Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5078/17.5T8CBR-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: INSOLVÊNCIA
RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE
IMPUGNAÇÃO
LEGITIMIDADE
DEVEDOR
INSOLVENTE
Data do Acordão: 03/03/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.30 CPC, 17, 81, 120, 121, 123, 125 CIRE
Sumário: O devedor/insolvente tem legitimidade para impugnar a resolução em benefício da massa insolvente efectuada pelo administrador de insolvência relativamente a um acto (no caso, repúdio de herança) que por ele (devedor) havia sido praticado.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

C (…) residente (…), (…), veio, por apenso ao processo onde foi declarada a sua insolvência, instaurar acção contra Massa Insolvente de C (…), ao abrigo do disposto no art. 125º do CIRE, pedindo que se considere extemporânea a resolução do acto de repúdio de herança ou, caso assim não se entenda, que se considere a falta de fundamentação da resolução, condenando-se a Ré a reconhecer a validade e eficácia do repúdio da herança e revogando-se a declaração de resolução de negócio em benefício da Massa Insolvente que infundadamente a Sra. Administradora de Insolvência operou.

Alega, em resumo: que, através de carta registada com aviso de recepção datada de 14 de Janeiro de 2019, a Ré procedeu à resolução em benefício da Massa Insolvente do repúdio da herança efectuado pela Requerente no dia 8 de Maio de 2017; que a Ré teve conhecimento do repúdio da herança através de comunicação feita pela própria Autora, na pessoa do seu mandatário, através de e-mail datado de 13 de Abril de 2018, pelo que e tendo em conta o disposto no art. 123º, nº 1, do CIRE, à data em que foi efectuada a resolução já havia caducado o direito de a ela proceder; que tal resolução carece de fundamento legal, sendo cero que não foi indicado o concreto fundamento com base na qual era efectuada nem foram alegados os requisitos legais; que não existiu má-fé no repúdio em causa, sendo certo que não teve intenção de beneficiar ninguém e que apenas repudiou a herança por considerar que moralmente não lhe devia caber tendo em conta a ajuda que o seu pai lhe prestou em vida.

A Ré contestou, sustentando não ter caducado o direito à resolução e alegando que, na missiva que enviou, constavam todos os elementos essenciais para fundamentar a sua decisão. Mais alega que o repúdio da herança constitui um acto prejudicial para a massa insolvente e seus credores, na medida em que se altera a titularidade dos bens que a insolvente possuía, sem se receber qualquer preço pelos mesmos e, de acordo com o estatuído nos termos do artigo 121.º, n.º 1 alínea b) do CIRE, os actos aí mencionados são susceptíveis de resolução independentemente de quaisquer outros requisitos.

Conclui pedindo a improcedência da acção.

Por despacho proferido em 03/06/2019, a Autora foi convidada a aperfeiçoar a sua petição nos seguintes termos:

“- Para efeitos de apurar o interesse processual da Autora na impugnação da resolução do ato de repúdio de herança por si própria praticado, mostra-se necessário que concretize factualmente os efeitos pessoais ou patrimoniais que decorreram do ato resolvido que não interessam à insolvência e que possam cessar em consequência da resolução (vd. Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, em CIRE Anotado, 2.ª Edição, Quid Juris, pág. 539, anotação 4. ao artigo 125.º do CIRE);

- Juntar aos autos os documentos que a senhora AI terá apresentado com a carta de resolução datada de 14.01.2019, nesta referidas como documentos 01 a 13”.

A Autora veio aperfeiçoar a sua petição, dizendo: que, se há alguém que tem interesse processual na impugnação é a própria Autora pois foi ela quem praticou o acto; que, além do mais, foi notificada da resolução pela Sr.ª Administradora o que demonstra o seu interesse na impugnação; que viveu, nos últimos tempos, uma situação financeira de pré-insolvência e a sua sobrevivência só foi possível através de ajudas do seu pai e dos seus irmãos, principalmente da sua irmã mais velha, M (…) com quem ainda reside; que o repúdio à herança de seu pai foi a forma que adoptou para os poder compensar, sendo certo que, se os irmãos se arrogassem credores da Autora no âmbito da insolvência, certamente que a dívida da massa seria exponencialmente superior.

Subsidiariamente e para o caso de se entender que não tem interesse processual nos autos, requer a intervenção principal provocada da cabeça de casal da herança aberta por óbito de seu pai M (…)..

Foi realizada a audiência prévia no âmbito da qual foi comunicada às partes a possibilidade de se poder conhecer da exceção dilatória de ilegitimidade activa, tendo sido facultada às partes a oportunidade de se pronunciarem sobre a aludida excepção.

Na sequência desses actos, foi proferida decisão que, julgando verificada a excepção de ilegitimidade activa, absolveu a Ré da instância.

Inconformada com essa decisão, a Autora veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…)

A Massa Insolvente de C (…) apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

(…)


/////

II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

● Saber se a excepção de ilegitimidade podia e devia ter sido apreciada antes de ser apreciada a excepção de caducidade do direito de resolução do acto que a Autora/Apelante havia invocado na petição inicial;

● Saber se a Autora tem (ou não) legitimidade para instaurar a presente acção com vista à impugnação da resolução em benefício da massa insolvente que foi efectuada pela Administradora de insolvência relativamente ao acto – praticado pela Autora – de repúdio da herança aberta por óbito de seu pai.


/////

III.

Na 1ª instância consideraram-se assentes os seguintes factos:

A) No dia 26.06.2019, C (…) solteira, NIF (…), residente (…), interpôs ação especial de insolvência, requerendo a declaração da sua insolvência;

B) Por sentença proferida no dia 14.07.2017, já transitada em julgado, foi declarada a insolvência de C (…), tendo sido nomeada como Administrador da Insolvência (AI) a senhora Dr.ª (…)

C) No dia 08.05.2017, C (…) havia outorgado uma escritura publica, mediante a qual declarou repudiar a herança de seu pai, M (…)falecido em 12.09.2009, conforme documento de fls. 7 e v.º, que aqui se dá por reproduzido;

D) Da massa hereditária deixada por M (…) constam, pelo menos, os seguintes bens, melhor descrito nas certidões prediais juntas a fls. 18 a 25, e cujos teores se dão aqui por reproduzidos:

1) Prédio sito na União das Freguesias de (…), concelho de (…), inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 546.º, com o valor patrimonial de 55.730,00€;

2) Prédio sito em (…), concelho de (…), inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 594.º, com o valor patrimonial de 17,46€;

3) Prédio sito em (…), concelho de (…), inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 653.º, com o valor patrimonial de 14,96€;

4) Prédio sito em  (...) , concelho de  (...) , inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 617.º, com o valor patrimonial de 1.650,12€;

5) Prédio sito em  (...) , concelho de  (...) , inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 690.º, com o valor patrimonial de 231,54€;

6) Prédio sito em  (...) , concelho de  (...) , inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 245.º, com o valor patrimonial de 2.166,66€;

7) Prédio sito em  (...) , concelho de  (...) , inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 244.º, com o valor patrimonial de 207,50€;

8) Prédio sito em  (...) , concelho de  (...) , inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 210.º, com o valor patrimonial de 3.216,25€;

9) Prédio sito em  (...) , concelho de  (...) , inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 209.º, com o valor patrimonial de 6.214,63€;

10) Prédio sito em  (...) , concelho de  (...) , inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 522.º, com o valor patrimonial de 16,16€;

11) Prédio sito em  (...) , concelho de  (...) , inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 576.º, com o valor patrimonial de 21,85€;

12) Prédio sito em  (...) , concelho de  (...) , inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 590.º, com o valor patrimonial de 22,25€;

13) Prédio sito em  (...) , concelho de  (...) , inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 871.º, com o valor patrimonial de 160,51€;

E) Por carta datada de 14.01.2019, cuja cópia se mostra junta a fls. 5 v.º e 6, a senhora AI comunicou à devedora insolvente, ora Autora, a resolução do negócio jurídico identificado em C), nos seguintes termos:

Exma. Senhora,

A Administradora da Insolvência, nomeada nos autos acima identificados, tendo tido conhecimento da escritura referente ao repúdio da herança, aberta por óbito de seu pai, M (…) lavrada no dia, oito de Maio de dois mil e dezassete, no Cartório Notarial, Dr. (…), sito em  (...)  e, tendo sido proferida a sentença que declarou a sua Insolvência em 14 de Julho de 2017, ou seja, há menos de dois anos.

Vem, nos termos do artº 123º do CIRE, declarar resolvido o negócio de repúdio à herança, acima referido, o que faz nos termos seguintes:

1. Do negócio e circunstâncias da sua celebração

Trata-se de um negócio que, dado o seu objeto e valor, foi celebrado em prejuízo da massa insolvente, uma vez que o valor da transação foi gratuito e portanto, inferior ao valor de mercado do bem, facto que era do conhecimento de V. Exa. ou de que, pelo menos, não podia ignorar, conforme as cadernetas prediais que ora se juntam como docs. 01 a 13

Com a celebração da referida escritura de repúdio, houve uma clara diminuição do património da insolvente C (…), diminuindo-se a satisfação dos credores da Massa Insolvente.

2. Do Direito

Transcreve-se aqui o disposto nos artigos 120º e 121º, do CIRE, onde se subsumem os factos supra expostos:


Resolução em beneficio da massa insolvente

Artigo 120º

Princípios gerais


1 - Podem ser resolvidos em beneficio da massa insolvente os atos prejudiciais à massa praticados ou omitidos dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência.

2 – Consideram-se prejudiciais à massa os atos que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência.

3 – Presumem-se prejudiciais á messa, sem admissão de prova em contrário, os atos de qualquer dos tipos referidos no artigo seguinte, ainda que praticados ou omitidos fora dos prazos aí contemplados.

4 - Salvo nos casos a que respeita o artigo seguinte, a resolução pressupõe a má-fé do terceiro, a qual se presume quanto a atos cuja prática ou omissão tenha ocorrido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e em que tenha participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, ainda que a relação especial não existisse a essa data.

5 - Entende-se por má-fé o conhecimento, à data do ato, de qualquer das seguintes circunstâncias:

a) De que o devedor se encontrava em situação de insolvência;

b) Do carácter prejudicial do ato e de que o devedor se encontrava à data em situação de insolvência iminente;

c) Do início do processo de insolvência.


Artigo 121º

Resolução incondicional


1 - São resolúveis em benefício da massa insolvente os atos seguidamente indicados, sem dependência de quaisquer outros requisitos:

a) Partilha celebrada menos de um ano antes da data do início do processo de insolvência em que o quinhão do insolvente haja sido essencialmente preenchido com bens de fácil sonegação, cabendo aos cointeressados a generalidade dos imóveis e dos valores nominativos;

b) Atos celebrados pelo devedor a título gratuito dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência, incluindo o repúdio de herança ou legado, com excepção dos donativos conformes aos usos sociais;

c) Constituição pelo devedor de garantias reais relativas a obrigações preexistentes ou de outras que as substituam, nos seis meses anteriores à data de início do processo de insolvência;

d) Fiança, subfiança, aval e mandatos de crédito, em que o insolvente haja outorgado no período referido na alínea anterior e que não respeitem a operações negociais com real interesse para ele;

e) Constituição pelo devedor de garantias reais em simultâneo com a criação das obrigações garantidas, dentro dos 60 dias anteriores à data do início do processo de insolvência;

f) Pagamento ou outros atos de extinção de obrigações cujo vencimento fosse posterior à data do início do processo de insolvência, ocorridos nos seis meses anteriores à data do início do processo de insolvência, ou depois desta mas anteriormente ao vencimento;

g) Pagamento ou outra forma de extinção de obrigações efectuados dentro dos seis meses anteriores à data do início do processo de insolvência em termos não usuais no comércio jurídico e que o credor não pudesse exigir;

h) Atos a título oneroso realizados pelo insolvente dentro do ano anterior à data do início do processo de insolvência em que as obrigações por ele assumidas excedam manifestamente as da contraparte;

i) Reembolso de suprimentos, quando tenha lugar dentro do mesmo período referido na alínea anterior.

2 - O disposto no número anterior cede perante normas legais que excecionalmente exijam sempre a má-fé ou a verificação de outros requisitos.

Informo ainda que a resolução ora comunicada tem efeitos retroativos, devendo reconstituir-se a situação que existiria se o ato não tivesse sido praticado.

Mais acrescento que, de acordo com o disposto no art. 126.º do CIRE, ao terceiro que não apresente os bens ou valores que hajam de ser restituídos à Massa dentro do prazo fixado são aplicadas as sanções previstas na lei de Processo para o depositário de bens penhorados que falte à oportuna entrega deles.

3. Em conclusão

Face ao exposto, declaro resolvido o negócio titulado pela escritura de repúdio da herança aberta por óbito de M (…), celebrada no dia oito de Maio de 2017, no escritório notarial do Dr(…), sito em  (...) .

Fico à disposição de V. Exa., para qualquer esclarecimento adicional que entenda colocar e entretanto, apresento os meus melhores cumprimentos.


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IV.

A Apelante começa por sustentar que a excepção de ilegitimidade não poderia ter sido apreciada antes de ser apreciada a excepção de caducidade do direito de resolução do acto que havia invocado – também ela de conhecimento oficioso – e que, ao ter julgado verificada a excepção de ilegitimidade sem antes ter apreciado aquela caducidade, a decisão recorrida violou o disposto nos arts. 576º, 578º e 579º do CPC e 333º do CC.

Não lhe assiste razão.

Na verdade, a caducidade do direito de resolução em benefício da massa insolvente corresponde a um dos fundamentos que a Autora/Apelante invocou para impugnar a resolução que havia sido efectuada pela Administradora de Insolvência e para justificar a pretensão que veio formular no sentido de ser revogada (ou ficar sem efeito) aquela resolução. Assim sendo, é indiscutível que tal caducidade se insere no objecto da acção – integrando a causa de pedir da pretensão formulada – e a sua apreciação corresponderá, naturalmente, à apreciação do mérito da acção.

Sucede que a apreciação do mérito da causa – a apreciação da pretensão formulada e dos respectivos fundamentos – pressupõe a regularidade formal da instância, ou seja, pressupõe que estejam verificados os necessários pressupostos processuais.

Com efeito e conforme se dispõe no art. 576º, nº 2 (disposição que a Apelante alega – erradamente – ter sido violada) e no art. 278º do CPC, as excepções dilatórias obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa e dão lugar à absolvição da instância ou à remessa do processo para outro tribunal. Significa isso, portanto, que, ocorrendo uma excepção dilatória – que, por regra e conforme disposto no art. 578º do CPC, devem ser conhecidas oficiosamente pelo tribunal – o tribunal não pode apreciar o mérito da causa, ou seja, não pode apreciar a pretensão formulada e os respectivos fundamentos.

Atente-se, aliás, no art. 608º, nº 1, do CPC que, ao definir a ordem pela qual as questões devem ser julgadas na sentença, determina claramente que “…a sentença conhece, em primeiro lugar, das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica”.

Consequentemente, porque a legitimidade das partes corresponde a uma excepção dilatória – cfr. artigos 278º, nº 1, alínea d) e 577º, alínea e), do CPC – que obsta à apreciação do mérito, é evidente que ela tinha que ser apreciada antes de qualquer outra questão que não se configurasse como excepção dilatória e que não determinasse, como é próprio das excepções dilatórias, a absolvição da instância. Ora, como é evidente, a procedência da caducidade que era invocada pela Autora para fundamentar a pretensão que deduziu não implicava a absolvição da instância mas sim a procedência da impugnação deduzida pela Autora relativamente à resolução do acto de repúdio da herança e, como tal, só podia ser apreciada se não existisse qualquer excepção dilatória que obstasse à apreciação de mérito, como era o caso da ilegitimidade da Autora.

Embora isso não tenha aqui relevância, pensamos não assistir razão à Apelante quando afirma que a caducidade do direito de resolução é de conhecimento oficioso, já que, como dispõe o art. 333º do CC, a caducidade só pode ser apreciada oficiosamente pelo tribunal em matéria excluída da disponibilidade das partes e não será esse o caso da caducidade aqui em causa, conforme se considerou no Acórdão do STJ de 04-07-2019 (proferido no processo nº 493/12.3TJCBR-K.P1.S2)[1].

De qualquer forma, ainda que fosse de conhecimento oficioso, tal caducidade só poderia ser apreciada no âmbito desta acção se ela (a acção) estivesse em condições de prosseguir e tal implicava, naturalmente, a inexistência de excepções dilatórias que obstassem a tal prosseguimento que, como tal, não poderiam deixar de ser apreciadas em primeiro lugar.

Não assiste, portanto, razão à Apelante quando sustenta que aquela caducidade deveria ter sido apreciada antes da excepção de ilegitimidade; tal caducidade só poderá ser apreciada no âmbito desta acção se a Autora for parte legítima e se não existirem quaisquer outras excepções dilatórias que obstem à apreciação de mérito.

Assim e no que toca a esta questão, improcede o recurso.

Resta agora saber se a Autora tem (ou não) legitimidade para a presente acção.

Embora não exclua a possibilidade, em abstracto, de o insolvente ter legitimidade para impugnar a resolução, a decisão recorrida considerou que tal legitimidade apenas existe nos casos em que o acto resolvido envolveu a produção de efeitos pessoais ou patrimoniais que não interessam à insolvência e que possam cessar em consequência da resolução e, considerando que tal não acontecia no caso em análise, entendeu que a Autora não tinha legitimidade para a presente acção.

Discordando dessa decisão, sustenta a Apelante que, à luz do critério consignado no art. 30º do CPC, tem legitimidade para intentar a presente acção, uma vez que, tendo sido ela quem praticou o acto, tem interesse directo em defendê-lo e pugnar pela sua validade.

Vejamos então.

O CIRE não contém qualquer norma que disponha sobre a legitimidade activa para a impugnação da resolução do acto/negócio em benefício da massa insolvente, dizendo Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda[2], que, em termos gerais, a legitimidade para impugnar a resolução caberá “…a quem é afectado pela resolução; assim, desde logo, à outra parte no acto resolvido, mas também a terceiros a quem a resolução seja oponível…Finalmente não é de excluir que o próprio insolvente tenha interesse em atacar a resolução”. E, no que toca à legitimidade do insolvente, os referidos autores[3], dizem que tal legitimidade existirá quando o acto resolvido tenha envolvido a produção de efeitos pessoais ou patrimoniais que não interessam à insolvência e que podem cessar em consequência da resolução[4].

Não obstante se disponha no nº 4 do art. 81º do CIRE que “O administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência”, logo se dispõe também – no nº 5 – que “A representação não se estende à intervenção do devedor no âmbito do próprio processo de insolvência, seus incidentes e apensos, salvo expressa disposição em contrário”.

É claro, portanto, que a declaração de insolvência não inibe e não impede o devedor de intervir – por si e, eventualmente, contra a massa insolvente – no âmbito do processo de insolvência e respectivos incidentes e apensos, pelo que, inexistindo qualquer outra norma legal que vede, de modo expresso, ao insolvente o direito de impugnar a resolução de acto em benefício da massa insolvente que haja sido efectuada pelo administrador de insolvência, impõe-se concluir que não existe, à partida, nenhum obstáculo legal á possibilidade de o devedor/insolvente instaurar acção (por apenso ao processo de insolvência) com vista à impugnação daquela resolução.

Uma vez que, conforme se disse, o CIRE não contém qualquer norma que disponha sobre a legitimidade activa para tal impugnação, impõe-se recorrer – conforme previsto no art. 17º, nº 1, do CIRE – às normas do CPC que regulam essa matéria.

  Dispõe, a propósito, o art. 30º do CPC que o autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar, interesse que se exprime pela utilidade derivada da procedência da acção, mais se determinado que na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.

Segundo refere Manuel Domingues de Andrade[5], “A legitimidade não é…uma qualidade pessoal das partes (como a capacidade), mas uma certa posição delas em face da relação material litigada (…)É o poder de dispor do processo – de o conduzir ou gestionar (…) no papel de parte. Como o poder de dispor da relação material in judicium deducta cabe, em geral, aos respectivos sujeitos, e só a eles, analogamente se passam as coisas quanto à legitimidade, que é poder de dispor do processo, cuja sorte vai influir naquela relação. O poder como que de dispor dessa relação por via processual deve competir a quem dela pode dispor por via extraprocessual”.

Essa legitimidade – poder de dirigir o processo – determina-se, conforme disposto na lei, através da titularidade do interesse em litígio que, por regra e na falta de indicação da lei em contrário, pertencerá aos sujeitos da relação controvertida que é configurada pelo autor. Ou seja, são partes legítimas aquelas partes que se apresentam ou são apresentadas pelo autor como detentoras de uma determinada posição em relação ao objecto processual e, segundo a lei, essa posição é aquela que, correspondendo, em abstracto, à titularidade do interesse em litigio (interesse directo em demandar ou em contradizer) se reconduz, por regra, à titularidade da relação que corresponde ao objecto do processo. Significa isso, portanto, que, ressalvando os casos em que a lei disponha em sentido diferente, os sujeitos dessa relação detêm legitimidade processual para a acção onde a mesma se discute.

No caso em análise, está em causa a resolução em benefício da massa insolvente (resolução efectuada pela Sr.ª Administradora de insolvência) do acto praticado pela Autora (Insolvente) por via do qual repudiou a herança aberta por óbito de seu pai.

Parece não haver dúvidas, portanto, que, para efeitos do disposto no citado art. 30º, a Autora é sujeito da relação controvertida que está em causa nos autos. Foi a Autora que praticou o acto em questão – tendo sido, aliás, a única interveniente uma vez que está em causa um acto unilateral – e foi à Autora que foi dirigida a declaração de resolução (aliás, não há notícia de que tal declaração tenha sido enviada a qualquer outra pessoa) e, portanto, inexistindo qualquer disposição legal que disponha em sentido contrário, impor-se-á concluir que detém legitimidade para impugnar a resolução do acto que foi efectuada pela Sr.ª Administradora.

É irrelevante, para o efeito, que a Autora não tenha retirado qualquer benefício do acto em questão e que, como tal, a respectiva resolução não determine a cessação de qualquer efeito concreto que lhe tenha aproveitado. Conforme se referiu, a legitimidade define-se, sobretudo, pela posição das partes em face da relação material que corresponde ao objecto do processo e, ressalvando a indicação da lei em contrário, é aos sujeitos dessa relação que a lei atribui legitimidade para conduzir e gerir o processo onde se discute essa relação. Foi a Autora, como se disse, que praticou o acto em questão visando a produção dos efeitos jurídicos que lhe são inerentes (ainda que esses efeitos não lhe tenham aproveitado e apenas beneficiem terceiros) e, portanto, independentemente dos motivos que a determinaram (sejam eles válidos ou não) – questão que não releva para efeitos de legitimidade – terá, em princípio, o direito – e a correspondente legitimidade – de o defender e de pugnar pela sua validade e eficácia e pela manutenção dos efeitos jurídicos que pretendeu alcançar quando o praticou.

Em face do exposto, porque a Autora é sujeito da relação em causa nos autos – foi a única interveniente no acto jurídico em causa (repúdio da herança) – e porque não existe qualquer indicação da lei em contrário, impõe-se concluir que é titular do interesse relevante para efeitos de legitimidade à luz do disposto no art. 30º do CPC.

A Autora tem, portanto, legitimidade para interpor a presente acção com vista à impugnação da resolução efectuada pela Sr.ª Administradora e, como tal, impõe-se revogar a decisão recorrida – que absolveu a Ré da instância por ter julgado verificada a excepção de ilegitimidade da Autora – e determinar o prosseguimento dos autos.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

O devedor/insolvente tem legitimidade para impugnar a resolução em benefício da massa insolvente efectuada pelo administrador de insolvência relativamente a um acto (no caso, repúdio de herança) que por ele (devedor) havia sido praticado.


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V.
Pelo exposto, concede-se provimento ao presente recurso e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida (que absolveu a Ré da instância) e, julgando-se não verificada a excepção de ilegitimidade da Autora, determina-se o prosseguimento dos autos.
Custas a cargo da Apelada (por ter ficado vencida) sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.
Notifique.

Coimbra, 3 de Março de 2020.

Maria catarina Gonçalves (Relatora)

Maria João Areias

Ferreira Lopes


[1] Disponível em http://www.dgsi.pt.
[2] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 2008, pág. 440.
[3] Ob. cit., pág. 440.
[4] Idêntica posição parece ser adoptada por Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 2013, 5ª edição, pág. 217.
[5] Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 84.