Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
467/09.1T2AND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
ENERGIA ELÉCTRICA
DISTRIBUIÇÃO
DIRECÇÃO EFECTIVA
PRINCÍPIO DO DISPOSITIVO
Data do Acordão: 11/11/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - ANADIA - JUÍZO DE GRANDE INST. CÍVEL - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.509 CC, DL Nº 29/2006 DE 15/2
Sumário: 1. A EDP – Energias de Portugal, S.A. e a EDP Distribuição de Energia, S.A., constituem entidades jurídicas distintas.

2. Não fundamentando o autor a responsabilidade da ré no facto, só agora invocado em sede de alegações de recurso, de a EDP – Energias de Portugal, S.A., ser a “detentora da direção efetiva da instalação e condução da energia elétrica”, do qual extrai a sua responsabilidade no disposto no art. 509º do Código Civil, não pode o tribunal de recurso conhecer de tal causa de pedir não invocada pela autora no momento próprio.

3. O titular da direção efetiva da rede de distribuição de eletricidade em média e alta tensão é a EDP – Distribuição de Energia, S.A., enquanto concessionária de tal serviço, a quem é atribuída a propriedade ou posse dos meios afetos à concessão e sobre a qual impende o dever de manutenção em bom estado de conservação de tais meios.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

 

G (…)– Companhia de Seguros, SA, intenta a presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário contra EDP – Energias de Portugal, S.A.,

pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de €107.652,85 acrescida de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento.

Alegando, para tal e em síntese:

invoca o direito de sub-rogação pela indemnização que satisfez no âmbito de seguro de acidentes de trabalho decorrente da morte de um trabalhador e lesões sofridas noutro, decorrentes de um acidente ocorrido no âmbito da execução de um contrato de empreitada celebrado entre a E (...) A.C.E. e a EDP – Distribuição de Energia, S.A.;

o acidente é imputável à ré, porquanto ocorreu quando a EDP Distribuição iniciava a reposição da normalidade da linha, sendo as manobras locais asseguradas por funcionários da EDP Distribuição e também por piquetes da EDP, tendo ocorrido pelo facto de se ter dado uma descarga elétrica na linha que que estava a ser reparada pelos sinistrados, no momento em que um deles procedia ao fecho do selecionador;

aquando do acidente, existia uma avaria nas facas duplas de bimetal do selecionador que permitiu a passagem da tensão ao local onde decorriam os trabalhos;

a existência de tal avaria é da responsabilidade da EDP, porquanto as obrigações de inspeção, manutenção e/ou substituição das mesmas pertencem ao grupo EDP, sendo que a entrada de tensão na linha condutora ficou a dever-se a uma ação concreta de um funcionário da E.D.P.

A Ré contesta, invocando a prescrição do direito da Autora. Mais refere que quem foi parte no alegado contrato de empreitada foi a EDP Distribuição – Energia, S.A., pessoa jurídica distinta da contestante, imputando a responsabilidade na ocorrência do acidente em causa a culpa das próprias vítimas e demais trabalhadores da firma J (...), Lda., que não observaram as normas de segurança aplicáveis.  

Conclui pela sua absolvição do pedido.

Foi proferido despacho saneador que relegou para final o conhecimento da exceção da prescrição do direito da autora.

Realizada audiência de julgamento, o Juiz a quo proferiu sentença a julgar a ação improcedente, absolvendo a ré do pedido.  

Inconformada com tal decisão, a autora dela interpôs recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:

I – A douta sentença do tribunal a quo, fundamentou de forma errada a Decisão, ao fazer apelo às normas constantes do artigo 483º e seguintes do Código Civil, quando deveria enquadrar a factualidade provada, no âmbito do artigo 509º do mesmo Código.

II – Existe manifesta contradição entre a matéria assente e a decisão proferida, pelo que a mesma, deve ter como consequência, o disposto no artigo 615º nº 1 alíneas c) e d) e nº 4 do Código de Processo Civil.

III – A Apelada é parte legítima, tanto mais que, a douta sentença, não a absolveu da instância, como, aliás, deveria caso assim entendesse, com as legais consequências.

IV – Ao resultar de ata de julgamento que as partes chegaram acordo, sem qualquer condição, em que “aceitam que se responda de acordo com os documentos juntos nos autos” aos quesitos 34 a 42, aceitaram que os documentos juntos aos autos eram suficientes para provar essa matéria até aí controvertida.

V – Ao não entender dessa forma a douta sentença violou o disposto nos artigos 607º, nº 4 e 5 in fine do Código de Processo Civil pelo que a mesma, deve, ainda ter, como consequência o disposto no artigo 615º nº 1 c), d) e nº 4 do Código de Processo Civil.

VI - O domínio pleno da rede elétrica pertence à Apelada.

VII - Esta, encontra-se obrigada, independentemente de todo o contexto, a assegurar as respetivas condições de preservação e manutenção, nos termos do disposto no artigo 509º do Código Civil.

VIII - A fiscalização dessas normas de segurança, compete à ora Apelada e a inobservância das mesmas de um seu prestador desserviços, contratado para levar a cabo uma reparação não é motivo de exclusão da sua responsabilidade, perante terceiros lesados.

IX - O contrato de prestação de serviços efetuado, terá porventura eficácia entre as partes contratantes e o seu desrespeito, não altera as normas imperativas, contidas na legislação em vigor, mormente, as normas contidas no Código Civil, em matéria de responsabilidade civil.

X - Os trabalhadores sinistrados, limitaram-se a agir de acordo com as ordens e as instruções dos responsáveis, limitaram-se a proceder às tarefas ordenadas na presença dos responsáveis e o acidente só se deu, tendo como causa base e essencial, a ligação não atempada da energia, antes dos trabalhos concluídos e, essa ligação foi concretizada por alguém do âmbito laboral da ora Apelada.

Conclui pela revogação da decisão recorrida.

A Ré apresenta contra-alegações, defendendo a manutenção do decidido.
Cumpridos que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto na última parte do nº4 do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo[1] –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Se os quesitos 34 a 42 deveriam ter obtido a resposta de “provado”.
2. Responsabilidade da Ré ao abrigo do disposto no art. 509º do Código Civil.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
1. Se os quesitos 36 a 40 e 42 deveriam ter obtido a resposta de provado.

Face à declaração dos ilustres mandatários das partes, no início da audiência de julgamento, de que quanto aos quesitos 34 a 42, “aceitam que se responda de acordo com os documentos juntos”, sustenta a apelante que os quesitos 36 a 40, e 42, deveriam ter sido dados como provados, uma vez que o acordo sobre essa matéria de facto não foi condicionado à apresentação de recibos.

É o seguinte o teor dos pontos da matéria de facto sob impugnação a que o juiz a quo deu a resposta de “não provado”, “por não terem sido juntos os recibos correspondentes a tais valores”:

36. Quanto ao sinistrado M (...), a Autora liquidou, entre fevereiro de 2005 e junho de 2009, a título de incapacidades, o montante de €7.484,04?

37. E a título de pensões, no mesmo período, liquidou ao sinistrado o montante de €22.350,90 ?

38. E até à presente data (instauração da Ação) liquidou a título de assistência médica a quantia de €28.647,54 ?

39. A título de despesas com medicamentos a quantia de €73,43?

40. A título de transportes, a quantia de € 2.019,49?

42. E a título de despesas diversas relacionadas com o sinistro, a quantia de €43,99?

No início da audiência de julgamento, os ilustres mandatários das partes, declararam aceitar determinados factos por acordo, suprimindo outros e relativamente aos pontos 34 a 42 da B.I., declararam que “aceitam que se responda de acordo com os documentos juntos nos autos”.

Ora, a tal declaração, de acordo com a teoria do destinatário consagrada no artigo 236º do Código Civil[2], será de atribuir o sentido, não de que a tais pontos deveria ser dada a resposta de provado (senão, o acordo relativamente a tal resposta teria sido no sentido de aceitarem tais factos por acordo), mas sim de que a tais pontos deveria ser dada uma resposta em conformidade com o teor dos documentos juntos aos autos – ou seja, apenas caso a respetiva matéria se mostrasse confirmada pelos documentos, obteria resposta positiva.

  Ora, relativamente ao sinistrado M (…), encontram-se juntos aos autos unicamente dois recibos comprovativos de que este recebeu da Seguradora aqui Autora a quantia de 6.060,99 € (doc. De fls. 62), a título de pensões e a quantia de 3.689,67 € por despesas de transporte, o que levou a que os pontos 34 e 35, tivessem obtido a resposta de provado. Não tendo a autora procedido à junção de qualquer documento do qual resultasse terem sido pagos quaisquer outros valores àquele sinistrado, as respostas aos pontos sob impugnação teriam de ser necessariamente negativas.

É de indeferir, nesta parte, a pretensão da Apelante.

2. Responsabilidade da Ré ao abrigo do disposto no artigo 509º do CC

A sentença recorrida deu como provados, entre outros, os seguintes factos, que aqui se reproduzem, na parte em que relevam para a decisão das questões aqui em apreço:

1. No exercício da sua atividade a Autora celebrou com J (…) & C Lda. um contrato de seguro do ramo de acidentes de trabalho, sob a modalidade de folha de férias, titulado pela apólice nº 90003259 (cfr. doc. de fls. 28 e 29, aqui dado por reproduzido).

2. No dia 28 de fevereiro de 2005, pelas 16h45, ocorreu um acidente que envolveu dois trabalhadores da “J (…)”: S (…) e M (…).

3. A J (…)” centra a sua atividade nas montagens elétricas e está inserida num Agrupamento Complementar de Empresas que adota a denominação de “ E (...) – (…) A.C.E.”, cujo objeto é a execução de obras em regime de empreitada contínua para a EDP Distribuição Energia, S.A., nas áreas de empreitada AE3BL, AE4BL, AE1CL, AE2CL e AE2LC ou outras que a EDP Distribuição – Energia, SA venha a adjudicar (doravante designada apenas por “ E (...)”) (cfr. doc. de fls. 33 a 38, aqui dado por reproduzido).

(…).

9. No dia 28 de fevereiro de 2005, uma equipa da “J (…)”, constituída por 5 trabalhadores, entre os quais os referidos em 2., encontrava-se a proceder a uma reparação de uma linha de média tensão que tinha caído, em Barrô, Águeda.

10. O grupo de trabalhadores da “J (…)” dirigiu-se ao local da avaria, situado num monte.

11. Lá depararam com uma linha de média tensão quebrada e caída no solo.

12. No intuito de começarem a reparar a avaria na linha de média tensão, os trabalhadores da “J (…)” começaram a preparar os equipamentos e verificaram os condutores de modo a certificarem-se de que não havia tensão na linha caída, e como tal poderiam iniciar o trabalho com segurança.

13. Encostados a esta linha de média tensão caída, encontravam-se dois pinheiros que também tinham tombado, pelo que os trabalhadores da “J (…)” afastaram as linhas com uma corda e com uma serra cortaram os pinheiros.

14. Nessa sequência, os sinistrados subiram para o apoio do posto, de onde a linha tinha caído, mediante a utilização dos cintos de segurança, no intuito de colocarem o reforço (fiador) na linha que estava danificada.

15. O fiador era-lhes entregue por J (…) e a restante equipa que permaneciam no solo, que uniam o fiador que estava partido, para depois ser enviado aos sinistrados que se encontravam no poste.

16. Em cima do poste a função dos sinistrados consistia em apertar o ligador ao fiador.

17. Ao final de uma hora após o início dos trabalhos, sem que nada o fizesse prever, ouviu-se um sinal de tensão, num momento em que os sinistrados ainda se encontravam a apertar o ligador.

18. Ato contínuo M (…) e S (…) foram vítimas de uma descarga elétrica.

19. O local do acidente corresponde ao poste elétrico designado pelo Ramal para o PT AGD77 da Linha de Média Tensão de Águeda-Giesteira, sendo o PT AGD 62, situado na Quinta do Pereiro, o mais próximo do local onde se realizaram os trabalhos pela equipa dos sinistrados.

20. Entre a chegada à Quinta do Pereiro, acesso ao local de intervenção, corte de pinheiros e subida dos dois sinistrados ao topo do poste, utilizando cintos de amarração, decorreu uma hora.

21. Nesse período de tempo a EDP, através do Centro de Condução MT da Beira Litoral, iniciava a reposição da normalidade na linha principal.     

22. No âmbito da reposição da normalidade da linha principal, JA (...), eletricista da EDP-Distribuição, deslocou-se ao seccionador 153300 (Cabeça de Cão) para o fechar.

23. E é no momento em que este eletricista fechou aquele seccionador que se deu a descarga elétrica na linha, que estava a ser reparada pelos sinistrados.

24. Foi a deficiência dos contactos auxiliares do seccionador do PT 62, aquando da manobra de fecho deste seccionador, que conduziu à introdução de tensão na linha.

25. As aberturas e cortes nos seccionadores são operações sempre coordenadas e desenvolvidas pela EDP – Distribuição.

26. É a EDP-Distribuição que inspeciona, faz a manutenção e substitui as facas duplas do seccionador.

27. Após o acidente, o encarregado do grupo de trabalho, João Alegria, ligou imediatamente para o piquete que estava no Posto de Transformação, para que deixasse de haver tensão.

28. O corte e o restabelecimento de tensão nunca são realizados pela “ J (...)”, mas sim pela EDP-Distribuição.

29. É procedimento habitual, no final da execução do trabalho, o encarregado do grupo telefonar para o piquete a indicar que a avaria está reparada e que a tensão nas linhas pode ser retomada.

30. No caso concreto, a equipa da “J (…)” ainda não tinha concluído o trabalho quando a tensão na linha foi retomada.

31. E não tinha recebido qualquer comunicação por parte do piquete da EDP-Distribuição a avisar que a tensão iria ser restabelecida.

32. Foi a descarga elétrica havida, de 15000V, que provocou a morte, por eletrocussão, a S (…)

33. E queimaduras, por eletrização, na mão esquerda e na perna direita de M (…)

34. Os trabalhadores da E (...)/“J (…)”, incluindo as vítimas, antes de iniciarem os trabalhos, não efetuaram a ligação à terra e em curto-circuito dos condutores do ramal para proteção da zona de trabalhos.

35. A equipa do prestador de serviços, onde se incluíam as vítimas, não usou o equipamento de ligação à terra e em curto-circuito dos condutores do ramal para proteção da zona de trabalhos, embora tivesse o mesmo à sua disposição.

36. Ao não estabelecerem a ligação à terra e em curto-circuito a montante e a jusante da zona de trabalhos, os trabalhos foram iniciados com risco de aparecimento de tensões perigosas das mais variadas origens, como bem sabiam os trabalhadores da E (...), incluindo as vítimas.

37. O uso de tal equipamento pela equipa da E (...) e pelas vítimas teria evitado o sinistro.

38. O uso desse equipamento é adequado para prevenir qualquer defeito ou avaria na instalação elétrica que possa originar tensão na rede, evitando que esta se estenda à zona de trabalhos.

39. As vítimas sabiam que as intervenções na rede elétrica têm de prever e prevenir a entrada súbita de tensão na rede, de forma a que a entrada de tensão na rede elétrica, sujeita a descargas com múltiplas origens, seja inócua.

40. Os problemas vários ocorridos na rede elétrica foram súbitos e imprevisíveis.

41. E é com o intuito de os resolver que foi criada e existe uma relação de empreitada contínua entre a EDP – Distribuição – Energia, S.A. e a E (...), ACE.

42. A EDP Distribuição – Energia, S.A., NIPC (...) celebrou com a E (...), ACE contrato de empreitada contínua, do qual faz parte, como anexo, o Manual de Segurança de Prevenção do Risco Elétrico.

43. Na execução das obras o prestador de serviços E (...), ACE, incluindo a J (...), Ldª, obriga-se a cumprir escrupulosamente com os requisitos do Manual de Segurança de Prevenção do Risco Elétrico.

44. O prestador de serviços obrigou-se a intervir na rede elétrica na execução das obras que lhe forem adjudicadas através de pessoas qualificadas, ou seja, pessoas que possuam conhecimentos técnicos ou experiência que lhes permitam intervir na reparação de redes elétricas.

45. Os trabalhadores ao serviço da J (…) & C (…), Ld.ª., na ocasião do sinistro eram pessoas qualificadas, com formação sobre Prevenção do Risco Elétrico com base no Manual de Segurança e pessoas experimentadas na execução de trabalhos na rede elétrica.

46. Antes de iniciarem os trabalhos a equipa da E (...) e as próprias vítimas limitaram-se a verificar a ausência de tensão na rede.

47. Como decorre do Manual de Prevenção do Risco Elétrico, e como era do conhecimento das vítimas e de toda a equipa da E (...), para realização dos trabalhos e segurança não bastava a mera verificação de ausência de tensão.

48. De acordo com o Manual de Prevenção e Segurança, a ligação à terra e em curto-circuito, que deve ser feita imediatamente após a verificação da ausência de tensão, visa:

- manter a instalação sem tensão depois de se ter verificado a ausência de tensão, e

- proteger contra:

       manobras intempestivas que possam pôr a instalação em tensão;

       realimentações provenientes de fontes autónomas;

       tensões indutivas, induzidas residuais e capacitivas;

       descargas atmosféricas.

49. De acordo com o Manual de Prevenção e Segurança as ligações à terra e em curto-circuito devem ser efetuadas o mais próximo possível do local de trabalho, de um e de outro lado da zona de trabalho, e pelo menos uma das ligações às terra e em curto-circuito deve ser visível a partir do local de trabalho.

50. A rede elétrica onde se encontravam a intervir os trabalhadores da E (...) beneficiou de licenças de estabelecimento prévia à construção.

51. Tal rede elétrica foi construída em conformidade com o projeto aprovado e após vistoria obteve licenças de exploração.

52. A referida rede elétrica é alvo de ações de verificação e manutenção regulares pela EDP Distribuição.

53. Tal rede elétrica é vistoriada pelo menos uma vez por ano, tendo assegurado e confirmado tais vistorias as boas condições de exploração da rede elétrica.

(…)


*

A sentença recorrida, considerando não ser de imputar à ré qualquer atividade culposa – “a intervenção na linha elétrica em causa, e concretamente o restabelecimento da tensão na linha, não estavam a seu cargo, não tendo a ré intervindo no contrato de empreitada contínua celebrado com a E (...), tudo se tendo passado com a sociedade EDP – Distribuição, S.A., sujeito jurídico diferente da Ré – e que, a Ré apenas poderia ser responsabilizada a título objetivo, enquanto titular da linha elétrica, factualidade que, de qualquer modo, não teria sido inequivocamente alegada, nos termos do art. 509º do CC, concluiu também esta se encontrar afastada por ter logrado provar que ao tempo de acidente, a instalação causadora do dano, estava de acordo com as regras técnicas em vigor e em perfeito estado de conservação.

Mais considerou o juiz a quo que, ainda que se entendesse que a Ré EDP – Energias de Portugal, S.A. se “confunde” com a EDP – Distribuição, S.A., sempre a sua responsabilidade se encontrava excluída ao abrigo do disposto no art. 570º do CC, pelo facto de as vítimas terem omitido o dever de cuidado a que estavam obrigadas e que teriam evitado o acidente.

Insurge-se a autora apelante contra tal decisão, com base nos seguintes argumentos, que aqui se sintetizam:

- dos pontos 22 a 28, resulta clara a ocorrência do nexo causal entre o comportamento voluntário de um funcionário da EDP Distribuição e a ocorrência do acidente;

- o domínio pleno da rede elétrica pertence à apelada, enquanto detentora da direção efetiva da instalação e condução de energia elétrica –, que se encontrava obrigada a assegurar as respetivas condições de preservação e manutenção, nos termos do art. 509º do CC. A apelada terá de responder “não só pela ação que determinou a ligação da corrente (da sua responsabilidade exclusiva), mesmo que nela tenham tido intervenção acessória do prestador de serviço (contrato existente), que não gorou fornecer aos trabalhadores, os adequados utensílios de segurança e manutenção.

- a preterição das normas de segurança não exclui a responsabilidade da apelada, porquanto a fiscalização dessas normas  de segurança compete à apelada, pelo que a inobservância de tais regras de segurança de um seu prestador de serviços, contratado para levar a cabo uma reparação não é motivo de exclusão da sua responsabilidade, perante terceiros lesados.

Não podemos, contudo, dar razão à apelante, uma vez que, tal como é referido na sentença recorrida, continua a assentar o seu raciocínio no tratamento que dá à Ré/apelada – EDP – Energias de Portugal, S.A., como se esta e a EDP – Distribuição de Energia, S.A. constituíssem uma mesma e única pessoa jurídica.

A Autora instaura a presente ação, alegando, em síntese:

o sinistro em apreço ocorreu quando os trabalhadores/sinistrados se encontravam a executar um trabalho de reparação de uma linha de média tensão, no âmbito de um contrato celebrado entre a E (...) e a EDP – Distribuição de Portugal;

antes de iniciarem os trabalhos, os sinistrados e dois trabalhadores que constituíam o piquete da EDP, certificaram-se de que o manipulo selecionador do Posto de Transformação PT nº62, estava na posição de desligado;

nesse período de tempo, a EDP - Distribuição iniciava a reposição da normalidade na linha principal, sendo as manobras locais eram asseguradas por funcionários desta;

o sinistro veio a ocorrer quando um eletricista da EDP fechou o selecionador 153300, dando-se a descarga elétrica na linha que estava a ser reparada pelos sinistrados e que os atingiu;

desde o início dos trabalhos, o coordenador da equipa não foi contatado por nenhum elemento da EDP a avisar que a tensão havia sido resposta;

foi a deficiência dos contactos auxiliares do selecionador nº 153300, aquando da manobra do fecho deste selecionador, que conduziu à introdução de tensão na linha;

a existência de tal avaria é da responsabilidade da EDP, porquanto as obrigações de inspeção, manutenção e ou substituição das mesmas pertencem ao Grupo EDP;

por outro lado, a entrada de tensão na linha ficou a dever-se a uma ação concreta de um funcionário da EDP.

Ora, face a tal alegação, nem se atinge por que motivo instaura a autora a presente ação contra a EDP – Energias de Portugal, S.A., atribuindo-se tal facto talvez à circunstância de a autora “confundir” a EDP – Energias de Portugal, S.A., com a EDP – Distribuição, o que ressalta desde logo quando, no art. 10º da p.i., alega que o acidente ocorreu no âmbito de um contrato de empreitada decorrente de um contrato celebrado entre a E (...) e a 1ª Ré, quando a contratante não foi esta, mas a EDP – Distribuição de Energia, S.A.[3].

O fundamento da responsabilização da Ré, a causa de pedir da presente ação reside, quer em atos concretamente imputáveis aos funcionário da EDP – Distribuição, S.A. (reposição da tensão na linha sem que tenham avisado a equipa de trabalho em que se inseriam os sinistrados, e por outro lado, no ato de fecho do selecionador levado a cabo por um funcionário da EDP Distribuição), quer nas obrigações que impendem sobre o “Grupo EDP” (é a única vez, no decurso da petição inicial, se faz referência ao “Grupo EDP) de inspeção, manutenção e/ou substituição.

Ou seja, o autor não fundamentou a responsabilidade da ré no facto, só agora invocado em sede de alegações de recurso, de a EDP – Energias de Portugal, S.A., ser a “detentora da direção efetiva da instalação e condução da energia elétrica”, fazendo assentar a sua responsabilidade no disposto no artigo 509º do Código Civil. Como tal, não poderia este tribunal de recurso conhecer de tal causa de pedir não invocada pela autora.

Vigorando, no nosso processo civil, o princípio do dispositivo quanto à formulação de pretensões e quanto à alegação de factos, o exercício da vontade das partes é apenas permitido até determinado momento processual, a partir do qual funciona o princípio da preclusão. Como refere Elisabeth Fernadez, “Facto que não seja de carater oficioso ou que o tribunal não possa conhecer livremente, que não tenha sido objecto de alegação pela parte a quem o mesmo aproveita dentro da fase prevista ou no prazo determinado para o efeito, é facto que se perde para o processo, isto é, facto cuja utilização fica precludida nesse processo[4]”.

De qualquer modo, sempre se dirá, não assistir razão à apelante quando sustenta que a aqui ré – EDP – Energias de Portugal, S.A., – “detém o domínio pleno da rede elétrica, enquanto detentora da direção efetiva da instalação e condução de energia elétrica”, questão que passamos a analisar.

O nº1 do artigo 509º do Código Civil[5] abrange os danos provocados, designadamente, pela distribuição de energia elétrica, cabendo a responsabilidade resultante de tais danos a quem tenha a direção “efetiva da instalação”, abrangendo a empresa que explore aquela distribuição como concessionária.

O “Grupo EDP” (do qual fazem parte, entre outras, atualmente, entre outras, a “EDP – Distribuição de Energia, S.A., a EDP – Gestão de Produção de Energia, S.A., a EDP – Serviço Universal, S.A., a EDP – Soluções Comerciais, S.A., a EDP – Comercialização de Energia, S.A., entre outras), teve origem na antiga EDP – Eletricidade de Portugal, S.A.[6], que, por força da sua desintegração vertical, veio a dar origem a empresas vocacionadas exclusivamente para cada uma das atividades de produção, transporte, distribuição e comercialização de energia elétrica[7].

Atualmente, e pelo DL 29/2006, de 15-02 – que estabelece as bases gerais da organização e funcionamento do sistema elétrico nacional, bem como as bases gerais aplicáveis ao exercício das atividades de produção, transporte, distribuição e comercialização de eletricidade e à organização dos mercados de eletricidade – a atividade de transporte encontra-se confiada à REN – Rede Elétrica Nacional[8], e a atividade de distribuição encontra-se atribuída à EDP – Distribuição de Energia, S.A., mediante a celebração de contratos de concessão.

Como é referido no preâmbulo deste diploma, a distribuição de eletricidade processa-se através da exploração da rede nacional de distribuição, que corresponde à rede em média e alta tensões, e da exploração das redes de distribuição em baixa tensão. A rede nacional de distribuição é explorada mediante uma única concessão do Estado, exercida em exclusivo e em regime de serviço público (ao contrário da atividade de comercialização que foi objeto de liberalização, ficando sujeita apenas a atribuição de licença pela entidade administrativa competente).

De harmonia com o disposto no al. z), do art. 3º do DL 29/2006, o “Operador da rede de distribuição”, é “a pessoa singular ou coletiva que exerce a atividade de distribuição e é responsável, numa área específica, pelo desenvolvimento, exploração e manutenção da rede de distribuição e, quando aplicável, das suas interligações com outras redes, bem como por assegurar a garantia da capacidade da rede a longo prazo”.

A atividade de distribuição de eletricidade é exercida em regime de concessão de serviço público em exclusivo, mediante a exploração da RND – Rede Nacional de Distribuição de Eletricidade em Média e Alta Tensão – e das redes de BT – baixa tensão (nº1 do art. 31º do DL 29/2006.

A rede de distribuição em MT (média tensão) e AT (alta tensão) compreende as subsestações, as linhas de MT e de AT, os postos de seccionamento e de corte e os aparelhos e acessórios ligados à sua exploração (art. 32º do DL 29/2006).

Ora, o Operador da Rede de Distribuição é precisamente a EDP – Distribuição de Energia, S.A., sociedade que tem por objeto a “Distribuição de energia elétrica, bem como a prestação de outros serviços acessórios ou complementares[9]”, através de contrato de concessão outorgado em Fevereiro de 2009.

É ao operador da rede de distribuição que cumpre assegurar a exploração e manutenção da rede de distribuição em condições de segurança, fiabilidade e qualidade de serviço (art. 35º, nº1, al. a), do DL 29/2006).

O Dec. Lei nº 172/2006, de 23.08, que estabelece, entre outras as Bases da Concessão da Rede Nacional Distribuição de Eletricidade em Alta e Média tensões, e em Baixa tensão, considera afetos à concessão, os bens que constituem a rede de média e alta tensão e as interligações, designadamente, entre outras: i) linhas, subestações e postos de seccionamento; ii) instalações afetas ao despacho e à condução da rede de distribuição, incluindo todo o equipamento indispensável ao seu funcionamento (Base VI).

A Base X de tal concessão, faz recair sobre a concessionária a obrigação de manutenção dos bens e meios afetos à concessão[10], e a base XI atribui-lhe a propriedade e ou posse dos bens que integram a concessão[11].

Ou seja, ainda que considerasse que, da matéria dada como provada, se pudesse ter por demonstrada uma relação de causalidade entre o comportamento dos funcionários da EDP Distribuição de Energia, S.A., e o sinistro, a partir do momento em que é esta que detém a propriedade ou posse das linhas, subestações e postos de seccionamento e que é sobre esta que incumbe a obrigação de manutenção e vigilância de todo esse equipamento[12], não há qualquer facto a partir do qual se possa estabelecer a responsabilidade da Ré, EDP – Energias de Portugal, S.A., nem sequer para efeitos do art. 509º do CC.

Com efeito, a EDP – Energias de Portugal, S.A., aqui Ré, apenas tem por objeto a “promoção, dinamização e gestão, de forma direta ou indireta, de empreendimentos e atividades do setor energético, tanto a nível nacional como internacional, com vista ao incremento e aperfeiçoamento do desempenho do conjunto das sociedades do seu grupo[13]”.

A detentora das instalações elétricas em causa, para os efeitos previsto no artigo 509º do CC não é a aqui Ré, mas a EDP Distribuição.

E se duvidas houvesse, elas dissipar-se-iam com a leitura do da Base XXIII, sob a epígrafe, “Responsabilidade Civil”:

1. Para os efeitos do disposto no art. 509º do Código Civil, entende-se que a utilização das instalações integradas na concessão é feita no exclusivo interesse da concessionária.

2. A concessionária é obrigada à contratação de um seguro de responsabilidade civil para cobertura dos danos materiais e corporais causados a terceiros emergentes de facto ocorrido ao abrigo do número anterior, sendo o seu montante mínimo fixado por portaria do ministro (…).

(…)”.

Considerando que a autora não imputa à Ré qualquer comportamento culposo[14], e que, ainda que o tribunal pudesse agora apreciar a eventual responsabilidade objetiva da Ré ao abrigo do disposto no art. 509º do CC, recusando-se a esta a qualidade de “detentora da direção efetiva da instalação e condução da energia elétrica”, excluída fica qualquer hipótese de responsabilização da ora Ré pelo sinistro em causa, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pelo apelante nas suas alegações de recurso.

A apelação será de improceder.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a suportar pela apelante.                        

Coimbra, 11 de Novembro de 2014

Maria João Areias ( Relatora )

Fernando Monteiro

Inês Moura


[1] Tratando-se de decisão proferida após a entrada em vigor do novo código, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, em ação instaurada depois de 1 de Janeiro de 2008, aplicar-se-á o regime de recursos constante do novo código, de acordo com o art. 5º, nº1 do citado diploma – cfr., neste sentido, António Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina 2013, pág. 16.
[2] Tem vindo a ser entendido que o artigo 236º consagra a uma orientação objetivista da interpretação negocial, numa das suas variantes, a chamada teoria da impressão do destinatário, afastando-se da busca da reconstituição da vontade do declarante: “O intérprete não procurará esta vontade, mas o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, retiraria da declaração. Em todo caso, o sentido a buscar na atividade interpretativa da declaração negocial também não é o que corresponde à compreensão do declaratário real. A lei fala no sentido que possa ser deduzido por um “declaratário normal colocado na posição do declaratário real”, abstraindo, pois, da compreensão concreta do destinatário da declaração” - José Alberto Vieira, “Negócio Jurídico, Anotação ao Regime do Código Civil (artigos 217º a 295º)”, Coimbra Editora, pág. 43.
[3] “Erro” que terá pretendido corrigir posteriormente, no decurso da audiência de julgamento, ao requerer a retificação do por si alegado em tal artigo, mas que não altera a leitura que se faz da alegação contida na petição inicial, a qual se refere à EDP – Distribuição, S.A., e à ré como se fossem uma só e a mesma pessoa.
[4] “Princípio do dispositivo e objecto de decisão de recurso”, in “As Recentes Reformas na Acção Executiva e nos Recursos”, Coimbra Editora, 2010, págs. 330 e 331.
[5] Dispõe o nº1 do citado art. 509º do CC: “Aquele que tiver a direção efetiva da instalação destinada à condução ou entrega de energia elétrica ou do gás, e utilizar essa instalação no seu interesse, responde tanto pelo prejuízo que derive da condução ou da entrega da eletricidade ou do gás, como pelos danos resultantes da própria instalação, exceto se ao tempo do acidente esta estiver de acordo com as regras técnicas em vigor e em perfeito estado de conservação”.
[6] Criada pelo DL nº 502/76, de 30 de Junho, e que detinha o exclusivo nacional em todas as fases do ciclo da eletricidade: produção, transporte e distribuição de energia elétrica.
[7] A reestruturação da EDP – Eletricidade de Portugal, S.A. (que tinha, então, por objeto a produção, a aquisição, o transporte, a distribuição e a venda de energia elétrica em Portugal – art. 3º dos seus Estatutos, aprovados pelo DL 7/91, de 08.01) através da cisão em novas sociedades, veio a ser definida pelo DL 131/94, de 19 de Maio, vindo o DL 182/95, de 27 de Julho a definir o sistema de bases da organização do setor elétrico, delimitando os campos de atuação de cada um dos intervenientes, regime este que se encontra atualmente previsto no DL 29/2006, de 15-02.
[8] Em conformidade com a orientação da Diretiva 96/92/CE, de 19.12, que veio impor a separação jurídica entre as empresas responsáveis pela gestão da rede de transporte e as que desenvolvem atividades de produção e distribuição de eletricidade, o DL 198/200, de 24.08, procedeu à autonomização da REN, saindo do Grupo EDP, autonomização que é reafirmada pelo art. 25º do DL 29/2006.
[9] Sociedade com o NIPC (...), conforme cópia da certidão permanente junta aos autos a fls. 206 a 211.
[10] Base X: “A Concessionária deve, durante o prazo de vigência da concessão, manter, a expensas suas, em bom estado de conservação e segurança os bens e meios a ela afetos, efetuando para tanto as reparações, renovações e adaptações necessárias ao bom desempenho do serviço concedido”.
[11] Base XI: “1. A concessionária detém a propriedade ou posse dos bens que integram a concessão até à extinção desta”.
[12] No caso em apreço, até foi dado como provado que “”As aberturas e cortes dos seccionadores são operações sempre coordenadas e desenvolvidas pela EDP Distribuição” e ainda que “É a EDP Distribuição que inspeciona, faz a manutenção e substitui as facas duplas do seccionador” (pontos 25 e 26), pelo que, dúvidas não restarão de que era sobre a EDP Distribuição que incumbiam as obrigações de manutenção e vigilância da linha em causa.
[13] Sociedade com o NIPC 500697256, conforme cópia da certidão permanente junta a fls. 214 a 236.
[14] Como é referido na sentença recorrida, “a intervenção na linha elétrica em causa, e concretamente o restabelecimento da tensão na linha não estavam a seu cargo, não tendo a Ré intervindo no contrato de empreitada contínua celebrado com a E (...), tudo se tendo passado com a sociedade EDP – Distribuição, S.A., sujeito jurídico diferente da Ré”.