Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
33/17.8GCTND-C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: PERDA A FAVOR DO ESTADO;
OBJECTOS AFECTOS A VEÍCULO AUTOMÓVEL;
DECLARAÇÃO DE PERDA DO VEÍCULO
Data do Acordão: 05/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE VISEU)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 109.º, N.º 1, DO CP
Sumário:
Dois subwoofers, duas colunas de som Pioneer e 2 colunas de som JBL e rádio Pioneer,
não obstante a sua afectação a determinado veículo automóvel, detêm, em relação a este, singularidade e autonomia; por isso, não estão automaticamente incluídos na declaração de perda (a favor do Estado) do referido veículo.
Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório
1. No âmbito do inquérito n.º 33/17.8GCTND, por despacho de 13-10-2017 proferido pelo Juiz do juízo de competência genérica de Tondela, do Tribunal Judicial da comarca de Viseu, foram declarados perdidos a favor do Estado os objectos apreendidos e que se encontravam instalados no veículo apreendido, devidamente identificados a fls. 78.

2. Inconformado com a decisão recorreu o arguido AA extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

“1 - O Tribunal a quo determinou a perda a favor do Estado dos seguintes objetos que estão instalados no veículo automóvel que o arguido conduzia: dois subwoofers, duas colunas de som pioneer, duas colunas de som JBL e rádio Pioneer.
2 - Tal decisão foi baseada no entendimento de que tais bens constituiriam, em conjunto com o veículo automóvel em causa, uma universalidade de facto.
3 - O arguido conduzia o veículo automóvel sua propriedade sem habilitação legal e foi por considerar que a sua utilização na prática de um ilícito criminal e oferecia risco de ser utilizado para o cometimento de novos factos ilícitos típicos que o Tribunal decidiu pela sua perda a favor do estado.
4 - Salvo o devido respeito, o sistema de som que está instalado no veículo não foi utilizado na prática do ilícito nem com ele pode ser praticado qualquer facto ilícito típico.
5 - Nem oferece risco de ser utilizado na prática de novo facto ilícito típico.
6 - O douto despacho em crise violou o disposto nos artigos 109° do Código penal e 206° do Código Civil.
Para instruir o presente recurso, requer que seja extraída certidão integral do Inquérito
Nestes termos,
Deve dar-se provimento ao recurso, e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que determine a restituição ao arguido dos objectos que integram o sistema de som pois só dessa forma farão Vossas Excelências JUSTIÇA.”

3. Por despacho exarado em 29-11-2017 foi o recurso admitido.

4. Em resposta ao recurso, o Ministério Público concluiu:

“1. O recorrente/arguido AA não se conforma com o despacho de fls. 100-101, no qual o Mmo. Juiz de Direito declarou perdido a favor do Estado de 2 (dois) 2 subwoofers, 2 (duas) colunas de som pioneer, 2 (duas) colunas de som JBL e o rádio Pioneer incorporados no veículo automóvel marca “Seat”, modelo “Ibiza”, com a matricula ---, declarado perdido da favor do Estado a fls. 89-90.
II. O veículo automóvel em causa foi apreendido, uma vez que se encontrava abandonado na sequência de acidente de viação, e a propriedade do mesmo era do recorrente/arguido que não possuía carta de condução.
III. O veiculo automóvel em causa foi usado na prática de um ilícito criminal (crime de condução sem habilitação legal), e por tal fato, declarado perdido a favor do Estado, bem como, todos os objectos neles incorporados.
IV. Pelo que, não assiste razão ao recorrente/arguido, devendo o recurso interposto ser considerado improcedente e manter-se na íntegra o despacho recorrido que determinou que tais objectos fossem declarados perdidos a favor do Estado.
V. Não se verifica a violação do disposto no artigo 109°, do Código Penal e artigo 206°, do Código Civil, nem quaisquer outras disposições legais.
V.as. Exas. farão a costumada JUSTIÇA.”

5. Na Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer:

“(…) No que respeita ao mérito do recurso parece-me que o recorrente terá parcialmente razão.
Com efeito, ressalvado o devido respeito por opinião contrária e independentemente da bondade da decisão de perdimento do veículo, já transitada, o que se verifica é que os bens em causa, sendo parte de coisas compostas, detém a sua singularidade, pese embora a afectação, como decorre do art.° 206°, n.°2 do CC. E, sendo assim, não se podendo os mesmos enquadrar na decisão de perdimento, porque singularizáveis relativamente ao veículo, haveria que buscar uma causa que levasse ao perdimento o que a decisão recorrida não faz, sendo certo que não se enquadra claramente a situação no art.° 109° n.º 1, do CP, pois não se integram na prática do facto ilícito típico, nem representam qualquer dos perigos da segunda parte do aludido n.º l do preceito.
Não pode, pois, manter-se a decisão recorrida.
Mas o recorrente pretende a restituição dos objectos, como afirma a final na sua motivação. Só que, anteriormente, tinha referido a fls. 78 que parte deles não lhe pertenciam, sendo de um amigo, não tendo esclarecido, apesar de para tal solicitado, quais os que eram sua pertença. O que conduz a que sem esclarecimento e prova da propriedade dos objectos em causa, os mesmos não lhe poderão ser restituídos, já que não se sabe a que título os detinha, não podendo pois proceder nesta parte a sua pretensão.
Deve pois ser revogada a decisão recorrida, mas não entregues os objectos, devendo os autos aguardar nos termos do art.° 186°, n.°4 do CPP.
Pelo que sou de parecer que o recurso merece parcial provimento, nos termos referidos.”

6. Cumprido o n.º 2 do artigo 417.º do CPP, o recorrente não reagiu.

7. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, pois, decidir.

II. Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso
O objecto do recurso é definido pelas conclusões, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso.
No caso em apreço importa decidir se é indevida a declaração de perdimento dos objectos instalados no veículo apreendido nos autos.

2. A decisão recorrida
« Fls. 85 e seguintes.
O Ministério Público promoveu que os objectos apreendidos e que se encontravam instalados no veículo, devidamente identificados a fls. 78 fossem declarados perdidos a favor do Estado.
Dispõe o artigo 109º, nº 1 do Código Penal que são declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
Dos autos resulta que os objectos em causa, 2 subwoofers, duas colunas de som pioneer, 2 colunas de som JBL e rádio Pioneer, se encontram instalados no veículo cuja perda foi determinada.
Notificado o arguido para identificar quem eram os proprietários de tais bens, até ao presente não os indicou.
Encontrando-se os mesmos instalados no carro, não poderão deixar de ser qualificados como partes integrantes do mesmo – artigos 206º, e 210º do Código Civil.
Pelo exposto, formando os bens em causa uma universalidade com o automóvel, declaro-os perdidos a favor do Estado.
**
Notifique, e após devolva ao Ministério Público.”

3. Apreciação
O perdimento dos instrumentos e produtos do crime encontra-se previsto no art. 109º, nº 1, do C. Penal nos termos do qual, são declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
Sobre os requisitos da declaração de perda vide Ac da Rel Coimbra de 22-05-2013, proc 2032/10.1PBAVR.C1, relator Des Vasques Osório.
Sobre a epígrafe «Objeto e pressupostos da apreensão», dispõe o artigo 178.º do CPP:
1 - São apreendidos os instrumentos, produtos ou vantagens relacionadas com a prática de um facto ilícito típico, e bem assim todos os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou qualquer outros suscetíveis de servir a prova.
[…]
5 - Os órgãos de polícia criminal podem ainda efetuar apreensões quando haja fundado receio de desaparecimento, destruição, danificação, inutilização, ocultação ou transferência de instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objetos provenientes da prática de um facto ilícito típico suscetíveis de serem declarados perdidos a favor do Estado.
[…]
7 - Os titulares de instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objetos apreendidos podem requerer ao juiz a modificação ou a revogação da medida.
[…]
9 - Se os instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objetos apreendidos forem suscetíveis de ser declarados perdidos a favor do Estado e não pertencerem ao arguido, a autoridade judiciária ordena a presença do interessado e ouve-o.”

Revertendo aos autos, os objectos em causa, (2 subwoofers, duas colunas de som pioneer, 2 colunas de som JBL e rádio Pioneer - identificados a fls. 78) encontram-se instalados no veículo cuja perda foi determinada por despacho transitado em julgado.
Contudo, porque tais objectos não foram encastrados no veículo pelo fabricante, não podem ser considerados partes integrantes do veículo.
Por outro lado, com é sabido, existem universalidades de facto, a que alude o artigo 206º do Código Civil e universalidades de direito.
Na universalidade de facto, a pluralidade de coisas que a compõem, pertencem à mesma pessoa e têm um destino unitário. Porém, conforme o disposto no nº 2 do artigo 206º, do CC, as coisas singulares que formam a universalidade, podem ser objecto de relações jurídicas próprias.
Assim, existindo na universalidade um conjunto de coisas simples que tem uma individualidade económica própria, todavia as coisas que integram tal conjunto têm também uma individualidade económica, um valor próprio no comércio, independente da agregação em que se encontram.
Concluindo, os bens em causa, não obstante a afectação ao veículo, detêm a sua singularidade e autonomia, como decorre do referido normativo, por isso que não se podem enquadrar na decisão de perdimento do referido veículo.
Por outro lado, sendo óbvio que não se enquadram na previsão do art.° 109° n.° 1, do CP, não pode ser declarado o seu perdimento com tal fundamento.
Daí que se imponha revogar o despacho recorrido.
Pretende o recorrente a restituição dos objectos que segundo as suas declarações de fls 78, em parte lhe pertencem, tendo os restantes sido emprestados por um amigo.
O comodato é o contrato pelo qual o comodante proporciona ao comodatário, mediante entrega, o gozo temporário de uma coisa imóvel ou móvel, sem retribuição, com a obrigação de a restituir. (cfr. Artigo 1129º do Código Civil).
Ora, considerando que uma das obrigações do comodato é a restituição do objecto, não se justifica a prova da propriedade dos objectos, até porque não há dúvidas de que estavam na posse do arguido. O que dispensa a aplicação do disposto no art.° 186°, n.°4 do CPP.

III. Dispositivo
Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em conceder provimento ao recurso, pelo que revogam o despacho recorrido e determinam a sua substituição por outro que ordene a restituição ao arguido dos bens identificados a fls. 78 ( 2 subwoofers, duas colunas de som pioneer, 2 colunas de som JBL e rádio Pioneer).
Sem tributação.

Coimbra, 8 de Maio de 2018
Processado e revisto pela relatora

Isabel Valongo (relatora)
Jorge França (adjunto)