Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1419/15.8T8FIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: PARTILHA
NULIDADE DA PARTILHA
FORMA DE PROCESSO
Data do Acordão: 03/08/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - FIGUEIRA FOZ - INST. LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 286, 289, 2119, 2121 CC, LEI Nº 23/2013 DE 5/3
Sumário: 1. Incidindo a sentença homologatória da partilha sobre um encontro de vontades decorrente da conferência de interessados, releva e prevalece o acordo sobre a partilha entre todos os herdeiros, e não a autoridade do caso julgado (tal acordo deve ser considerado, juntamente com a sentença transitada homologatória de tal partilha, elemento estruturante do acto da partilha), sendo assim defensável a aplicação das regras de ineficácia e de invalidade próprias dos negócios jurídicos (v. g., as dos art.ºs 240º e seguintes, do CC), senão directamente, pelo menos por analogia com o art.º 2121º, do CC.

2. Em matéria de declaração da ineficácia da partilha, aplicam-se as regras gerais dos negócios jurídicos (art.ºs 286º e seguintes, do CC), sendo que a declaração de ineficácia global tem como consequência fazer extinguir, retroactivamente ao momento da abertura da sucessão (cf. os art.ºs 289º e 2119º, do CC), os efeitos próprios da partilha hereditária, repondo a situação de indivisão hereditária (que só poderá ser superada com nova partilha, face à ineficácia global da primitiva).

3. Para obter a declaração da nulidade das partilhas judiciais a acção declarativa de simples apreciação, sob a forma comum, é a forma de processo própria/adequada.

Decisão Texto Integral:





           
            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
           
           
            I. Em 22.9.2015, A (…) e M (…), intentaram a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra J (…) pedindo que o tribunal decrete a nulidade das partilhas efectuadas por óbito de AC (…) e de MF (…), com todas as legais consequências.
            Alegaram, nomeadamente: a Ré, nascida a 19.7.1976, é filha natural de C (…) e M (…), irmã da A., ambas filhas de M (…), sendo esta filha de A (…) e M (…) - avó da Ré e mãe da A. - faleceu a 28.01.1976, tendo a mãe da Ré e irmã da A. falecido em 31.7.1976; em 1984, na sequência do falecimento de A (…) ocorrido a 20.5.1983, teve lugar o respectivo processo de inventário obrigatório, o qual correu termos sob o n.º 91/84, pelo 1º Juízo Cível do Porto; na sequência do falecimento de M (…), ocorrido em 07.11.1991, teve lugar o respectivo processo de inventário obrigatório, o qual correu termos sob o n.º 8/91 do mesmo Juízo, mas foi incorporado naquele outro que correu termos por óbito do seu falecido marido; a Ré foi adoptada plenamente pela nova esposa do seu pai, em Fev. de 1981, pelo que, desde a data da adopção, cessaram as relações de parentesco com a respectiva família biológica materna, perdendo a legitimidade para, enquanto herdeira, concorrer às heranças abertas por óbito dos seus bisavós maternos, A (…) e M (…) e, consequentemente, para intervir nos processos de inventário instaurados para partilha dos respectivos acervos hereditários; no âmbito dos referenciados processos de inventário não foi dado a conhecer que a Ré havia sido, anteriormente aos óbitos dos inventariados, adoptada plenamente pela segunda esposa do pai, pelo que a Ré recebeu os quinhões hereditários que lhe foram atribuídos nos referidos processos de inventário, sendo que o quinhão hereditário da A. deveria ter correspondido à totalidade do que caberia à sua mãe, M (…), na herança dos seus avós; tal factualidade consubstancia inequívoca violação das disposições imperativas contidas nos art.ºs 1986º, 2133º e 2157º, do Código Civil (CC), o que tem por consequência a total invalidade das mencionadas partilhas, na justa medida em que estas enfermam de nulidade.

            A Ré, devidamente citada, não contestou.

            Seguidamente, por sentença de 24.11.2015, o Tribunal a quo julgou verificado o erro na forma de processo, e subsequente nulidade de todo o processado e, em consequência, determinou a absolvição da Ré da instância, ao abrigo do disposto nos art.ºs 577º, al b) e 278º, n.º 1 al. e) do CPC.

            Foi indeferido o pedido de aclaração de fls. 33 verso (fls. 38).

            Inconformados, os AA. interpuseram a presente apelação formulando as seguintes conclusões:

            1ª - Os recorrentes invocaram a nulidade das partilhas efectuadas por óbito de A (…) e M (…), tendo a final peticionado a declaração dessa mesma nulidade.

            2ª - Os negócios jurídicos nulos não produzem quaisquer efeitos jurídicos, enfermando pois de uma total improdutividade jurídica, da qual decorre, nomeadamente, que os negócios inquinados por esse vício invalidante não podem vir a produzir efeitos em virtude de actos e/ou negócios posteriores que os expurguem da ilegalidade de que padecem.

            3ª - No concernente à partilha por morte, a declaração da sua nulidade tem por consequência a extinção, retroagida ao momento da abertura da respectiva sucessão, dos seus efeitos, o que implica a reposição da situação de indivisão hereditária.

            4ª - Não se compreende, nem se descortina qual seja o fundamento para a alusão que na sentença recorrida se faz ao regime jurídico da emenda e anulação da partilha, consignado nos art.ºs 70º a 73º da Lei n.º 23/2013, de 05.3.

            5ª - Porquanto, o pedido formulado nestes autos - e é em função do pedido que sempre se determina a forma processualmente ajustada - não visa anular as mencionadas partilhas, mas sim declará-las nulas.

            6ª - Acresce que bastará atentarmos na literalidade dos art.ºs 70º a 72º da mencionada Lei n.º 23/2013, para constatarmos que o caso sub judice não tem cabimento nas balizas legais que ali são estabelecidas para que possa ocorrer a emenda ou a anulação da partilha.

            7ª - A emenda da partilha - que pode ser por acordo de todos os interessados ou dos seus representantes ou por via de acção judicial (proposta no prazo de um ano a contar do conhecimento do erro, contanto que este conhecimento seja posterior à decisão) - pode ter lugar em caso de erro de facto na descrição ou qualificação dos bens ou qualquer outro erro susceptível de viciar a vontade das partes.

            8ª - Tais situações de erro, manifestamente, não se verificam in casu.

            9ª - A anulação da partilha - que deve ser pedida por meio de acção judicial - só pode ser decretada quando tenha havido preterição ou falta de intervenção de algum dos co-herdeiros e se mostre que os outros interessados procederam com dolo ou má fé, seja quanto à preterição, seja quanto ao modo como a partilha foi preparada.

            10ª - Não se afigura que tal aconteça na situação sub judice.

            11ª - Não se compreende ou vislumbra qual seja o fundamento para a referência que é feita na sentença recorrida ao recurso de revisão, pois bastará atender ao elemento literal do art.º 696º do Código de Processo Civil (CPC) para percepcionar que o presente caso não encontra respaldo legal em qualquer uma das hipóteses descritas nas diversas alíneas daquela norma.

            12ª - O Mm.º Juiz a quo interpretou e aplicou erradamente o disposto, nomeadamente, nos art.ºs 286º, 287º, 289º, 1986º, 2133º e 2157º, do CC, nos art.ºs 70º, 71º e 72º da Lei n.º 23/2013, de 05.3 e nos art.ºs 278º, n.º 1, al. e) e 577º, al. b), do CPC.

             Remata dizendo que sendo mister concluir que a acção declarativa de simples apreciação, sob a forma comum, tendo em vista obter a declaração da nulidade das supra referidas partilhas judiciais, é o meio processual que para tanto se afigura idóneo, deverá ser revogada a sentença recorrida e substituída por outra que julgue a acção declarativa comum como o meio processual idóneo para a declaração da nulidade das referenciadas partilhas.

            Não houve resposta à alegação de recurso.

            Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar, apenas, se ocorre o dito erro na forma de processo.


*

            II. 1. A decisão recorrida foi assim fundamentada:

            «(…) Pretendem os AA., “prima facie”, destruir as sentenças homologatórias transitadas em julgado proferidas nos referidos processos de inventário.

            Sucede porém, que a propositura de uma acção comum, não é o meio processual idóneo para a obtenção do efeito jurídico pretendido – declaração da nulidade das partilhas, já homologadas por sentença transitada em julgado.

            Para o efeito, verificados os competentes requisitos legais, deveriam os AA. interpor recurso de revisão (art.º 696º do CPC) ou emendar ou anular a partilha nos termos do disposto nos art.ºs 70º, 71º e 72º da Lei 23/2013, de 5.3, sendo certo que a acção destinada à anulação ou emenda da partilha é apensada ao processo de inventário (art.ºs 71º, n.º 2 e 72º, n.º 2, do referido diploma).

            Concluímos, assim, pela inidoneidade do meio processual que aos AA. lançaram mão para obter o efeito jurídico pretendido.

            A forma de processo escolhida pelo A. deve ser adequada à pretensão que deduz, determinando-se pelo pedido que é formulado e, de forma adjuvante, pela causa de pedir.

            Explica A. dos Reis (in ´CPC Anotado` Vol. II - 288), que: "... a questão da propriedade ou impropriedade do processo especial é uma questão pura e simples de ajustamento do pedido da acção, à finalidade para a qual a lei criou o respectivo processo especial. "

            É em face da pretensão de tutela jurisdicional deduzida pelo A. que deve apreciar-se a propriedade da forma de processo.

            Ora, como se aludiu, pretendem os AA. que o tribunal declare a nulidade das partilhas judiciais efectuadas por óbito de A (…) e de M (…).

            Desta feita, a pretensão da autora não poderá ser viabilizada pela presente forma de processo, não permitindo a petição ser aproveitada para alicerçar a forma processualmente ajustada, o que determina a nulidade de todo o processado

            2. Releva para a decisão do recurso o referido em I. e II. 1., supra, sendo que se procedeu à inscrição no registo predial documentada a fls. 25 verso a fls. 28 (registos de aquisição efectuados em 1993 e 1994).

            Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

            3. Nos termos da lei n.º 23/2013, de 05.3 (que estabelece o regime jurídico do processo de inventário), a partilha, ainda que a decisão se tenha tornado definitiva, pode ser emendada no mesmo inventário por acordo de todos os interessados ou dos seus representantes, se tiver havido erro de facto na descrição ou qualificação dos bens ou qualquer outro erro susceptível de viciar a vontade das partes (art.º 70º, n.º 1); quando os interessados não estejam de acordo quanto à emenda, pode esta ser pedida em acção proposta dentro de um ano, a contar do conhecimento do erro, contanto que este conhecimento seja posterior à decisão (art.º 71º, n.º 1); salvos os casos de recurso extraordinário, a anulação da partilha confirmada por decisão que se tenha tornado definitiva só pode ser decretada (sendo pedida por meio de acção) quando tenha havido preterição ou falta de intervenção de algum dos co-herdeiros e se mostre que os outros interessados procederam com dolo ou má-fé, seja quanto à preterição, seja quanto ao modo como a partilha foi preparada (art.º 72º, n.º 1); as referidas acções (destinada a obter a emenda da partilha ou a anulação) são apensadas ao processo de inventário (art.ºs 71º, n.º 2 e 72º, n.º 2).[1]

           4. Perante o descrito enquadramento fáctico e normativo, antolha-se evidente que, em razão da extinção das relações familiares entre o adoptado/Ré e seus ascendentes e colaterais naturais - com as ressalvas legalmente previstas da integração do adoptado no núcleo familiar do adoptante -, a Ré deixou de ter a qualidade de sucessível legítimo nas partilhas em causa (cf. os art.ºs 1986º, 2031º, 2032º, 2033º, 2133º e 2157º, do CC).[2]

            5. A situação dos autos não se integra na previsão das citadas normas adjectivas la Lei n.º 23/2013, de 05.3, porquanto, além do mais, a emenda da partilha (por acordo de todos os interessados ou dos seus representantes ou por via de acção judicial, a propor no prazo de um ano a contar do conhecimento do erro, contanto que este conhecimento seja posterior à decisão) apenas terá lugar em caso de erro de facto na descrição ou qualificação dos bens ou qualquer outro erro susceptível de viciar a vontade das partes, enquanto a anulação da partilha – que deve ser pedida por meio de acção judicial – só pode ser decretada quando tenha havido preterição ou falta de intervenção de algum dos co-herdeiros e se mostre que os outros interessados procederam com dolo ou má fé, seja quanto à preterição, seja quanto ao modo como a partilha foi preparada.[3]

            Ademais, considerados os fundamentos do recurso de revisão estabelecidos na lei processual civil e o prazo para a sua interposição (cf. os art.ºs 696º e 697º, n.º 2, do CPC) é irrecusável que o caso sub judice também aí não encontra qualquer resposta.

            6. Resta, pois, verificar se foi utilizado o meio processual adequado à pretensão feita valer em juízo, questão fundamental suscitada no recurso.

            7. Incidindo a sentença homologatória (da partilha) sobre um encontro de vontades decorrente da conferência de interessados - como é o caso (cf., v. g., os documentos de fls. 18, 22 e 24) -, será de fazer relevar e prevalecer este acordo (acordo sobre a partilha entre todos os herdeiros), e não a autoridade do caso julgado (“tal acordo deve ser considerado, juntamente com a sentença transitada homologatória de tal partilha, elemento estruturante do acto da partilha”), sendo assim defensável a aplicação das regras de ineficácia e de invalidade próprias dos negócios jurídicos (v. g., as dos art.ºs 240º e seguintes, do CC), senão directamente, pelo menos por analogia com o art.º 2121º, do CC.

            Assim, em matéria de declaração da ineficácia da partilha, aplicam-se as regras gerais dos negócios jurídicos (art.ºs 286º e seguintes, do CC), sendo que a declaração de ineficácia global tem como consequência fazer extinguir, retroactivamente ao momento da abertura da sucessão (cf. os art.ºs 289º e 2119º, do CC), os efeitos próprios da partilha hereditária, repondo a situação de indivisão hereditária (“que só poderá ser superada com nova partilha, face à ineficácia global da primitiva”). [4]

            8. Sendo, assim, plausível a solução de direito preconizada pelos AA. [maxime, quando referem que a invocada factualidade consubstancia inequívoca violação das disposições imperativas dos art.ºs 1986º, 2133º e 2157º, do CC, o que tem por consequência a total invalidade das partilhas efectuadas por óbito de A (…) e M (…), na justa medida em que estas enfermam de nulidade; a A. tem legitimidade – enquanto herdeira legitimária (art.º 2157º, do CC) – e está em tempo (art.º 286º, do CC), pelo que importa afirmar os efeitos legais daí decorrentes (art.º 289º, do CC)] e sabendo-se que é em função do pedido (in casu, a declaração de nulidade das aludidas partilhas) que se determina a forma processual adequada/conveniente, os AA., ao interporem a presente acção declarativa com processo comum, lançaram mão de meio processual próprio/adequado.

            9. Procedem, desta forma, as “conclusões” da alegação de recuso, concluindo-se, pois, pela propriedade/adequação do meio processual empregue.

            A acção deverá prosseguir os seus termos, se a tanto outra causa não obstar.


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III. Pelo exposto, concede-se provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, prosseguindo os autos como se refere em II. 9., supra.

            Sem custas.


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08.3.2016

Fonte Ramos ( Relator )

Maria João Areias

Fernanda Ventura


           


[1] As mencionadas normas têm grande similitude com os art.ºs 1386º, n.º 1, 1387º e 1388º, do Código de Processo Civil de 1961.
[2] Vide, nomeadamente, Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, 1995, pág. 537 e vol. VI, 1998, págs. 219 e seguinte.
[3] Vide, comentando idênticas disposições do CPC de 1961, J. A. Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Vol. II, 4ª edição, Almedina, 1990, págs. 547 e seguintes e 567 e seguintes.

[4] Vide, neste sentido, R. Capelo de Sousa, Lições de direito das sucessões, Volume II, 2ª edição, Coimbra Editora, 1993, págs. 364 e seguintes, e o acórdão da RC de 17.11.2015-processo n.º 308/11.0TBSEI-A.C1 (não publicado no “site” da dgsi, no qual interveio o relator como “2º adjunto”).
   Vide, ainda, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. VI, Coimbra Editora, 1998, pág. 198.