Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
552/07.4TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: ENERGIA ELÉCTRICA
FORNECIMENTO
Data do Acordão: 02/23/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: POMBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: LEI Nº23/86 DE 26/7, LEI Nº 12/2008 DE 26/2, LEI Nº 24/2008 DE 2/6
Sumário: I - O conceito de «alta tensão» constante do n.º 3 do artigo 10.º, da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho (correspondente ao actual n.º 5, após as alterações introduzidas pela Lei n.º 12/2008) não inclui a energia eléctrica fornecida em «média tensão».

II - A norma do n.º 3 do artigo 10.º da Lei n.º 23/96 de 26 de Julho, assim interpretada, não é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade proclamado no artigo 13.º da Constituição da República.

III - As alterações ao art.10 da Lei nº23/96, introduzidas pelas leis nº 12/2008 de 26 de Fevereiro e nº24/2008 de 2 de Junho, têm natureza interpretativa ( art.13º CC).

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2.ª secção cível):

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Recorrente (Autora)…………………A (…), S. A., pessoa colectiva n.º 504 394 029, com sede na Rua (…), em Lisboa.

Recorrido (Ré)……………………….B (…), Ld.ª pessoa colectiva n.º 500 040 303, com sede na Rua (…), .....


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I. Relatório:

a) A recorrente A (…), S. A. instaurou contra a ré B (…) a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, com o fim de obter a condenação desta a pagar-lhe a quantia de €215.696,93 euros, referente a energia eléctrica fornecida e não paga, acrescida de juros de mora vencidos, no montante de €8.834,58 euros, bem como os vincendos até integral pagamento.

Funda o pedido no facto de ter descoberto, em 17 de Julho de 2005, no âmbito de uma campanha de telecontagem efectuada pelos seus serviços técnicos, uma anomalia no equipamento de contagem de energia eléctrica colocado nas instalações do posto de transformação (PT) privativo da Ré, a qual implicou a contagem, com prejuízo para a Autora, de menos 1/3 em relação  ao consumo real da Ré, o que se reflectiu na facturação.

Por conseguinte, pelo menos desde Janeiro de 1997 até Junho de 2005, a Autora apenas facturou 2/3 da energia e potência efectivamente fornecidas, encontrando-se em dívida a quantia acima mencionada, que a Ré se recusou a pagar quando foi interpelada para o fazer.

A Ré contestou.

Colocando de parte outras questões por si suscitadas e já resolvidas no processo, a Ré invocou a caducidade do direito da Autora, nos termos do n.º 2 do artigo 10.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, onde se dispõe que «Se, por erro do prestador do serviço, foi paga importância inferior à que corresponde ao consumo efectuado, o direito ao recebimento da diferença de preço caduca dentro de seis meses após aquele pagamento».

Subsidiariamente alegou que o seu prejuízo é rigorosamente igual ao valor do crédito da Autora, pois, por desconhecer o erro da Autora, a Ré ficou impedida de considerar o custo efectivo da energia consumida, não o tendo podido reflectir no preço final do azulejo por si comercializado, excepcionando, assim, a compensação de créditos.

Imputou à Autora uma actuação com abuso de direito e impugnou a factualidade alegada na petição inicial.

A Autora replicou sustentando a improcedência da excepção de caducidade, na medida em que só tomou conhecimento do direito que lhe competia no dia 19 de Outubro de 2005; e por não se aplicar ao caso o disposto no artigo 10.º da Lei n.º 23/96, devido a tratar-se de fornecimento de energia eléctrica em «média tensão».

A sentença recorrida absolveu a Ré do pedido com base na procedência da excepção peremptória da caducidade prevista no artigo 10.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho.

b) A Autora recorre, em síntese, porque entende que o conceito de «alta tensão» que consta do n.º 5, do artigo 10.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, inclui o fornecimento de energia eléctrica em «média tensão» e, sendo assim, a caducidade aí prevista não se aplica ao caso dos autos.

Juntou em abono desta tese dois pareceres um do Sr. Professor Rui de Alarcão (FDUC) e outro do Sr. Professor Jorge Miranda (FDUL e UC).

A recorrente conclui desta forma:

1 – Toda a estrutura do sector eléctrico, na perspectiva da distribuição, está, desde sempre, assente em dois grandes níveis de tensão – a «alta tensão» e a «baixa tensão».

2 – A estrutura da facturação dos clientes fornecidos em «alta tensão», nas suas variantes de Média, Alta e Muito Alta Tensão, é em tudo semelhante, diferindo substancialmente da estrutura simplificada da facturação de «baixa tensão».

3 – A classificação dos níveis de tensão em Baixa Tensão Normal, Baixa Tensão Especial, Média Tensão, Alta Tensão e Muito Alta Tensão é eminentemente especifica dos fins tarifários, ou seja, diz respeito apenas e só às regras tarifárias, indicando também a «qualidade» do cliente.

4 – A aplicação directa das definições constantes dos decretos-lei de 1995 é neles expressamente restringida ao seu âmbito próprio.

5 – E a Lei n.º 23/96 não respeita a questões tarifárias, sendo indubitável que o n.º 3 do artigo 10.º desta lei acolhe o sentido lato de «alta tensão», resultando claro do relatório da proposta de lei que o legislador pretendeu excluir do âmbito de aplicação dos prazos de prescrição e caducidade os grandes clientes (consumidores/utentes) que não são consumidores finais, mas recebem a energia nos seus postos de transformação, transformando-a e consumindo-a como bem entendem, pelo que excepciona daquela aplicação, nos termos do n.º 3, o «fornecimento de energia eléctrica em alta tensão»;

6 – Por conseguinte, no âmbito da Lei n.º 23/96, «alta tensão», reflecte o conceito comum de toda a tensão que não é «baixa», isto é, tensão superior a 1 Kv;

7 – Se assim não se entendesse, teria que se admitir que a Muito Alta Tensão (que fornece os maiores consumidores industriais/comerciais de electricidade) também não estava excluída, nos termos do n.º 3 do artigo 10.º da supra citada Lei, o que é impensável e contraria claramente os objectivos da lei.

8 - Ao estabelecer a exclusão do n.º 3, o legislador entendeu que, para os utentes de energia eléctrica em «alta tensão» não se verificam riscos que justifiquem a especial preclusão (de curto prazo) do crédito do fornecedor.

9 – E tal interpretação é a única compatível com o princípio constitucional da igualdade, enquanto proibição do arbítrio.

10 – Ou seja, consumidores iguais (em termos de tarifação, instalação eléctrica, obrigações de licenciamento, etc.) tratados de forma desigual, conferindo a uns uma protecção e tutela (v. g. em matéria de prazos prescricionais e caducidade) que a outros é negada.

11 – Nos termos de parecer junto com o presente recurso, da autoria do Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda, admitir que as regras sobre prescrição e caducidade do pagamento de energia eléctrica da Lei n.º 23/96 possam estender-se aos consumidores de média tensão, admitir que eles não se achem compreendidos no artigo 10.º, n.º 5, equivale a atribuir-lhes um excesso de protecção em confronto com a protecção conferida aos consumidores em «baixa tensão», aos clientes domésticos e aos consumidores finais (...).

12 – Do teor do contrato celebrado com a Autora/Recorrente resulta que esta é um grande consumidor industrial de energia eléctrica (ainda hoje), que utiliza a corrente eléctrica no exercício da sua actividade industrial, a que não é aplicável o disposto na Lei n.º 23/96 de 26 de Julho, porquanto, esta lei visou criar mecanismos de protecção do pequeno e médio consumidor de «baixa tensão», o consumidor final, categoria na qual a empresa Ré não se enquadra.

13 - Consequentemente, em virtude do fornecimento de energia eléctrica para uso industrial da recorrida ser efectuado à tensão de 30 Kv, é um fornecimento em Alta Tensão, pelo que, ex vi do n.º 3, não lhe são aplicáveis os n.º 1 e 2 do artigo 10.º da Lei 23/96, de 26 de Julho.

14 - Este entendimento não foi e não é posto em causa pela Lei n.º 12/2008, de 24 de Fevereiro de 2008, que entretanto veio a entrar em vigor, porquanto se mantiveram os quatro níveis de tensão anteriormente previstos, conforme parecer dos Srs. Professores de Direito, Rui de Alarcão e Manuel Henrique Mesquita, ao quais mantiveram como válida a doutrina sustentada em parecer já elaborado em 2005, para além do supra citado parecer do Prof. Jorge Miranda, que segue o mesmo entendimento, sufragando a inconstitucionalidade da interpretação literal do artigo 10.º, n.º 5 da lei citada, no sentido de que se encontra apenas ressalvada desse regime de prescrição e caducidade o fornecimento de energia em «alta tensão», dele se excluindo quer o fornecimento em «muito alta tensão» quer o fornecimento em «média tensão»;

15 – Inconstitucionalidade decorrente da clamorosa afronta aos princípios constitucionais da proporcionalidade e da igualdade, porquanto existe um paralelismo substancial entre a relação de fornecimento de energia eléctrica em «média tensão» e a relação de fornecimento em «alta tensão» stricto sensu (entendida como a tensão superior a 45 kV e igual ou inferior a 110 kV);

16 – A sentença infringiu as normas previstas na Constituição da República Portuguesa (art.º 13.º), a alínea g) do art. 310.º do Código Civil, as normas dos n.º 1 e 3 do artigo 10.º da Lei n.º 23/96, não atendeu à restrição imposta pelo Dec. Lei n.º 182/96 quanto à utilização das noções nele consignadas e esqueceu as definições que constam do Decreto Regulamentar n.º 98/84, de 26 de Dezembro, e Decreto Regulamentar n.º 1/92, de 18 de Fevereiro.

Não houve contra-alegações.

c) O objecto do recurso consiste, por conseguinte, em determinar:

1 – Se o conceito de «alta tensão» constante do n.º 3, da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho (correspondente ao actual n.º 5, após as alterações introduzidas pela Lei n.º 12/2008), abrange ou não abrange no seu âmbito o fornecimento a que se referem os autos, qualificado como de «média tensão», ou seja, se para efeitos desta norma o fornecimento de energia eléctrica se divide entre «baixa tensão» e «não baixa tensão» (incluindo aqui a «média tensão», a «alta tensão» e a «muito alta tensão»).

2 – Caso a decisão seja no sentido de que o mencionado conceito legal de «alta tensão» não abarca os fornecimentos denominados e «média tensão», verificar se existe ou não existe inconstitucionalidade da norma constante do n.º 3 do artigo 10.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, por infracção ao disposto no artigo 13.º da Constituição da República.

II. Fundamentação.

A) A matéria provada é esta:

1. A Autora dedica-se à distribuição de energia eléctrica, resultando da fusão de várias sociedades, incluindo a (…), S. A., e encontra-se registada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa sob o n.º 8847.

2. A Ré dedica-se ao fabrico de azulejos.

3. Por escrito celebrado entre a (…) e a Ré, em Dezembro de 1973, aquela obrigou-se a fornecer energia eléctrica necessária à actividade comercial da Ré, sendo a energia fornecida sob forma de corrente alternada trifásica, à tensão de 30.000 volts entre fases, com a frequência de 50 hertz, e a potência máxima contratada de 300 kw, constando ainda consignado o seguinte:

«(...) Artigo 6.º Entrega de Energia: A entrega de energia far-se-á no posto de transformação do cliente, cuja localização será fixada de acordo com a CEB (... );

Artigo 7.º Verificação das instalações: À CEB fica reservado o direito de verificar, em qualquer ocasião, o posto de transformação do cliente, obrigando-se este a permitir sempre a entrada livre dos empregados da CEB nessas instalações, a qualquer hora do dia ou da noite (...);

Artigo 9.º Medição de Energia: A medição da energia será feita à tensão de entrega, 30.000 volts, quando o CLIENTE tiver uma potência instalada superior a 100 KVA. Enquanto a potência instalada pelo CLIENTE não exceder 100 KVA, a medição poderá ser efectuada em baixa tensão. A medição será feita por meio de contadores fornecidos e instalados pela CEB, mediante o pagamento de um aluguer mensal a combinar, ficando, porém, o CLIENTE com o direito de instalar o seu dispositivo de contagem e montar quaisquer outros aparelhos se assim lhe convier. § 1. ­Havendo falta de equipamentos de medida de alta tensão, poderá a medição ser feita à tensão secundária, mesmo quando a potência instalada no posto de transformação do CLIENTE seja superior a 100 KVA. § 2. - O contador ou contadores serão de um dos tipos aprovados pelo Governo e, depois de aferidos, serão selados pelas duas partes contratantes e verificados a requisição de qualquer delas quando a) se reconhecer existir uma diferença de leituras superior a três por cento da menor na hipótese de haver dois contadores; b) se suspeitar da existência de um erro superior a três por cento no caso de haver um só contador. As despesas com a aferição serão pagas por quem a tiver requisitado, se o erro do contador estiver dentro das tolerâncias regulamentares e pelo proprietário do contador desregulado se exceder aquelas tolerâncias. § 3. - As leituras serão feitas num dos últimos dias de cada mês, em horas previamente combinadas, por um empregado da CEB, na presença de um delegado do CLIENTE e, caso este não compareça tornar-se-á como boa a leitura do primeiro.

Artigo 10.º Consumo a facturar: Considerar-se-á como consumo a facturar o número de kWh que for indicado pelos contadores, acrescido, no caso da contagem ser feita em baixa tensão, de dois por cento do número desses kWh (como compensação das perdas por efeito de Joule) mais o consumo do transformador (ou transformadores) em vazio, calculado para 720 horas mensais. Para determinação do consumo a facturar toma-se: a) - a média das leituras dos dois contadores (CLIENTE e CEB) no caso destes darem indicações dentro das tolerâncias estabelecidas; b) - a leitura do contador cujo funcionamento seja regular, se houver apenas um contador ou, havendo dois, no caso de um deles se ter avariado; c) ­a média das leituras dos meses anterior e posterior, no caso de não haver contador regulado (...)

Artigo 14.º Pagamento da Energia: Nos primeiros quinze dias de cada mês, a CEB enviará ao CLIENTE a factura do consumo de energia do mês precedente, a qual será liquidada até ao fim do mês em curso, nos escritórios da CEB em Coimbra (...)».

4. Após a instalação, a Autora entregou à Ré o equipamento de medição, tendo esta se obrigado a zelar pelo seu bom estado.

5. A Autora emitiu em nome da Ré a nota de débito datada de 1/6/2006, no montante global de €215.696,93, que enviou a esta em 20/7/2006, com um escrito, com a referência 1321/06/0CB2B-AF, solicitando o pagamento, tendo a Ré, recebido tais escritos em 21/7/2006.

6. Na sequência do escrito referido no ponto 3, a Autora instalou um PT privativo para a Ré, com um contador de energia activa, transformadores de intensidade e transformadores de tensão,

7. As instalações de consumo de grande dimensão com potências como aquela (630 KVA) exigem transformadores de intensidade com relação de transformação, de forma a reduzirem a intensidade de corrente para permitir a contagem.

8. A Autora montou transformadores de intensidade tendo uma relação de transformação 10/5 amperes.

9. Para apresentar valores correctos, o contador tem que tomar em consideração a relação de transformação dos Tis a montante.

10. Os contadores foram montados para reflectir valores considerados Tis com uma relação de transformação 10/5 amperes

11. A instalação referida no ponto 6 estava licenciada e tinha projecto electrotécnico.

12. A Ré tinha ao seu serviço um técnico responsável pela instalação eléctrica.

13. Por causa do referido no ponto 3., a autora forneceu à Ré, de forma continuada, energia eléctrica, com uma potência instalada de 630 KVA, que a Ré destinou à sua actividade comercial.

14. Em 17/6/2005, no âmbito de uma campanha de telecontagem efectuada pelos seus serviços técnicos (Labelec) a Autora detectou uma anomalia no equipamento de contagem sito nas instalações do posto de transformação privativo pertença da Ré.

15. Na ocasião referida no ponto anterior, foi colocado um outro equipamento de telecontagem (marca Bruno Janz, modelo A 1700, ciclo diário de 3 tarifas e com Tis 1000/5), tendo ficado a trabalhar em paralelo o equipamento anterior.

16. Os equipamentos referidos no ponto anterior apresentaram leituras completamente distintas, sendo que o equipamento antigo referido no ponto 6 não media correctamente os consumos porquanto a corrente secundária da fase T tinha um valor inferior ao consumo.

17. Posteriormente a autora efectuou uma auditoria técnica para verificação do equipamento de medida.

18. No âmbito da verificação aludida no ponto anterior, os técnicos concluíram que o equipamento novo, referido em 15, colocado em 27/6/2005, do lado da baixa tensão, funcionava correctamente, o equipamento antigo referido em 6, do lado da média tensão, indicava problemas com a corrente da fase T .

19. O teste de medição de energia em trânsito, efectuado em simultâneo, para o mesmo período de tempo (10 minutos) deu o valor medido de 34 KWH no equipamento antigo, referido em 6. e 60 KWH no equipamento novo, referido em 15.

20. Os testes referidos em 18 e 19 foram efectuados na presença da Ré, designadamente de (…) e (…).

21. O contador antigo, referido em 6. foi reflectindo valores deficitários, na medida em que a corrente secundária exprimia valores abaixo dos valores previstos na corrente primária.

22. A Autora tentou contactar a Ré por causa do referido no ponto 5., mas não obteve resposta.

23. A Autora forneceu, instalou e pôs em funcionamento o equipamento de contagem nas instalações da Ré, procedendo regularmente à leitura do mesmo e facturando os consumos efectuados pela Ré.

24. A Autora podia ter detectado a anomalia referida no ponto 14 através dos seus serviços técnicos, caso tivesse efectuado uma campanha semelhante anteriormente, ou caso, por casualidade, tivesse efectuado uma auditoria ao equipamento de contagem da Ré.

25. Em 19/10/2005 a autora confirmou definitivamente que o equipamento de contagem do PT da Ré media incorrectamente os consumos desta.

26. Entre Novembro de 2005 e Janeiro de 2006 a Autora tentou reunir com a Ré de forma a solucionar o referido no ponto anterior.

B) Passando à análise das questões objecto do recurso.

1. A primeira consiste, como se disse, em determinar se o conceito de «alta tensão» constante do n.º 3 do artigo 10.º, da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho (correspondente ao actual n.º 5, após as alterações introduzidas pela Lei n.º 12/2008), inclui ou não inclui a energia eléctrica fornecida em «média tensão».

A norma em causa, em vigor à data dos factos, tinha a seguinte redacção:

«1. O direito de exigir o pagamento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação.

2. Se, por erro do prestador do serviço, foi paga importância inferior à que corresponde ao consumo efectuado, o direito ao recebimento da diferença de preço caduca dentro de seis meses após aquele pagamento.

3. O disposto no presente artigo não se aplica ao fornecimento de energia eléctrica em alta tensão».
a) A Autora sustenta que sim.
Diz que a Lei n.º 23/96, de 26 de Julho não define o que é «alta tensão» para efeitos da sua aplicação e que a utilização da designação de «média tensão» respeita apenas a questões tarifárias.
E que o consumidor de energia eléctrica fornecida em «média tensão» já tem conhecimentos especiais em matéria de domínio da energia, uma vez que a recebe num posto de transformação da corrente eléctrica, que é da sua propriedade e onde tem de existir um técnico responsável, tratando-se de um consumidor que é industrial ou comerciante.
Sustenta que a exclusão dos fornecimentos em «alta tensão» prevista na Lei n.º 23/96 tem a sua razão de ser nas condições particulares em que a energia eléctrica é fornecida, sucedendo que os fornecimentos da energia em «alta tensão» ou em «média tensão», são em tudo idênticas.
A Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, visou apenas tutelar certo tipo de consumidor, isto é, os consumidores de energia em «baixa tensão», conclusão que se retira da exposição de motivos da lei, onde se disse que «a necessidade de proteger o utente é maior quando ele não passa de mero consumidor final».
A favor da tese de que o conceito de «alta tensão» abrange todo o tipo de fornecimento que não seja designado por «baixa tensão» pode invocar-se o facto de existir ainda o fornecimento de energia em «muito alta tensão», o qual também não está previsto na Lei n.º 23/96, pelo que, não se efectuando a indicada divisão entre «baixa» e «alta tensão», para efeitos de aplicação desta lei, então a «muito alta tensão» também beneficiaria da aludida caducidade, quando é certo que este tipo de consumidores são os maiores consumidores de energia eléctrica.

Cita neste sentido o parecer sobre a matéria do Sr. Prof. Rui de Alarcão onde se diz que «Ao instituir uma diferença de regime jurídico para o fornecimento em alta tensão (preservando-o dos implicações em matéria de caducidade e prescrição definidos no n.º 1 do art.º 10.º do Lei n.º 23/96) o legislador deu-se conta de que o quadro de facto que justificaria uma especial tutela dos consumidores de energia eléctrico em baixa tensão (v.g., pela sua "estrutura económica") não se reproduz nos consumos em alto tensão, justificando-se, perante o nosso sistema constitucional, tal opção normativa diferenciadora».

Pelo que, «a solução defendida não foi e não é desde logo posta em causa pelos diplomas legais entretanto aprovados, que mantiveram designadamente os quatro níveis de tensão anteriormente previstos, com destaque para o Decreto-Lei n.º 29/2006, de 15 de Fevereiro (o qual estabelece os princípios gerais relativos à organização e funcionamento do sistema eléctrico nacional…»).
Passando à apreciação da questão.
Apesar da elevada qualidade da argumentação da Autora, afigura-se que a mesma é insuficiente para mostrar que o conceito de «alta tensão» utilizado no n.º 3, do artigo 10.º, da Lei 23/96, inclui no seu âmbito os fornecimentos da energia em «média tensão».
Pelas seguintes razões:
— Segundo a recorrente, o conceito de «alta tensão» utilizado pelo legislador em 1996, na Lei n.º 23/96, seria um conceito amplo que abrangeria toda a tensão superior a 1 kV, ou seja, superior a 1000 volts.
A favor desta tese podem citar-se, efectivamente, diplomas anteriores a 1996, onde este conceito de «alta tensão» é ou foi utilizado, como é o caso do Dec. Reg. n.º 1/92, de 18 de Fevereiro (n.º 51 e 52 do  artigo 4.º do Regulamento  de Segurança de Linhas Eléctricas de Alta Tensão então aprovado, onde consta que a alta tensão é a que é superior a 1000 volts em corrente alternada e a baixa tensão a que é inferior a 1000 volts em corrente alternada); do Dec. Reg. n.º 90/84, de 26 de Dezembro, que aprovou o Regulamento de Segurança de Redes de Distribuição e Energia Eléctrica em Baixa Tensão, onde nos n.º 18 e 19, do seu artigos 3.º, se define linha de «alta tensão» como a que conduz corrente alternada superior a 1000 volts e a de «baixa tensão» como a que conduz corrente alternada até 1000 volts; do Decreto-Lei n.º 740/74, de 26 de Dezembro, que aprovou o Regulamento de Segurança de Instalações de Utilização de Energia Eléctrica, o qual, nos artigos 7.º e 9.º define instalação de «baixa tensão» aquela que não excede 650 volts em corrente contínua e 250 volts alternada e a «alta tensão» como a que excede estes valores.
Porém, este conceito amplo de «alta tensão», como sendo toda aquela que não fosse «baixa tensão», foi utilizado em diplomas já afastados no tempo em relação ao ano de 1996, vindo progressivamente a ser abandonado.
Pode, por exemplo, apontar-se a Portaria n.º 31-A/77 de 21 de Janeiro, a qual no n.º 1, do artigo 1.º, do sistema tarifário do sector eléctrico anexo à mesma, já fazia referência a fornecimentos em alta, média e baixa tensão ( « O sistema tarifário é o conjunto de regras utilizadas no cálculo do preço de venda de electricidade para os fornecimentos garantidos em alta, média e baixa tensão»).
E no artigo 2.º deste tarifário era identificado o tipo de tensão nestes termos:
«1. Para efeitos de aplicação do sistema tarifário, consideram-se os seguintes níveis de tensão:
Baixa tensão - tensão até 500 V;
Média tensão - tensão entre 500 V e 60000 V, exclusive;
Alta tensão - tensão igual ou superior a 60000 V.
2. Os valores de tensão indicados referem-se a valores nominais de tensão entre fases».
A Portaria n.º 1148/81, de 31/12, relativa à facturação de energia eléctrica, também fazia alusão à «média tensão» como sendo a que se situava entre 1000 volts e 60 000 volts exclusive; a «baixa tensão» até 1000 volts, a «alta tensão» igual a 60 000 volts e a «muito alta tensão» a superior a 60 000 volts.
O que mostra que já em 1977, pelo menos, se distinguiam os diversos tipos de fornecimento de energia eléctrica consoante a sua «tensão», sendo os mesmos que existiam em 1996 e existem actualmente.
Por outro lado, também não convence o teor do artigo 1.º, § 2.º das Condições Gerais de Venda de Energia Eléctrica em Alta Tensão, anexas ao Decreto-Lei n.º 43 335 de 19 de Novembro de 1960, onde se dispõem o seguinte ([1]): «Sempre que um consumidor receba directamente energia de um concessionário da grande distribuição, ao abrigo da respectiva concessão, o fornecimento considera-se, para todos os efeitos, incluindo as tarifas, como um fornecimento em alta tensão, mesmo que o posto de transformação seja do distribuidor e a contagem se faça em baixa tensão».
A razão do não convencimento, reside no facto desta norma se referir, por definição, ao fornecimento de energia em «alta tensão».
Isto é, esta norma, a priori, já pressupõe um fornecimento e um consumo de energia eléctrica de alta tensão.
Desta forma, esta norma nada de útil adita à nossa questão, pois, é o mesmo que dizer-se: 
«Mesmo que o posto de transformação seja do distribuidor e a contagem se faça em baixa tensão, sempre que um consumidor (entenda-se, de alta tensão) receba directamente energia de um concessionário da grande distribuição (entenda-se, de alta tensão), ao abrigo da respectiva concessão, o fornecimento considera-se para todos os efeitos, incluindo tarifas, com o um fornecimento de alta tensão» (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-04-2004, em http://www.gdsi.pt, doc. n.º 04B869).
Sucede, porém, que o sentido de «alta tensão», como sendo aquela que é superior a 45 kV e igual ou inferior a 110 kV, é utilizado no pacote legislativo do sector eléctrico nacional aprovado pelos Decretos-Lei n.º 182/95, n.º 184/95 e n.º 185/95, todos de 27 de Julho.
O Decreto-Lei n.º 182/95, de 27 de Julho, que definiu as bases da organização do Sistema Eléctrico Nacional e os princípios que enquadram o exercício das actividades de produção, transporte e distribuição de energia eléctrica, considerou no seu artigo 4.º a «alta tensão» como sendo a tensão superior a 45 kV e igual ou inferior a 110 kV; a «baixa tensão» como a tensão até 1 kV; a «média tensão» como aquela que é superior a 1 kV e é igual ou inferior a 45 kV e a «muito alta tensão» com a superior a 110 kV.
O Decreto-lei n.º 184/95, de 27 de Julho, que define o regime jurídico do exercício da actividade de distribuição de energia eléctrica no âmbito do Sistema Eléctrico de Serviço Público e do Sistema Eléctrico não Vinculado, dispõe no seu artigo 2.º que a «alta tensão» é a tensão superior a 45 kV e igual ou inferior a 110 kV; a «baixa tensão», a tensão até 1 kV e a «média tensão» aquela que é superior a 1 kV e é igual ou inferior a 45 kV.
Estes mesmos parâmetros são utilizadas no artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 185/95, de 27 de Julho, que define o regime jurídico do exercício da actividade de transporte de energia eléctrica no Sistema Eléctrico Nacional e aprovou as bases de concessão da exploração da Rede Nacional de Transporte de Energia Eléctrica, acrescentando-se ainda, na al. i) deste artigo, que a «muito alta tensão» é a tensão superior a 110 kV.
De salientar que no Decreto-lei n.º 184/95, de 27 de Julho, que define o regime jurídico do exercício da actividade de distribuição de electricidade não faz referência à «muito alta tensão», parecendo significar que não há distribuição em «muito alta tensão».
As leis não usam, em regra, a linguagem comum quando disciplinam e se referem a actividades humanas técnicas, usando, sim, os conceitos específicos destes ramos de actividade.
Ora, pela evolução do conteúdo relativo ao conceito de «baixa» e «alta tensão», pode verificar-se que esta divisão bipartida, no que se refere a esta especificidade da corrente eléctrica, foi abandonada há cerca de 20 anos atrás, em relação à data em que foi aprovada a Lei n.º 23/96, e foi deixando paulatinamente de ser usada na linguagem legislativa.
Afigura-se, por conseguinte, que, um ano após a publicação daquela legislação relativa ao Sistema Eléctrico Nacional, altura em que foi publicada a Lei n.º 23/96 de 26 de Julho, existia já, sem dúvida, um consenso nas diversas leis acerca das definições de «baixa», «média», «alta» e «muito alta tensão», quando tratavam de regular matéria atinente à «tensão» da corrente eléctrica.
Não é credível que o legislador ao elaborar o n.º 3 do artigo 10.º da Lei n.º 23/96, não soubesse e não tivesse tido em consideração as definições acerca da tensão da corrente eléctrica, pelas seguintes razões:
- A Lei n.º 23/96 foi publicada apenas um ano depois da publicação do mencionado pacote legislativo que regulou o sistema eléctrico nacional;
- Esta lei teve por objecto precisamente a fixação de regras acerca da prestação de serviços públicos essenciais, nomeadamente o «Serviço de fornecimento de energia eléctrica» (ver seu artigo 1.º, n.º 1, al. c)).
- O legislador ponderou os diversos tipos de fornecimento de energia (baixa, média, alta) ao estabelecer o regime prescricional previsto nesse diploma – n.º 3 do art.10.º da Lei –, e a prova está em que exclui expressamente «o fornecimento de energia eléctrica em alta tensão».
- Se o legislador tivesse querido que a lei se aplicasse apenas ao «fornecimento de energia eléctrica em baixa tensão» teria usado a lei do menor esforço e teria dito isso mesmo de forma mais simples, por exemplo, desta forma: «3 - O disposto no presente artigo só se aplica ao fornecimento de energia eléctrica em baixa tensão» e deixava, assim, de fora, a sua aplicação à média e a alta tensão.
Mas se diz (como disse), «3 - O disposto no presente artigo não se aplica ao fornecimento de energia eléctrica em alta tensão», então deixa inequivocamente de fora a «média tensão».
Por conseguinte, tendo em conta que o n.º 2, do artigo 9.º do Código Civil, ordena ao juiz que «Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso», é de concluir que, existindo na ordem jurídica a utilização habitual dos conceitos técnicos de «baixa tensão», «média tensão», «alta tensão» e «muito alta tensão», todos dirigidos à identificação da característica «tensão», quando se alude à corrente eléctrica, a pretensão de incluir no conceito de «alta» a «média» tensão não tem na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, sendo de afastar, por isso, tal interpretação.
Como se referiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-04-2004, acima já citado, devido a essa ausência de correspondência verbal «nunca será possível recorrer a uma interpretação extensiva do preceito em causa» (Neste sentido ver também o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19-02-2008, em http://www.gdsi.pt, proc. n.º 2465/06.8TBAVR).
— A Autora sustenta ainda, como se indicou, que a razão que motiva a exclusão dos consumidores a quem a energia seja distribuída em «alta tensão», é exactamente a mesma que se verifica em relação aos consumidores de energia em «média tensão», ou seja, que nada há que justifique a exclusão da aplicação da caducidade aos consumidores em «alta tensão», que não se aplique aos consumidores de energia eléctrica em «média tensão».
Esta questão constitui um elemento importante no esforço interpretativo, na medida em que é de presumir que para situações iguais o legislador quis regimes legais idênticos.
Sendo assim, cumpre sair do campo estritamente jurídico e lançar um olhar sobre o tipo de matéria factual que gerou o processo, isto é, sobre a energia eléctrica.
É do conhecimento comum que a energia eléctrica é produzida em centrais hidroeléctricas (barragens), centrais térmicas (alimentadas a carvão ou outro combustível), nucleares ou eólicas, a qual é depois transportada por cabos (fios) até às nossas casas.
Cumpre ter uma ideia, em termos de compreensão comum, do circuito da produção, transporte, distribuição e consumo da energia eléctrica.
Nas palavras de José Pedro Sucena Paiva (professor do Instituto Superior Técnico) «As funções específicas das redes eléctricas permitem classificá-las em:
Redes de distribuição.
A função destas redes é levar a energia até junto dos consumidores domésticos ou industriais para o que se usam três níveis de tensão: a baixa tensão à qual estão directamente ligados os aparelhos; a média tensão, que alimenta os postos de transformação; a alta tensão que fornece energia às subestações. Estas redes também recebem a energia produzida pelos produtores independentes, que usam fontes renováveis (minihídrica, eólica, solar) ou cogeração.
Redes de transporte.
Estas redes, em muito alta tensão, cobrem um espaço geográfico alargado (por exemplo, um país) assegurando o trânsito de elevados volumes de energia entregues pelos grandes centros produtores, até às subestações de interface com as redes de distribuição.
Redes de interligação.
Estas redes asseguram a ligação entre redes de transporte (eventualmente entre redes de distribuição) operadas por empresas distintas, cobrindo, por exemplo, países ou regiões vizinhas. Todas as redes europeias funcionam interligadas em 220 e 400 KV com uma frequência comum de 50HZ, situação que apresenta diversas vantagens» - Redes de Energia Eléctrica, pág. 28, 2.ª edição.
Fazendo agora uso de um texto de divulgação ao público em geral:
«Sabemos já que a electricidade decorre da existência de pequenas partículas, os electrões. Apercebemo-nos dos fenómenos eléctricos quando os electrões existem em quantidades diferentes em dois corpos. Dizemos então que há uma tensão eléctrica entre esses dois corpos. A tensão é medida em Volts. Se estabelecermos entre esses dois corpos uma ligação condutora dos electrões, os electrões circularão de um para o outro. É a esse fluxo que damos o nome de corrente. A intensidade da corrente é medida em Amperes. Veremos agora o que é a resistência eléctrica e qual é a relação que existe entre a tensão, a corrente (ou intensidade) e a resistência.
Imaginemos um copo cheio de água colocado num ponto alto, que está ligado por meio de dois tubos, um mais largo e outro mais estreito, a um recipiente colocado num ponto mais baixo, como se pode ver na fig. 2. Como é evidente, correrá mais água para baixo pelo tubo largo do que pelo tubo estreito; um tubo estreito opõe uma maior resistência ao correr do líquido. A resistência de um tubo é portanto tanto maior quanto menor for o seu diâmetro. Mas há ainda outro factor que intervém aqui, como podemos ver na fig. 3. Temos aqui uma ligação comprida e uma ligação curta entre os dois recipientes. Os dois tubos têm o mesmo diâmetro. Em que tubo é que a corrente será mais forte? A resposta é simples. O tubo mais comprido oferece indubitavelmente uma maior resistência à passagem da corrente líquida.
Podemos transpor directamente os resultados destas experiências para a corrente eléctrica. A pressão exercida por uma coluna líquida é a tensão, a corrente líquida corresponde à corrente eléctrica. Que se passa então com a resistência?
Imaginemos que dois pólos, eléctrodos ou bornes estão ligados por uma arame muito fino; esse arame aquecerá gradualmente até ficar muito quente. Se determinarmos com a ajuda de um termómetro a elevação da temperatura em graus verificada ao fim de um certo tempo e se substituirmos esse arame por um outro fio metálico menos fino do mesmo material, a subida de temperatura neste será menor para o mesmo tempo. Dado que a tensão da fonte da corrente ou a sua força electromotriz permanece igual, só podemos atribuir os diferentes efeitos de aquecimento da corrente num e noutro caso a uma diferença de intensidade da corrente. E dado que o único factor que foi alterado nas duas experiências foi o diâmetro do condutor, temos de concluir que a alteração desse diâmetro provocou uma alteração de intensidade de corrente.
Se tivéssemos feito a mesma experiência com um arame comprido e um arame curto com o mesmo diâmetro, teríamos obtido o mesmo resultado. O arame comprido teria aquecido mais durante o mesmo período de tempo (…). São portanto três os factores que influenciam a resistência de um condutor: o comprimento do condutor, a sua espessura e a estrutura do material (…).
Quanto menor for a resistência, mais intensa será a corrente, desde que a tensão permaneça igual. Se duplicarmos a tensão, podemos verificar por meio de medições que a intensidade da corrente duplica também, desde que a resistência permaneça igual. Se a resistência for maior, a intensidade da corrente diminuirá proporcionalmente. É aqui que intervém a lei de Ohm, que exprime numa só frase todos estes factos que constatámos até aqui: a intensidade da corrente que circula num condutor aumenta na mesma proporção do aumento da tensão, e diminui com o aumento da resistência» - Heinz Richter, ABC da Electricidade, págs 26/29. edição do Círculo de Leitores/1990.
Acerca da alta e a baixa tensões diz-nos este autor que os electrodomésticos podiam tecnicamente ser construídos para funcionarem com altas tensões, mas que são construídos, por várias razões, para funcionarem com baixas tensões, de 110 ou 220 volts, sendo uma das razões o facto das altas tensões serem muito perigosas.
Havendo também razões de ordem económica porque as «…tensões muito elevadas exigem um isolamento feito com matérias isoladoras muito caras, e o custo dessas matérias-primas é tanto maior quanto mais elevada for a tensão de trabalho» - ob. cit., pág. 216.
Porém não se podem utilizar tensões muito baixas para diminuir os custos do isolamento porque «…o consumo da corrente para aparelhos com a mesma potência é tanto maior quanto menos elevadas forem as tensões de trabalho. Neste ponto surge-nos um outro limite difícil de ultrapassar, tanto do ponto de vista técnico como do ponto de vista económico: quanto mais intensa for a corrente, maior deve ser a secção de todos os cabos condutores. Se o cabo tiver uma secção demasiado pequena, o fio aquece muito por acção de uma corrente demasiado forte para ele; há assim o perigo de os fios se queimarem, e de o sistema de isolamento, caro e pouco resistente ao calor ser também destruído pouco a pouco» - ob., cit. pág. 21.
Como se disse, a electricidade é gerada em barragens hídricas, centrais térmicas, nucleares ou eólicas, sendo depois transportada até aos consumidores «A energia eléctrica produzida nas centrais é levada para os pontos de consumo, depois de convenientemente elevada a sua tensão por transformadores, por meio de linhas de transporte em alta tensão» - Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. 9.º, pág. 476.
A energia eléctrica que é produzida nos grandes geradores das centrais eléctricas é fornecida em baixas tensões, mas, para diminuir ao mínimo as perdas no transporte, originadas pelo designado efeito de joule ([2]), uma forma de o conseguir é através do aumento do valor da tensão logo à saída da central por meio de subestações elevadoras.
As redes de alta tensão prolongam-se por centenas de quilómetros, sendo necessários muitos quilómetros de fio que, porém, em termos económicos, sendo suspensos de postes não necessitam de ser isolados (sendo o ar um bom isolador). No local do consumo as altas tensões são reduzidas nos postos de transformação a valores de poucas centenas de volts entrando assim no consumo doméstico – aut. e ob. cit. pág. 218.
Pelo que fica exposto, podemos verificar que as linhas de «muito alta tensão», «alta tensão» e «média tensão» são todas elas linhas condutoras de electricidade que transportam a electricidade até ao consumidor.
É de notar, porém, como acima já se referiu, que no Decreto-Lei n.º 184/95, de 27 de Julho, que definiu o regime jurídico do exercício da actividade de distribuição de electricidade não se faz referência à «muito alta tensão», aludindo apenas à distribuição de electricidade em «baixa tensão», com características locais e à distribuição com características regionais, abarcando esta a «média» e «alta» tensões.
O que se entende se se tiver em conta que a «muito alta tensão» respeita à actividade de transporte e não à distribuição, regulada, a primeira, pelo Decreto-lei n.º 185/95, muito embora na al. c), do n.º 1, do artigo 5.º, se preveja a «Entrega de energia eléctrica a grandes consumidores em muito alta tensão».
Ou seja, a diversidade da «tensão» da corrente eléctrica tem a ver essencialmente com o seu transporte e distribuição até aos pontos de consumo. As linhas de «muito alta tensão» são utilizadas nas redes de transporte até às redes da distribuição e estas, por sua vez, levam a energia até aos consumidores, sejam eles domésticos, comerciais ou industriais.
As linhas de «alta tensão» são utilizadas para alimentar subestações da rede de distribuição, a «média tensão» serve para alimentar os postos de transformação e a «baixa tensão» alimenta directamente os aparelhos que a usam para funcionarem.
Ressalvando casos em que o consumidor recebe a energia em «muito alta tensão», a electricidade transportada em «muito alta tensão» ao ser recebida pela rede de distribuição tem de ser reduzida, na sua tensão, nas subestações destinadas a esse fim, sendo a tensão reduzida sucessivamente até aos valores de tensão a que funcionam os aparelhos movidos a electricidade.
Se um grande consumidor (por exemplo uma refinaria ou uma cimenteira) consome tanta energia como consome uma pequena localidade, então este consumidor, tal como a localidade, tem de receber a energia suficiente para a sua actividade, o que só é possível ou economicamente viável, através de condutas de «média», «alta» ou «muito alta» tensão, sendo necessária, como se referiu, uma subestação ou um posto de transformação (tal como numa localidade), para adaptar a tensão ao tipo de máquinas e equipamentos que usam a electricidade.
Feita esta digressão pela realidade cumpre voltar ao caso dos autos.
Embora na medição e contagem da energia em «média» e «alta tensões» possam existir maiores dificuldades, ou possam exigir equipamentos mais sofisticados e caros em relação aos que são requeridos para as medições em «baixa tensão», nada no processo, porém, nos indica que a medição e contagem do fornecimento de electricidade em «média» ou «alta tensão» esteja sujeita a erros que não sejam normalmente detectáveis num espaço de tempo de, por exemplo, dois, três ou cinco meses.
De facto, afigura-se que um prazo até seis meses é um lapso de tempo suficiente para averiguar erros, desde que haja correcta utilização dos instrumentos de medida e haja efectivas verificações com a periodicidade necessária.
O argumento de que o fornecimento de energia em «média» ou «alta tensão» acarreta erros de difícil detecção em curto espaço de tempo, sendo esta a causa da exclusão do prazo de caducidade de 6 meses, relativamente aos fornecimentos da electricidade em «alta tensão», não se encontra demonstrado nos autos.
Aliás, a demonstração só seria viável através de informação científica produzida por peritos, o que não se encontra feito nos autos, pelo que, esta argumentação é uma simples afirmação não demonstrada.
Não se mostra nos autos, repete-se, que haja efectivamente erros que tenham uma gestação e desenvolvimento que se prolongue por vários meses ou que sejam insusceptíveis de ser descobertos em menos de três, cinco ou seis meses.
Ou, de outra forma, não se mostra que a aparelhagem de medida seja incapaz de medir correctamente a corrente efectivamente consumida ou que não existam estimativas para correcção e possibilidades de controlo de erros com periodicidade adequada a evitar a consumação do dito prazo de caducidade.
Note-se, inclusive, que o prazo de caducidade previsto no n.º 2 do artigo 10.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho não corre logo após o consumo, mas sim após o pagamento do consumo relativo ao período temporal onde ocorre o erro, o que pressupõe prévia facturação.
Sendo assim, se a Autora necessitasse de tempo para testes, sempre lhe era possível protelar por três ou quatro meses a facturação, sem cair na caducidade, com o fim de fazer testes pelo tempo necessário a detectar os erros, bastando não emitir as facturas, evitando-se, assim, facilmente o perigo de caducidade decorrente da demora na detecção dos erros.
Por conseguinte, sem afastar a hipótese de tais erros serem reais, o certo é que nada nos autos nos mostra que se trate de erros insusceptíveis de detecção, ou de muito difícil detecção, no espaço de, por exemplo, 2, 3, 5 meses.
Conclui-se, por conseguinte, que nada indica que a exclusão dos fornecimentos em «alta tensão» relativamente ao aludido prazo de caducidade tenha a sua razão de ser, ou causa, na dificuldade de detecção dos erros de leitura da energia consumida.
Cumpre, pois, indagar se existirá outra razão de ser para a dita exclusão, constante do n.º 3, do artigo 10.º, da Lei n.º 23/96 (actual n.º 5).
Afigura-se que, por razões inerentes à harmonia ou coerência do sistema (neste caso constituído pela Lei n.º 23/96), tratando-se de uma lei onde se prevêem «mecanismos destinados a proteger o utente de serviços públicos essenciais» tal causa de exclusão só poderá residirá na espécie ou tipo de consumidor específico, dentro do género «consumidor», no que respeita à necessidade de protecção.
A necessidade de protecção é gerada pela incapacidade do protegido se proteger a si mesmo.
Quanto maior for o grau de conhecimento técnico e científico e poderio económico de cada tipo de consumidor, menos carecido ele está de protecção, pois o próprio consegue-se defender a si mesmo.
Como se referiu no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 3-11-2009 (http://www.gdsi.pt), relativo ao processo 2662/05.3TBOAZ, «…parece dever inferir-se serem situações distintas as do consumidor em alta e em média tensão.
São tais consumidores, desde logo, diferenciados em termos económicos, sendo também diversa a repercussão de um eventual engano quer na contabilidade do fornecedor quer na do consumidor.
Basta atentar na situação dos autos em que, num período de cerca de 2 anos e meio, se acumulou uma diferença de mais de 17 mil euros.
A perturbação da estrutura de custos e no equilíbrio de uma pequena ou média empresa podia ser profundamente abalada, se não estivesse prevista uma prescrição e caducidade de curto prazo.
Já se compreende perfeitamente a excepção relativamente ao consumidor de alta e muito alta tensão, uma vez que normalmente se trata de consumidores de estrutura colectiva, com elevado volume de equipamento e de sofisticação organizativa, relativamente aos quais nem se justifica isentá-los de suportar erros de facturação nem fazer recair todo o prejuízo daí decorrente sobre o fornecedor».
Afigura-se, por conseguinte, que quando a recorrente diz que a Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, visou tutelar apenas certos tipo de consumidores, isto é, os consumidores de energia em «baixa tensão», conclusão que se retira, segundo a recorrente, da exposição de motivos da lei, onde se disse que «a necessidade de proteger o utente é maior quando ele não passa de mero consumidor final» não exclui, antes abarca também, na sua ratio legis, os clientes de energia eléctrica em «média tensão», pois, muito embora possam ter maior capacidade económica, saber técnico ou científico que os consumidores domésticos, que recebem directamente a energia em «baixa tensão», trata-se também de um grupo bem mais numeroso de consumidores que os utentes de energia eléctrica em «alta tensão».
Como já se referiu, a «tensão» da corrente tem a ver com a sua deslocação ou transporte. Para que a electricidade se desloque tem de existir um desnível ou diferencial (tensão) de carga eléctrica entre dois pontos do condutor, deslocando-se para o menor.
A «muito alta tensão» e a «alta tensão» constituem a forma adequada para transportar a electricidade ao longo das linhas, em grandes quantidades de energia ao longo de grandes distâncias.
Ora, um grande consumidor de energia necessita de utilizar grande quantidade de electricidade e pode recebê-la tal como é transportada, para depois ser transformada nas suas instalações, em tensão adequada ao consumo dos seus aparelhos industriais.
Daí que um cliente de energia em «alta tensão» seja, em regra, sublinha-se em regra, um consumidor que consome muito maior quantidade de energia que um consumidor de energia em «média tensão».
Afigura-se, por conseguinte, que foi atendendo ao critério do tipo de consumidor, consoante a sua necessidade de protecção, que a lei excluiu os consumidores de electricidade entregue em «alta tensão», do número dos beneficiários do prazo de caducidade de seis meses, devido à maior capacidade económica e de negociação destes consumidores.
Efectivamente uma unidade industrial de média dimensão (uma cerâmica, tecelagem, moagem), como a Ré destes autos, ou uma sociedade gestora de um centro comercial, podem ter sérias dificuldade de tesouraria se, de um momento para o outro, tiverem de pagar uma dívida de, por exemplo, €215 000,00 euros, que não fazia parte das suas previsões, podendo obrigá-los a recorrer à concessão de um crédito, porventura com desfecho incerto.
Ora, certamente existirão centenas de empresas ou entidades em todo o país que receberão a electricidade em «média tensão», em relação às quais o legislador entendeu estender tal tipo de protecção.
Não dispensou a mesma protecção aos utentes de energia eléctrica em «alta tensão» certamente pouco numerosos, por entender que as dívidas resultantes de erros de contagem não os afectaria da mesma forma ou porque terão meios económicos para, se o entenderem, se apetrecharem com meios técnicos contra tal tipo de erros, instalando eles mesmos sistemas de controlo da medição da energia consumida, para detecção de erros de contagem, seja a seu favor seja contra si.
Em relação aos utentes de energia em «muito alta tensão» cumpre referir que, por maioria de razão se deve estender o regime de exclusão a estas entidades (neste sentido ver Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 16-10-2008, em http://www.gdsi.pt, doc. n.º 08A2610 e de 3-11-2009, em http://www.gdsi.pt, processo 2662/05.3TBOAZ), se, porventura, há utentes deste tipo de entrega, pois, não consta dos autos, nem é do conhecimento comum, que haja consumidores que recebam energia eléctrica em «muito alta tensão» (eventualmente uma refinaria ou cimenteira), rede esta vocacionada, como se referiu, para o transporte da energia e entrega às empresas distribuidoras e não para a entrega ao cliente consumidor, muito embora isso possa ser feito.
 Porém, sempre se dirá que o conceito de «alta tensão» utilizado na Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, não pode deixar de se referir também à «muito alta tensão» porque, atendendo ao elemento literal, ambas estão numa relação de mais e de menos, mas dentro da mesma categoria que é a de «alta» tensão, variando apenas a quantidade e não a qualidade.
Face ao acabado de referir, afigura-se que não há fundamentos suficientemente demonstrativos no sentido de considerar que o legislador, tal como pretende a Autora, ao elaborar a norma do n.º 3, do artigo 10.º, da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, tenha pretendido excluir do regime de caducidade previsto nessa norma, não só os casos de fornecimento de energia eléctrica em «alta tensão», mas também os fornecimentos em «média tensão», como é o caso da Ré.
Conclui-se esta primeira questão no sentido de que a norma do n.º 3, do artigo 10.º, da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, se aplica aos casos de fornecimento de energia eléctrica em «média tensão» ou seja, que o conceito de «alta tensão» não contém em si o de «média tensão» (Neste sentido podem consultar-se os acórdãos já citados e ainda Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 16-10-2008, em http://www.gdsi.pt, doc. n.º 08A261 e os acs. do Tribunal da Relação de Lisboa de 17-06-2008, em http://www.gdsi.pt, proc. n.º 1801/2008 e de 19-06-2006, em http://www.gdsi.pt, proc. n.º 2737/2006.
No sentido de que a norma do n.º 3, do artigo 10.º, da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, não se aplica aos casos de fornecimento de energia eléctrica em «média tensão», pronunciou-se também o Prof. Calvão da Silva, na R.L.J. ano 137, pág. 179, quando escreveu que «Pelo exposto, as recentes Leis n.º 12/2008 e 24/2008 não quiseram ir ao encontro da largamente minoritária jurisprudência que estendia a excepção do ex-n.º 3 do art. 10.º ao fornecimento de energia em média tensão – extensão injustificada no quadro das boas regras hermenêuticas, porque sem um mínimo de correspondência no texto da lei (art. 9.º, n.º 2 do Código Civil), e porque deve presumir-se ter o legislador sabido exprimir o seu pensamento em termos adequados (art. 9.º, n.º 3, do Código Civil) tendo em conta a unidade do sistema jurídico, in casu, as referidas definições do pacote legislativo do sector eléctrico de 1995, contemporâneo da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, e do mais recente Decreto-lei n.º 172/2006, contemporâneo das Leis n.º 12/2008 e 24/2008. Também por isso, as Leis n.º 12/2008 e 24/2008 se revelam meramente interpretativas no aspecto em apreço».

*
Cumpre ainda aludir à natureza interpretativa das alterações introduzidas pela Lei n.º 12/2008.
Como se referiu no ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 3-11-2009, antes já mencionado, a Lei n.º 28/2008 veio pôr termo à divergência jurisprudencial que existia sobre a prescrição prevista no artigo 10.º da Lei n.º 23/92, introduzindo alterações neste art.º 10.º, tornando claro que se tratava de prescrição extintiva do direito ao pagamento e não do direito à sua exigência.
Mas ao sanar esta divergência jurisprudencial o legislador deixou inalterado o teor do n.º 3 do art.º 10.º, que passou a ser, com a mesma redacção o n.º 5 do mesmo preceito, sendo certo que o conceito de «alta tensão» era também causa de divergências jurisprudenciais.
Verifica-se, por conseguinte, que as alterações introduzidas pela Lei n.º 28/2008 têm a natureza de normas interpretativa porque optaram em matéria de prescrição por uma das posições jurisprudenciais.
Como se ponderou no mencionado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3-11-2009, «…os mesmos fundamentos devem valer em abono do alcance interpretativo da norma do n.º 5, apesar de se ter limitado a reproduzir a do anterior n.º 3.
Com efeito, como antes notado, bem sabia o legislador da controvérsia jurisprudencial e doutrinal que, paralelamente à questão da prescrição, se desenvolvia em torno do âmbito ou abrangência do conceito da “alta tensão”.
E, se optou por clarificar uma das questões suscitadas na interpretação da norma do primeiro número do artigo, não se compreende que não o tivesse feito também em relação ao último.
Deixar a norma tal como se encontrava, só pode inculcar a ideia de o legislador ter sufragado a posição dos que já vinham sustentando que não se justificava a interpretação da expressão “alta tensão” por forma a abranger nela, também, a “média tensão”, por não ter correspondência no texto da lei, mormente quando considerada a terminologia usada nos “pacotes legislativos” do sector eléctrico, do mesmo passo que não atendia ao critério interpretativo de presunção de ter o legislador sabido exprimir o seu pensamento em termos adequados – art. 9.º, n.os 2 e 3 do C.Civil».
Nos termos do art. 13.º C. Civil, a lei interpretativa integra-se na lei interpretada, com ressalva dos efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação ou por sentença transitada em julgado, pelo que, tal interpretação autêntica deve ser aplicada à apreciação do presente caso.

Passando à segunda questão.

2 – Respeita à inconstitucionalidade da norma constante do n.º 3 do artigo 10.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, por infracção ao disposto no artigo 13.º da Constituição da República, inconstitucionalidade que reside, segundo a autora, apoiada no parecer que juntou, da autoria do Sr. Prof. Jorge Miranda, no facto de consumidores iguais serem tratados de forma desigual, conferindo a uns uma protecção e tutela em matéria de prazos prescricionais e caducidade que a outros é negada.

Como se menciona no indicado parecer, «o pagamento do preço da energia eléctrica é feito em prestações reiteradas, como contrapartida dos consumos atinentes a certo período temporal, de montantes relativamente previsíveis e com variações não excessivamente pronunciadas (pelo menos, em relação às várias estações do ano). É uma despesa com que o utente pode e deve contar, como despesa certa e mais ou menos regular inscrita no seu orçamento (doméstico ou empresarial). O que o consumidor comum não deve é ficar inopinadamente sujeito, com as inerentes perturbações e dificuldades, a uma despesa extraordinária, de valor potencialmente elevado, resultante da correcção retrospectiva de um erro que lhe não é imputável. Daí a fixação de um prazo muito curto para o exercício desse crédito, o qual garante, nessa eventualidade inesperada, que o montante em dívida não exceda limites suportáveis sem grande custo. Ultrapassado esse prazo, é risco empresarial da empresa fornecedora (e não risco do utente) arcar com os prejuízos decorrentes do erro de facturação».

É efectivamente esta a questão que está em apreciação neste caso.

A Autora defende que a violação dos princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade podem ocorrer por excesso de protecção, quando, por exemplo, o Estado concede a certa categoria de pessoas ou de situações uma protecção descabida, desproporcionada em face dos interesses constitucionalmente protegidos e que se traduz em verdadeiro privilégio em relação a outra ou outras categorias, tratando-se de um fenómeno próximo da discriminação positiva, com a diferença de que esta é justificada consoante os fins assumidos pela Constituição, para alcançar uma igualdade de facto entre as pessoas, ao passo que o excesso de protecção agrava as desigualdades de direito e de facto e revela-se incoerente no interior do sistema.

No caso concreto, tendo a lei afastado do benefício da caducidade os clientes da energia eléctrica em «alta tensão», se não incluiu neste conceito de «alta tensão» os clientes que a recebem em «média tensão», produziu, então, legislativamente um benefício desproporcionado e, por isso, injustificado a favor destes últimos e inconstitucional porque, de facto, se trata de consumidores iguais (em termos de tarifação, instalação eléctrica, obrigações de licenciamento, etc.) serem tratados de forma desigual, conferindo a uns uma protecção e tutela (v. g. em matéria de prazos prescricionais e caducidade) que a outros é negada, sendo ofendido, como se defende no parecer, o princípio da proporcionalidade «…nas suas três vertentes de adequação, necessidade e racionalidade. E, como logo resulta, tal implica outrossim ofender o princípio da igualdade» (pág. 23).

Continuando a seguir o parecer do Sr. Prof. Jorge Miranda e no que respeita ao conteúdo do princípio constitucional da igualdade (artigo 13.º da Constituição), «Mais do que vedar privilégios e discriminações, o princípio da igualdade reveste-se de um alcance positivo traduzido nas bem difundidas fórmulas:

a) Tratamento igual de situações iguais (ou tratamento semelhante de situações semelhantes);

b) Tratamento desigual de situações desiguais, mas substancial e objectivamente desiguais – “impostas pela diversidade das circunstâncias ou pela natureza das coisas” - e não criadas ou mantidas artificialmente pelo Iegislador;

c) Tratamento em moldes de proporcionalidade das situações relativamente iguais ou desiguais e que, consoante os casos, se converte para o legislador ora em mera faculdade, ora em obrigação;

d) Tratamento das situações não apenas como existem mas também como devem existir, de harmonia com os padrões da Constituição material (acrescentando-se, assim, uma componente activa ao princípio e fazendo da igualdade perante a lei uma verdadeira igualdade através da lei» (págs. 24/25).

Voltando à análise do caso dos autos.

A questão que se coloca no plano da igualdade, como distintamente resulta do parecer, consiste em saber se há diferenças, e, neste momento, só as diferenças interessam, entre clientes/consumidores de energia eléctrica em «média tensão» e «alta tensão», que justifiquem atribuir aos primeiros o direito de beneficiarem de um prazo de caducidade de seis meses, findos os quais podem negar o pagamento de energia consumida e não facturada devido a erro de contagem que não lhes seja imputável, ao mesmo tempo que é negado tal benefício aos segundos.

Para se poder afirmar que uma norma é inconstitucional, por ofender o princípio constitucional da igualdade, é necessário mostrar na realidade física do quotidiano a lei, ou a interpretação da lei, que produz ou produziu já um tratamento desigual para relações factuais e jurídicas idênticas.

Ou seja, há que mostrar que não há diferenças factuais entre consumidores que recebem a electricidade em «alta tensão» e aqueles que a recebem em «média tensão», que gerem a favor destes últimos uma situação de facto que mereça ser tutelada e que a mesma não existe em relação aos primeiros.

Para podermos saber que diferenças há entre cada um destes tipos de consumidores tornava-se necessário saber:

Quem eram em 1996 e quem são em 2010, no nosso país, os clientes/consumidores de energia eléctrica em «média tensão», «alta tensão» e «muito alta tensão»?

Há empresas que recebem nas suas instalações, para depois transformar e consumir, electricidade em «muito alta tensão»? Se há, quem são?

Há algumas empresas que recebam nas suas instalações, para depois transformarem, electricidade em «alta tensão»? Se há, quem são?

De que tipo de empresas (industriais e comerciais) se trata? Qual é a sua dimensão? A sua capacidade económica?

O que é que em termos técnicos, científicos e económicos distingue, se há distinção, umas de outras?

Quantas empresas existem a receber a energia eléctrica em «média tensão», em «alta tensão» e em «muito alta tensão»?

Há empresas que possam concorrer umas com as outras recebendo umas a energia em «média tensão» e outras em «alta tensão»? Se sim, quais?

A resposta a estas perguntas, após indagada e interpretada a realidade dos factos com fidelidade, é que permitiria lançar a necessária luz sobre a questão da desproporcionalidade da medida legislativa tida por inconstitucional e da eventual violação do princípio da igualdade.

De outra forma, não é possível mostrar que a norma transporta em si mesma uma medida desproporcionada e ofensiva do princípio constitucional da igualdade.

Ou seja, a Autora (e o parecer junto aos autos também) dá por assente aquilo que não está adquirido no processo, isto é, que o cliente/consumidor que recebe a energia eléctrica em «média tensão», em «alta tensão» e em «muito alta tensão» estão todos num plano de igualdade ao nível da capacidade técnica e científica, do poderio económico (capitais próprios, recurso ao crédito, capacidade de influenciar a administração, etc.).

Ora, não parece defensável colocar, por exemplo, uma empresa cimenteira, uma refinaria de petróleo ou uma empresa construtora de automóveis, integradas eventualmente em grupo económico de expressão internacional, no mesmo patamar de uma empresa mediana nacional (por exemplo, uma empresa gestora de um centro comercial, uma serração, uma tecelagem, uma moagem, uma cerâmica, uma fábrica de moldes, de conservas, em suma, uma qualquer empresa fabril, etc., que não possa funcionar, e serão todas, com a electricidade fornecida directamente pela rede de «baixa tensão»), que tenha de recorrer ao crédito, por exemplo, para pagar €215 000,00 euros (ou muito mais, dependendo da natureza do erro e do tempo em que ele operou), sob pena de pagando a dívida fique carecida de dinheiro para pagar o salário aos seus trabalhadores no final do mês.

Não parece defensável fazer tal equiparação por se tratar, ao nível da realidade factual, de realidades empresariais diversas em termos qualitativos.

Como se referiu no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 3-11-2009, acima mencionado, «…parece dever inferir-se serem situações distintas as do consumidor em alta e em média tensão», residindo na maior vulnerabilidade deste último a razão da sua protecção.

Dir-se-á que podem existir clientes/consumidores de energia eléctrica em «alta tensão» que podem estar na mesma situação económica que outros que recebem energia eléctrica em «média tensão», e de facto esta situação parece ser perfeitamente possível e real.

Porém, destinando-se a linha de «alta tensão» a deslocar um maior volume de energia com o mínimo de perdas (efeito de Joule) é de ter como correcto, em termos gerais, que quem tem necessidade de gastar mais energia tem mais poder económico ou organizativo para controlar, evitar ou precaver-se contra erros de contagem de energia eléctrica que podem ser de valor elevado, já que o consumo também o é.

Claro que pode haver e há excepções a esta regra, em especial na actualidade, na medida em que existe progressivamente uma maior desmaterialização da riqueza, pelo que pode uma empresa ter grande poder económico e utilizar energia eléctrica em «baixa tensão» como, por exemplo, numa agência seguradora ou bancária.

Em razão do seu poderio económico estas empresas não justificam o benefício da caducidade em questão.

Porém, a lei prescreve como é regra, sendo a lei em análise um caso desses, para o geral e não para as excepções e, no caso, trata-se de interpretar uma lei dirigida às inúmeras situações típicas e não às suas eventuais excepções.

Conclui-se, por conseguinte, que não está demonstrado no processo que exista uma igualdade do ponto de vista da capacidade técnica e científica, do poderio económico, da capacidade em obter crédito e da capacidade de gerar influências ao nível político, entre o cliente/consumidor que recebe a energia eléctrica em «média tensão» e aqueles que a recebem em «alta tensão» ou em «muito alta tensão».

Não se demonstrando esta igualdade entre os referidos consumidores, mas havendo indícios de que, em geral, os consumidores de energia eléctrica fornecida em «média tensão» apresentam maiores vulnerabilidades, em especial ao nível económico, que os consumidores de energia em «alta tensão», não é possível concluir pela inconstitucionalidade da norma constante do n.º 3 do artigo 10.º da Lei n.º 23/96 de 26 de Julho, com base na ofensa do princípio da igualdade proclamado no artigo 13.º da Constituição da República.

c) Em resumo:
1 – Quando no n.º 3, do artigo 10.º, da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, se determina que «O disposto no presente artigo não se aplica ao fornecimento de energia eléctrica em alta tensão», deixa literalmente de fora a energia eléctrica entregue ao consumidor em «média tensão» e, na ausência de correspondência verbal entre «alta tensão» e «média tensão», não é possível recorrer a uma interpretação extensiva do preceito em causa, por forma a incluir no conceito de «alta tensão» os casos de energia eléctrica fornecida em «média tensão».
2 – Não está demonstrado no processo que exista uma desigualdade relevante, quanto à possibilidade de medição e controlo do erro de leitura, entre as situações de energia eléctrica fornecida em «baixa tensão» e as fornecidas em «média» ou «alta tensão» e, eventualmente, «muito alta tensão», que justifique a exclusão constante do mencionado n.º 3, pelo que, a causa da exclusão assenta em outras razões, nomeadamente quanto ao poderio económico do consumidor para suportar o pagamento de custos acumulados que podem atingir valores elevados e relevantes negativamente na vida de uma empresa.

3 – Não está demonstrado no processo que exista uma igualdade do ponto da capacidade técnica e científica; do poderio económico (capitais próprios, recurso ao crédito, capacidade de influenciar a administração, etc.), entre o cliente/consumidor que recebe a energia eléctrica em «média tensão» e aqueles que a recebem em «alta tensão» ou, eventualmente em «muito alta tensão».

4 – Não estando apurada esta igualdade entre os referidos clientes/consumidores, mas havendo indícios de que, em geral, os consumidores de energia eléctrica fornecida em «média tensão» apresentam maiores vulnerabilidades, em especial ao nível económico, que os consumidores de energia em «alta tensão», não se pode concluir pela inconstitucionalidade da norma constante do n.º 3 do artigo 10.º da Lei n.º 23/96 de 26 de Julho, com base na ofensa do princípio da igualdade proclamado no artigo 13.º da Constituição da República.

III. Decisão.

Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida. Custas pela Autora.


[1] Como se vê pelo disposto no artigo 68.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 182/95 de 27 de Julho [  Bases da Organização do Sistema Eléctrico Nacional ( SEM ) ], este decreto lei manteve em vigor as  disposições do Decreto Lei n.º 43 335 de 19 de Novembro de 1960 ( « Enquanto não forem publicados os regulamentos previstos no presente diploma...».
[2] A corrente eléctrica é um movimento de cargas eléctricas. Este movimento através da estrutura atómica dum material condutor origina choques que produzem elevação da temperatura do condutor. É o efeito de Joule.