 (Rel. Alberto Ruço), também em www.dgsi.pt, explicando a diferença entre seguro de coisas e seguro de responsabilidade civil, com a decorrente diversa natureza da prestação a cargo do segurador num e noutro caso.
([27]) Cobertura facultativa pelo capital seguro de € 38.745,00, com uma franquia, por sinistro, de € 774,90 (e não mais).