Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ALBERTO RUÇO | ||
Descritores: | ENERGIA ELÉCTRICA FORNECIMENTO | ||
Data do Acordão: | 02/23/2010 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | POMBAL | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | LEI Nº23/86 DE 26/7, LEI Nº 12/2008 DE 26/2, LEI Nº 24/2008 DE 2/6 | ||
Sumário: | I - O conceito de «alta tensão» constante do n.º 3 do artigo 10.º, da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho (correspondente ao actual n.º 5, após as alterações introduzidas pela Lei n.º 12/2008) não inclui a energia eléctrica fornecida em «média tensão».
II - A norma do n.º 3 do artigo 10.º da Lei n.º 23/96 de 26 de Julho, assim interpretada, não é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade proclamado no artigo 13.º da Constituição da República.
III - As alterações ao art.10 da Lei nº23/96, introduzidas pelas leis nº 12/2008 de 26 de Fevereiro e nº24/2008 de 2 de Junho, têm natureza interpretativa ( art.13º CC). | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2.ª secção cível): * Recorrente (Autora)…………………A (…), S. A., pessoa colectiva n.º 504 394 029, com sede na Rua (…), em Lisboa. Recorrido (Ré)……………………….B (…), Ld.ª pessoa colectiva n.º 500 040 303, com sede na Rua (…), ..... * I. Relatório: a) A recorrente A (…), S. A. instaurou contra a ré B (…) a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, com o fim de obter a condenação desta a pagar-lhe a quantia de €215.696,93 euros, referente a energia eléctrica fornecida e não paga, acrescida de juros de mora vencidos, no montante de €8.834,58 euros, bem como os vincendos até integral pagamento. Funda o pedido no facto de ter descoberto, em 17 de Julho de 2005, no âmbito de uma campanha de telecontagem efectuada pelos seus serviços técnicos, uma anomalia no equipamento de contagem de energia eléctrica colocado nas instalações do posto de transformação (PT) privativo da Ré, a qual implicou a contagem, com prejuízo para a Autora, de menos 1/3 em relação ao consumo real da Ré, o que se reflectiu na facturação. Por conseguinte, pelo menos desde Janeiro de 1997 até Junho de 2005, a Autora apenas facturou 2/3 da energia e potência efectivamente fornecidas, encontrando-se em dívida a quantia acima mencionada, que a Ré se recusou a pagar quando foi interpelada para o fazer. A Ré contestou. Colocando de parte outras questões por si suscitadas e já resolvidas no processo, a Ré invocou a caducidade do direito da Autora, nos termos do n.º 2 do artigo 10.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, onde se dispõe que «Se, por erro do prestador do serviço, foi paga importância inferior à que corresponde ao consumo efectuado, o direito ao recebimento da diferença de preço caduca dentro de seis meses após aquele pagamento». Subsidiariamente alegou que o seu prejuízo é rigorosamente igual ao valor do crédito da Autora, pois, por desconhecer o erro da Autora, a Ré ficou impedida de considerar o custo efectivo da energia consumida, não o tendo podido reflectir no preço final do azulejo por si comercializado, excepcionando, assim, a compensação de créditos. Imputou à Autora uma actuação com abuso de direito e impugnou a factualidade alegada na petição inicial. A Autora replicou sustentando a improcedência da excepção de caducidade, na medida em que só tomou conhecimento do direito que lhe competia no dia 19 de Outubro de 2005; e por não se aplicar ao caso o disposto no artigo 10.º da Lei n.º 23/96, devido a tratar-se de fornecimento de energia eléctrica em «média tensão». A sentença recorrida absolveu a Ré do pedido com base na procedência da excepção peremptória da caducidade prevista no artigo 10.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho. b) A Autora recorre, em síntese, porque entende que o conceito de «alta tensão» que consta do n.º 5, do artigo 10.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, inclui o fornecimento de energia eléctrica em «média tensão» e, sendo assim, a caducidade aí prevista não se aplica ao caso dos autos. Juntou em abono desta tese dois pareceres um do Sr. Professor Rui de Alarcão (FDUC) e outro do Sr. Professor Jorge Miranda (FDUL e UC). A recorrente conclui desta forma: 1 – Toda a estrutura do sector eléctrico, na perspectiva da distribuição, está, desde sempre, assente em dois grandes níveis de tensão – a «alta tensão» e a «baixa tensão». 2 – A estrutura da facturação dos clientes fornecidos em «alta tensão», nas suas variantes de Média, Alta e Muito Alta Tensão, é em tudo semelhante, diferindo substancialmente da estrutura simplificada da facturação de «baixa tensão». 3 – A classificação dos níveis de tensão em Baixa Tensão Normal, Baixa Tensão Especial, Média Tensão, Alta Tensão e Muito Alta Tensão é eminentemente especifica dos fins tarifários, ou seja, diz respeito apenas e só às regras tarifárias, indicando também a «qualidade» do cliente. 4 – A aplicação directa das definições constantes dos decretos-lei de 1995 é neles expressamente restringida ao seu âmbito próprio. 5 – E a Lei n.º 23/96 não respeita a questões tarifárias, sendo indubitável que o n.º 3 do artigo 10.º desta lei acolhe o sentido lato de «alta tensão», resultando claro do relatório da proposta de lei que o legislador pretendeu excluir do âmbito de aplicação dos prazos de prescrição e caducidade os grandes clientes (consumidores/utentes) que não são consumidores finais, mas recebem a energia nos seus postos de transformação, transformando-a e consumindo-a como bem entendem, pelo que excepciona daquela aplicação, nos termos do n.º 3, o «fornecimento de energia eléctrica em alta tensão»; 6 – Por conseguinte, no âmbito da Lei n.º 23/96, «alta tensão», reflecte o conceito comum de toda a tensão que não é «baixa», isto é, tensão superior a 1 Kv; 7 – Se assim não se entendesse, teria que se admitir que a Muito Alta Tensão (que fornece os maiores consumidores industriais/comerciais de electricidade) também não estava excluída, nos termos do n.º 3 do artigo 10.º da supra citada Lei, o que é impensável e contraria claramente os objectivos da lei. 8 - Ao estabelecer a exclusão do n.º 3, o legislador entendeu que, para os utentes de energia eléctrica em «alta tensão» não se verificam riscos que justifiquem a especial preclusão (de curto prazo) do crédito do fornecedor. 9 – E tal interpretação é a única compatível com o princípio constitucional da igualdade, enquanto proibição do arbítrio. 10 – Ou seja, consumidores iguais (em termos de tarifação, instalação eléctrica, obrigações de licenciamento, etc.) tratados de forma desigual, conferindo a uns uma protecção e tutela (v. g. em matéria de prazos prescricionais e caducidade) que a outros é negada. 11 – Nos termos de parecer junto com o presente recurso, da autoria do Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda, admitir que as regras sobre prescrição e caducidade do pagamento de energia eléctrica da Lei n.º 23/96 possam estender-se aos consumidores de média tensão, admitir que eles não se achem compreendidos no artigo 10.º, n.º 5, equivale a atribuir-lhes um excesso de protecção em confronto com a protecção conferida aos consumidores em «baixa tensão», aos clientes domésticos e aos consumidores finais (...). 12 – Do teor do contrato celebrado com a Autora/Recorrente resulta que esta é um grande consumidor industrial de energia eléctrica (ainda hoje), que utiliza a corrente eléctrica no exercício da sua actividade industrial, a que não é aplicável o disposto na Lei n.º 23/96 de 26 de Julho, porquanto, esta lei visou criar mecanismos de protecção do pequeno e médio consumidor de «baixa tensão», o consumidor final, categoria na qual a empresa Ré não se enquadra. 13 - Consequentemente, em virtude do fornecimento de energia eléctrica para uso industrial da recorrida ser efectuado à tensão de 30 Kv, é um fornecimento em Alta Tensão, pelo que, ex vi do n.º 3, não lhe são aplicáveis os n.º 1 e 2 do artigo 10.º da Lei 23/96, de 26 de Julho. 14 - Este entendimento não foi e não é posto em causa pela Lei n.º 12/2008, de 24 de Fevereiro de 2008, que entretanto veio a entrar em vigor, porquanto se mantiveram os quatro níveis de tensão anteriormente previstos, conforme parecer dos Srs. Professores de Direito, Rui de Alarcão e Manuel Henrique Mesquita, ao quais mantiveram como válida a doutrina sustentada em parecer já elaborado em 2005, para além do supra citado parecer do Prof. Jorge Miranda, que segue o mesmo entendimento, sufragando a inconstitucionalidade da interpretação literal do artigo 10.º, n.º 5 da lei citada, no sentido de que se encontra apenas ressalvada desse regime de prescrição e caducidade o fornecimento de energia em «alta tensão», dele se excluindo quer o fornecimento em «muito alta tensão» quer o fornecimento em «média tensão»; 15 – Inconstitucionalidade decorrente da clamorosa afronta aos princípios constitucionais da proporcionalidade e da igualdade, porquanto existe um paralelismo substancial entre a relação de fornecimento de energia eléctrica em «média tensão» e a relação de fornecimento em «alta tensão» stricto sensu (entendida como a tensão superior a 45 kV e igual ou inferior a 110 kV); 16 – A sentença infringiu as normas previstas na Constituição da República Portuguesa (art.º 13.º), a alínea g) do art. 310.º do Código Civil, as normas dos n.º 1 e 3 do artigo 10.º da Lei n.º 23/96, não atendeu à restrição imposta pelo Dec. Lei n.º 182/96 quanto à utilização das noções nele consignadas e esqueceu as definições que constam do Decreto Regulamentar n.º 98/84, de 26 de Dezembro, e Decreto Regulamentar n.º 1/92, de 18 de Fevereiro. Não houve contra-alegações. c) O objecto do recurso consiste, por conseguinte, em determinar: 1 – Se o conceito de «alta tensão» constante do n.º 3, da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho (correspondente ao actual n.º 5, após as alterações introduzidas pela Lei n.º 12/2008), abrange ou não abrange no seu âmbito o fornecimento a que se referem os autos, qualificado como de «média tensão», ou seja, se para efeitos desta norma o fornecimento de energia eléctrica se divide entre «baixa tensão» e «não baixa tensão» (incluindo aqui a «média tensão», a «alta tensão» e a «muito alta tensão»). 2 – Caso a decisão seja no sentido de que o mencionado conceito legal de «alta tensão» não abarca os fornecimentos denominados e «média tensão», verificar se existe ou não existe inconstitucionalidade da norma constante do n.º 3 do artigo 10.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, por infracção ao disposto no artigo 13.º da Constituição da República. II. Fundamentação. A) A matéria provada é esta: 1. A Autora dedica-se à distribuição de energia eléctrica, resultando da fusão de várias sociedades, incluindo a (…), S. A., e encontra-se registada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa sob o n.º 8847. 2. A Ré dedica-se ao fabrico de azulejos. 3. Por escrito celebrado entre a (…) e a Ré, em Dezembro de 1973, aquela obrigou-se a fornecer energia eléctrica necessária à actividade comercial da Ré, sendo a energia fornecida sob forma de corrente alternada trifásica, à tensão de 30.000 volts entre fases, com a frequência de 50 hertz, e a potência máxima contratada de 300 kw, constando ainda consignado o seguinte: «(...) Artigo 6.º Entrega de Energia: A entrega de energia far-se-á no posto de transformação do cliente, cuja localização será fixada de acordo com a CEB (... ); Artigo 7.º Verificação das instalações: À CEB fica reservado o direito de verificar, em qualquer ocasião, o posto de transformação do cliente, obrigando-se este a permitir sempre a entrada livre dos empregados da CEB nessas instalações, a qualquer hora do dia ou da noite (...); Artigo 9.º Medição de Energia: A medição da energia será feita à tensão de entrega, 30.000 volts, quando o CLIENTE tiver uma potência instalada superior a 100 KVA. Enquanto a potência instalada pelo CLIENTE não exceder 100 KVA, a medição poderá ser efectuada em baixa tensão. A medição será feita por meio de contadores fornecidos e instalados pela CEB, mediante o pagamento de um aluguer mensal a combinar, ficando, porém, o CLIENTE com o direito de instalar o seu dispositivo de contagem e montar quaisquer outros aparelhos se assim lhe convier. § 1. Havendo falta de equipamentos de medida de alta tensão, poderá a medição ser feita à tensão secundária, mesmo quando a potência instalada no posto de transformação do CLIENTE seja superior a 100 KVA. § 2. - O contador ou contadores serão de um dos tipos aprovados pelo Governo e, depois de aferidos, serão selados pelas duas partes contratantes e verificados a requisição de qualquer delas quando a) se reconhecer existir uma diferença de leituras superior a três por cento da menor na hipótese de haver dois contadores; b) se suspeitar da existência de um erro superior a três por cento no caso de haver um só contador. As despesas com a aferição serão pagas por quem a tiver requisitado, se o erro do contador estiver dentro das tolerâncias regulamentares e pelo proprietário do contador desregulado se exceder aquelas tolerâncias. § 3. - As leituras serão feitas num dos últimos dias de cada mês, em horas previamente combinadas, por um empregado da CEB, na presença de um delegado do CLIENTE e, caso este não compareça tornar-se-á como boa a leitura do primeiro. Artigo 10.º Consumo a facturar: Considerar-se-á como consumo a facturar o número de kWh que for indicado pelos contadores, acrescido, no caso da contagem ser feita em baixa tensão, de dois por cento do número desses kWh (como compensação das perdas por efeito de Joule) mais o consumo do transformador (ou transformadores) em vazio, calculado para 720 horas mensais. Para determinação do consumo a facturar toma-se: a) - a média das leituras dos dois contadores (CLIENTE e CEB) no caso destes darem indicações dentro das tolerâncias estabelecidas; b) - a leitura do contador cujo funcionamento seja regular, se houver apenas um contador ou, havendo dois, no caso de um deles se ter avariado; c) a média das leituras dos meses anterior e posterior, no caso de não haver contador regulado (...) Artigo 14.º Pagamento da Energia: Nos primeiros quinze dias de cada mês, a CEB enviará ao CLIENTE a factura do consumo de energia do mês precedente, a qual será liquidada até ao fim do mês em curso, nos escritórios da CEB em Coimbra (...)». 4. Após a instalação, a Autora entregou à Ré o equipamento de medição, tendo esta se obrigado a zelar pelo seu bom estado. 5. A Autora emitiu em nome da Ré a nota de débito datada de 1/6/2006, no montante global de €215.696,93, que enviou a esta em 20/7/2006, com um escrito, com a referência 1321/06/0CB2B-AF, solicitando o pagamento, tendo a Ré, recebido tais escritos em 21/7/2006. 6. Na sequência do escrito referido no ponto 3, a Autora instalou um PT privativo para a Ré, com um contador de energia activa, transformadores de intensidade e transformadores de tensão, 7. As instalações de consumo de grande dimensão com potências como aquela (630 KVA) exigem transformadores de intensidade com relação de transformação, de forma a reduzirem a intensidade de corrente para permitir a contagem. 8. A Autora montou transformadores de intensidade tendo uma relação de transformação 10/5 amperes. 9. Para apresentar valores correctos, o contador tem que tomar em consideração a relação de transformação dos Tis a montante. 10. Os contadores foram montados para reflectir valores considerados Tis com uma relação de transformação 10/5 amperes 11. A instalação referida no ponto 6 estava licenciada e tinha projecto electrotécnico. 12. A Ré tinha ao seu serviço um técnico responsável pela instalação eléctrica. 13. Por causa do referido no ponto 3., a autora forneceu à Ré, de forma continuada, energia eléctrica, com uma potência instalada de 630 KVA, que a Ré destinou à sua actividade comercial. 14. Em 17/6/2005, no âmbito de uma campanha de telecontagem efectuada pelos seus serviços técnicos (Labelec) a Autora detectou uma anomalia no equipamento de contagem sito nas instalações do posto de transformação privativo pertença da Ré. 15. Na ocasião referida no ponto anterior, foi colocado um outro equipamento de telecontagem (marca Bruno Janz, modelo A 1700, ciclo diário de 3 tarifas e com Tis 1000/5), tendo ficado a trabalhar em paralelo o equipamento anterior. 16. Os equipamentos referidos no ponto anterior apresentaram leituras completamente distintas, sendo que o equipamento antigo referido no ponto 6 não media correctamente os consumos porquanto a corrente secundária da fase T tinha um valor inferior ao consumo. 17. Posteriormente a autora efectuou uma auditoria técnica para verificação do equipamento de medida. 18. No âmbito da verificação aludida no ponto anterior, os técnicos concluíram que o equipamento novo, referido em 15, colocado em 27/6/2005, do lado da baixa tensão, funcionava correctamente, o equipamento antigo referido em 6, do lado da média tensão, indicava problemas com a corrente da fase T . 19. O teste de medição de energia em trânsito, efectuado em simultâneo, para o mesmo período de tempo (10 minutos) deu o valor medido de 34 KWH no equipamento antigo, referido em 6. e 60 KWH no equipamento novo, referido em 15. 20. Os testes referidos em 18 e 19 foram efectuados na presença da Ré, designadamente de (…) e (…). 21. O contador antigo, referido em 6. foi reflectindo valores deficitários, na medida em que a corrente secundária exprimia valores abaixo dos valores previstos na corrente primária. 22. A Autora tentou contactar a Ré por causa do referido no ponto 5., mas não obteve resposta. 23. A Autora forneceu, instalou e pôs em funcionamento o equipamento de contagem nas instalações da Ré, procedendo regularmente à leitura do mesmo e facturando os consumos efectuados pela Ré. 24. A Autora podia ter detectado a anomalia referida no ponto 14 através dos seus serviços técnicos, caso tivesse efectuado uma campanha semelhante anteriormente, ou caso, por casualidade, tivesse efectuado uma auditoria ao equipamento de contagem da Ré. 25. Em 19/10/2005 a autora confirmou definitivamente que o equipamento de contagem do PT da Ré media incorrectamente os consumos desta. 26. Entre Novembro de 2005 e Janeiro de 2006 a Autora tentou reunir com a Ré de forma a solucionar o referido no ponto anterior. B) Passando à análise das questões objecto do recurso. 1. A primeira consiste, como se disse, em determinar se o conceito de «alta tensão» constante do n.º 3 do artigo 10.º, da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho (correspondente ao actual n.º 5, após as alterações introduzidas pela Lei n.º 12/2008), inclui ou não inclui a energia eléctrica fornecida em «média tensão». A norma em causa, em vigor à data dos factos, tinha a seguinte redacção: «1. O direito de exigir o pagamento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação. 2. Se, por erro do prestador do serviço, foi paga importância inferior à que corresponde ao consumo efectuado, o direito ao recebimento da diferença de preço caduca dentro de seis meses após aquele pagamento. 3. O disposto no presente artigo não se aplica ao fornecimento de energia eléctrica em alta tensão». Cita neste sentido o parecer sobre a matéria do Sr. Prof. Rui de Alarcão onde se diz que «Ao instituir uma diferença de regime jurídico para o fornecimento em alta tensão (preservando-o dos implicações em matéria de caducidade e prescrição definidos no n.º 1 do art.º 10.º do Lei n.º 23/96) o legislador deu-se conta de que o quadro de facto que justificaria uma especial tutela dos consumidores de energia eléctrico em baixa tensão (v.g., pela sua "estrutura económica") não se reproduz nos consumos em alto tensão, justificando-se, perante o nosso sistema constitucional, tal opção normativa diferenciadora». Pelo que, «a solução defendida não foi e não é desde logo posta em causa pelos diplomas legais entretanto aprovados, que mantiveram designadamente os quatro níveis de tensão anteriormente previstos, com destaque para o Decreto-Lei n.º 29/2006, de 15 de Fevereiro (o qual estabelece os princípios gerais relativos à organização e funcionamento do sistema eléctrico nacional…»). * Cumpre ainda aludir à natureza interpretativa das alterações introduzidas pela Lei n.º 12/2008.Como se referiu no ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 3-11-2009, antes já mencionado, a Lei n.º 28/2008 veio pôr termo à divergência jurisprudencial que existia sobre a prescrição prevista no artigo 10.º da Lei n.º 23/92, introduzindo alterações neste art.º 10.º, tornando claro que se tratava de prescrição extintiva do direito ao pagamento e não do direito à sua exigência. Mas ao sanar esta divergência jurisprudencial o legislador deixou inalterado o teor do n.º 3 do art.º 10.º, que passou a ser, com a mesma redacção o n.º 5 do mesmo preceito, sendo certo que o conceito de «alta tensão» era também causa de divergências jurisprudenciais. Verifica-se, por conseguinte, que as alterações introduzidas pela Lei n.º 28/2008 têm a natureza de normas interpretativa porque optaram em matéria de prescrição por uma das posições jurisprudenciais. Como se ponderou no mencionado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3-11-2009, «…os mesmos fundamentos devem valer em abono do alcance interpretativo da norma do n.º 5, apesar de se ter limitado a reproduzir a do anterior n.º 3. Com efeito, como antes notado, bem sabia o legislador da controvérsia jurisprudencial e doutrinal que, paralelamente à questão da prescrição, se desenvolvia em torno do âmbito ou abrangência do conceito da “alta tensão”. E, se optou por clarificar uma das questões suscitadas na interpretação da norma do primeiro número do artigo, não se compreende que não o tivesse feito também em relação ao último. Deixar a norma tal como se encontrava, só pode inculcar a ideia de o legislador ter sufragado a posição dos que já vinham sustentando que não se justificava a interpretação da expressão “alta tensão” por forma a abranger nela, também, a “média tensão”, por não ter correspondência no texto da lei, mormente quando considerada a terminologia usada nos “pacotes legislativos” do sector eléctrico, do mesmo passo que não atendia ao critério interpretativo de presunção de ter o legislador sabido exprimir o seu pensamento em termos adequados – art. 9.º, n.os 2 e 3 do C.Civil». Nos termos do art. 13.º C. Civil, a lei interpretativa integra-se na lei interpretada, com ressalva dos efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação ou por sentença transitada em julgado, pelo que, tal interpretação autêntica deve ser aplicada à apreciação do presente caso. Passando à segunda questão. 2 – Respeita à inconstitucionalidade da norma constante do n.º 3 do artigo 10.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, por infracção ao disposto no artigo 13.º da Constituição da República, inconstitucionalidade que reside, segundo a autora, apoiada no parecer que juntou, da autoria do Sr. Prof. Jorge Miranda, no facto de consumidores iguais serem tratados de forma desigual, conferindo a uns uma protecção e tutela em matéria de prazos prescricionais e caducidade que a outros é negada. Como se menciona no indicado parecer, «o pagamento do preço da energia eléctrica é feito em prestações reiteradas, como contrapartida dos consumos atinentes a certo período temporal, de montantes relativamente previsíveis e com variações não excessivamente pronunciadas (pelo menos, em relação às várias estações do ano). É uma despesa com que o utente pode e deve contar, como despesa certa e mais ou menos regular inscrita no seu orçamento (doméstico ou empresarial). O que o consumidor comum não deve é ficar inopinadamente sujeito, com as inerentes perturbações e dificuldades, a uma despesa extraordinária, de valor potencialmente elevado, resultante da correcção retrospectiva de um erro que lhe não é imputável. Daí a fixação de um prazo muito curto para o exercício desse crédito, o qual garante, nessa eventualidade inesperada, que o montante em dívida não exceda limites suportáveis sem grande custo. Ultrapassado esse prazo, é risco empresarial da empresa fornecedora (e não risco do utente) arcar com os prejuízos decorrentes do erro de facturação». É efectivamente esta a questão que está em apreciação neste caso. A Autora defende que a violação dos princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade podem ocorrer por excesso de protecção, quando, por exemplo, o Estado concede a certa categoria de pessoas ou de situações uma protecção descabida, desproporcionada em face dos interesses constitucionalmente protegidos e que se traduz em verdadeiro privilégio em relação a outra ou outras categorias, tratando-se de um fenómeno próximo da discriminação positiva, com a diferença de que esta é justificada consoante os fins assumidos pela Constituição, para alcançar uma igualdade de facto entre as pessoas, ao passo que o excesso de protecção agrava as desigualdades de direito e de facto e revela-se incoerente no interior do sistema. No caso concreto, tendo a lei afastado do benefício da caducidade os clientes da energia eléctrica em «alta tensão», se não incluiu neste conceito de «alta tensão» os clientes que a recebem em «média tensão», produziu, então, legislativamente um benefício desproporcionado e, por isso, injustificado a favor destes últimos e inconstitucional porque, de facto, se trata de consumidores iguais (em termos de tarifação, instalação eléctrica, obrigações de licenciamento, etc.) serem tratados de forma desigual, conferindo a uns uma protecção e tutela (v. g. em matéria de prazos prescricionais e caducidade) que a outros é negada, sendo ofendido, como se defende no parecer, o princípio da proporcionalidade «…nas suas três vertentes de adequação, necessidade e racionalidade. E, como logo resulta, tal implica outrossim ofender o princípio da igualdade» (pág. 23). Continuando a seguir o parecer do Sr. Prof. Jorge Miranda e no que respeita ao conteúdo do princípio constitucional da igualdade (artigo 13.º da Constituição), «Mais do que vedar privilégios e discriminações, o princípio da igualdade reveste-se de um alcance positivo traduzido nas bem difundidas fórmulas: a) Tratamento igual de situações iguais (ou tratamento semelhante de situações semelhantes); b) Tratamento desigual de situações desiguais, mas substancial e objectivamente desiguais – “impostas pela diversidade das circunstâncias ou pela natureza das coisas” - e não criadas ou mantidas artificialmente pelo Iegislador; c) Tratamento em moldes de proporcionalidade das situações relativamente iguais ou desiguais e que, consoante os casos, se converte para o legislador ora em mera faculdade, ora em obrigação; d) Tratamento das situações não apenas como existem mas também como devem existir, de harmonia com os padrões da Constituição material (acrescentando-se, assim, uma componente activa ao princípio e fazendo da igualdade perante a lei uma verdadeira igualdade através da lei» (págs. 24/25). Voltando à análise do caso dos autos. A questão que se coloca no plano da igualdade, como distintamente resulta do parecer, consiste em saber se há diferenças, e, neste momento, só as diferenças interessam, entre clientes/consumidores de energia eléctrica em «média tensão» e «alta tensão», que justifiquem atribuir aos primeiros o direito de beneficiarem de um prazo de caducidade de seis meses, findos os quais podem negar o pagamento de energia consumida e não facturada devido a erro de contagem que não lhes seja imputável, ao mesmo tempo que é negado tal benefício aos segundos. Para se poder afirmar que uma norma é inconstitucional, por ofender o princípio constitucional da igualdade, é necessário mostrar na realidade física do quotidiano a lei, ou a interpretação da lei, que produz ou produziu já um tratamento desigual para relações factuais e jurídicas idênticas. Ou seja, há que mostrar que não há diferenças factuais entre consumidores que recebem a electricidade em «alta tensão» e aqueles que a recebem em «média tensão», que gerem a favor destes últimos uma situação de facto que mereça ser tutelada e que a mesma não existe em relação aos primeiros. Para podermos saber que diferenças há entre cada um destes tipos de consumidores tornava-se necessário saber: Quem eram em 1996 e quem são em 2010, no nosso país, os clientes/consumidores de energia eléctrica em «média tensão», «alta tensão» e «muito alta tensão»? Há empresas que recebem nas suas instalações, para depois transformar e consumir, electricidade em «muito alta tensão»? Se há, quem são? Há algumas empresas que recebam nas suas instalações, para depois transformarem, electricidade em «alta tensão»? Se há, quem são? De que tipo de empresas (industriais e comerciais) se trata? Qual é a sua dimensão? A sua capacidade económica? O que é que em termos técnicos, científicos e económicos distingue, se há distinção, umas de outras? Quantas empresas existem a receber a energia eléctrica em «média tensão», em «alta tensão» e em «muito alta tensão»? Há empresas que possam concorrer umas com as outras recebendo umas a energia em «média tensão» e outras em «alta tensão»? Se sim, quais? A resposta a estas perguntas, após indagada e interpretada a realidade dos factos com fidelidade, é que permitiria lançar a necessária luz sobre a questão da desproporcionalidade da medida legislativa tida por inconstitucional e da eventual violação do princípio da igualdade. De outra forma, não é possível mostrar que a norma transporta em si mesma uma medida desproporcionada e ofensiva do princípio constitucional da igualdade. Ou seja, a Autora (e o parecer junto aos autos também) dá por assente aquilo que não está adquirido no processo, isto é, que o cliente/consumidor que recebe a energia eléctrica em «média tensão», em «alta tensão» e em «muito alta tensão» estão todos num plano de igualdade ao nível da capacidade técnica e científica, do poderio económico (capitais próprios, recurso ao crédito, capacidade de influenciar a administração, etc.). Ora, não parece defensável colocar, por exemplo, uma empresa cimenteira, uma refinaria de petróleo ou uma empresa construtora de automóveis, integradas eventualmente em grupo económico de expressão internacional, no mesmo patamar de uma empresa mediana nacional (por exemplo, uma empresa gestora de um centro comercial, uma serração, uma tecelagem, uma moagem, uma cerâmica, uma fábrica de moldes, de conservas, em suma, uma qualquer empresa fabril, etc., que não possa funcionar, e serão todas, com a electricidade fornecida directamente pela rede de «baixa tensão»), que tenha de recorrer ao crédito, por exemplo, para pagar €215 000,00 euros (ou muito mais, dependendo da natureza do erro e do tempo em que ele operou), sob pena de pagando a dívida fique carecida de dinheiro para pagar o salário aos seus trabalhadores no final do mês. Não parece defensável fazer tal equiparação por se tratar, ao nível da realidade factual, de realidades empresariais diversas em termos qualitativos. Como se referiu no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 3-11-2009, acima mencionado, «…parece dever inferir-se serem situações distintas as do consumidor em alta e em média tensão», residindo na maior vulnerabilidade deste último a razão da sua protecção. Dir-se-á que podem existir clientes/consumidores de energia eléctrica em «alta tensão» que podem estar na mesma situação económica que outros que recebem energia eléctrica em «média tensão», e de facto esta situação parece ser perfeitamente possível e real. Porém, destinando-se a linha de «alta tensão» a deslocar um maior volume de energia com o mínimo de perdas (efeito de Joule) é de ter como correcto, em termos gerais, que quem tem necessidade de gastar mais energia tem mais poder económico ou organizativo para controlar, evitar ou precaver-se contra erros de contagem de energia eléctrica que podem ser de valor elevado, já que o consumo também o é. Claro que pode haver e há excepções a esta regra, em especial na actualidade, na medida em que existe progressivamente uma maior desmaterialização da riqueza, pelo que pode uma empresa ter grande poder económico e utilizar energia eléctrica em «baixa tensão» como, por exemplo, numa agência seguradora ou bancária. Em razão do seu poderio económico estas empresas não justificam o benefício da caducidade em questão. Porém, a lei prescreve como é regra, sendo a lei em análise um caso desses, para o geral e não para as excepções e, no caso, trata-se de interpretar uma lei dirigida às inúmeras situações típicas e não às suas eventuais excepções. Conclui-se, por conseguinte, que não está demonstrado no processo que exista uma igualdade do ponto de vista da capacidade técnica e científica, do poderio económico, da capacidade em obter crédito e da capacidade de gerar influências ao nível político, entre o cliente/consumidor que recebe a energia eléctrica em «média tensão» e aqueles que a recebem em «alta tensão» ou em «muito alta tensão». Não se demonstrando esta igualdade entre os referidos consumidores, mas havendo indícios de que, em geral, os consumidores de energia eléctrica fornecida em «média tensão» apresentam maiores vulnerabilidades, em especial ao nível económico, que os consumidores de energia em «alta tensão», não é possível concluir pela inconstitucionalidade da norma constante do n.º 3 do artigo 10.º da Lei n.º 23/96 de 26 de Julho, com base na ofensa do princípio da igualdade proclamado no artigo 13.º da Constituição da República. c) Em resumo: 3 – Não está demonstrado no processo que exista uma igualdade do ponto da capacidade técnica e científica; do poderio económico (capitais próprios, recurso ao crédito, capacidade de influenciar a administração, etc.), entre o cliente/consumidor que recebe a energia eléctrica em «média tensão» e aqueles que a recebem em «alta tensão» ou, eventualmente em «muito alta tensão». 4 – Não estando apurada esta igualdade entre os referidos clientes/consumidores, mas havendo indícios de que, em geral, os consumidores de energia eléctrica fornecida em «média tensão» apresentam maiores vulnerabilidades, em especial ao nível económico, que os consumidores de energia em «alta tensão», não se pode concluir pela inconstitucionalidade da norma constante do n.º 3 do artigo 10.º da Lei n.º 23/96 de 26 de Julho, com base na ofensa do princípio da igualdade proclamado no artigo 13.º da Constituição da República. III. Decisão. Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida. Custas pela Autora.
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