Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
67/07.0IDCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
CRIME OMISSIVO PURO
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
CONSUMAÇÃO
Data do Acordão: 11/10/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CONDEIXA-A-NOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 14º DO CP E 5º, Nº 2 DO RGIT
Sumário: 1. Sob o ponto de vista dogmático/jurídico, o crime de abuso de confiança fiscal configura-se como um crime omissivo puro na medida em que o facto típico revisto na norma incriminadora se verifica com a não entrega da prestação tributária, tendo-se por praticada a omissão na data em que termina o prazo para o cumprimento da obrigação tributária, por força do n.º2 do art.º 5º do RGIT;
2. É um crime doloso, aferido este nos termos gerais do art.º 14º do Código Penal;
3. No que diz respeito ao bem jurídico protegido, o crime de abuso de confiança fiscal tem por fundamento a protecção do património do Estado, mediante a tutela e protecção criminal da obrigação da entrega das quantias que foram confiadas ao agente para que este as entregasse nos Cofres do Estado;
4. É um crime omissivo puro que se consuma no momento em que o agente não entrega a prestação tributária devida, haja ou não haja entrega da declaração tributária.
5. O tipo de ilícito prescinde hoje do elemento de apropriação da prestação tributária, bastando-lhe a mera falta de entrega passados 90 dias sobre o termo do prazo legal da entrega da prestação.
Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO
1. No Processo Comum Singular n.º 67/07.0IDCBR, no Tribunal Judicial de Condeixa-a-Nova, por sentença datada de 24 de Março de 2003, foi condenado o arguido J... pela prática do crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo n. ° 1 do artigo 6°, n. º 3 do artigo 7° e n.° 1 e n.º 4 e n.º 5 do artigo 105°, todos do R.G.I.T., na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de EUR. 8,00 (oito) euros, perfazendo o montante global de EUR. 960,00 (novecentos e sessenta euros);
Mais foi condenada a arguida "NS... CONSULTORIA E APOIO AOS NEGÓCIOS E GESTÃO UNIPESSOAL, LDA", pela prática do crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo n. ° 1 do artigo 6°, n. º 3 do artigo 7° e n. ° 1 e n.º 4 e n.º 5 do artigo 105°, lodos do R.G.I.T., na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa à taxa diária de EUR. 5,00 (cinco euros), perfazendo o montante global de EUR. 1.250,00 (mil duzentos e cinquenta euros).

2. O ARGUIDO J... recorreu da sentença, assim concluindo o seu recurso (em transcrição):
«a) As vendas a dinheiro relativas a 2005, emitidas em 2007 não foram na maioria recebidas como consta do doc. n.° 2, com 28 folhas junto à contestação, que se dá aqui como reproduzido;
b)- As vendas a dinheiro e facturas relativas ao 4º Trimestre de 2005 cujos montantes não foram recebidos constam do doc. 3 junto à contestação e somam o imposto na quantia de 1.648.72€.
c)- Se a 9.046.00 € lhe subtrairmos estes 1 .648.72.€ temos 7.397.28€.
d)- Esta importância é inferior a 7.500.00€, logo está despenalizada.
e)- Mas se se verificar o documento de fls 1 c/7 fls, verificamos que foram oferecidos ao Serviço de Finanças de Coimbra 2, créditos no valor de 50.587.00€ , para pagamento de dívidas no montante de 30.000.00€, contudo, apenas foram cobrados 3.827.43€.
f)- Há que convir que a cobrança de receitas não é apenas difícil ou impossível para a administração fiscal. O mesmo se passa com os substitutos tributários.
g)- A omissão de liquidação de serviços prestados e do correspondente imposto não preenche o tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal, por ausência dos respectivos elementos do tipo legal - cobrança e apropriação.
h)- Apenas fica sujeita a contra-ordenarão nos termos do Art.° 31 n.° 2 do R.G.I.T.
i)- A emissão de vendas a dinheiro imposta pelo Sr Inspector viola o prescrito no Art.°35.°, n.º 1 do Código do IVA;
j)- O parecer exemplificativo emitido pela Técnica da DGI, P..., e que se encontra junto aos autos, não suporta uma motivação ou fundamento de imputação criminal.
k)- As exemplificações apenas podem suportar presunções e, estas podem fundamentar a tributação por avaliação indirecta.
l)- A avaliação indirecta é feita nos termos do Art. 87.° e 88.° da Lei Geral Tributária, sujeita a reclamação para a Comissão de Revisão nos termos do Art.° 91º do mesmo Diploma.
m) — O parecer da Técnica e testemunha de acusação, P... baseado “ do que tinha dado a conhecer pelos colegas “, não pode servir de meio de prova (art.° 129.° do Código de Processo Penal).
n)- A factualidade ora se diz respeitar ao 4.° Trimestre de 2005 ora se diz respeitar a 15 de Fevereiro de 2006.
o) A sentença não clarifica, mas confunde o que é uma liquidação; uma cobrança, um envio de imposto aos Serviços do IVA.
p)- Os factos relativos a omissão de facturação a empresas falidas e desaparecidas, remontam ao 4.° Trimestre de 2005,
q)- No 4. Trimestre de 2005 a firma que laborava era a NS... U1. gerida por dois sócios J... e Bruno Rebelo;
r) - A sentença não atribuiu os factos ao momento da sua prática para imputação de responsabilidades à gestão. Art.° 3.° do Código Penal.
s)- O depoimento da testemunha Jorge Sá, inspector tributário, evidencia não ter certezas de nada, pois são constantes as expressões: Não tenho ti certeza; fiquei com a ideia que estavam a emitir recibos; alguns serviços/oram prestados gratuitamente; calculei o imposto com base judiciária, sobre como chegou ao montante liquidado disse.’ Terá sido; Dá uma ideia de verbas que terá recebido. E sempre difícil.
t)- Sobre as vendas a dinheiro elaboradas por sua ordem e em face da relação extraída dos Serviços de Finanças com os nomes dos clientes que não haviam sido facturados os serviços prestados e IVA, respondeu: Não sei se me passaram pelas mãos... Não conferi.
u) — Não conferindo as vendas a dinheiro, ainda que ilegalmente processadas, não pode depor com exactidão sobre o montante liquidado, recebido e entregue ao Estado.
v) -- As testemunhas de defesa D... e P…, no seu depoimento responderam com segurança que foi o Sr. inspector que impôs a emissão de vendas a dinheiro pela NS... Unipessoal no ano de 2007( período da inspecção) relativas a 2005 e à NS... Lª.
w) - A prova produzida não demonstra com segurança e certezas jurídicas o montante de imposto recebido, nem tão pouco o liquidado;
x)- O recorrente e sociedade condenada, não se apropriaram de qualquer montante de imposto a entregar ao Estado, porque não foi feita a liquidação pela sociedade antecessora e seus gerentes;
y)- A falta de liquidação não preenche o tipo legal de crime de abuso de confiança por lhe faltar os dois elementos do tipo legal de crime — Cobrança e apropriação de imposto;
z)- O recorrente e sociedade arguida foram condenados por acção típica impossível.
(…)
Vossas Excelências absolverão o recorrente (…)»

3. O Ministério Público da 1ª instância respondeu a este recurso, defendendo a justeza do sentenciado, pedindo a final a negação de provimento a este recurso.

4. Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta deu o seu PARECER, defendendo a improcedência do recurso.

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea c), do mesmo diploma.



II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).
Assim, balizados pelos termos das conclusões Diga-se aqui que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar (cfr. Germano Marques da Silva, Volume III, 2ª edição, 2000, fls 335 - «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringi8r o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões») – Cfr. ainda Acórdão da Relação de Évora de 7/4/2005 in www.dgsi.pt.
formuladas em sede de recurso, as questões a resolver consistem em
· saber se há que modificar a matéria de facto apurada;
· saber qual o relevo o facto de não ter sido recebida a maioria das vendas a dinheiro;
· saber se a conduta do agente está despenalizada;
· saber se há efeitos jurídicos nesta sede por conta da «mutação» da pessoa colectiva;
· saber se se exige apropriação.

2. DA SENTENÇA RECORRIDA
2.1. Na sentença recorrida, é este o rol de FACTOS PROVADOS (em transcrição):
«1. A sociedade primeira arguida é uma sociedade por quotas.
2. Enquadra-se para efeitos de I.V.A. no regime normal da periodicidade trimestral pelo exercício da actividade de "outras actividades consultoria, CAE 70220".
3. O arguido J… é sócio e único gerente da sociedade “NS... Consultoria e Apoio aos Negócios e Gestão Unipessoal, Lda.”, desde 20/01/2006 até à presente data.
4. A sociedade arguida, em conjunto com o arguido J…, na qualidade de gerente daquela sociedade, liquidou o I.V.A. por serviços prestados e pagos pelos seus clientes, durante os anos de 2005 e 2006.
5. Actuou assim a primeira arguida, conjuntamente com o arguido J…, no exercício das suas funções e na qualidade de sócio gerente daquela, dando as instruções e ordens atinentes, nomeadamente, no que concerne à liquidação e cobrança do I.V.A. devido pela actividade que desenvolve para posterior entrega à Administração Fiscal.
6. Porém, e no que diz respeito ao período tributário 05.12T, os arguidos jamais entregaram à Administração Fiscal a importância retida no prazo legal para entrega daquela prestação tributária, nem tão pouco nos 90 dias seguintes ao termo de tal prazo.
7. A vantagem patrimonial global, decorrente da conduta descrita cifra-se em €9.046,85, relativamente ao IVA referente ao período de tributação 05.12T.
8. Omitindo os pagamentos da quantia referida em 7), os arguidos actuaram com o intuito de obter, como conseguiram, benefícios patrimoniais que bem sabiam ser ilegítimos, tendo com tal conduta causado prejuízo ao Estado.
9. Com efeito, os arguidos bem sabiam que as quantias cobradas a título de I.V.A. se destinavam ao Estado e que não estavam, por qualquer forma, legitimados a integrá-los no seu património ou no património social, como fizeram.
10. Mais agiram com o conhecimento de que com a sua conduta ofendiam o erário estadual, bem sabendo que era sua obrigação entregá-la nos respectivos prazos.
11. Agiram os arguidos de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta era ilícita e criminalmente punível.
12. O arguido não tem antecedentes criminais registados;
13. Pela sociedade arguida foram emitidas as vendas a dinheiro que constam de fls. 281 a fls. 306 dos autos;
14. É prestador de serviços de consultoria e contabilidade com vencimento de EUR.570,00.
15. Recebe EUR. 600,00 pelo arrendamento do estabelecimento da empresa da qual é sócio-gerente;
16. Vive com a mulher que aufere vencimento de EUR.1.000,00
17. Despende EUR. 600,00 mensais com credito à habitação;

2.3. Motivou assim o tribunal recorrido esta decisão de facto (inexistindo FACTOS NÃO PROVADOS):
«A convicção do tribunal baseou-se na ponderação crítica do conjunto da prova produzida em julgamento, apreciada segundo as regras da experiência comum, designadamente nas declarações dos arguidos e nos depoimentos das seguintes testemunhas que se mostraram isentos, objectivos e credíveis:
Atendeu o tribunal às declarações do arguido que declarou que relativamente ao período em causa na acusação não recebeu quaisquer valores das empresas a quem prestou serviços, tendo emitido vendas a dinheiro e facturas relativas a valores não efectivamente recebidos. Mais declarou que com vista a regularizar as dividas para com a administração fiscal entregou créditos para cobrança, sabendo que a administração fiscal não logrou cobrá-los. Teve ainda o tribunal em conta as declarações dos arguidos quanto às suas condições pessoais.
Atendeu ainda o tribunal aos depoimentos das seguintes testemunhas:
- A…, Inspector Tributário da Inspecção Tributaria da Direcção de Finanças de Coimbra que levou a cabo a fiscalização da empresa arguida e que esclareceu os termos em que a mesma decorreu bem como os elementos de que se socorreu para obter os valores que foram determinados como estando em divida à administração fiscal. Declarou que atendeu às contas correntes de clientes, em particular os valores constantes a fls., 71 e 72 que lhe foram entregues pelos arguidos e que constatou que a contabilidade não se encontrava devidamente regularizada, tendo já no decurso da fiscalização o arguido entregue declaração de substituição com os valores relativos ao período objectos dos autos, não tendo procedido ao pagamento correspondente ao imposto a liquidar que foi apurado. Confirmou o teor do relatório de inspecção por si elaborado e que consta a fls.126 a fls. 145, onde se encontram ainda os prints informáticos relativos às declarações entregues pelo sujeito passivo. Declarou ainda que as regularizações foram efectuadas de forma voluntaria pelo sujeito passivo.
- P…, signatária do parecer de fls. 178 e seguintes e que esclareceu quais os elementos da inspecção que serviram para elaboração do parecer, tendo por base a matéria colectável declarada pelo sujeito passivo.
- D…, empregada da contabilidade da sociedade arguida que confirmou que a sociedade prestou serviços no período a que respeita a inspecção, não revelando conhecimento detalhado no entanto, sobre as contas correntes e elementos anexos ao relatório inspectivo;
- M..., funcionaria administrativa da sociedade, que elaborava as contas correntes e que declarou que a sociedade prestou serviços no último trimestre de 2005;
- P..., dos serviços de finanças em Coimbra, que não teve contacto prévio com o processo e não revelou conhecimento relevante de qualquer facto útil para a descoberta da verdade, uma vez que está a acompanhar a execução fiscal.
Quanto à prova documental, o Tribunal formou a convicção com base nos documentos juntos aos autos, designadamente:
- Processo de inquérito da DGI (fls. 37 a 83 e 126 a 171, 178 a 185), certidão do registo comercial (fls. 200 a 203), CRC;
Cotejada a prova, verifica-se que se apurou em acção inspectiva realizada pelas finanças, com recurso aos meios contabilísticos reunidos na sociedade arguida que a mesma não entregou o IVA a que estava legalmente obrigada no prazo legal conforme consta do relatório de inspecção efectuado.
Os documentos juntos pelo arguido J... em sede de contestação não permitem infirmar os factos provados porquanto os mesmos foram tidos em conta nos rendimentos declarados pelos arguidos em sede de declarações de substituição e determinaram o apuramento da matéria colectável, nos termos esclarecidos pelas testemunhas ouvidas».

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

3.1. Vem o arguido (pessoa singular) recorrer da sentença condenatória.
Alega que o faz de facto e de direito.

3.2. IMPUGNAÇÃO DE FACTO

3.2.1. Pretende o recorrente impugnar a matéria dada como provada.
Incidindo este recurso sobre matéria de facto, nos termos do artigo 412º, n.º 3 do CPP, incumbe ao recorrente o ónus de especificar
a)- os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b)- as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c)- as provas que devam ser renovadas.
Acentua depois o n.º 4 desse normativo que “quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do n.º 3 fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do artigo 364º, n.º 2, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
O artigo 417º, n.º 3 do CPP (na versão revista de 2007, levada a cabo pela Lei n.º 48/2007 de 29/8) permite o convite ao aperfeiçoamento da respectiva peça processual se a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.ºs 2 a 5 desse mesmo normativo.
Temos entendido o seguinte: se analisada a peça do recurso constatarmos que a indicação das especificações legais constam do corpo da motivação de forma assaz suficiente para se compreender o móbil do recorrente, não deveremos, assim, ser demasiado formalistas ao ponto de atrasar a tramitação de um processo quando existem conclusões e se consegue das mesmas deduzir, mesmo que parcialmente, note-se, as indicações previstas no n.º 2 e no n.º 3 do citado artigo 412º.
A este propósito, convém lembrar que as “conclusões aperfeiçoadas” têm de se manter no âmbito da motivação apresentada, não se tratando de uma reformulação do recurso ou da apresentação de um novo recurso - por outras palavras: o convite ao aperfeiçoamento, estabelecido nos n.º 3 e 4 do artigo 417.º, do C.P.P., pode ter lugar quando a motivação não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos nºs. 2 a 5 do artº 412º do mesmo código, mas sempre sem modificar o âmbito do recurso.
Pelo que se o corpo da motivação não contém as especificações exigidas por lei, já não estaremos perante uma situação de insuficiência das conclusões, mas sim de insuficiência do recurso, insusceptível de aperfeiçoamento.
No nosso caso, o recorrente não satisfez minimamente os requisitos legais, já que apenas ataca a forma como este tribunal recorrido valorou a prova produzida, indicando nomes de testemunhas mas sem qualquer ligação a factos concretos que impusessem decisão diversa da que foi tomada.

3.2.2. É sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto pela seguinte ordem:
- primeiro da impugnação alargada, se tiver sido suscitada;
- e, depois e se for o caso, dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do C.P.Penal.
Não há que confundir estas duas formas de impugnação da matéria factual – por um lado, a invocação dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, alíneas a). b) e c), e por outro, os requisitos da impugnação – mais ampla - da matéria de facto a que se refere o artigo 412º, n.º 3, alíneas a), b) e c), todos do CPP.

3.2.3. Estabelece o art. 410.º, n.º 2 do CPP que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.
No fundo, por aqui não se pode recorrer à prova documentada.
A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito.
A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).
Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).
Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.
Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.
Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cf. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo n.º 1509/97).
Ora, analisando a decisão recorrida, não vislumbramos qualquer indício desses vícios do artigo 410º/2 do CPP.

3.2.4. Já o erro de julgamento – ínsito no artigo 412º/3 - ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.
Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do CPP.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
Como bem acentua Jorge Gonçalves nos seus acórdãos desta Relação, «o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, cfr. os Acórdãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www. dgsi.pt)».
E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, já aqui aludida, prevista no artigo 412.º, n.º 3, do CPP.
A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Conforme jurisprudência constante, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, com base na audição de gravações, antes constituindo um remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados Cf. Acórdão da Relação do Porto de 11/7/2001, processo n.º 01110407, lido em www.dgsi.pt/trp..
A delimitação dos pontos de facto constitui um elemento determinante na definição do objecto do recurso relativo à matéria de facto. Ao tribunal de recurso incumbe confrontar o juízo sobre os factos que foi realizado pelo tribunal a quo com a sua própria convicção determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifique nas conclusões da motivação.
Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, os Acórdãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www. dgsi.pt).
Nos termos do artº 428º do CPP, as relações conhecem de facto e de direito, podendo modificar a decisão de facto quando a decisão tiver sido impugnada nos termos do artº 412º, nº 3 do mesmo diploma – tal não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, como se a decisão da 1ª instância não existisse, mas apenas um remédio jurídico votado a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, expressamente indicados pelo recorrente.
Já o deixámos escrito - o recurso, no que tange ao conhecimento da questão de facto, não é um segundo julgamento, em que a Relação, agora com base na audição de gravações, e anteriormente com base na leitura de transcrições, reaprecie a totalidade da prova.
E se é certo que perante um recurso sobre a matéria de facto, a Relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, não é menos verdade que deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso como remédio e pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo.

3.2.5. O artigo 127.º do C.P.P. consagra o princípio da livre apreciação da prova, o que não significa que a actividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum e por algumas restrições legais.
Tal princípio concede ao julgador uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, mas que deverá ser capaz de fundamentar de modo lógico e racional.
Os poderes do tribunal na procura da verdade material estão limitados pelo objecto do processo definido na acusação ou na pronúncia, guiado pelo princípio das garantias de defesa do artigo 32º da CRP.
Sobre o tribunal recai o dever de ordenar a produção da prova necessária à descoberta da verdade material, tanto relativamente aos factos narrados na acusação ou na pronúncia, como aos alegados pela defesa na contestação e aos que surgirem no decurso da audiência de julgamento em benefício do arguido.
Quanto à fundamentação da PROVA, há que atentar em certos princípios:
os dos artigos 124º, 125º e 126º do CPP (princípio geral da legalidade das provas);
A convicção sobre a realidade de certo facto existirá quando, e só quando, o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos, para além de toda a dúvida razoável;
Não se procura uma verdade ontológica e absoluta mas apenas a verdade judicial e prática – não pode ser uma verdade obtida a qualquer preço mas apenas a que assenta em meios de prova que sejam legais;
A livre apreciação da prova (ou do livre convencimento motivado) não se pode confundir com a íntima convicção do juiz, assente numa apreciação arbitrária da prova, impondo-lhes a lei que extraia delas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso;
Não satisfaz a exigência de fundamentação da decisão sobre Matéria de Facto a mera referência genérica aos meios de prova produzidos, importando fazer a indicação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz, ou seja, os meios concretos de prova e as razões ou motivos que dos meios de prova relevaram ou que obtiveram credibilidade no espírito do julgador – não basta indicar o concreto meio de prova gerador do convencimento, urgindo expressar a razão pela qual, apoiando-se nas regras de experiência comum, o julgador adquiriu, de forma não temerária, a convicção sobre a realidade de um determinado facto.
A liberdade das provas não é, pois, absoluta, estando condicionada pela prudente convicção do julgador e temperada pelas regras da lógica e da experiência
Porém, nessa tarefa de apreciação da prova, é manifesta a diferença entre a 1.ª instância e o tribunal de recurso, beneficiando aquela da imediação e da oralidade e estando este limitado à prova documental e ao registo de declarações e depoimentos.
A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, podendo também ser definida como “a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá que ter como base da sua decisão” (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1984, Volume I, p. 232), confere ao julgador em 1.ª instância certos meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe.
É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reacções humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de factores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc.
As razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem desse juízo de valoração realizado pelo juiz de 1.ª instância, com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum.
Assim, a atribuição de credibilidade, ou não, a uma fonte de prova testemunhal ou por declarações, tem por base uma valoração do julgador fundada na imediação e na oralidade, que o tribunal de recurso, em rigor, só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum (cf. Acórdão da Relação do Porto, de 21 de Abril de 2004, Processo: 0314013, www.dgsi.pt).
Quer isto dizer que a ausência de imediação determina que o tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, possa alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º] – neste sentido, o Ac. da Relação de Lisboa, de 10.10.2007, proc. 8428/2007-3, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
A operação intelectual em que se traduz a formação da convicção não é, assim, uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis), e para ela concorrem as regras impostas pela lei, como sejam as da experiência, da percepção da personalidade do depoente – aqui relevando, de forma muito especial, os princípios da oralidade e da imediação – e da dúvida inultrapassável que conduz ao princípio “in dubio pro reo” (cf. Ac. do T. Constitucional de 24/03/2003, DR. II, nº 129, de 02/06/2004, 8544 e ss. e Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª Ed., 1974, Reimpressão, 205).

3.2.6. Com este pano de fundo, só nos resta fazer improceder as conclusões atinentes à mudança da factualidade apurada neste julgamento, pois a alegação é absolutamente genérica e inepta, nunca se especificando em que medida e em que pontos de facto os depoimentos de certas testemunhas foram pouco credíveis e pouco isentos, não estando este tribunal de recurso autorizado a lançar mão das gravações do julgamento face à forma como incumpre os mecanismos do artigo 412º/4 do CPP.
Nesse sentido, o recurso é inepto em toda sua extensão factual.
O Tribunal justificou a razão pela qual considerou tais depoimentos credíveis, tal constando de forma suficiente e coerente a fls 336-337.
Como tal, não pode agora este tribunal de recurso modificar a decisão de facto com base em alegação genérica, conclusiva e infundamentada.

3.2.7. Em CONCLUSÃO, manter-se-ão os factos dados como provados pela 1ª instância, improcedendo as conclusões do recurso nesta parte factual.

3.3. IMPUGNAÇÃO DE DIREITO

3.3.1. Está em causa o crime de abuso de confiança p. e p. pelo artigo 105º do RGIT.
De facto, a Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho (rectificada pela Declaração de Rectificação n.º 15/2001, in DR -I Série -A, n.º 180, de 04-08-2001) instituiu um novo regime - Regime Geral das infracções Tributárias (RGIT) - unificando todas as infracções tributárias, incluindo as fiscais aduaneiras.
Tal Lei revogou - artigo 2.º, alíneas a) e b) - com excepção do artigo 58º, o anterior Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras (RJIFNA), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15-01, alterado pelo Decreto -Lei n.º 394/93, de 24-11 e Decreto-Lei n.º 140/95, de 14-06, bem como o Regime Jurídico das Infracções Fiscais Aduaneiras (RJIFA), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 376-A/89, de 25-10.
Como vimos, o RJIFNA, em 1990, unificou os crimes fiscais, em 1995 enxertou os crimes contra a segurança social e agora o RGIT integrou os crimes aduaneiros que se continham no regime especial avulso do Decreto-Lei n.º 376-A/89, de 25-10, que substituíra o Decreto-Lei n.º 424/86, de 27-12, o qual sucedera ao Decreto-Lei n.º 187/83, de 13-05 e ao vetusto Contencioso Aduaneiro, constante do Decreto-Lei n.º 31664, de 22-11-1941.
Tal diploma sofreu várias alterações ao longo dos anos, com a redacção sucessivamente revista pela Lei n.º 109-B/2001, de 27-12-2001 (artigo 51.º), Decreto-Lei n.º 229/2002, de 31-10 (artigo 3.º), Lei n.º 107-B/2003, de 31-12 (artigo 45.º), Lei n.º 55-B/2004, de 30-12 (artigo 42.º), Lei n.º 39-A/2005, de 29-07 (artigo 19.º), Lei n.º 60-A/2005, de 30-12 (artigo 60.º), Lei n.º 53-A/2006, de 29-12 (artigos 95.º e 96.º), Lei n.º 22-A/2007, de 29-06 (artigos 8.º e 9.º), Decreto-lei n.º 307-A/2007, de 31-08 (artigo 3.º), Lei n.º 67-A/2007, DR I-A, Suplemento, de 31-12-2007 (artigos 86.º, 87.º e 88.º) e Lei n.º 64-A/2008, in DR I-A, Suplemento, de 31-12-2008 (artigos 113.º, 114.º e 115.º).
A Lei n.º 15/2001 aprovou:
- o Regime Geral das Infracções Tributárias, constante de Anexo ao diploma (Capítulo I);
- a reformulação da organização judiciária tributária, com alteração do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e da Lei das Finanças Locais (Capítulo II); e,
- o reforço das garantias do contribuinte e a simplificação processual, com alterações ao Código de Procedimento e de Processo Tributário, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/99, de 26-10, à Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17-12 e Código do IRC (Capítulo III).
Estabelece o artigo 1.º da Lei n.º 15/2001:
1 – É aprovado o Regime Geral das Infracções Tributárias anexo à presente lei e que dela faz parte integrante.
2 – O regime das contra-ordenações contra a segurança social consta de legislação especial.
Estabelece por seu turno o artigo 1.º do Regime Geral publicado em anexo com a epígrafe «Âmbito de aplicação»
1 – O Regime Geral das Infracções Tributárias aplica-se às infracções das normas reguladoras:
a) Das prestações tributárias;
b) Dos regimes tributários, aduaneiros e fiscais, independentemente de regulamentarem ou não prestações tributárias;
c) Dos benefícios fiscais e franquias aduaneiras;
d) Das contribuições e prestações relativas ao sistema de solidariedade e segurança social, sem prejuízo do regime das contra-ordenações que consta de legislação especial.
Segundo a sistemática do Regime Geral, há que atender à Parte III, com a epígrafe -Das infracções tributárias em especial.
Aí incluem-se no Título I - Crimes tributários - as seguintes categorias:
Capítulo I - Crimes tributários comuns (artigos 87º a 91º)
Capítulo II - Crimes aduaneiros (artigos 92º a 102º)
Capítulo III - Crimes fiscais (artigos 103.º a 105.º)
Capítulo IV – Crimes contra a segurança social (artigos 106.º e 107.º).
No Título II dedicado às “Contra-ordenações tributárias”, incluem-se o Capítulo I - Contra-ordenações aduaneiras (artigos 108.º a 112.º) – e Capítulo II - Contra-ordenações fiscais (artigos 113.º a 127.º).
Com interesse para a questão que nos ocupa, passa a transcrever-se parte do artigo 11.º, que estabelece:
Para efeitos do disposto na lei consideram-se:
a) Prestação tributária: os impostos, incluindo os direitos aduaneiros e direitos niveladores agrícolas, as taxas e demais tributos fiscais ou parafiscais cuja cobrança caiba à administração tributária ou à administração da segurança social
b) Serviço tributário: serviço da administração tributária ou da administração da segurança social com competência territorial para proceder à instauração dos processos tributários;
c) Órgãos da administração tributária: todas as entidades e agentes da administração a quem caiba levar cabo quaisquer actos relativos à prestação tributária, tal como definida na alínea a);
d) Valor elevado e valor consideravelmente elevado: os definidos nas alíneas a) e b) do artigo 202.º do Código Penal.
As alterações mais significativas no que tange aos preceitos ora em causa são as decorrentes de:
- Lei n.º 60-A/2005, de 30-12, que alterou valores: do n.º 2 do artigo 103.º (de 7 500 para 15 000 euros) e do n.º 6 do artigo 105.º (de € 1 000 para 2 000); Lei 53-A/2006, de 29-12, que alterou o n.º 4 do artigo 105.º, criando uma nova condição de punibilidade; Lei n.º 64-A/2008, de 30-12, que introduziu no n.º 1 do artigo 105.º o elemento valor.
No crime de abuso de confiança fiscal, objecto da omissão de entrega, total ou parcial, é a prestação tributária, conceito referido no artigo 1.º, n.º 1, alínea a) e definido no artigo 11.º, alínea a), do Regime Geral das Infracções Tributárias (Anexo), englobando os impostos e outros tributos cuja cobrança caiba à administração tributária, abrangendo o artigo 105.º três tipos de prestações pecuniárias cuja não entrega faz recair sobre o agente a responsabilidade penal por tal crime – para além da prestação tributária deduzida nos termos da lei, prevista no n.º 1, o objecto é “alargado” pela definição extensiva do n.º 2 e do n.º 3 (aqui abrangendo prestações com natureza parafiscal) do citado preceito legal.
Nesta infracção, estão em causa créditos de impostos ou de tributos fiscais ou parafiscais devidos ao Estado, estabelecendo-se uma relação entre o Estado -Administração Fiscal, enquanto sujeito activo da relação jurídica tributária, titular do direito de exigir o cumprimento das obrigações tributárias, titular do crédito do imposto; por outro lado, o sujeito passivo que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte directo, substituto ou responsável – cfr. artigos 18.º (sujeitos da relação jurídica tributária), 20.º (substituição tributária), 28.º (responsabilidade em caso de substituição tributária) e 34.º (retenção na fonte) da Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17-12, republicado em anexo à Lei n.º 15/2001.
Pressupõe este delito uma relação em que intercedem três sujeitos: o Estado -Administração Fiscal, titular do crédito do imposto; o contribuinte originário propriamente dito, que é o sujeito substituído, e, por último, um terceiro, o substituto, o único sujeito em posição de cometer o crime.
O artigo 105º tem em vista situações de substituição tributária, estando nós perante um crime omissivo, um crime de mera inactividade, em que a omissão integradora do ilícito é antecedida de uma acção, de um comportamento actuante, positivo, de facere, consubstanciado numa conduta legal, de prévia dedução (obrigação de retenção), que conduz a que o substituto se converta num depositário das quantias deduzidas, figurando como um intermediário no processo de arrecadação da receita, constituindo-se na obrigação de dar o devido destino, traduzindo-se a omissão subsequente na violação da obrigação de entrega do retido, consubstanciando-se na não entrega, total ou parcial, do que estava obrigado a entregar à administração tributária.
Assenta este crime numa conduta bifásica, seguindo-se a uma primeira fase de actuação perfeitamente lícita – a dedução – que funciona como seu pressuposto, uma outra traduzida numa omissão.
Objecto de previsão específica do abuso de confiança fiscal é no artigo 105.º o que se contém nos n.º s 1, 2 e 3, definindo os elementos do crime (as “extensões” do conceito de prestação tributária constantes dos n.º s 2 e 3 reproduzem na íntegra o texto dos n.º s 2 e 3 do artigo 24.º do RJIFNA originário e tratando-se de deduções não são extensíveis ao crime homónimo da segurança social em que a prestação tem sempre a mesma natureza).
O artigo 105.º, na abrangência do que se contém nos n.º s 1, 2 e 3, aplica-se a todos os tributos e impostos, com excepção das contribuições devidas à segurança social, aplicando-se a estas o artigo 107º.
Em síntese, diremos que:
· sob o ponto de vista dogmático/jurídico, o crime de abuso de confiança fiscal configura-se como um crime omissivo puro na medida em que o facto típico revisto na norma incriminadora se verifica com a não entrega da prestação tributária, tendo-se por praticada a omissão na data em que termina o prazo para o cumprimento da obrigação tributária, por força do n.º2 do art.º 5º do RGIT;
· é um crime doloso, aferido este nos termos gerais do art.º 14º do Código Penal;
· No que diz respeito ao bem jurídico protegido, o crime de abuso de confiança fiscal tem por fundamento a protecção do património do Estado, mediante a tutela e protecção criminal da obrigação da entrega das quantias que foram confiadas ao agente para que este as entregasse nos Cofres do Estado;
· é um crime omissivo puro que se consuma no momento em que o agente não entrega a prestação tributária devida, haja ou não haja entrega da declaração tributária.
No n.º 7, o legislador opta claramente pelo critério da declaração individualizada, assente que o delito se consuma com a não entrega das prestações relativas a cada período, tal se retirando do enunciado do n.º1 dos artigo 105º do RGIT – esta entrega deve ser feita até ao 15º dia do mês seguinte àquele a que disserem respeito (art.º 5º/2 e 3 do DL nº 102/80; art.º 18º do DL nº 140-D/86, cfr. nota em “Infracções Fiscais Não Aduaneiras” de Alfredo José de Sousa, Almedina, 1998, p. 129).
Nesse normativo, deixa-se escrito o seguinte:
«7- Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária».
Ora, se assim é, então é esse o critério para aferir os valores do n.º 5, com efeitos qualificativos da própria moldura penal abstracta.

3.3.2. Além disso, pela alteração introduzida pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Outubro, apenas é hoje criminalizada a não entrega, à administração tributária, de prestações [deduzidas nos termos da lei e que estavam legalmente obrigados a entregar] de valor superior a € 7.500.
Como tal, e vendo o facto provado n.º 7, constatamos que a parcela que não foi entregue é superior a tal montante, não cabendo aqui fazer a subtracção feita na conclusão c) do recurso, não se podendo, pois, falar em despenalização.
De facto, o IVA é devido logo que liquidado, ou seja, logo que a transacção a que ele respeita se realize, não dependendo a efectiva cobrança do imposto aos clientes
Já decidiu o Acórdão da Relação do Porto de 1/10/2008 que «o IVA é devido desde a respectiva venda, facturação, liquidação e declaração aos serviços, e não desde o momento do pagamento da transacção que lhe deu origem», adiantando ainda que o pagamento do IVA liquidado e declarado é exigível logo que decorra o respectivo prazo, tenha ou não sido recebido do devedor seguinte.
Deste modo, torna-se absolutamente irrelevante para a perfectibilização do delito que os serviços tenham sido cobrados ou não. E também o é a explanação aposta na conclusão i), em tudo lateral a este crime.
Como tal, é inócuo alegar que as vendas a dinheiro de 2005 apenas foram emitidas em 2007 e não foram na sua maioria recebidas.

3.3.3. Também não há nada que apontar à decisão do tribunal recorrido, quanto à questão mencionada e implícita na conclusão q).
Escreveu-se na sentença o seguinte:
«Vieram os arguidos arguir que à data a que respeita o imposto em falta a sociedade arguida não existia, tendo sido criada em Janeiro de 2006, com alteração do pacto social da sociedade NS… - negócios e gestão Lda. para NS… – Negócios e Gestão Unipessoal.
Pretendem os arguidos dizer que tal alteração de denominação social impede a sociedade arguida de ser responsabilizada e também o arguido J....
No entanto, tal mutação da pessoa colectiva não releva para efeitos de imputação penal porquanto, como atrás se disse, o crime de abuso de confiança fiscal se consuma na data em que o imposto deveria ter sido liquidado e não foi, no caso, em Fevereiro de 2006 e nessa data a sociedade arguida tinha a denominação que consta dos autos sendo seu sócio gerente o arguido J.... As transformações das sociedades não tornam as mesmas insusceptíveis de imputação pois a sociedade formada por transformação sucede automática e globalmente à sociedade anterior (art.º 130º/6 do CSC). Aliás como decorre da certidão do registo comercial houve uma transformação mas não a criação de uma nova sociedade, a sua cisão ou fusão, e também para tais situações o legislador criou soluções que não passam pela desresponsabilização da nova sociedade. Alias, no caso de extinção de pessoa colectiva, prevê o art.º 127º do Código Penal que nem aí a responsabilidade penal cessa automaticamente pois de outra forma através da extinção de entes colectivos facilmente as entidades de eximiriam à sua responsabilidade.
Em suma, a transformação de uma sociedade não implica a extinção da sociedade transformada e o surgimento de um novo ente colectivo, quer para efeitos civis, quer para efeitos penais. Nessa medida, em nada altera a imputação penal aos arguidos nos termos em que consta da acusação».
Concordamos em absoluto com estas considerações, razão pela qual nos limitamos a secundá-las, não sem antes dizer que quem recorre é o arguido pessoa singular e não a arguida pessoa colectiva.

3.3.4. E quanto à não apropriação defendida nas conclusões?
Entende o recorrente que não está provada a apropriação do imposto recebido.
Neste delito, após a entrada em vigor do RGIT, basta a não entrega dos montantes deduzidos para que se verifique a apropriação, sendo criminalmente punível tal prévia apropriação e consequente não entrega (mesmo que não se prove que o agente se tenha apropriado pessoalmente desses montantes, tendo antes pago despesas sociais com dinheiro que não lhe pertencia, como bem acentua a Exmª PGA).
O artigo 105º fala em «não entrega».
Enquanto no abuso de confiança do artigo 205º do CP se exige a apropriação ilegítima da coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo de propriedade, o abuso de confiança fiscal basta-se com a não entrega total ou parcial da prestação tributária ou parafiscal.
A não entrega traduz-se numa apropriação, num fazer sua a coisa alheia.
A nova redacção do artigo 105º - que suprimiu o termo «apropriação» - regressa à redacção da norma do artigo 24º/1 do RJIFNA anterior à alteração introduzida pelo DL 394/93 de 24/11.
Nestes termos, o tipo de ilícito prescinde hoje do elemento de apropriação da prestação tributária, bastando-lhe a mera falta de entrega passados 90 dias sobre o termo do prazo legal da entrega da prestação.

3.3.5. Improcedem, pois e assim, as conclusões restantes deste recurso amplamente confuso em termos epistolares.

III – DISPOSITIVO

Em face do exposto, acordam os Juízes da 5 ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido J..., mantendo a sentença recorrida.

Condena-se o recorrente em custas, com a taxa de justiça fixada em 4 UCs [artigos 513º, n.º 1 do CPP e 87º, n.º 1, alínea b) do CCJ, ainda aplicável aos autos].

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Coimbra, _______________________________
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado pelo 1º signatário e integralmente revisto pelos dois signatários – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)


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(Paulo Guerra)


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(Vieira Marinho)