Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1083/20.2T9CLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA ALEXANDRA GUINÉ
Descritores: CRIMES CONTRA A AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
CRIME DE TRATO SUCESSIVO
CONCURSO REAL DE INFRACÇÕES
Data do Acordão: 03/30/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE LEIRIA - J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 171.º DO CP
Sumário: I - A prática, pelo agente, em momentos distintos, de actos lesivos da autodeterminação sexual de uma criança integra uma pluralidade sucessiva de crimes, não existindo base legal para que as diversas condutas sejam consideradas como um único crime de trato sucessivo.

II – Mesmo as situações de violência sexual reiterada e prolongada no tempo traduzem comportamentos diferentes, que requerem do seu autor a criação de situações favoráveis de secretismo e condicionamento da vontade da vítima, aptos à concretização do resultado proibido, a que tendencialmente estão associados diversos processos volitivos autónomos entre si e não uma única vontade, de cuja análise global transparecem diferentes sentidos técnico-jurídicos de ilicitude que exige o seu enquadramento jurídico como concurso real de infracções.

II – A solução para ultrapassar a incerteza do número de crimes em razão, por exemplo, do tempo já decorrido, da frequência muitas vezes irregular da sua prática e da incapacidade da vítima se lembrar de cada uma das agressões sexuais por si sofridas, está na identificação, tanto quanto possível rigorosa, dos actos lesivos e na punição dos comportamentos cuja ocorrência não ofereça dúvidas.

Decisão Texto Integral:

Nos presentes autos de recurso referentes ao processo n.º 1083/20.2T9CLD.C1 do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria (Juízo Central Criminal de Leiria - J2), foi, mediante Acórdão, decidido:

i) Julgar a acusação parcialmente improcedente e não provada e, consequentemente, absolver o arguido AA da prática dos 4 crimes de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. nos artºs 171º nº 1 e 177º nº 1 al. a) do Cod. Penal, porque vem acusado.

ii) Julgar a acusação – com a alteração não substancial da qualificação jurídica oportunamente comunicada - parcialmente procedente e provada e, consequentemente:

ii-a) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de abuso sexual de crianças de trato sucessivo, p. e p. no artº 171º nº 1 do Cod. Penal, e no artº 4º do Decreto-Lei n.º 401/82 de 23/09, na pena de 18 meses de prisão.

ii-b) Mais condenar o arguido AA a pagar à ofendida BB a quantia de € 1.000,00 (mil euros) a título de indemnização pelos danos não patrimoniais pela mesma sofridos.

ii-c) Nos termos do disposto nos artºs 50º, 51º nº 1 al. a) e 53º nºs 3 e 4 do Cod. Penal, suspender a execução da pena de prisão de 18 meses por igual período, com regime de prova, e sob a condição de, nesse período, o arguido pagar à ofendida BB a indemnização supra fixada em ii-b), e comprovar tal pagamento nos autos.

Inconformado, recorreu o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões (que se transcrevem):

I. O crime de abuso sexual de crianças, previsto e punível pelo art.º 171.º n.º 1 do Código Penal não se compagina com o crime de trato sucessivo, porque não encerra condutas que possam ser consideradas habituais.

II. Admitir a condenação pela prática de crime de abuso sexual de crianças, previsto e punível pelo art.º 171.º n.1 do Código Penal, na forma de trato sucessivo é contornar a impossibilidade legal vertida no art.º 30.º n.1 do Código Penal, pois que em causa estão bens iminentemente pessoais, violando-se o disposto no art.º 171.º do Código Penal, o que ocorreu nos autos.

III. Foi dado como provado que entre janeiro de 2019 e março de 2020:
1. Numas ocasiões o arguido pediu à menor para lhe mexer no pénis;
2. Noutras ocasiões, o arguido pediu à menor para ela se despir, após de fora e roçava o mesmo na vagina da menor, o que colocava o seu pénis;
3. Em outras ocasiões, o arguido tocava com as suas mãos a vagina da menor, quando esta já se encontrava despida;
4. A última ocasião ocorreu no interior de uma tenda, onde a menor exibiu a vagina ao arguido a pedido deste.

IV. O arguido deve assim ser condenado pela prática, e concurso real, de quatro crimes de abuso sexual de crianças, previsto e punível pelo art.º 171.º n.º 1 do Código Penal.

V. Condenado o arguido, em concurso real, pela prática de quatro crimes de abuso sexual de crianças, há que condenar o arguido em quatro penas parcelares, independentes, que se deverão fixar entre os 14 meses e os 18 meses.

VI. Determinadas as penas parcelares, nos termos do art.º 77.º n.ºs 1 e 2 do Código Penal, haverá que condenar o arguido numa pena única que, no caso em apreço se deverá situar entre os 3 e os 4 anos de prisão.

VII. Não ultrapassando a pena única o limite dos 5 anos de prisão, por força das concretas circunstâncias do arguido, haverá que tal pena ser suspensa na sua execução, nos termos do art.º 50.º do Código Penal, sujeitando-se tal suspensão a regime de prova, e mantendo-se as demais condições fixadas no douto Acórdão recorrido.

Notificado, respondeu o arguido, concluindo, designadamente, que o Acórdão a quo não padece de qualquer vício ou erro de análise ou interpretação ou de subsunção, que justifique a alteração da decisão proferida, nomeadamente o enquadramento da situação enquanto crime por trato sucessivo, praticado num número de vezes não concretamente apurado num contexto de unificação de resolução e com proximidade temporal que confere uma unidade ao facto ilícito, sendo justa, adequada e proporcional a pena aplicada.

O digno Procurador Geral Adjunto emitiu parecer, acompanhando o recurso do Ministério Público em primeira instância.

Notificado respondeu o arguido alegando não haver fundamentos para poder aceitar que estejam em causa quatro crimes de abuso sexual de menores, nem para alterar o enquadramento dos factos na figura do crime de trato sucessivo.

Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido a conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.


*

II. Fundamentação:



A) Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:

Como flui do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do CPP, e de acordo com jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do STJ), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação.

De acordo com as conclusões da motivação do recurso interposto nestes autos, são as seguintes as questões a que cabe dar resposta:
1. Da verificação de um crime de trato sucessivo ou de quatro crimes de abuso sexual em concurso efetivo;
2. Da pena aplicável.

B) ACÓRDÃO A QUO (transcrição na parte relevante):

«

I - Fundamentos:

a) Factos provados

a.1) O arguido AA é primo da menor BB, nascida em .../.../2012.

a.2) Em datas não concretamente apuradas, entre janeiro de 2019 até março de 2020, praticamente todos os domingos, a família do arguido e da BB reunia-se para almoçar em casa da avó, sita no (…), (…), sendo que o arguido encontrava-se com a menor BB nesse local.

a.3) Nessas alturas referidas em a.2), o arguido AA, aproveitando-se da proximidade que tinha com a menor BB, aliciava a mesma para irem brincar os dois.

a.4) Assim, em data não concretamente apurada, mas entre janeiro de 2019 e março de 2020, quando a BB ia brincar com o arguido AA, o arguido aproveitava-se desse facto e dizia à BB para se despir, e despia-se ele também.

a.5) Ato continuo, o arguido pedia à menor BB para lhe mexer no pénis, o que esta acedia, fazendo com que o arguido ficasse com o pénis ereto.

a.6) Noutras ocasiões, o arguido pedia à BB para se despir, após, o arguido colocava o seu pénis de fora e roçava o mesmo na vagina da menor BB.

a.7) Por outro lado, em outras ocasiões, o arguido, após a BB se despir, tocava com as suas mãos na vagina da menor e dava-lhe beijinhos na vagina.

a.8) Os atos supra descritos, tanto ocorreram na casa de banho, como no quarto da casa da avó.

a.9) A última vez que sucedeu, foi numa tenda montada no terraço da avó da menor BB e em que esta foi ver como é que eles dormiam na tenda. O arguido AA fechou a tenda e pediu à BB para esta mostrar a vagina, o que esta acedeu.

a.10) Ao agir da forma descrita, quis e conseguiu o arguido AA, para satisfação dos seus desejos sexuais, tirar proveito da sua relação familiar com a menor BB e manter com esta, nas diversas ocasiões de tempo e lugar descritas, atos de cariz sexual, tendo perfeita consciência de que a mesma tinha idade inferior a 14 anos e de que era sua prima.

a.11) Atuou o arguido voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.

Mais se provou:

(…)

b) Factos não provados

Para além dos que ficaram descritos, não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a discussão da causa, designadamente, não se provou:
i) Que a última vez, na tenda, o arguido tenha tocado com a sua mão na vagina da menor BB.
ii) Que o arguido tenha agido contra a vontade da BB, ou que a vontade desta fosse relevante.
iii) Que o arguido não tenha praticado quaisquer atos de cariz sexual na pessoa da menor BB.

c) Fundamentação da Matéria de Facto

d) Qualificação jurídica dos factos

(…).

e) Determinação da Medida da Pena;

Da aplicação do regime especial para jovens delinquentes:

(…).

*

f) Fixação de indemnização à lesada

(…).


*


III - Decisão:

(…).

C) Apreciando e decidindo

Atento o objeto do recurso, importam em primeiro lugar resolver a questão de saber se nos encontramos perante um crime de abuso sexual de crianças de trato sucessivo, p. e p. no artº 171º nº 1, ou perante quatro crimes abuso sexual de crianças p. e p. no artº 171º nº 1, nos termos do n. 1 do art.º 30.º (ambos os artigos do Código Penal).

Dever-se-á aderir ao entendimento perfilhado no Acórdão recorrido, no sentido de que se está perante um crime de trato sucessivo, ou seja, há só um crime apesar de se desdobrar em várias condutas, sendo o crime tanto mais grave (no quadro da sua moldura penal), quando mais for repetido?

Ou pelo contrário, como pretende o recorrente, verifica-se uma situação de concurso efetivo de quatro crimes de abuso sexual de criança, por ser este o número de vezes que se provou ter o agente preenchido a previsão típica?

Vejamos.

Em primeiro lugar, importa reconhecer que a designação de trato sucessivo, não resulta da Lei Penal, correspondendo a uma construção jurisprudencial, decorrente da dificuldade prática tantas vezes sentida nos Tribunais, confrontados com processos nos quais se prova uma multiplicidade de factos típicos, cada um deles potencialmente integradores de algum ou alguns tipos de crime, e, ao mesmo tempo, a incerteza perante as concretas circunstâncias temporais em que cada prática foi levada a cabo.

E assim, inicialmente aplicada, entre outros, aos crimes de tráfico de estupefacientes (salientando-se, aqui, a unificação de vários atos em um só crime, por existência de uma unidade resolutiva e conexão temporal entre os atos realizados), rapidamente, o conceito foi transposto para os crimes previstos e puníveis pelos art.ºs. 163.º a 167.º; 170.º a 174.º, todos do Código Penal, convencionando, tal linha de orientação jurisprudencial que existe apenas um crime de trato sucessivo de algum dos tipos contidos nas referidas normas incriminadoras, com um específico regime sancionatório (cfr. A inconstitucionalidade da jurisprudência do «trato sucessivo» nos crimes sexuais, Cristina Almeida e Sousa; Julgar Online, outubro de 2019 e “Crime de trato sucessivo” (?), Helena Moniz, Julgar Online, abril de 2018).

Tal unificação depende, no que respeita aos crimes sexuais, da verificação de determinados pressupostos, e que são, do ponto de vista objetivo: 1. Pluralidade de atos típicos 2. Praticados de forma essencialmente homogénea 3. Em proximidade temporal, 4. Identidade dos ilícitos a que tais atos sejam subsumíveis, individualmente considerados, ou, sendo forem diferentes, que protejam bens jurídicos semelhantes, 5. Identidade da vítima, em virtude de os crimes sexuais protegerem bens jurídicos eminentemente pessoais. (Veja-se, entre outros, os Acs. do STJ de 29.03.2007, proc. 07P1031; de 14.06.2007, proc. 1580/07- 5.ª, CJ-STJ 2007, tomo 2, pág. 220; de 23.01.2008, proc. 4830/07-3.ª; de 21.10.2009, proc. 33/08.9TAMRA.E1.S1-3.ª; de 7.01.2010, proc. 922/09.1 GAABF-5.ª, CJ-STJ 2010, tomo 1, pág. 176; de 20.01.2010, proc. 19/04.2JALRA.C2.S1-3.ª; de 13.07.2011, proc. 451/05.4JABRG.G1; de 29.11.2012 proc. 862/11.6TAPFR.S1; de 22.01.2013, proc. 182/10.3TAVPV.L1.S1; de 12.06.2013, proc. 1291/10.4JDLSB.S1; da Relação de Lisboa de 15.12.2015, proc. 3147/08.JFLSB.L1-5; da Relação de Lisboa de 23.11.2016, proc. 570/14.6PFSXL.L1-3; da Relação do Porto de 11.02.2015, proc. 2246/11.7JAPRT.P1; da Relação de Évora de 25.03.2014, proc. 145/06.3GDTVD.E2; da Relação de Évora de 29.12.2015, proc. 65/13.OGDLLE.E1; da Relação de Évora de 05.07.2016, proc. 255/13.0TELSB.E1; da Relação de Évora de 11.10.2016, proc. 14/14.3GAVVC.E1; da Relação de Évora de 16.03.2017, proc. 72/15.3 JASTB.E1, da Relação de Évora de 24.05.2018, proc. 1010/16.1 PBEVR.E1; Ac. da Relação do Porto de 06.02.2019, proc. 966/14.3JAPRT e Ac. da Relação de Lisboa de 2.05.2019, proc. 6/17.0JDLSB.L1-9, citados por Cristina Almeida e Sousa, A inconstitucionalidade … nota 10).

Do ponto de vista subjetivo exige-se um particular nexo de imputação, designado:

- de unidade resolutiva, considerando que a conexão temporal entre os factos típicos é de molde a fazer aceitar, à luz da experiência psicológica, que o agente executou todos os atos que integram a atividade psicológica sem ter de renovar o correspondente processo de motivação;

-  de uma única «resolução determinada e persistente» do agente, em que o dolo integra desde o início uma pluralidade de atos sucessivos que o agente se dispõe a para tanto preparando as condições da sua realização, estando-se no plano da unidade criminosa.

Em qualquer destas duas hipóteses o crime de trato sucessivo corresponde a um tipo agravado de culpa, alicerçado na constatação de que é na persistência do propósito criminoso, relevado e intensificado em cada momento temporal e em cada conduta típica, de forma crescente, à medida que as condutas se vão repetindo, que vai também aumentando, quer o grau de ilicitude, quer a censurabilidade daquele (Cfr. Acs. STJ de 23.01.2008, proc. 4830/07-3ª; Ac. do STJ de 29.11.2012 proc. 862/11.6TAPFR.S1; Ac. da Relação de Évora de 11.10.2016, proc. 14/14.3GAVVC.E1; Ac. da Relação de Lisboa de 23.11.2016, proc. 570/14.6PFSXL.L1-3; Ac. da Relação do Porto de 06.02.2019, proc. 966/14.3JAPRT e Ac. da Relação de Lisboa de 2.05.2019, proc. 6/17.0JDLSB.L1-9. E Ac. do STJ de 02.10.2003, proc. 2606/03-5.ª in CJSTJ, 2003, Tomo III, p. 194; Ac. do STJ de 13.07.2011, proc. 451/05.4JABRG.G1; Ac. do STJ de 22.01.2013, proc. n.º 182/10.3TAVPV.L1.S1; Ac. do STJ de 12.06.2013, proc. 1291/10.4JDLSB.S1; da Relação de Évora de 16.03.2017, proc. 72/15.3 JASTB.E1; de 29.06.2016, proc. 65/13.OGDLLE.E1; da Relação de Lisboa de 15.12.2015, proc. 3147/08.JFLSB.L1-5, Ac. da Relação do Porto de 11.02.2015, proc. 2246/11.7JAPRT.P1., citados por Cristina Almeida e Sousa, A inconstitucionalidade…, notas 11 e 12).

Por fim, a opção em matéria de aplicação da pena é a punição de todo o comportamento antijurídico como um único crime, em que uma das condutas basta para preencher o tipo incriminador e as restantes são valoradas em sede de determinação concreta da pena, dentro de uma única moldura penal abstrata – a que estiver prevista, na norma incriminadora, a que corresponder o crime mais grave, entre todos os que integrarem esta aglutinação.

Assim, o designado o crime de trato sucessivo, não é um crime único, porque nasceu da constatação de que vários crimes foram praticados pelo mesmo agente ou que o mesmo crime foi praticado pelo mesmo autor, e só por efeito das incertezas de prova é que não foi possível a sua contabilização exata.

Não é um crime continuado, porque o nexo de imputação subjetiva corresponde a um tipo agravado de culpa e não a uma culpa consideravelmente diminuída.

Nem é concurso de crimes, porque, apesar da pluralidade de comportamentos integradores do mesmo crime ou de vários tipos de crimes que protegem o mesmo bem jurídico ou bens jurídicos semelhantes, tais comportamentos são unificados numa única resolução criminosa, ou numa unidade resolutiva idêntica à que é pressuposta pelo crime continuado.

Ultrapassando polémicas sobre a falta de rigor da designação (o trato sucessivo designa um princípio geral de direito registral importado de outro ramo de Direito); e da eventual inconstitucionalidade por violação dos princípios da legalidade criminal (pela redefinição, jurisprudencial de forma criativa e inovadora, dos elementos constitutivos do tipo legal incriminador), da tipicidade (por o crime de trato sucessivo não tem específica consagração legal), da igualdade (por o regime de punição não se distinguir, na prática das regras do crime continuado, ou, mesmo, da prática de um único crime, com um grau de ilicitude e de censurabilidade, idêntico ao do crime mais grave, de entre os vários comportamentos típicos, aglutinados à luz da tese do trato sucessivo), e da proporcionalidade (porquanto o recurso ao regime sancionatório do crime continuado, redunda num desequilíbrio de base, entre a medida concreta da pena e o grau de culpa do agente, na medida em que o limite máximo da moldura penal abstrata ficará, logo à partida, aquém da culpa, sendo evidente a desproporção entre a gravidade dos crimes e essa moldura penal abstrata que a tese do trato sucessivo pretende ser a aplicável), e da adequação (por se tratar de uma figura suscetível de colocar em crise os fins de prevenção geral e de prevenção especial positiva e negativa que inspiram o sistema punitivo português e a proteção que é devida às vítimas de violência sexual, desvirtuando a natureza do Direito Penal como um direito do bem jurídico e de garantia da paz social, assim como o conceito material de crime como violação do bem jurídico, que inspiram o sistema constitucional e jurídico-penal português) (- Cfr. Cristina Almeida e Sousa, A inconstitucionalidade … p.p. 14 a 36) -  o certo é que, pelo menos, o Supremo Tribunal de Justiça vem ultimamente, de forma reiterada, afirmar a necessidade de abandonar tal figura quando estão em causa crimes de natureza sexual (Cfr. Acórdãos do STJ de 20-04-2016 (Proc. n.º 657/13.2JAPRT.P1.S1 – 5.ª Secção), de 4-05-2017 (Proc. n.º 110/14.7JASTB.E1.S1 – 5.ª Secção), de 28-06-2017 (Proc. n.º 23/14.2GCCNT.S1 – 3.ª Secção), de 13-07-2017 (Proc. n.º 1205/15.5T9VIS.C1.S2 – 3.ª Secção), de 13-09-2017 (Proc. n.º 616/15.0PAVFX.L1.S1 – 3.ª Secção), de 22-03-2018 (Proc. n.º 467/16.5PALSB.L1.S1 – 5.ª Secção), de 20-02-2019 (Proc. n.º 234/15.3JAAVR.S1 – 5.ª Secção), de 27-02-2019 (Proc. n.º 2165/15.8JAPRT.P1.S1 – 3.ª Secção), de 13-03-2019 (Proc. n.º 3910/16.0T9PRT.P1.S1 – 3.ª Secção, todos referidos no acórdão do STJ de 27.11.2019 relatado pelo Cons. Augusto Matos - v. Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 13.07.2020, proc. 3/2017.2 JABRG, Des. Teresa Coimbra, in gde.mj.pt).

É esta a orientação que acolhemos: em casos como o dos autos não nos encontramos perante um crime de trato sucessivo, mas perante crimes em concurso efetivo, considerando: 1. a pluralidade de resoluções; 2. a estrutura objetiva típica; os diversos sentidos sociais de ilicitude a reclamar punição autónoma.

Por um lado, para que a noção de crime de trato sucessivo passasse para os crimes sexuais foi necessário considerar que quem abusa reiteradamente de uma pessoa decidiu fazê-lo uma vez, sendo os plúrimos atos realizados sucessiva e reiteradamente no tempo integrantes de um único crime.

(…).

Além da pluralidade de resoluções, importa considerar que a estrutura objetiva típica de um crime é fixada pelo legislador e não pode estar à mercê de cada processo, casuisticamente considerado.

Efetivamente, quando, a lei (art.º 171.º do CP) pune a prática de um ato sexual de relevo a «quem praticar ato sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa», o que significa que cada ato só por si já constitui abuso. Isto é, não resulta da lei que «a conduta ilícita abrange unitariamente uma multiplicidade de atos», contrariamente à noção de trato sucessivo, (que involuntariamente acaba por se aproximar do crime continuado, não obstante manifestamente não existir uma diminuição considerável de culpa e o nº 3 do art.º 30 introduzido no Código Penal pela lei 40/2010 de 3/9 o não permitir).

Se o que carateriza o crime de tráfico de estupefacientes é o facto de se tratar de um crime de empreendimento e de um crime de múltiplos atos, o mesmo não podemos dizer quanto aos crimes de abuso sexual.  Ainda que se possa considerar que um possível crime de abuso poderia integrar diversos atos, verificamos, todavia, que o tipo pune a conduta não de abuso, enquanto integrante de múltiplos atos, mas cada ato individualmente considerado. Na verdade, olhando, por exemplo, para o disposto no art. 171.º, do CP, é punido todo aquele que pratica ato sexual de relevo com menor, e logo que pratica cada ato, e em cada ato que pratica. É o ato ainda isolado que já constitui um caso de abuso (Cfr. Helena Moniz, Crime…, pp. 13 e 14).

Por outro lado, mesmo as situações de violência sexual reiterada e prolongada no tempo traduzem «comportamentos diferentes, que requerem do seu autor a criação de situações favoráveis de secretismo e condicionamento da vontade da vítima, aptos à concretização do resultado proibido, a que tendencialmente estarão associados diversos processos volitivos autónomos entre si e não uma única vontade, de cuja análise global, transparecem diferentes sentidos técnico-jurídicos de ilicitude que exige o seu enquadramento jurídico como concurso real de infrações» (Cfr. Cristina Almeida e Sousa, A Inconstitucionalidade…, p. 26).

«Temos, pois, situações de concurso de crimes quando o agente pratica vários atos sexuais de relevo, ainda que sobre a mesma vítima. Desde logo, deve afirmar-se que haverá concurso efetivo de crimes sempre que o contexto espácio-temporal seja distinto, bastando para tanto que aqueles atos sejam realizados em momentos temporais distintos. Além disto, deve também ser entendido como um caso de concurso aquele em que o agente procura oportunidades, ou cria situações para a prática dos atos típicos do crime — no seguimento da doutrina que entende que é de recusar “a figura do crime continuado sempre que seja o próprio agente a criar a circunstância facilitadora que conduz à prática do crime» (-Cfr. Helena Moniz, Crime…p 22).

Poderemos, ainda assim, considerar tratar-se de um concurso aparente, ou impuro, devendo o agente ser punido por apenas um crime (o dominante) e levando para a determinação da medida da pena, todos os outros ilícitos (dominados)?

Vários abusos sobre a mesma vítima, em vários dias diferentes ao longo de um certo período, integram, analisando globalmente o comportamento, apenas um sentido social de ilicitude ou vários sentidos sociais de ilicitude?

Entendemos que são vários os sentidos sociais de ilicitude em presença.

Neste contexto, não se pode concluir por um sentido de ilicitude dominante e um dominado; trata-se sim de diversos sentidos de ilicitude em que não há um que se evidencie relativamente a outro(s), não há um dominante e outro dominado, e também não se pode falar em unidade de desígnio criminoso, quando o que ocorreu foi uma homogeneidade de um desígnio criminoso sucessivamente renovado e, portanto, plúrimo, havendo vários sentidos sociais de ilicitude autónomos, a reclamar a punição, por cada um deles, ou seja, uma pluralidade de factos puníveis.  (cfr. Helena Moniz, Crime…, pp. 21 e 22).

«Se considerarmos que a unidade de contexto espácio-temporal desaparece quando os atos são realizados em dias diferentes, tanto basta para que não se possa entender como sendo um único o sentido global de ilicitude; o sentido social daqueles comportamentos perpetrados em momentos temporalmente diferentes, ainda que, eventualmente, sem um desfasamento significativo, são o bastante para que se considere existir uma pluralidade de sentidos de ilícito sem que se verifique uma intersecção dos diversos ilícitos singulares — desde logo porque, em cada ato individualmente perpetrado, a vítima é renovadamente lesada» (cfr. Helena Moniz, Crime…, p. 22).

Mas, como ultrapassar a incerteza do número de crimes em razão, por exemplo, do tempo já decorrido, da frequência muitas vezes irregular da sua prática, da incapacidade da vítima se lembrar de cada uma das agressões sexuais?

A solução está em identificar tanto quanto possível rigorosamente os atos lesivos e punir aqueles que não oferecem dúvidas.

Regressando ao caso dos autos.

No caso pretende o recorrente que o arguido seja condenado pela prática de 4 crimes de abuso sexual de criança p.p. art.º 171.º nºs 1.

O arguido entende que não é possível apurar o número de vezes em que os factos tenham ocorrido, e que os mesmos se verificaram num contexto de unificação de resolução e com proximidade temporal que confere uma unidade ao facto ilícito.

O Acórdão a quo refere-se a diversas condutas politemporais insusceptíveis de contabilizar em concreto.

Sem prejuízo, concluímos nós, da análise da factualidade provada é possível identificar 4 ocasiões distintas.

Três das ocasiões ocorreram no quarto como na casa de banho da avó. Que são diversas entre si, resulta não apenas da descrição dos atos efetuados, como de o Tribunal a quo, o dizer expressamente, ao referir-se após a primeira descrição conduta (als. a) 4 e 5 da factualidade provada) a que «Noutras ocasiões…», o arguido adotou a conduta descrita na al. a) 6), e que «Por outro lado, em outras ocasiões, adotou a conduta que veio a ser descrita sob a al. a) 7 da factualidade provada.

«A última vez que sucedeu» (e quarta das ocasiões) ocorreu numa tenda montada no terraço da avó.

Não ignoramos que ao referir-se (no plural) a ocasiões, está o Tribunal a quo a deixar implícito que cada um destes eventos ocorreu mais do que uma vez. Considerando, no entanto, a consabida dificuldade em identificar e isolar cada um dos eventos, aliás, o recorrente apenas pretende a condenação pela prática de 4 crimes, julgamos, que é possível identificar e isolar, sem margem para dúvidas, 4 ocasiões distintas - que correspondem a diferentes unidades de sentido de ilicitude, que reclamam proteção autónoma, e que foram aquelas que foi possível identificar e concretizar - em que o arguido levou a cabo atos comandados por diversas resoluções e que se traduziram na autónoma lesão do bem jurídico protegido.

Concretizando:

1º - Assim, em data não concretamente apurada, mas entre janeiro de 2019 e março de 2020, quando a BB ia brincar com o arguido AA, o arguido aproveitava-se desse facto e dizia à BB para se despir, e despia-se ele também.

Ato continuo, o arguido pedia à menor BB para lhe mexer no pénis, o que esta acedia, fazendo com que o arguido ficasse com o pénis ereto (al. a. 4) e 5) da factualidade provada).

2.º - Noutras ocasiões, o arguido pedia à BB para se despir, após, o arguido colocava o seu pénis de fora e roçava o mesmo na vagina da menor BB. (al. a.6) da factualidade provada)

3.º - Por outro lado, em outras ocasiões, o arguido, após a BB se despir, tocava com as suas mãos na vagina da menor e dava-lhe beijinhos na vagina (al. a.7 da factualidade provada).

a.8) Os atos supra descritos, tanto ocorreram na casa de banho, como no quarto da casa da avó.

4.º - A última vez que sucedeu, foi numa tenda montada no terraço da avó da menor BB e em que esta foi ver como é que eles dormiam na tenda. O arguido AA fechou a tenda e pediu à BB para esta mostrar a vagina, o que esta acedeu (al. a) 9 da factualidade provada).

Ora, cada um destes quatros atos não corresponde a um momento ou a uma parcela, a um comportamento, em que se tenha desdobrado uma atividade suposta no tipo, mas antes um todo em si mesmo, um autónomo facto punível.

Aliás, a matéria de facto provada não permite inferir que o arguido tenha tomado uma unidade resolutiva que abarcasse, desde o seu início, as circunstâncias de tempo, lugar e modo em que viriam a ter lugar os atos sexuais que praticou com a vítima.

Antes, o que ressalta da factualidade provada é que o arguido, quando pretendia satisfazer os seus apetites sexuais com a vítima, renovava a intenção de o fazer, praticando, de seguida os atos necessários à execução.

Ou seja, cada uma das condutas do arguido é autónoma em relação às outras, e assim sujeito a um juízo de censura, constituindo um crime, em concurso efetivo com os demais.

Aliás, a eventual admissão da unificação de uma pluralidade de condutas essencialmente homogéneas, através da figura do crime de trato sucessivo, poderia redundar num resultado que o legislador quis afastar (ainda que por referência à figura de crime continuado) com a alteração ao n. 3 do art.º 30.º do Código Penal, realizada pela Lei n.40/2010, de 03-09, que exclui expressamente a possibilidade de unificação de condutas na figura do crime continuado, quando estejam em causas bens iminentemente pessoais (Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 14.01.2016, proc. 414/12.3TAMCN.S1, Cons. Manuel Augusto de Matos, in dgsi.pt).

É, pois, por esta pluralidade de crimes que o arguido deverá ser punido e não por um crime de trato sucessivo.

Assim, o arguido revoga-se, nesta parte o Acórdão a quo, condenando o arguido, pela prática, e concurso real, de quatro crimes de abuso sexual de crianças, previsto e punível pelo art.º 171.º n.º 1 do Código Penal.


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Dosimetria penal


Considera o recorrente que o arguido, ao invés ter sido condenado a uma pena de prisão 18 meses, suspensa na sua execução por igual período, sujeitando-se  suspensão a regime de prova e demais condições fixadas no Acórdão recorrido, deve ser condenado em quatro penas parcelares, independentes, que se deverão fixar entre os 14 meses e os 18 meses, situando-se a pena única entre os 3 e os 4 anos de prisão, que deve ser suspensa na sua execução, sujeitando-se tal suspensão a regime de prova, e mantendo-se as demais condições fixadas no Acórdão a quo.

Vejamos.

A pena visa as finalidades previstas no n.º 1 do art.º 40.º do Código Penal (proteção de bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade) e, em caso algum, pode ultrapassar a medida da culpa (cfr. n.º 2 do mesmo artigo).

A moldura penal dos crimes cometidos pelo arguido é de 1 a 8 anos de prisão, nos termos do n.º 1 do art.º 171º do Código Penal.

Considerando, no entanto, que o arguido não tem antecedentes criminais, se encontra familiar, escolar, e socialmente integrado e não mantém contacto com a vítima, não merece censura a formulação, pelo Tribunal a quo, de um juízo de prognose favorável ao arguido, por existirem razões sérias para crer que, da atenuação especial pena de prisão resultam sérias vantagens para a reinserção social do mesmo, termos em que será de aplicar o regime especial para jovens delinquentes, com a consequente atenuação especial da pena de prisão, por efeito do disposto no artº 4º do Dec. Lei n.º 401/82.

Assim, por efeito do disposto nas disposições conjugadas dos artºs. 4º do Dec. Lei n.º 401/82, e 72º e 73º do Código Penal, a moldura penal abstrata passa a ser de 1 mês até 5 anos e 4 meses de prisão.

A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime depuserem a favor do agente ou contra ele (art. 71.º do Código Penal).

As exigências de prevenção geral são elevadas, considerando a gravidade dos bens jurídicos violados, e sendo evidentes o alarme social e a repulsa comunitária causados por crimes de abuso sexual contra crianças, e saem, no caso, aumentadas, pela intensidade da ilicitude, considerando a relação familiar entre arguido e vítima e o contexto em que os crimes foram praticados.

Por outro lado, quando a lei criminaliza a prática de atos sexuais com menores de 14 anos, está essencialmente a proteger a criança de quem, explorando a imaturidade dela, a leva a praticar atos cuja dimensão não compreende, para os quais não se preparou, nem consentiu, porque carece verdadeiramente de capacidade para tal e com reflexos negativos significativos no seu desenvolvimento equilibrado e saudável.

No caso, a vítima tinha 6 e 7 anos de idade.

No entanto, as consequências das condutas do arguido foram de gravidade mitigada, na medida em que não deixaram quaisquer sequelas físicas ou psicológicas à menor, o que diminui as exigências de prevenção geral.

Por seu turno, as necessidades de prevenção especial saem atenuadas pelo afastamento entre o arguido e a vítima (não mais voltaram a ver-se, falar ou conviver), a inexistência de antecedentes criminais, e a inserção familiar e social do arguido.

O dolo foi direto o que eleva a culpa.

Tudo ponderado, afigura-se-nos adequado aos factos e à personalidade do agente a aplicação ao arguido de uma pena de 12 meses de prisão, por cada um dos crimes dos três crimes cometidos na casa de banho, como no quarto da avó (referidos na alínea a) sob os n.ºs 4, 5, 6, e 8), e de 8 meses de prisão, pelo crime cometido na tenda (al. a) sob o n.º 9).

No que se refere à pena única, estabelece o artigo 77º, nº 1, do Código Penal:

«Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente».

E dispõe o nº 2, que «A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes».

Como é unânime na doutrina e na jurisprudência, consagra este preceito um sistema de pena conjunta, que respeita a autonomia das penas parcelares, partindo delas para a fixação de uma moldura penal, construída através do cúmulo jurídico daquelas, no quadro da qual será fixada a pena única.

As finalidades da pena única são as previstas no n.º 1 do art.º 40.º do Código Penal (proteção de bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade), não podendo, em caso algum, pode ultrapassar a medida da culpa (cfr. n.º 2 do mesmo artigo).

Na determinação da medida concreta da pena única deve atender-se, como em qualquer outra pena, aos critérios gerais da prevenção e da culpa (art.º 71º do Código Penal); e ainda a um critério especial: a consideração conjunta dos factos e da personalidade do agente, na sua relação mútua. Ao tribunal impõe-se, assim, uma apreciação global dos factos, tomados como conjunto, e não enquanto mero somatório de factos desligados, na sua relação com a personalidade do agente.

Nessa apreciação deverá indagar-se se a pluralidade de factos delituosos corresponde a uma tendência da personalidade do agente, ou antes a uma mera pluriocasionalidade, de caráter fortuito ou acidental, não imputável a essa personalidade. Para o efeito, deverão ser considerados diversos fatores, como sejam a amplitude temporal da atividade criminosa, a diversidade dos tipos legais praticados, o «tipo de criminalidade» praticado, o grau de adesão ao crime como modo de vida, as motivações do agente, as expetativas quanto ao futuro comportamento do mesmo.

A determinação da pena única, quer pela sua sujeição aos critérios gerais da prevenção e da culpa, quer pela necessidade de proceder à avaliação global dos factos na ligação com a personalidade, não é compatível com a utilização de critérios rígidos, com fórmulas matemáticas ou abstratas de fixação da sua medida. Como em qualquer outra pena, é a justiça do caso que se procura, e ela só é atingível com a criteriosa ponderação de todas as circunstâncias que os factos revelam, sendo estes, no caso do concurso, avaliados globalmente e em relação com a personalidade do agente, como se referiu (cfr. Ac. do STJ datado de 22.04.2015, no proc. 558/12.1PCLRS.L2.S1, Com. Maia Costa, disponível in www.dgsi.pt).

No caso concreto, tendo em atenção as penas parcelares aplicadas, a moldura penal da pena aplicável em cúmulo tem como limite mínimo, a prisão de 12 meses (a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes), e como limite máximo 3 anos e 8 meses (a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes).

Quanto à ilicitude, entendida como juízo de desvalor da ordem jurídica sobre um comportamento, por este lesar e pôr em perigo bens jurídico-criminais será de considerar que apresenta alguma gravidade, considerando período temporal entre os diversos crimes em concurso e o tempo em que o arguido persistiu na atividade criminosa.

Quanto à modalidade de dolo, o arguido agiu com dolo direto.

Na avaliação da personalidade do arguido importa reter o que consta dos factos dados como provados, nomeadamente, as suas condições de vida, e a ausência dos antecedentes criminais.

No que toca à prevenção especial, o arguido carece de socialização, a vítima tinha entre 6 e 7 anos de idade e é sua prima, e os crimes foram cometidos em reuniões familiares em casa da avó. O afastamento desde então, entre o arguido e a vítima, a inserção familiar e social e a idade do arguido. atenuam as exigências de preventivas.

Analisando globalmente a conduta do arguido, conclui-se que as necessidades de prevenção geral são elevadas, dado o alarme social que os crimes em causa, provocam e médias as necessidades de prevenção especial.

A relevar, ainda os crimes praticados pelo arguido terem sido da mesma natureza, em idênticas circunstâncias e sobre uma única vítima.

Neste contexto, valorando o ilícito global perpetrado, ponderando em conjunto a gravidade dos factos e a sua relacionação com a personalidade do arguido, entendemos justo, necessário, adequado e proporcional aplicar ao arguido uma pena única de dois anos e seis meses de prisão.

Considerou o Tribunal a quo, que a pena de prisão deveria ser suspensa na sua execução, com regime de prova (artºs 50º , 51º nº 1 al. a) e 53º nºs 3 e 4 do Código Penal), sob a condição de, naquele prazo, pagar à ofendida a indemnização no valor de mil euros “infra” fixada, por se considerar, atenta a primo-delinquência do arguido, e a sua boa inserção social e familiar, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam, “in casu”, de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, o que não foi questionado em sede recursiva.

O período da suspensão é fixado entre 1 e 5 anos.

Considerando o disposto no n.5 do art. 50.º, e por necessário e adequado às exigências preventivas, supra referidas, fixa-se o período de suspensão em igual período ao do da pena única.


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III. Dispositivo


Em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento parcial ao recurso, e, revogando parcialmente o Acórdão recorrido, e em consequência, condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, e na forma consumada, de quatro crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. no artº 171º nº 1 do Cod. Penal, e no artº 4º do Decreto-Lei n.º 401/82 de 23/09, em três penas parcelares de doze meses de prisão, e uma quarta pena, de oito meses de prisão, e na pena única de dois anos e seis meses, suspensa na sua execução por igual período com regime de prova, e sob a condição de, nesse período, o arguido pagar à ofendida BB a indemnização de mil euros, e comprovar tal pagamento nos autos.

Manter, no restante o Acórdão recorrido.

Sem custas.

 (Este texto foi por mim, relatora, integralmente revisto antes de assinado)

Coimbra, 30 de Março de 2022

Maria Alexandra Guiné (relatora)

Ana Carolina Cardoso (adjunta)

Alberto Mira (presidente da 5.ª secção criminal)