Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
62/17.1GBCNF.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRIZIDA MARTINS
Descritores: AMEAÇA AGRAVADA
QUEIXA
NATUREZA PÚBLICA DO PROCEDIMENTO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PENA DE SUBSTITUIÇÃO
Data do Acordão: 05/08/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ARTS. 50.º, 153.º E 155.º DO CP; ARTS. 127.º E 412.º DO CPP
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 50.º, 153.º E 155.º DO CP; ARTS. 127.º E 412.º DO CPP
Sumário: I – Os crimes qualificados ou agravados (tal como os privilegiados) são crimes autónomos, ainda que conformados pelo tipo-base.

II – Não se dizendo que o procedimento criminal depende de queixa, é, lógica e, cremos, inevitavelmente, de concluir que o crime tem natureza de crime público.

III - O crime de ameaça agravada atualmente tem natureza pública.

IV - Na tarefa da avaliação das provas produzidas em audiência, importa dizer que as mesmas provas não têm forçosamente que criar no espírito do julgador uma absoluta certeza dos factos a provar.

V - O que é necessário, é que as mesmas provoquem um grau de probabilidade tão elevado, que se baste, como certeza possível, para as necessidades de vida, de forma a se poder concluir, sem dúvida razoável, que um indivíduo praticou determinados factos.

VI - Para aplicação da pena de substituição [suspensão da execução da pena de prisão] é necessário:

a) Em primeiro lugar, que a pena de suspensão da execução da prisão não coloque irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização das expectativas comunitárias, ou seja, o sentimento de reprovação social do crime ou sentimento jurídico da comunidade.

b) Em segundo lugar, é necessário que o tribunal se convença, face à personalidade do arguido, comportamento global, natureza do crime e sua adequação a essa personalidade, que o facto cometido não está de acordo com essa personalidade e foi simples acidente de percurso, esporádico, e que a ameaça da pena, como medida de reflexos sobre o seu comportamento futuro evitará a repetição de comportamentos delituosos.

Decisão Texto Integral:





Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.



I. Relatório.

1.1. Realizado pertinente contraditório[1], por sentença proferida e depositada na Secretaria do Tribunal supra mencionado, no dia 15 de Maio de 2018 (cfr. fls. 156), o arguido …, entretanto já mais identificado, acabou condenado pela prática, em autoria material, sob a forma consumada, e em concurso efectivo, de dois crimes de ameaça agravada, previstos e punidos através das disposições conjugadas dos art.ºs 153.º, n.º 1, 155.º, n.º 1, al. a), 14.º, n.º 1, e 26.º, todos do Código Penal, nas penas parcelares de 6 (seis) meses de prisão por cada um deles, e a que, em cúmulo jurídico logo operado, nos termos do art.º 77.º, n.ºs 1 e 2, do mesmo diploma, se fez corresponder a pena única de 8 (oito) meses de prisão.

1.2. Inconformado, almejando obter o arquivamento dos autos, por falta de legitimidade do Ministério Público em exercer a acção penal; a revogação do sentenciado por inverificação dos factos que ditaram a sua condenação, ou, concedendo, a aplicação de uma pena de substituição[2], recorre o arguido para este Tribunal da Relação sendo que da motivação através da qual minutou o dissídio, extraiu as conclusões que a seguir se transcrevem:

«I - O crime de Ameaça Agravada tem natureza semi-pública, pelo que o Ministério Público, em conformidade com o disposto no artigo 48.º do CPP não tinha legitimidade para promover o processo-crime, porquanto os ofendidos em cumprimento do artigo 49.º do CPP não exerceram o direito de queixa, devendo por via disso, ser o arguido absolvido da prática dos referidos crimes.

Caso assim não se entenda,

II - O arguido, ora recorrente, ao abrigo do disposto no artigo 412.º n.º 1 e observados os ónus impostos pelo artigo 412.º n.º 3 als. a) e b) e n.º 4, todos do CPP, impugna a matéria de facto dada como provada - pontos 1 a 3 -, a qual, com os fundamentos aduzidos supra, deve ser dada como não provada.

III - Dos depoimentos dos ofendidos … e …, considerados pelo tribunal a quo como “extremamente credíveis” e “coincidentes entre si no essencial”, resultaram incoerências e dúvidas insanáveis, precisamente no que é essencial, portanto, que o tribunal não podia ignorar, incorrendo a sentença recorrida em erro na apreciação das provas, e bem assim concluiu pela formulação de juízos ilógicos e contraditórios, os quais não se coadunam com as regras da experiência comum.

IV - O princípio da livre convicção do juiz constitui regra de apreciação da prova; todavia, para conduzir à condenação, tal prova deve ser plena, pelo que, na decisão de factos incertos, a dúvida determina necessariamente a absolvição, de harmonia com o princípio da presunção de inocência, chave mestra do direito processual penal.

V - Da prova realizada em julgamento resultam dúvidas que não poderiam levar à condenação.

VI - Se o recorrente proferiu a expressão “dou cabo de vós”, repetida pelo ofendido …, essa expressão integraria apenas o crime de ameaça simples, por isso o Ministério Público, dada a alteração não substancial, não teria legitimidade para promover o processo.

VII - A ter existido ameaça, e por referência ao depoimento do ofendido M (...) , considerado tão credível quanto o depoimento do ofendido …, a mesma não consubstanciava um mal futuro (necessário para o preenchimento do tipo).

VIII - O tribunal a quo não poderia por isso, com a certeza que lhe é exigida, decidir pela condenação do arguido, pois, ao fazê-lo preteriu-se do estatuído pelo artigo 32.º n.º 2 da CRP, violando o sentido do princípio da presunção de inocência do arguido e do princípio in dúbio pro reo, o que deve levar à absolvição do recorrente dos crimes pelos quais foi condenado.

Para o caso de assim não se entender e sem prescindir,

IX - No que se refere à determinação da medida da pena aplicada, nomeadamente quanto ao seu modo de execução, a sentença recorrida violou os critérios dos artigos 40.º e 71.º do Cód. Penal, ao sobrevalorizar as circunstâncias agravantes ao ponto de afastar todas a possibilidades de substituição da pena de prisão por outras medidas previstas no Código Penal.

X - O recorrente reúne todas as condições para a execução de eventual medida a cumprir em comunidade, como concluiu a DGRSP.

XI - O esforço que o recorrente tem feito para levar uma vida conforme o direito e o outro rumo que deu à sua vida (até constituiu uma empresa) deve ser valorado em conformidade pelo Tribunal.

XII - O tribunal a quo não poderia atribuir valoração prejudicial ao facto de o arguido ter exercido legalmente o seu direito ao silêncio, o que inquina a sentença recorrida de ilegalidade, por violação do artigo 343.º, n.º 1 do CPP.

XIII - O tribunal a quo, ao optar por uma pena de prisão efectiva violou o disposto no artigo 50.º do CP.

XIV - Face às exigências de prevenção geral e sobretudo especial a nível positivo, a ser aplicada a pena de prisão efectiva, a mesma deverá ser suspensa, eventualmente condicionada ao cumprimento de deveres, uma vez que esta forma de cumprimento realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

XV - Ainda que se decida pelo cumprimento da pena de modo privativo da liberdade, deve a mesma ser substituída pelo cumprimento em regime de permanência na habitação, de acordo com a nova redacção do artigo 43.º do CP, por se encontrarem preenchidos os seus requisitos, e para a qual o arguido dá o seu consentimento.»

1.3. Proferido despacho admitindo o recurso interposto (vd. fls. 146), e fixando o seu regime de subida e efeito, notificado para o efeito, respondeu o Ministério Público sufragando da sua improcedência, atento, em síntese, que a) Os crimes de ameaça agravada ajuizados revestem ambos natureza pública; b) A prova produzida em julgamento foi devidamente valorada e motivada pelo M.mo Juiz a quo; c) A medida da pena é dotada da dosimetria penal necessária e adequada aos factos escrutinados, à reposição da confiança comunitária na norma violada e exigentíssima necessidade de conformar o recorrente a um caminho de mãos dadas com o Direito; d) A decisão recorrida não violou qualquer normativo, designadamente, os invocados pelo recorrente.

1.4. Observadas as formalidades devidas, remeteram-se os autos para este Tribunal da Relação, onde, aquando do momento previsto pelo art.º 416.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer conducente também ao total improvimento do recurso interposto.

No âmbito do subsequente art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, nenhuma resposta foi apresentada a tal parecer.

Aquando do exame preliminar dos autos, porque se não descortinou a emergência de fundamento que obstasse ao prosseguimento do recurso e também porque não vinha requerida a realização de audiência, ordenou-se a recolha dos vistos devidos, o que sucedeu, e sua submissão a conferência.

Dos trabalhos desta emerge a presente apreciação e decisão.


*

II. Fundamentação.

2.1. A Fundamentação de facto constante da sentença sob censura tem o teor seguinte:

«Matéria de facto provada

Da acusação

1. Em data não concretamente apurada de Junho ou Julho de 2017, cerca das 17:00 horas, no largo da igreja de (...) , o arguido, dirigindo-se aos ofendidos … e …, proferiu a seguinte expressão: “Posso perder € 5.000,00, mas mato os dois quando isto acabar”, referindo-se aos presentes autos, os quais, tiveram origem numa queixa apresentada pelo ofendido … e em que o ofendido … é testemunha.

2. Ao agir da forma descrita, e ao proferir a expressão supra referida nas circunstâncias em que o fez, e no tom sério e credível em que a proferiu, anunciando a prática de 2 crimes de homicídio, o arguido sabia que a sua conduta era adequada a fazer os visados e ofendidos a sentir receio pela sua integridade física e a perturbá-los na sua vida, o que quis, representou e conseguiu.

3. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Quanto aos antecedentes criminais do arguido:

4. O arguido José foi condenado, no âmbito do Proc. n.º 134/09.6GARSD, por decisão de 3/8/2009, transitada em julgado a 27/8/2009, pela prática, a 1/8/2009, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, em pena de 50 dias de multa, à taxa diária de 6€ e em pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados de 4 meses, penas essas já extintas pelo respectivo cumprimento.

5. Foi condenado, no âmbito do Proc. n.º 890/09.1GAMCN, por decisão de 14/6/2011, transitada em julgado a 7/7/2011, pela prática a 3/10/2009, de um crime de simulação de crime, em pena de 60 dias de multa, à taxa diária de 6€, já extinta pelo cumprimento.

6. Foi condenado, no âmbito do Proc. n.º 76/12.8GARSD, por decisão de 4/3/2013, transitada em julgado a 29/4/2013, pela prática, a 18/4/2012, de um crime de furto simples, em pena de 290 dias de multa, à taxa diária de 6€, já extinta pelo pagamento.

7. Foi condenado, no âmbito do Proc. n.º 102/13.3GTBRG, por decisão de 20/5/2013, transitada em julgado a 30/3/2016, pela prática, a 19/5/2013, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, em pena de 5 meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano e sujeita à condição de entregar 400€ aos bombeiros voluntários de Guimarães, no prazo de 8 meses, e ainda em pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo prazo de 12 meses.

8. Foi condenado, no âmbito do Proc. n.º 120/16.0GBPNF, por decisão de 10/3/2016, transitada em julgado a 11/9/2017, pela prática, a 18/2/2016, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, em pena de prisão de 1 ano, suspensa na sua execução por igual período de tempo e sujeita à condição de entregar aos Bombeiros Voluntários de Penafiel a quantia de 400€, e ainda em pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo prazo de 9 meses;

9. Foi condenado, no âmbito do Proc. n.º 18/14.6GARSD, por decisão de 11/2/2014, transitada em julgado a 13/3/2014, pela prática, a 3/2/2014, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, em pena de 110 dias de multa, à taxa diária de 6€ e em pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, pelo prazo de 6 meses, penas já extintas pelo cumprimento.

10. Foi condenado, no âmbito do Proc. n.º 157/14.3GACNF, por decisão de 15/7/2014, transitada em julgado a 30/9/2014, pela prática, a 10/7/2010, de um crime de exercício do acto de pesca lúdica, através de meios e processos não autorizados, em pena de 1 dia de multa, à taxa diária de 10€ e 15 dias de prisão, substituídos por 15 dias de multa, à taxa diária de 5€, penas já extintas pelo respectivo cumprimento.

11. Foi condenado, no âmbito do Proc. n.º 29/14.1GTVRL, por decisão de 21/5/2014, transitada em julgado a 4/7/2014, pela prática, a 9/5/2014, de um crime de desobediência, em pena de 4 meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano, e condicionada ao pagamento, no prazo de 6 meses a contar do trânsito, de 500€ à ANSR e ainda em pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo prazo de 12 meses.

12. Foi condenado, no âmbito do Proc. n.º 145/14.0GARSD, por decisão de 7/1/2016, transitada em julgado a 15/4/2016, pela prática, a 6/7/2014, de um crime de ofensa à integridade física simples, em pena de 14 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo e sujeita a regime de prova e à condição do arguido entregar à APAV, no período da suspensão, a quantia de 500€.

13. Foi condenado, no âmbito do Proc. n.º 143/14.3GARSD, por decisão de 15/3/2017, transitada em julgado a 2/5/2017, pela prática, a 6/2016, de um crime de injúria agravada, 4 crimes de ameaça agravada e 1 crime de desobediência, em pena de prisão de 23 meses, suspensa na sua execução por igual período de tempo e com sujeição a regras de conduta.

14. Foi condenado, no âmbito do Proc. n.º 215/14.4GARSD, por decisão de 6/4/2017, transitada em julgado a 15/5/2017, pela prática, a 4/9/2014, de um crime de difamação agravada e um crime de ameaça agravada, em pena única de 15 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo e sujeita a regime de prova.

15. Foi condenado, no âmbito do Proc. n.º 169/15.0GARSD, por decisão de 19/6/2017, transitada em julgado a 25/9/2017, pela prática, a 27/7/2015, de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, em pena de 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo e sujeita a regime de prova.

Quanto às condições sócio-económicas do arguido:

16. O arguido reside em (...) , concelho de (...) , juntamente com a companheira e uma filha de ambos, de 1 ano de idade, numa habitação arrendada, com condições razoáveis para suportar o agregado.

17. O arguido integrava o agregado familiar constituído pelos progenitores e três irmãos.

18. O pai trabalhava na construção civil, como encarregado na empresa de construção civil “…” e a mãe era doméstica.

19. Segundo o arguido e a progenitora, a dinâmica familiar deste agregado era gratificante e a situação económica favorável, capaz de suportar as despesas básicas que sobre este agregado recaíam, sem grandes dificuldades.

20. Apesar de frequentar o 9.º ano, apenas completou o 8.º ano de escolaridade, registando três retenções no primeiro ciclo, que segundo a avaliação da progenitora se ficaram a dever a problemas de audição detectados tardiamente.

21. Após detecção do problema, passou a usar aparelho auditivo, mantendo-o até aos dias de hoje.

22. Abandonou a escola aos 17 anos, devido a dificuldades e desinteresse pelas actividades lectivas, passando a executar trabalhos indiferenciados esporádicos, sempre que solicitado.

23. Aos 18 anos, iniciou actividade profissional como empregado de mesa, na Inglaterra, regressando a Portugal apenas nos períodos de férias.

24. Contraiu matrimónio aos 19 anos, do qual tem um filho, actualmente com 17 anos de idade, com quem não mantém relação, e que se encontra com a mãe em Inglaterra.

25. O cônjuge passa a residir com o arguido em Inglaterra, a trabalhar como empregada de limpeza num hotel.

26. Residiam numa habitação arrendada em (...) , sendo a situação económica e familiar avaliada pelo arguido como bastante gratificante, uma vez que ambos trabalhavam.

27. Ao fim de 11 anos de casamento, segundo o arguido, este estabeleceu novo relacionamento e o casal separou-se.

28. Dessa relação nasceram dois filhos, actualmente com 5 anos e 3 anos e meio, a residir com a progenitora com os quais refere manter boa relação.

29. Na sequência da ruptura do casamento, regressa a Portugal, passando a estar desempregado, sem objectivos de vida.

30. Nesta altura, por volta dos 30 anos, entra em processo de desorganização, passando a consumir abusivamente bebidas alcoólicas, levando-o a desocupação e período de desemprego, situação em que se encontrava à data dos factos descritos na acusação.

31. Há cerca de 4 anos, conheceu a actual companheira e co-arguida, com quem passou a coabitar há cerca de 3 anos.

32. Em Janeiro de 2016, o arguido obteve colocação laboral na construção civil, na Suíça, tendo o casal emigrado, por um período de 6 meses.

33. A companheira, devido à barreira linguística (alemão), não conseguiu colocação laboral, mantendo-se neste período desempregada, ocupando-se da gestão das lides domésticas.

34. O arguido refere que nesse período auferia cerca de 5000€ e que as despesas rondariam o valor de 2500€, referentes à renda da casa e outras despesas básicas, como electricidade e alimentação.

35. Após este período e após término do contrato de trabalho, sem renovação do mesmo, regressam a Portugal, passando o agregado familiar a residir com a mãe do arguido, reformada/viúva, em …- (...) , no concelho de (...) .

36. Devido ao desemprego de ambos, contaram com o apoio emocional e monetário da mãe do arguido para suportar as despesas básicas mensais.

37. Após este período de desemprego, no final de 2017, decidem criar a própria empresa, no ramo da agricultura e construção civil, denominada “…”, com sede em (...) .

38. A empresa tem como principal actividade a construção civil, tendo como actividade secundária, trabalhos agrícolas/florestais.

39. O casal divide a gestão da empresa, afirmando ter afectos a esta empresa, cerca de 10 funcionários.

40. Refere ter lucros variáveis, apontando o valor de 2500€/mensais.

41. Foram referidas despesas no valor de 295€, referentes a renda da casa no valor de 200€ e 95€ de outras despesas como electricidade e gás.

42. À data de elaboração do relatório social, o arguido encontrava-se a cumprir pena de prisão em regime de permanência na habitação, desde 7/2/2018, com termo previsto para 7/4/2018.

43. O seu quotidiano é organizado em função da gestão da empresa, assumindo a parte dos orçamentos e facturação, uma vez que está confinado à habitação.

44. A companheira fiscaliza as obras e os funcionários e quando necessário executa tarefas na actividade agrícola/florestal.

45. O arguido encarrega-se das tarefas domésticas e dos cuidados à filha, de um ano de idade.

46. O arguido assume que adoptou, no passado, um estilo de vida desestruturado, sendo sua intenção reorganizar-se em termos pessoais e profissionais, estando a reunir esforços no sentido de inverter esta trajectória, afirmando-se disponível para colaborar com o sistema de justiça e esforçando-se por manter actividade laboral lícita.

47. O arguido reconhece a ilicitude dos factos pelos quais está acusado, bem como a existência de vítimas e danos.

Matéria de facto não provada

Discutida a causa, não resulta provado que:

48. Os factos tenham ocorrido concretamente no dia 30 de Julho de 2017.


*

Ao demais não se responde por se considerar conclusivo, irrelevante, ou matéria de Direito.

Motivação da decisão de facto

A convicção do Tribunal quanto à factualidade considerada provada radicou na análise crítica, concatenada e ponderada da prova produzida em julgamento, apreciada segundo as regras da experiência comum e o princípio da livre convicção do julgador (art.º 127.º do Código de Processo Penal), mais concretamente, e uma vez que o arguido não quis prestar declarações quanto aos factos, na análise dos depoimentos das testemunhas.

Em suma, as duas testemunhas e ofendidos nos presentes autos tiveram depoimentos que o Tribunal reputou de extremamente credíveis, porquanto foram escorreitos, claros, expressos de forma calma e detalhados e coincidentes entre si, no essencial.

Disse o ofendido … que por ocasião de Junho/Julho de 2017, por volta das 17h, no adro da Igreja, o arguido, dirigindo-se a ele e ao ofendido …, por saber que o primeiro tinha apresentado queixa contra ele (da qual depois veio desistir), lhe disse que podia até perder 5000€ mas dava cabo dos dois quando isto (referindo-se aos presentes autos) acabasse.

Ameaça que levou a sério.

Referiu ainda uma outra situação, em que o arguido passou por eles de carro e fez um gesto de cariz intimidatório, indicando que lhes ia bater.

Também a testemunha … começou por relatar o episódio que deu origem à queixa: o arguido deu um “lambão bem assente” ao ofendido … e rasgou os papéis que este trazia na mão. A testemunha ordenou-lhe que saísse do seu terreno.

Depois, no Verão de 2017, da parte da tarde, no adro da Igreja de (...) , disse que não se importava de perder 5000€ mas matava-os.

Associou tal expressão ao facto do ofendido … ter apresentado queixa por causa da agressão.

Disse que ainda hoje está assustado com o sucedido.

Referiu igualmente a situação em que o arguido fez o gesto mencionado pelo ….

Foi ainda ouvida uma testemunha arrolada pelo arguido, … (irmão do ofendido …) que procurou atingir a credibilidade dos ofendidos, afirmando que o que o … quer é dinheiro. Para consubstanciar tal afirmação, contou ao Tribunal uma conversa entre os ofendidos, por si escutada, à porta do café, já em 2018, no decurso da qual um deles terá dito “já que não temos trabalho, vamos ver se ele nos dá dinheiro para o deixarmos em paz”.

Ora, mesmo que se admita que os ofendidos queiram receber dinheiro do arguido, percebeu-se do depoimento do ofendido … que a “bofetada” que lhe foi desferida pelo arguido estava relacionada com diferendos laborais entre ambos.

Crê-se assim que tais somas monetárias, a serem pretendidas, terão a ver com questões laborais e não propriamente com o processo-crime.

Senão, vejamos: os ofendidos não demonstraram particular interesse ou empenho nos presentes autos, não se constituíram assistentes, nem deduziram pedido de indemnização civil. Muito antes pelo contrário, o ofendido … até desistiu da queixa, na parte em que o podia fazer.

Portanto, não há qualquer indício de que os arguidos pretendam imputar falsamente factos ao arguido com o objectivo de extorquirem deste quantias às quais de outro modo não teriam direito.

Se assim fosse, teriam certamente exibido outra postura processual.

Pelo que temos vindo a expor, ao Tribunal não subsistem dúvidas de que a versão dos ofendidos corresponde à realidade.

Os factos atinentes ao conhecimento e vontade com que o arguido actuou, bem como relativos à sua consciência quanto à ilicitude da sua conduta foram extraídos dos factos objetivos, analisados à luz das regras da lógica e da experiência comum, atentas as circunstâncias do caso. Com efeito, quem diz a outra pessoa que a vai “matar” “quando isto acabar”, sabe que tal expressão, de acordo com o seu significado na linguagem e entendimento comum, é abstractamente idónea a provocar-lhe medo. Sabia também o arguido que tal conduta lhe está penalmente vedada, tanto mais que estamos no domínio do apodado “direito penal de justiça”, sendo do conhecimento geral da comunidade a proibição e punição de tal conduta.

Para prova dos antecedentes criminais do arguido, o Tribunal teve em conta o CRC do arguido junto aos autos.

No que às condições económicas e pessoais dos arguidos diz respeito, o Tribunal valorou o relatório social junto aos autos.

O único facto não provado resulta do facto de nenhum dos ofendidos ter conseguido situar com precisão, no tempo, os factos.»

2.2. Delimitação do objecto do recurso.

Dispõe o art.º 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

Nesta senda, constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido através das conclusões formuladas na motivação, as quais delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar[3], sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso[4].

In casu, à míngua de questões desta natureza, atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência do recorrente com a decisão impugnada, as questões decidendas consistem, por isso, em:

i) Definirmos se o crime por cuja dupla prática o arguido se viu condenado assume natureza semi-pública e, nessa perspectiva, por falta do exercício do direito de queixa pelos ofendidos, os autos devem ser arquivados.

ii) Apurarmos se a matéria de facto se mostra indevidamente apreciada nos termos sobreditos, determinando a sua reversão o eximir da responsabilidade penal imposta ao recorrente (quer por inverificação dos elementos típicos exigíveis, quer por, concedendo, estarmos perante factos meramente integradores do tipo do art.º 153.º do Código Penal, ilícito este de natureza semi-pública e relativamente ao qual não foi exercitado o devido direito de queixa).

iii) Ponderarmos se a manter-se a decretada condenação do arguido, sempre a mesma justifica o recurso a uma pena de substituição [própria – de suspensão de execução da pena de prisão – ou imprópria – regime de permanência na habitação (cfr. supra nota 1 sobre a sua perspectivação também coo mera forma distinta de execução da pena de prisão) -].

Vejamos, então:

2.3. Como primeira questão, por apelo ao estatuído nos art.ºs 48.º e 49.º, ambos do Código de Processo Penal, bem como arrimado ao sufragado no Ac. do TRP, de 13 de Novembro de 2013, sustenta o recorrente que os crimes ajuizados assumem natureza semi-pública, donde que por falta do tempestivo exercício do direito de queixa pelos lesados, careceria o Ministério Público de legitimidade para deduzir a acusação formulada, impondo-se, consequentemente, o arquivamento dos autos.

A questão colocada não mereceu apreciação unânime. Todavia, tem entretanto assumido entendimento maioritário, a que aderimos. Exemplificativo, o vertido no Ac. do TRP[5], em cuja argumentação nos revemos, quando escreveu:

«(...) Tem suscitado alguma controvérsia na jurisprudência a questão da natureza do crime de ameaça agravado.

Crime público ou semi-público? Para que se desencadeie procedimento criminal pela prática desse crime, é ou não necessária a apresentação de queixa?

É bem sabido que nos crimes de natureza semi-pública e/ou de natureza particular, o tempestivo exercício do direito de queixa pelo respectivo titular constitui uma verdadeira condição de legitimação do Ministério para promover o processo, instaurando o inquérito e assim iniciando a investigação relativa aos factos que lhe foram transmitidos, sem prejuízo dos casos excepcionais legalmente previstos.

Iniciado procedimento criminal, se o titular desistir da queixa que o desencadeou, tal procedimento não pode prosseguir porque o Ministério Público deixa de ter legitimidade para tanto.

Como saber qual a natureza do crime em causa?

Muito simplesmente, verificando se a lei exige que, para esse efeito (para que haja procedimento criminal), o respectivo titular apresente queixa (para os crimes semi-públicos) ou apresente queixa e formule acusação particular (para os crimes particulares).

Não dizendo a lei uma coisa nem outra, o crime é público.

É isso mesmo que ensina o Professor Germano Marques da Silva no seu “Curso de Processo Penal”, I, Verbo, 6.ª edição, p. 271:

“Há, assim, crimes em que a lei nada diz quanto ao procedimento criminal - são os que a doutrina denomina por crimes públicos -, noutros diz que depende de queixa – e que a doutrina denomina por crimes semipúblicos ou quase públicos -, e ainda noutros diz que o procedimento depende de acusação – são os chamados crimes particulares.

Em termos práticos, há que ver se a norma penal estabelece algo sobre a exigência de queixa ou de acusação particular. Se nada estabelecer o crime é público e, consequentemente, o Ministério Público tem legitimidade quanto a esse crime para promover livremente o procedimento”.

Como, facilmente, se pode verificar pelos tipos legais do Código Penal, a técnica legislativa é sempre a mesma: pretendendo-se consagrar a natureza semi-pública de um crime, imediatamente a seguir à definição do ilícito típico, estabelece-se que “o procedimento criminal depende de queixa”. Quando se quer conferir essa natureza a um conjunto de crimes (que, fundamentalmente, protegem o mesmo bem jurídico), o capítulo em que estão agrupados encerra com a disposição em que se estabelece quais deles exigem queixa para que se proceda criminalmente contra o agente desses crimes (é o caso, entre outros, do artigo 188.º do Código Penal).

Vejamos, então, o que se passa com o crime de ameaça.

Na versão primitiva do Código Penal (de 1982), era no artigo 155.º que estava tipificado o crime de ameaça:


Artigo 155.º

(Ameaça)


1. Quem ameaçar outrem com a prática de um crime, provocando-lhe receio, medo ou inquietação, ou de modo a prejudicar a sua liberdade de determinação, será punido com prisão até 1 ano ou multa até 100 dias.

2. No caso de se tratar de ameaça com a prática de crime a que corresponda pena de prisão superior a 3 anos, poderá a prisão elevar-se até 2 anos e a multa até 180 dias.

3. O procedimento criminal depende de queixa.

Constata-se que, no n.º 1, estava descrito o tipo base, no n.º 2, o tipo agravado e no n.º 3 a exigência de queixa para o respectivo procedimento criminal.

Era, pois, inequívoca a natureza semi-pública, quer do crime de ameaça simples, quer da ameaça agravada (agravação que resultava, apenas, da gravidade do crime com que o agente ameaçava o destinatário da ameaça).

Com a primeira revisão do Código Penal (operada pelo Dec. Lei n.º 48/95, de 15 de Março), o crime de ameaça passou a estar assim descrito no artigo 153.º:


Artigo 153.º

(Ameaça)


1. Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.

2. Se a ameaça for com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.

3. O procedimento criminal depende de queixa.

As alterações introduzidas verificaram-se na definição do tipo legal (…), tendo-se mantido a natureza de crime semi-público, quer a ameaça simples, quer a agravada.

Por último, com a Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, novas alterações foram introduzidas, ficando o artigo 153.º com a seguinte redacção:


Artigo 153.º

(Ameaça)


1. Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.

2. O procedimento criminal depende de queixa.

Como é fácil de constatar, o artigo 153.º passou a prever e punir, apenas, o crime de ameaça simples e a manter a sua natureza semi-pública.

O crime de ameaça agravado passou a estar tipificado no artigo 155.º, nos seguintes termos:


Artigo 155.º

(Agravação)


1. Quando os factos previstos nos artigos 153.º e 154.º forem realizados:

a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos; ou

b) Contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez;

c) Contra uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º, no exercício das suas funções ou por causa delas;

d) Por funcionário com grave abuso de autoridade;

O agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, no caso do artigo 153.º, e com pena de prisão de um a cinco anos, no caso do n.º 1 do artigo 154.

2. As mesmas penas são aplicadas se, por força de ameaça ou da coacção, a vítima ou a pessoa sobre a qual o mal deve recair se suicidar ou tentar suicidar-se.

Não se dizendo que o procedimento criminal depende de queixa, é, lógica e, cremos, inevitavelmente, de concluir que o crime de ameaça agravado passou a ser um crime público.

Conclusão que, no entanto, é rejeitada por uma corrente jurisprudencial (na qual se insere, entre outros, o acórdão desta Relação de 13.11.2013, Des. José Piedade, acessível em www.dgsi.pt) que defende que se mantém inalterada a natureza semi-pública do crime de ameaça agravado, pois que a revisão de 2007 limitou-se “a aglutinar no art.º 155.º as circunstâncias agravantes dos crimes de ameaça e coacção”. Tratar-se-ia, apenas, de uma diferente arrumação sistemática das circunstâncias agravantes da ameaça.

São, basicamente, dois os argumentos esgrimidos na sustentação desta tese:

- não é defensável que o art.º 155.º constitua um tipo autónomo relativamente à previsão típica do crime de ameaça do art.º 153.º; a previsão que contém a descrição da conduta ilícita, dolosa, tipificada como crime, está no artigo 153.º, acrescentando o artigo 155.º circunstâncias que representam uma agravação do limite máximo da pena;

- o elemento racional ou teleológico, também, aponta no sentido da natureza semi-pública: a razão de ser da distinção entre crimes públicos, semi-públicos e particulares situa-se na graduação da respectiva gravidade, tendo-se em conta os interesses jurídicos violados e a necessidade de ordem pública e colectiva em os proteger; com o crime de ameaça protege-se a liberdade de decisão e de acção e, reflexamente, a integridade psíquica da pessoa, nas suas componentes do direito à tranquilidade e segurança, que são bens integrantes da esfera estritamente individual da pessoa ameaçada (ofendida), inexistindo – mesmo quando estes se mostrem violados sob a forma agravada – razões de ordem pública e colectiva que imponham ao ofendido o início ou continuação do procedimento penal, quando este o não queira.

Ensina o Professor Figueiredo Dias - “Direito Penal - Parte Geral”, Tomo I, Coimbra Editora, 2004, 295 - que na descrição dos comportamentos típicos e formas de lesão ou colocação em perigo de bens jurídicos, o legislador faz uso de técnicas que resultam na criação de “figuras típicas de estrutura especial” como acontece quando, “partindo do crime fundamental, acrescenta-lhe elementos, respeitantes à ilicitude ou/e à culpa, que agravam (crimes qualificados) ou atenuam (crimes privilegiados) a pena prevista no crime fundamental”.

Assim acontece com a generalidade dos crimes tipificados no Código Penal.

Umas vezes, é no próprio artigo em que está descrito o crime base ou matricial que são enunciados esses elementos que qualificam ou privilegiam os crimes (assim sucede, entre muitos outros, nos artigos 205.º, 210.º, 223.º, 225.º e, até à revisão de 2007, com o crime de ameaça); outras vezes, essas circunstâncias qualificadoras ou privilegiadoras estão previstas em disposição legal autónoma (cfr., entre muitos outros, os artigos 132.º, 133.º, 204.º, 213.º, 218.º e agora artigo 155.º relativamente ao crime de ameaça).

Em qualquer caso, os crimes qualificados ou agravados (tal como os privilegiados) são crimes autónomos, ainda que conformados pelo tipo-base.

São crimes derivados, mas autónomos face ao crime fundamental.

Se assim não fosse, não podiam considerar-se crimes autónomos os crimes de homicídio qualificado, de furto qualificado, de roubo agravado, etc., etc.

Quer isto dizer que o crime de ameaça agravado era um crime autónomo antes da revisão de 2007 e, obviamente, continuou a sê-lo depois dessa data.

Por isso, com todo o respeito devido, o primeiro dos referidos argumentos é, manifestamente, improcedente.

Mas cuidada ponderação merece o argumento teleológico que, para a referida tese jurisprudencial, apontaria no sentido da manutenção da natureza semi-pública do crime de ameaça agravado.

O jurista que interpreta uma disposição normativa há-de ter sempre em vista o escopo da lei, ou seja, o resultado prático que com ela se almeja.

É a isso que se chama a “teleologia da norma” ou “ratio legis”, o fundamento racional objectivo da norma, factor hermenêutico geralmente considerado decisivo na determinação do sentido da norma.

Se a lei é um ordenamento de relações que visa satisfazer certas necessidades, deve interpretar-se no sentido que melhor responda à consecução do resultado que quer e, portanto, em toda a plenitude que assegure tal tutela.

Para se determinar essa finalidade prática da norma, é preciso atender às relações da vida (às exigências económico-sociais que delas brotam), para cuja regulamentação a norma foi criada.

É inteiramente certo que a gravidade do crime é factor que está na base da distinção entre crimes públicos (em que o Ministério Público desencadeia, oficiosamente, o procedimento criminal), semi-públicos (a legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal depende de uma queixa do ofendido ou de alguém que, legitimamente, o substitua) e particulares (o exercício da acção penal pelo Ministério Público depende de queixa e de acusação particular).

No entanto, não é, apenas, a graduação da gravidade dos crimes que fundamenta tal distinção.

Se assim fosse, não se compreenderia que, por exemplo, o crime de violação (punível com prisão de 3 a 10 anos) tenha natureza semi-pública e o crime de devassa por meio de informática do artigo 193.º do Código Penal (punível com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias) seja um crime público.

A qualidade do agente passivo do crime também justifica que, em muitos casos, se atribua natureza pública aos crimes.

É o que acontece, por exemplo, com a ofensa à integridade física simples em relação ao qual o procedimento criminal depende de queixa, “salvo quando a ofensa seja cometido contra agentes das forças e serviços de segurança, no exercício de funções ou por causa delas”.

Se um magistrado, um deputado, um professor, um advogado, um árbitro desportivo, etc., quando no exercício de funções ou por causa delas, são vítimas de uma ameaça, há um interesse público (que transcende o interesse individual) que reclama uma tutela penal reforçada e justifica que se inicie e prossiga o respectivo procedimento criminal, mesmo contra a vontade do ameaçado.

Como decorre da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 98/10 (que esteve na origem da revisão de 2007 do Código Penal), houve a clara intensão de aproximar o crime de ameaça agravado ao crime de coacção (que sempre foi um crime público) e essa aproximação verifica-se, não só ao nível das circunstâncias agravantes, mas também quanto à natureza pública do crime.»

Pelas razões apontadas, entendemos que o crime de ameaça agravada atualmente tem natureza pública. E esta tem sido a posição jurisprudencial dominante, realçando-se, entre outros, Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 2/3/2011 (proc. n.º 550/09.3GCAVR.C1) e de 30/3/2011 (proc. n.º 1596/08.4PBAVR.C1 e n.º 400/09.0PBAVR.C1), do Tribunal da Relação de Lisboa de 13/10/2010, (processo n.º 36/09.6PBSRQ.L1-3), do Tribunal da Relação do Porto de 27/4/2011 (proc. n.º 53/09.6GBVNF.P1), de 1/7/2009 (proc. n.º 968/07.6PBVLG.P1), de 15/9/2010 (proc. n.º 354/10.0PBVLG.P1), de 29/9/2010 (proc. n.º 162/08.9GDGDM.P1) e de 17/2/2016 (proc. n.º 509/12.3GBAMT.P1), do Tribunal da Relação de Guimarães de 15/11/2010 (proc. n.º 343/09.8GBGMR.G1) e de 12/1/2015 (proc. n.º 59/13.OGVCT.G1) e do Tribunal da Relação de Évora, de 12/11/2009 (proc. n.º 2140/08.9PAPTM.E1), de 7/4/2015 (proc. n.º 517/12.4PAOLH.E1) e de 14/10/2015 (proc. n.º 2057/12.2TAFAR.E1) [todos em www.dgsi.pt].

(...).»

Ora, assumindo então cada um dos crimes imutados ao arguido natureza pública, bem se alcança do infundado da primeira pretensão que colocou, urgindo prosseguir-se.

2.4. E, questão a ponderar agora, a de ajuizarmos se foi incorrectamente julgada a matéria de facto inserta nos itens provados n.ºs 1 a 3 da sentença impugnada, determinando tal reversão o eximir da responsabilidade penal imposta ao recorrente (quer por inverificação dos exigíveis elementos típicos do art.º 155.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, quer por, concedendo, estarmos perante factos meramente integradores do tipo do art.º 153.º do Código Penal, ilícito este de natureza semi-pública e relativamente ao qual não foi exercitado o competente direito de queixa pelos lesados).

Quid iuris?

No intuito de reverter a matéria de facto dada como provada e/ou não provada, um recorrente pode socorrer-se da sua impugnação a coberto dos vícios do art.º 410.º do Código de Processo Penal, ou pode peticionar a sua reapreciação de acordo com o estatuído no art.º 412.º, n.º 3, do mesmo diploma adjectivo, no que se convencionou chamar a impugnação ampla da matéria de facto.

Trata-se, com efeito, de duas formas estruturalmente distintas.

No caso vertente, vista a motivação e conclusões daí extraídas pela peça recursiva, ater-nos-emos apenas a esta segunda modalidade, porquanto é nos seus termos que o mesmo ensaia reverter os pontos provados sob os itens correspectivos n.ºs 1 a 3 da sentença recorrida.

O erro de julgamento, consagrado no citado art.º 412.º, n.º 3, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1.ª instância, havendo que a ouvir em 2.ª instância.

Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão – como sucederia na primeira modalidade referida -, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art.º 412.º do Código de Processo Penal. Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o art.º 412.º, n.º 3:

“3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a)- Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b)- As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c)- As provas que devem ser renovadas.”

A apontada especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.

Além disso, o n.º 4, do citado art.º 412.º contempla o seguinte:

“4. Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”

Lendo-se a motivação e conclusões do recorrente, fora de dúvida que o recorrente situa aí a sua discordância em relação à matéria de facto no âmbito do erro de julgamento, já que apela à reapreciação da prova gravada em audiência, no que concerne aos depoimentos das testemunhas … e ….

Desenvolvendo um pouco mais o que vínhamos referindo, urge acrescentar que, como mencionado, pretendendo o recorrente impugnar a matéria de facto, no que concerne ao erro de julgamento, há-de cumprir o ónus de impugnação especificada imposto no art.º 412.º, n.º s 3 e 4, do Código de Processo Penal (redacção da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto), de indicação pontual, um por um, dos concretos pontos de facto que reputa incorrectamente provados e não provados e de alusão expressa às concretas provas que impelem a uma solução diversificada da recorrida e às provas que devem ser renovadas - als. a), b) e c) do n.º 3 -, sendo certo que, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas als. b) e c) fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação (n.º 4). A especificação dos «concretos pontos de facto» só se mostra cumprida com a indicação expressa do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que o recorrente considera incorrectamente julgado, sendo insuficiente, tanto a alusão a todos ou parte dos factos compreendidos em determinados números ou itens da sentença e/ou da acusação, como a referência vaga e imprecisa da matéria de facto que se pretende seja reapreciada pelo Tribunal da Relação. Como todos sabem, uma vez que o tribunal de recurso não vai rever a causa, mas apenas pronunciar-se sobre os concretos pontos impugnados, é absolutamente necessário que o recorrente nesta especificação seja claro e completo, sem esquecer que, nesta especificação, serão totalmente inconsequentes considerações genéricas de inconformismo sobre a decisão. Tenhamos presente, neste sentido, o Ac. do STJ de 24-10-2002, proferido no Processo n.º 2124/02, em que pode ser lido o seguinte: “(…) o labor do tribunal de 2.ª Instância num recurso de matéria de facto não é uma indiscriminada expedição destinada a repetir toda a prova (por leitura e/ou audição), mas sim um trabalho de reexame da apreciação da prova (e eventualmente a partir dos) nos pontos incorrectamente julgados, segundo o recorrente, e a partir das provas que, no mesmo entender, impõem decisão diversa da recorrida – art.º 412.º, n.º 3, als. a) e b) do C.P.P. e levam à transcrição (n.º 4 do art.º 412.º do C.P.P.).

Se o recorrente não cumpre esses deveres, não é exigível ao Tribunal Superior que se lhe substitua e tudo reexamine, quando o que lhe é pedido é que sindique erros de julgamento que lhe sejam devidamente apontados com referência à prova e respectivos suportes”.

Mais, como se observa no Acórdão do mesmo Tribunal, de 26-01-2000, publicado na Base de Dados da DGSI (www.dgsi.pt) sob o n.º SJ200001260007483: “Não são os sujeitos processuais (nem os respectivos advogados) quem fixa a matéria de facto, mas unicamente o Tribunal que apura os factos com base na prova produzida e conforme o princípio da livre convicção (artigo 127.º, do Código de Processo Penal), aplicando, depois, o direito aos mesmos factos, com independência e imparcialidade”.

Acresce que a exigência legal de especificação das “concretas provas” impõe a indicação do conteúdo específico do meio de prova. Tratando-se de prova gravada, oralmente prestada em audiência de discussão e julgamento, deve o recorrente individualizar as passagens da gravação em que baseia a impugnação, ou seja, estando em causa declarações/depoimentos prestados em audiência de julgamento, sobre o recorrente impende o ónus de identificar as concretas provas que, em sua interpretação, e relativamente ao(s) ponto(s) de facto expressamente impugnados, impõem decisão diversa, e bem assim de concretizar as passagens das declarações (do arguido, do assistente, do demandante/demandado civil) e dos depoimentos (caso das testemunhas) em que se ancora a impugnação. Para atingir esse desiderato, aderimos à posição defendida no Ac. de 14-07-2010, Processo n.º 508/07.7GCVIS.C1, deste Tribunal da Relação de Coimbra, relatado pelo Exmo. Desembargador Alberto Mira, in www.dgsi.pt, onde se considera que o recorrente, a par da indicação das concretas provas, há-de proceder de uma das seguintes formas: - Reproduzir o conteúdo da prova que, para o fim em vista (impugnação dos concretos pontos de facto), considere relevante; - Expor, ainda que em súmula, os segmentos pertinentes das declarações/depoimentos; ou - Situar objectivamente o segmento da declaração/depoimento em causa por referência a específicas circunstâncias ocorridas. Mas tal não basta. Na realidade, o recorrente deve explicitar por que razão essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida.

Este é o cerne do dever de especificação. O grau acrescido de concretização exigido pela Lei n.º 48/2007, de 29-08, visa precisamente obrigar o recorrente a relacionar o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado, conforme defende Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, pág. 1134/1135. Tudo o que vem de ser exposto significa, pois, que as menções exigidas pelo art.º 412.º, n.º s 3 e 4, do Código de Processo Penal, não traduzem um ónus de natureza puramente secundário ou formal que sobre o recorrente impenda, antes se conexionando com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.

Antes de avançarmos para a análise concreta do caso, importa, ainda, sublinhar que, no domínio da Lei n.º 59/98, de 25-08, impunha o artigo 412.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, que as especificações previstas nas alíneas b) e c) do n.º 3 se fizessem por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição.     E como decorria da lógica imediata da sequência dos procedimentos, só após a identificação, no recurso, dos suportes técnicos de gravação, haveria que proceder à transcrição do que fosse relevante – não transcrição de toda a prova, mas apenas dos elementos que se mostrassem previamente identificados e referidos pelo recorrente no cumprimento do ónus de especificação que se lhe impunha a referida norma do art.º 412.º, n.º 4. A transcrição era um acto posterior que incumbia, não ao recorrente, mas ao tribunal efectuar (cfr. Ac. de Fixação de Jurisprudência n.º 2/2003, de 16-01-2003, in DR, I Série-A, de 30-01-2003), nos termos e na medida delimitada previamente pelo recorrente, destinando-se a permitir (rectius, a facilitar) então ao tribunal superior a apreciação, nos limites do recurso, da prova documentada. A Lei n.º 48/2007, de 29-08, mudou radicalmente o regime de impugnação da matéria de facto e, entre outras alterações, afastou a transcrição da prova, no caso regra de utilização da gravação magnetofónica ou audiovisual (art.º 364.º, n.º 1, do Código de Processo Penal). A prova não deve ser transcrita, devendo o tribunal de recurso, uma vez cumpridas todas as formalidades previstas no art.º 412.º, n.º s 3 e 4, proceder ao controlo dessa prova por via da audição ou da visualização dos registos gravados (art.º 412.º, n.º 6), com base na indicação pelo recorrente das passagens da gravação em que funda a impugnação (art.º 412.º, n.º 4).

No caso presente, como veremos, o recorrente só timidamente observa os ónus mencionados e estrutura adequadamente a sua impugnação de facto. Na verdade, e prosseguindo:

Na tarefa da avaliação das provas produzidas em audiência, importa dizer que as mesmas provas não têm forçosamente que criar no espírito do julgador uma absoluta certeza dos factos a provar, certeza, essa, que, muitas vezes, seria impossível, ou quase impossível de alcançar.

O que é necessário, é que as mesmas provoquem um grau de probabilidade tão elevado, que se baste, como certeza possível, para as necessidades de vida, de forma a se poder concluir, sem dúvida razoável, que um indivíduo praticou determinados factos.

O que equivale por dizer não assistir razão aos recorrentes, quando, como as mais das vezes sucede, pretendem com a sua impugnação substituir-se ao julgador na apreciação da prova, trazendo á liça a sua discordância com o tribunal julgador nesta matéria, pretendendo sobrepor a sua perspectiva pessoal à livre convicção daquele, mas esquecendo que esta, neste domínio, se impõe soberanamente sem outros limites para além dos que a lei assinala.

Exactamente, diga-se o que sucede no caso sub judice, e no qual a ponderação da prova foi realizada ao abrigo do princípio da sua livre apreciação, ínsito no art.º 127.º do Código de Processo Penal, onde se estipula que “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”

Tal princípio assenta, fundamentalmente, em duas premissas:

A de que o juiz decide de forma livre e de acordo com a sua íntima convicção, formada a partir do confronto das provas produzidas em audiência.

E que tal convicção há-de ser formada com base em regras de experiência comum.

Nestes termos, o juiz não está sujeito a critérios de valoração de cada um dos meios probatórios, legalmente pré-determinados, sistema da prova legal, sendo o tribunal livre na apreciação que faz da prova e na forma como atinge a sua convicção.

Contudo, sendo esta uma apreciação discricionária, não é a mesma arbitrária, tendo a referida apreciação os seus limites.

Na verdade, livre convicção não pode ser sinónimo de arbitrariedade.

Ou seja, a livre apreciação da prova tem sempre de se traduzir numa valoração “racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência (…), que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão” de modo a que seja possível, por qualquer pessoa, entender porque é que o tribunal se convenceu de determinado facto, ou, dito de outro modo, porque é que o juiz conferiu credibilidade a uma testemunha e descredibilizou outra, por exemplo.

“A sentença, para além dos factos provados e não provados e da indicação dos meios de prova, deve conter os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituam o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova -apresentados na audiência.” – cfr. Ac. do STJ de 13-02-92, in CJ Tomo I, pág. 36.

O que o juiz não pode fazer nunca é decidir de forma imotivada ou seja, decidir sem indicar o iter formativo da sua convicção, «é o aspecto valorativo cuja análise há-de permitir (…) comprovar se o raciocínio foi lógico ou se foi racional ou absurdo» - Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, II, pág. 126 e segs.

Como diz o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, 1.º Vol., Coimbra Editora, 1974, págs. 202/203, «a liberdade de apreciação da prova é uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a verdade material -, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo».

Por outro lado, e segundo o mesmo, «a livre ou íntima convicção do juiz não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável. (...) Se a verdade que se procura é uma verdade prático-jurídica, e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal, mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros.

Uma tal convicção existirá quando e só quando o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável».

Também o Prof. Cavaleiro Ferreira, in Curso de Processo Penal, 1986, 1.º Vol., pág. 211, diz que o julgador, sem ser arbitrário, é livre na apreciação que faz das provas, contudo, aquela é sempre «vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório».

Directamente ligada a esta apreciação livre das provas, e determinante na formação da convicção do julgador, está o princípio da imediação, que Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 232, define como «a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da sua decisão».

«(...) Só estes princípios (também o da oralidade) permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. E só eles permitem, por último, uma plena audiência destes mesmos participantes, possibilitando-lhes da melhor forma que tomem posição perante o material de facto recolhido e comparticipem na declaração do direito do caso».

Ora, nessa avaliação probatória e na aferição global de toda a prova produzida, designadamente, como a da situação presente, o juiz deve fazer essa exegese segundo as regras da experiência comum, com bom senso e de acordo a normalidade da vida e o sentido das coisas.

Salvo o devido respeito por opinião contrária, não assiste por isso qualquer razão ao recorrente, atenta a forma clara e isenta de dúvidas pelas quais foi definido o cenário factual dos autos, num processo explicativo que se mostra suficientemente objectivado e motivado, capaz, portanto, de se impor aos outros.

Com efeito, o que se impunha ao tribunal recorrido é que explicasse e fundamentasse a sua decisão, pois só assim seria possível saber se fez a apreciação da prova segundo as regras do entendimento correcto e normal, isto é, de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.

E isso foi feito, poder-se-á dizer, de modo perfeitamente inteligível para qualquer leitor, que logo compreenderá o modo de valoração das provas e o juízo resultante dessa mesma aferição efectuado pelo tribunal a quo, sendo manifesto que as razões que presidiram à motivação da prova provada e à credibilização das duas testemunhas mencionadas se apresentam como lógicas, racionais e coerentes, com o conjunto da prova produzida.

O raciocínio consequente pelo qual o tribunal recorrido deu por assente os factos ora questionados configura-se como adequado às regras de experiência, à normalidade da vida e à razoabilidade das coisas, razão pela qual, não merecendo censura, não é sindicável por este tribunal, inexistindo por isso motivos para ser alterado.

Afirmação que fazemos após auditar os depoimentos das testemunhas/ofendidos e o iter que se pode extrair do processualmente verificado, como bem elenca na sua resposta o Ministério Público, quando constata que:

A génese dos autos resulta da queixa apresentada pelo ofendido … o qual apresentou queixa contra o recorrente por factos susceptíveis de consubstanciar, em abstracto e na sua comissão, um crime de ofensa à integridade física, p.p.p. 143.º, n.º 1 do Código Penal.

Na correspectiva tramitação, inquiridos no dia 1 de Agosto de 2017, o aludido ofendido, bem como o (também ora) ofendido …, relataram, entre outros, factos, susceptíveis de consubstanciar, em abstracto e na sua comissão, um crime de ameaça agravada, p. e p., no art.º 153.º, n.º 1 e art.º 155.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal.

Confrontado com tais factos, o arguido, em 4 de Agosto de 2017, disse nada ter a declarar sobre o sucedido.

Em 26 de Outubro de 2017, o ofendido … afirmou não ter desistido da queixa por medo do que o arguido lhe pudesse fazer, mas antes por ser pobre e não ter dinheiro para andar a correr para os Tribunais.

Deduzida acusação e designada data para realização da audiência, na contestação que ofereceu, com data de 10 de Abril de 2018, o ora arguido negou o cometimento dos factos.

Em audiência de julgamento não prestou qualquer declaração.

Como se colhe dos depoimentos respectivos, no seu decurso, os ofendidos estavam convencidos que o objecto dos autos era o cometimento do alegado crime de ofensa à integridade física simples e não o respeitante aos propalados crimes de ameaça.

Depuseram ambos de forma descomprometida, sem anteverem o alcance que poderia advir das suas respostas.

Nenhum deles deduziu qualquer pedido de indemnização contra o recorrente, isto, apesar de terem direito a indemnização, acrescido do facto de o recorrente, alegadamente, estar a dever alguns dias de trabalho e despesas de assistência médica ao ofendido ….

Ambos afirmaram não ter medo do recorrente, sucedendo porém, como sabemos, que para o emergir do crime ajuizado a ameaça não tem que causar medo ou inquietação mas ser adequada a tal.

Constatando-se que o ofendido … desistiu do procedimento criminal, que o ofendido … nem sequer apresentou queixa e que ambos os ofendidos não peticionaram qualquer quantia ao recorrente, pode-se até deduzir, com normalidade e razoabilidade, que os factos pelos quais o recorrente foi condenado terão, quiçá, surtido o seu efeito.

Não colhe o argumento do recorrente de que tendo os factos ocorrido num arraial popular os ofendidos não indicaram a presença de mais testemunhas pois a expressão utilizada o foi em voz alta. Olvida todavia que os ofendidos não apresentaram queixa por esses factos, limitando-se, despretensiosamente, a narrá-los no decurso da inquirição, no mencionado dia 1 de Agosto de 2017, sendo que em audiência de julgamento, disseram sequer se recordarem do dia em que os mesmos ocorreram.

Nenhum elemento descredibiliza os dois depoimentos em causa.

O recorrente, que de Conrado guardou prudente silêncio, acrescenta ainda que tal postura foi valorada pelo Tribunal em seu desfavor, com preterição por isso ao art.º 343.º do Código de Processo Penal.

Indevidamente o faz pois em ponto algum da decisão recorrida se constata tal circunstância. A decretada condenação adveio da prova produzida em julgamento, tal como elencada na motivação probatória da peça sindicada. Apenas após ter dado os factos como provados, o M.mo Juiz a quo fez sobressair a atitude (de silencia) assumida pelo arguido, coisa distinta alcança-se.

Tudo sopesado, e ademais considerado na motivação probatória da decisão recorrida, outra não poderia ser a conclusão do Tribunal a quo quanto aos pontos de facto controvertidos.

Aquisição probatória relativamente à qual, adiante-se, também não se verifica violação do princípio in dúbio pro reo, pois esta só ocorre quando, em sede de prova, perante uma dúvida objectiva e intransponível, o tribunal decide desfavoravelmente ao arguido.

Na verdade, sendo este princípio uma emanação do princípio constitucional da presunção de inocência, surgindo como resposta ao problema da incerteza em processo penal, impõe a absolvição do acusado quando a produção de prova não permita resolver a dúvida inicial que está na base do processo.

Se, a final, persistir uma dúvida razoável e insanável acerca da culpabilidade ou dos concretos contornos da actuação do acusado, esse non liquet na questão da prova terá de ser resolvido a seu favor, por imposição do estatuído no art.º 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.

Ora, como resulta, com toda a clareza, da fundamentação da sentença recorrida, não existiu qualquer dúvida no espírito do julgador, na construção do esqueleto factual dos autos, após a apreciação, livre mas responsável, livre mas motivada, da prova produzida em audiência de julgamento, corroborada com a já existente nos autos.

Nessa medida, não tem cabimento a aplicação do referenciado princípio in dúbio pro reo, pois o Tribunal a quo entendeu que havia sido produzida suficiente prova do cometimento dos factos pelo arguido, entendimento que foi sufragado ao abrigo do já escalpelizado princípio da livre apreciação da prova, ínsito no citado art.º 127.º.

O modo de valoração das provas e o juízo resultante dessa mesma aferição, efectuado pelo Tribunal a quo, ao não coincidir com a perspectiva do recorrente nos termos em que este as analisa e nas consequências que daí derivam, não traduz, face ao que se expôs, qualquer erro.

Importa trazer à colação o já afirmado em Acórdão deste Tribunal da Relação, em 03-05-07, proferido no processo n.º 80/07-3 disponível no sítio da internet www.dgsi.pt: «O erro na apreciação das provas relevante para a alteração da decisão de facto pressupõe, pois, que estas (as provas) deveriam conduzir a uma decisão necessária e forçosamente diversa e não uma decisão possivelmente diferente; se a interpretação, apreciação e valoração das provas permitir uma decisão, diversa da proferida, mas sem excluir logicamente a razoabilidade desta, neste caso pode haver erro na apreciação das provas, mas não será juridicamente relevante para efeitos de modificação da matéria de facto pelo Tribunal Superior; a decisão proferida com base numa interpretação e valoração (ainda que discutíveis) fundamentadas nas provas produzidas contida no espaço definido pela livre apreciação das provas e pela convicção por elas criada no espírito do juiz, não pode ser alterada, a menos que contra ela se apresentem provas irrefutáveis, já existentes nos autos e desconsideradas ou supervenientes.

Por outras palavras: a sindicância da decisão de facto deve limitar-se à aferição da sua razoabilidade em face das provas produzidas …

… A segunda instância em matéria de facto não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova), mas tão só apreciar se a convicção expressa pelo tribunal a quo na decisão da matéria de facto tem suporte razoável …».

A decisão do tribunal recorrido, nessa matéria, foi proferida com base numa interpretação e valoração que se mostra suficientemente fundamentada, quer nas provas produzidas, quer pela livre convicção por elas criada no espírito do julgador, só podendo ser alterada, se contra si se apresentassem meios de prova irrefutáveis, existentes nos autos e que tivessem sido desconsiderados, ou se a mesma se configurasse como totalmente irrazoável, contrária às mais elementares regras de experiência ou ao sentido das coisas.

Mas nenhuma destas condições é o caso sub judice, em que o decidido pelo tribunal recorrido, se desenha com lógica e razoabilidade necessárias, de modo que se deve concluir como no aresto citado: «… se a interpretação, apreciação e valoração das provas permitir uma decisão, diversa da proferida, mas sem excluir logicamente a razoabilidade desta, neste caso pode haver erro na apreciação das provas, mas não será juridicamente relevante para efeitos de modificação da matéria de facto pelo Tribunal Superior.»

Discordar, sem qualquer fundamento legal, leva simplesmente à sua improcedência, como já por este Tribunal foi afirmado em Acórdão de 23-03-01: «A divergência quanto à decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto será relevante na Relação apenas quando resultar demonstrada pelos meios de prova indicados pelo recorrente a ocorrência de um erro na apreciação do seu valor probatório, sendo necessário para que ele se verifique, que os mencionados meios de prova se mostrem inequívocos no sentido pretendido pelo recorrente».

O presente tribunal só poderia assim alterar o decidido factualmente pela 1.ª instância se existissem provas nos autos que impusessem decisão diferente e in casu, embora a prova produzida, eventualmente e no entender da recorrente, permitisse uma decisão de facto em sentido diverso, ela não impunha decisão distinta, pelo que o pretendido por aquele está destinado ao fracasso.

Inexiste assim qualquer erro na avaliação da prova por banda do Tribunal a quo, ou a violação de algum preceito legal, pelo que, ter-se-á que finalizar pela improcedência do recurso.

Asserção que preclude a pretensão do recorrente em que fosse decidido da inverificação de um qualquer ilícito, ou, concedendo, da sua emergência na forma simples e relativamente à qual, por inexistência de queixa, faltaria legitimidade ao Ministério Público para a exercitada acção penal.

2.5. Tempo de ponderarmos, então, da última questão suscitada, qual seja de apurarmos se subsistindo a condenação do recorrente é caso de apelo a uma pena de substituição [própria – de suspensão de execução da pena de prisão – ou imprópria – regime de permanência na habitação -].

A aplicação da pena de suspensão de execução da pena de prisão só pode e deve ser aplicada se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, o tribunal concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição – art.º 50.º, n.º 1, do Código Penal.

Assim, para aplicação desta pena de substituição é necessário, em primeiro lugar, que a pena de suspensão da execução da prisão não coloque irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização das expectativas comunitárias, ou seja, o sentimento de reprovação social do crime ou sentimento jurídico da comunidade. Em segundo lugar, é necessário que o tribunal se convença, face à personalidade do arguido, comportamento global, natureza do crime e sua adequação a essa personalidade, que o facto cometido não está de acordo com essa personalidade e foi simples acidente de percurso, esporádico, e que a ameaça da pena, como medida de reflexos sobre o seu comportamento futuro evitará a repetição de comportamentos delituosos. Por outro lado, o juízo de prognose sobre o comportamento futuro do condenado deve ter em consideração, como a letra da lei impõe, a personalidade do agente, as suas condições de vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime e as circunstâncias deste.

A jurisprudência tem assim vindo a acentuar[6] que “A suspensão da pena é uma medida penal de conteúdo pedagógico e reeducativo que pressupõe uma relação de confiança entre o tribunal e o arguido condenado”, em que na sua base está sempre um juízo de prognose social favorável ao agente, baseada num risco de prudência, em que se deverá "reflectir sobre a personalidade do agente, sobre as condições da sua vida, sobre a sua conduta ante et post crimen e sobre o circunstancialismo envolvente da infracção.”

No caso em apreço, resulta muito claramente da factualidade assente que as necessidades de prevenção geral e especial impedem a aplicação, desde logo e concretamente, da suspensão da execução da pena de prisão. A factualidade assente, nomeadamente, o historial delituoso do arguido não alimenta a esperança de que ele sentirá a condenação suspensa como uma advertência e de que não cometerá no futuro qualquer delito.

A justificação adiantada na decisão recorrida, a propósito, esmorece qualquer veleidade do recorrente em que pudesse beneficiar de tal pena de substituição. Na verdade, e como assertivamente se exarou:

«Importa considerar, nesta sede, e como já se disse que o arguido já beneficiou anteriormente da suspensão de execução das penas em que foi condenado no âmbito dos Procs. n.º 120/16.0GBPNF (com sujeição a deveres), 102/13.3GTBRG (com sujeição a deveres), 29/14.1GTVRL (com sujeição a deveres), 145/14.0GARSD (com regime de prova), 143/14.3GARSD (com regras de conduta) e 215/14.4GARSD (com regime de prova), sem que todavia a ameaça de execução da pena de prisão tenha afastado o arguido da prática de novos crimes.

Destaca-se que de entre estas, a condenação do Proc. n.º 143/14.3GARSD (pena de 23 meses de prisão), transitou a 2/5/2017 e a do Proc. n.º 215/14.4GARSD (pena de 16 meses de prisão), transitou a 15/5/2017.

No primeiro caso havia sido condenado por 2 crimes de injúria agravada, 4 crimes de ameaça agravada e 1 crime de desobediência; no segundo por 1 crime de ameaça agravada e 1 crime de difamação agravada.

Ou seja, escassos meses depois do trânsito de tais condenações, e quando mal havia iniciado o respectivo período da suspensão, o arguido pratica precisamente mais dois crimes de ameaça agravada, registando neste momento (para além dos demais), condenações por 7 crimes de ameaça agravada.

E o que dizer das condições de vida do arguido, que mereceram da parte da DGRSP rasgados encómios e a conclusão (porque é disso mesmo que se trata, de uma conclusão a extrair pelo Tribunal e não pela DGRSP) de que reúne condições para a execução de medida a cumprir na comunidade?

O arguido conhece a sua companheira há cerca de 4 anos, residindo com a mesma há 3.

Já em 2016, data em que emigrou para a Suíça, atravessou uma fase favorável em termos laborais, auferindo nesse país rendimentos bastante acima da média para o nosso país. Não se pode dizer que neste momento estejamos ainda na “fase de desestruturação” da sua vida.

Todos os filhos do arguido já haviam nascido à data em que praticou os factos objectos dos presentes autos, incluindo a mais nova, que tinha à data do relatório social 1 ano.

Portanto, nada de novo ocorreu na vida do arguido que leve o Tribunal a pensar que lhe dará outro rumo daqui em diante.

À data dos factos dos presentes autos, o arguido, com duas penas suspensas pendentes e bem ciente de que deixaria a sua família desprovida do seu apoio caso viesse a ser condenado pela prática de novo crime, não se absteve de o fazer.

A postura processual do arguido também em nada contribuiu para arredar o Tribunal da aplicação da prisão efectiva. O arguido não colaborou com a descoberta da verdade, não procurou reparar de forma alguma o mal feito, não demostrou nem verbalizou arrependimento ou qualquer tipo de acto de contrição.

Em nosso entender, já não há margem para se efectuar um juízo de prognose favorável em relação à suspensão de execução da pena.

Por tudo o que temos vindo a expor, cremos que o juízo de prognose em relação à suspensão da execução da pena de prisão deverá ser desfavorável (...).»

Fundamentação assaz elucidativa e relativamente à qual nada mais se nos antolha ser de acrescentar.

E que dizer quanto à segunda pena de substituição invocada, ou seja da execução da pena de prisão, sob o regime de permanência na habitação, nos termos do art.º 43.º do Código Penal?

Ninguém duvidará que no sistema penal português, por imposição constitucional decorrente dos princípios da necessidade/subsidiariedade da intervenção penal e da proporcionalidade das sanções penais (art.º 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa e, entre outros, art.º 70.º do Código Penal), a pena de prisão é a ultima ratio da política criminal[7].

Com a redacção actual do indicado art.º 43.º, introduzida pela Lei n.º 94/2017, de 23 de Agosto, poderemos acrescentar que o cumprimento da pena de prisão em estabelecimento prisional é a opção derradeira para cumprimento de penas de prisão até dois anos.

Com efeito, nos termos desse normativo, seu n.º 1, “Sempre que o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir, são executadas em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância:

a) A pena de prisão efetiva não superior a dois anos;

b) A pena de prisão efetiva não superior a dois anos resultante do desconto previsto nos artigos 80.º a 82.º;

c) A pena de prisão não superior a dois anos, em caso de revogação de pena não privativa da liberdade ou de não pagamento da multa previsto no n.º 2 do artigo 45.º.”

É que o regime de execução de privação da liberdade deve ser, também em obediência ao princípio constitucional da proporcionalidade da restrição dos direitos, o menos restritivo possível do direito à liberdade[8].

Daí o advérbio sempre com que se inicia a norma legal, a confirmar peremptoriamente como opção derradeira a execução da prisão intra muros.

- o consentimento do Resulta do elencado art.º 43.º constituírem pressupostos da aplicação do regime de permanência na habitação como meio de execução da pena de prisão:

condenado;

- que a pena de prisão efectiva que o condenado tenha de cumprir não seja superior a dois anos;

- que pelo regime de permanência na habitação se realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão.

Verificando-se estes pressupostos, o Tribunal tem o poder-dever de ordenar a execução da pena pelo regime de permanência na habitação.

Descendo ao caso dos autos, verificamos que os pressupostos formais – consentimento (é o que o condenado pede no recurso) e pena de prisão efectiva não superior a dois anos – estão preenchidos.

Passemos ao pressuposto material – as finalidades da execução da pena de prisão.

As finalidades da execução da pena de prisão, no seguimento do disposto no art.º 40.º do Código Penal, são a da prevenção especial de ressocialização e a da satisfação das exigências de prevenção geral positiva.

É o que resulta do disposto no art.º 42.º, n.º 1 do Código que dispõe: “A execução da pena de prisão, servindo a defesa da sociedade e prevenindo a prática de crimes, deve orientar-se no sentido da reintegração social do recluso, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes.”

Ora, para a ressocialização do condenado é preciso desde logo tentar minimizar os efeitos criminógenos da reclusão e tentar aproximá-lo, tanto quanto possível, das condições de vida dos cidadãos em liberdade; objectivos esses que o regime de permanência na habitação, enquanto meio de execução da pena de prisão, estará decerto melhor apetrechado para atingir.

Donde a pergunta que se impõe:

A execução em regime de permanência na habitação da pena única de oito meses de prisão efectiva aplicada ao condenado nestes autos servirá, por um lado, para o preparar para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, e, por outro, será suficiente para manter a confiança da generalidade dos cidadãos nas normas que proíbem a condução de veículos sem habilitação legal?

Ou, inversamente, só o cumprimento da pena de prisão dentro do estabelecimento prisional servirá para atingir tais fins?

Antes de responder, é preciso que se note de que se trata sempre da execução de uma pena de prisão efectiva – de uma reacção criminal privativa da liberdade – susceptível de acontecer por dois modos diferentes: na cadeia ou em casa.

A decisão recorrida também aqui ajuizou adequadamente. Com efeito, como sustenta, com a nossa concordância, o “desrespeito do arguido pelas condenações anteriores sofridas, é tão gritante e de tal forma vincada é a personalidade contrária ao Direito do arguido – o qual, escassos meses depois do trânsito em julgado de 2 penas de prisão suspensas na sua execução, pratica mais 2 crimes do mesmo tipo (ameaça agravada) - que apenas a prisão efectiva poderá ainda afastar o arguido da prática de novos crimes.”

Apenas o cumprimento efectivo da pena aplicada acautelará as necessidades de prevenção geral e especial que cuidará prosseguir.


*

III. Dispositivo.

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste TRC em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido e, em consequência, decidem manter a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se em três UCs a taxa de justiça devida (sem prejuízo de eventual concessão de apoio judiciário e/ou de legal isenção) – cfr. art.ºs 513.º, n.ºs 1 a 3, do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9 e Tabela III, do Regulamento das Custas Processuais.

Coimbra, 8 de Maio de 2019

Brizida Martins (relator)

Orlando Gonçalves (adjunto)




[1] Em cujo decurso se procedeu a uma alteração não substancial dos factos ajuizados, como melhor sobressai da acta respectiva que é fls. 154/5.
[2] Em sentido próprio – de suspensão da sua execução -, ou, impróprio – de regime de permanência na habitação, entendendo alguns tratar-se aqui apenas de uma distinta forma de execução da pena de prisão -.
[3] Na doutrina, cfr. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113. Na jurisprudência, cfr. entre muitos, os Acórdãos do STJ de 25-06-1998, in BMJ 478, pág. 242; de 03-021999, in BMJ 484, pág. 271; de 28-04-1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193.   
[4] Cfr. Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 7/95, de 19-10-1995, publicado no Diário da República, Série I-A, de 28-12-1995.
[5] In processo n.º 105/13.8GBPRD.P1, datado de 9 de Setembro de 2015, relatado pelo Exmo. Desembargador Neto de Moura, e citado também, v.g. no processo do mesmo Tribunal n.º 6928/13.0TDPRT.P1, ambos consultáveis em www.dgsi.pt.
[6] Como v.g. se relembra no Ac. do TRP, in recurso n.º 229/18.5GAFLG.P1, acedido em www.dgsi.pt.
[7] Cfr. Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, 2017, pág. 17.
[8] Cfr. Maria João Antunes, ibidem, pág. 87.