Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2382/09.0TBFIG.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: INABILITAÇÃO
PRODIGALIDADE
Data do Acordão: 09/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - FIGUEIRA FOZ - INST. LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.152º CC, 662º, 901º CPC
Sumário: 1. A Relação só poderá /deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1, do CPC), mormente na situação excepcional prevista no art.º 901º, n.º 4, do CPC.

2. Devem ser sujeitos a inabilitação os indivíduos portadores de anomalia psíquica que, embora de carácter permanente, não seja tão grave que justifique a interdição ou aqueles que se revelem incapazes de reger o seu património por habitual prodigalidade ou pelo abuso de bebidas alcoólicas ou estupefacientes, tratando-se, neste caso, de pessoas que praticam habitualmente actos de delapidação patrimonial (actos de dissipação ou despesas desproporcionadas aos rendimentos, improdutivas e injustificáveis)

3. A inabilitação por prodigalidade é uma medida de carácter excepcional só adequada aos casos em que o requerido manifesta propensão para delapidar os bens que lhe pertencem e/ou para gastos inúteis ou desproporcionados à respectiva situação patrimonial.

Decisão Texto Integral:





           
            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. Em 07.10.2009, M (…) intentou, no Tribunal Judicial da Figueira da Foz, a presente acção especial de interdição contra A (…), pedindo que seja decretada a interdição por anomalia psíquica do requerido, por se mostrar totalmente incapaz de governar a sua pessoa e os seus bens ou, e se assim se não entender, a sua inabilitação por incapacidade de reger o seu património.

            Alegou, nomeadamente: é casada desde 1961 com o requerido e desde cedo lhe foi diagnosticada doença bipolar genética; desde 1997, e progressivamente, o requerido apresenta sintomatologia indiciadora de demência senil; o requerido, progressivamente, apresenta sintomas ao nível psicomotor e, ao longo dos últimos dois anos, tem deixado transparecer vários sintomas da doença; o requerido ingressou na Ordem Franciscana Secular, em 2006, e desde então afirma que quer fazer da casa de morada de família um lar para os sem-abrigo e deixar tudo aos Franciscanos, solicitando à requerente e família que abandonem a casa; também ao nível intelectual, houve diminuição da memória, aliada a uma fixação religiosa fundamentalista; tais sintomas de demência apresentam-se desde 1997 e com mais notoriedade, desde 2006, com carácter de permanência; é notória a incapacidade de o requerido administrar a sua pessoa e os seus bens, nomeadamente, através de negócios ruinosos que tem levado a cabo, dissipando o património comum do casal, nomeadamente, os referidos nos art.ºs 20º a 26º da petição inicial (p. i.).

            Anunciou-se a propositura da acção nos termos do art.º 945º do Código de Processo Civil (CPC) de 1961 e citou-se o requerido, conforme o art.º 946º, do mesmo diploma.

            O requerido contestou a acção, impugnando os factos articulados na p. i. e requerendo a condenação da requerente como litigante de má fé.

            Realizado o interrogatório de fls. 321 e o exame médico-legal psiquiátrico de fls. 336, o Tribunal a quo, por sentença de 10.12.2011, julgou a acção “totalmente improcedente, por não provada” e indeferiu o pedido de condenação da requerente como litigante de má fé.

            O assim decidido e confirmado, por maioria, por acórdão desta Relação, veio a ser revogado pelo Supremo Tribunal de Justiça, com o consequente prosseguimento da causa, com observância dos termos do processo ordinário.

             Cumprido o disposto no art.º 5º n.º 4 da Lei n.º 41/2013, de 26.6, elaborado o despacho saneador (e delimitado o objecto do litígio) e realizadas novas diligências probatórias (cf. fls. 596 e seguintes), procedeu-se depois à audiência de julgamento, após o que o Tribunal a quo, por sentença de 21.01.2016, julgou a acção totalmente improcedente, por não provada, absolvendo o requerido de todos os pedidos.

Inconformada, a requerente interpôs a presente apelação, formulando as seguintes conclusões:

            (…)

            O requerido respondeu à alegação concluindo pela improcedência do recurso.

            Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar e decidir, principalmente: a) nulidade da sentença; b) modificação da decisão sobre a matéria de facto/erro na apreciação da prova; c) decisão de mérito.


*

            II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

            a) O Requerido nasceu a 15.01.1935, na freguesia de (...) , concelho de Soure.

            b) A Requerente e o Requerido casaram, um com o outro, civilmente e sob o regime da comunhão geral de bens, em 17.6.1961 e catolicamente, em 16 de Novembro do mesmo ano. Desta relação nasceram cinco filhos.

            c) O Requerido é diabético; em 1997 sofre um AVC isquémico; padece de apneia do sono; em meados de 2008, devido a complicações cardíacas, submete-se à implantação de pace-maker.

            d) O Requerido já esteve medicado com os seguintes fármacos: Atacand - comprimidos 8 mg; Tansulosin Meph - cápsulas LP 0,4 mg; Glucobay - comprimidos 100 mg; Risidon - comprimidos rev 1 g; Faktu-PDA; Daonil - comprimidos 5 mg; Daflon 500 - comprimidos rev 500 mg; Finasteri Impruve - comprimidos rev 5 mg e Esclerobion - comprimidos rev.; Norterol - comprimidos rev 25 mg; Prozac - cápsulas 20 mg e Serenal - comprimidos 15 mg.

            e) A Requerente participou criminalmente contra o Requerido pelo crime de violência doméstica (processo n.º 1274/08.4TAFIG).

            f) O Requerido apresenta dificuldades na marcha.

            g) O Requerido ingressou na Ordem Franciscana Secular, por volta do ano de 2000, ordem que entretanto, decorrido um período superior a seis anos, abandonou. O requerido chegou a manifestar publicamente desejo de um dia poder deixar a casa de morada de família aos franciscanos.

            h) O Requerido intentou contra a Requerente Acção de Divórcio Sem Consentimento do Outro Cônjuge (processo n.º 1430/09.8TBFIG).

            i) Durante um período de tempo não concretamente apurado, o Requerido chegou a apresentar-se com um aspecto pouco cuidado, nomeadamente no que respeita às suas roupas.

            j) Em 05.12.2008 o Requerido assina um contrato-promessa de compra e venda, na qualidade de promitente comprador, de um lote de terreno, situado na zona industrial da Gala, sendo o valor do negócio de € 123 750.

            k) Em 2008 o Requerido assinou uma letra, no valor de € 60 000, na qualidade de sacador.

            l) No dia 05.02.2009 foi lavrado o registo provisório da aquisição referida em II. 1. j) a favor do Requerido.

            m) No dia 12.02.2009 foi cancelado o registo provisório de aquisição lavrado em 05.02.2009.

            n) Foi diagnosticada a duas filhas da Requerente e do Requerido “perturbação bipolar”.

            o) Desde 08.10.2009 o Requerido foi alvo de vários processos executivos instaurados pela autoridade tributária. Todos os processos se encontram findos por pagamento, conforme consta das informações juntas a fls. 818, 819, 858, 859 e 860.

            2. E deu como não provado:

            a) Desde cedo foi diagnosticada ao Requerido doença bipolar genética, doença que o próprio reconhece numa carta que escreve à Requerente, em 06.12.1960;

            b) Actualmente o Requerido encontra-se medicado com Norterol - comprimidos rev 25 mg; Prozac - cápsulas 20 mg e Serenal - comprimidos 15 mg;

            c) O Requerido, desde 1997, e progressivamente, apresenta diminuição da memória, não se recordando de datas importantes ou mesmo de prazos judiciais, tendo que ser auxiliado, para esse efeito, principalmente pela neta;

            d) O Requerido alterna momentos de humor eufórico com momentos de apatia;

            e) O Requerido, fruto da doença, manifesta desorientação temporal e emotividade aumentada, traduzida em agressividade dirigida, em especial, à Requerente, sua mulher, mas também aos filhos, principalmente, àqueles com quem habita;

            f) Surgiu, ao longo do tempo, uma infantilização do comportamento, traduzida em espiar e vigiar tudo e todos, em casa;

            g) Houve uma perda significativa de iniciativa, porquanto costumava colher os frutos do jardim, nomeadamente, romãs e nozes, que muito aprecia, deixando de o fazer, de todo;

            h) O Requerido apresenta arrastamento do andar, traduzido na debilidade e rigidez muscular;

            i) O Requerido apresenta dificuldade em articular palavras e ideias;

            j) Ao longo dos últimos dois anos o Requerido tem deixado transparecer vários sintomas da doença, como: ideias de prejuízo, irritabilidade, desconfiança e ciúmes imotivados, afirmando que a Requerente esbanja dinheiro constantemente e que tem amantes;

            k) O Requerido afirma que a Requerente o quer matar, e por tal facto diz a toda a gente que não faz as refeições em casa; no entanto, a meio da noite, vai à cozinha e alimenta-se de géneros vários que estão no frigorífico e, em dias festivos e ocasiões em que há visitas em casa, come à mesa com a família e os convidados;

            l) Desde 2006 afirma que quer fazer da casa de morada de família um lar para os sem-abrigo e deixar tudo aos Franciscanos, solicitando à Requerente e família que abandonem a casa;

            m) O Requerido em casa acumula lixo e não permite que ninguém o deite fora. Parte do lixo é queimada, no jardim, pelo Requerido, ameaçando a família de que, a qualquer momento, deitará fogo à casa. Por tal facto, já foi advertido, várias vezes, pelos bombeiros voluntários;

            n) O Requerido deixou de tomar banho diariamente;

            o) O Requerido afirmou que Deus o vai avisar, com dois meses de antecedência, da hora da sua morte; e a toda a hora e em qualquer frase, evoca Santos e Deus;

            p) O Requerido em 20.5.2008 emprestou € 40 462,39 a uma constituinte para pagamento das tornas devidas ao ex-marido daquela, no âmbito do processo de Inventário 269-A/2002, a correr termos pelo 3º Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz;

            q) O Requerido assinou a letra referida em II. 1. k) a título de sinal e princípio de pagamento da compra e venda prometida;

            r) Na data referida em II. 1. l) o Requerido efectuou um reforço do sinal no valor de € 22 500;

            s) No dia 12.11.2009 o Requerido vê-se obrigado a contar à Requerente o negócio, e invocando o facto de ter sido enganado pelo promitente vendedor, implorou à Requerente que o acompanhasse à 2ª Conservatória do Registo Predial da Figueira da Foz, porquanto necessitava da sua assinatura para cancelar o registo provisório de aquisição lavrado em 05.02.2009;

            t) Desde então, até ao presente, o Requerido desloca-se, quase diariamente, à sede do promitente vendedor, sita no (...) , para tentar reaver o dinheiro que pagou, a título de sinal e princípio de pagamento, tendo confessado, em família, que tinha sido enganado.

            3. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

            a) No arrazoado da alegação de recurso e respectivas “conclusões”, a requerente afirma, designadamente, que, na sentença, “o juiz deixou de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”; “apesar de ter resultado provada a factualidade do ponto 15 da Fundamentação de Facto”, a mesma ficou “omissa na fundamentação de direito”; o expendido no “penúltimo parágrafo da Fundamentação de Direito é contraditória em si mesma, porquanto os fundamentos estão em oposição com a decisão”, pelo que se verificam as causas de nulidade da sentença previstas nas alíneas c) e d) do n.º 1 do art.º 615º, do CPC.

Nos termos do art.º 615º, n.º 1, do CPC de 2013[1], é nula a sentença quando: os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível [c)]; o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento [d)]”.

b) O dito primeiro vício verifica-se sempre que exista contradição dos fundamentos com a decisão, quanto os fundamentos de facto e de direito invocados conduzirem logicamente a resultado oposto ou diverso daquele que integra o respectivo segmento decisório, ou se ocorrer alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

            Isso significa que os fundamentos de facto e de direito da sentença devem ser logicamente harmónicos com a pertinente conclusão ou decisão e que tal se não verifica quando haja contradição entre esses fundamentos e a decisão nos quais assenta.

Contudo, uma coisa é a contradição lógica entre os fundamentos e a decisão da sentença [vício na construção da sentença, vício lógico nessa peça processual], e outra, essencialmente diversa, o erro de interpretação dos factos ou do direito ou na aplicação deste [a errada valoração da prova produzida ou errada determinação ou interpretação das normas legais aplicáveis/o erro de julgamento/a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário] que não raro se confunde com aquela contradição.[2]

 E a previsão da mencionada alínea d) relaciona-se com o dispositivo do art.° 608°, n.° 2, do mesmo Código[3], e por ele se tem de integrar. A primeira modalidade (omissão de pronúncia) tem a limitação aí constante quanto às decisões que devam considerar-se prejudicadas pela solução dada a outras; a segunda (excesso de pronúncia) reporta-se àquelas questões de que o tribunal não pode conhecer oficiosamente e que não tenham sido suscitadas pelas partes, devendo a palavra “questões” ser tomada em sentido amplo: compreenderá tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das excepções e da causa de pedir e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem.

Contudo, é incorrecto inferir-se que a sentença deverá examinar toda a matéria controvertida, ainda que o exame de uma só parte impuser necessariamente a decisão da causa, favorável ou desfavorável – neste sentido haverá que compreender-se a fórmula da lei “exceptuadas aquelas questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras” (art.º 608º, n.º 2).[4]

c) Perante o descrito enquadramento e analisada a sentença sob censura é manifesto que a mesma não sofre dos mencionados vícios, sendo que a decisão sobre a matéria de facto também se encontra fundamentada, a fls. 871 verso a 878, de forma lógica, suficiente (procedendo-se à análise crítica das provas e especificando-se as concretas razões que conduziram a essa decisão) e inteligível.

A Mm.ª Juíza a quo indicou adequadamente (de forma clara e com desenvolvimento bastante) os fundamentos de facto e de direito subjacentes à decisão proferida; a respectiva fundamentação conduz à solução encontrada para a problemática submetida à apreciação do Tribunal, ou seja, a conclusão decisória está logicamente encadeada com a motivação fáctico-jurídica desenvolvida pelo Tribunal recorrido; foram conhecidas todas as questões em discussão nos autos, decidindo-se em conformidade com a fundamentação tida por adequada.

Por conseguinte, não ocorrem os apontados vícios na sentença recorrida, os quais, como se sabe, não se confundem com eventuais falhas/erros da decisão de facto ou “erros de julgamento”.

4. A recorrente insurge-se, principalmente, contra a decisão sobre a matéria de facto, e invoca, para o efeito, o preceituado nos art.ºs 662º e 901º, n.º 4[5].

            Assim, não obstante um menos ortodoxo cumprimento do disposto no art.º 640º, n.º 1, alíneas a), b) e c)[6], importa verificar se outra poderia/deveria ser a decisão do Tribunal a quo quanto à factualidade aludida, sobretudo, nas “conclusões 7ª, 9ª e 13ª”, ponto I, supra.

            Pese embora a maior dificuldade na apreciação da prova (pessoal) em 2ª instância, designadamente, em razão da não efectivação do princípio da imediação[7], afigura-se, no entanto, que, no caso em análise, tal não obstará a que reanalise, designadamente, a credibilidade das testemunhas e verifique se os depoimentos foram apreciados de forma razoável e adequada.

            5. Esta Relação procedeu à audição dos depoimentos produzidos em audiência de julgamento, conjugando-os com os restantes meios de prova juntos aos autos.

Não obstante o âmbito limitado da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com o aparente alheamento, por um lado, da factualidade provada e não provada dita em II. 1. e 2., supra, e, por outro lado, da fundamentação invocada na p. i., afigura-se, dada a peculiaridade da situação dos autos e da presente acção especial, que se deverá atender a alguns excertos da motivação da decisão de facto de fls. 871 verso e seguintes.

            (…)

            6. Face ao objecto cognoscível da impugnação da decisão de facto e à prova produzida nos autos e em audiência de discussão e julgamento, parece-nos que a motivação apresentada pela Mm.ª Juíza a quo e a decisão de facto não enfermam de qualquer erro ou omissão, além de que a recorrente nem sequer cuidou de explicitar adequadamente o quadro fático que pretendia ver ainda dado como provado à luz da previsão do n.º 4 do art.º 901º, porquanto fez constar da alegação de recurso e das respectivas “conclusões” um conjunto de asserções eivadas de conclusões de facto e de direito e, assim, naturalmente, falhas de ocorrências (de acontecimentos concretos) com relevância para o desfecho dos autos.

Afastada que foi a “via” da interdição por anomalia psíquica e pugnando-se, agora, apenas, pela inabilitação por habitual prodigalidade, importava demonstrar a prática habitual de actos de delapidação patrimonial, ou seja, a prática de actos de dissipação, de despesas desproporcionadas aos rendimentos, improdutivas e injustificáveis.[8]

            Tendo por referência a matéria especialmente versada na impugnação em apreço, se, quanto à realidade tributária (da responsabilidade do casal), e independentemente da sua relevância, a mesma já se encontra suficientemente evidenciada em II. 1. o), supra, dúvidas não restam de que inexistem factos que permitam caracterizar a situação actual e as vicissitudes ligadas à mencionada “Quinta da S (...) ” ou, sequer, a alegada situação de abandono, e bem assim explicitar e concretizar o que terá ocorrido com a denominada “fracção do prédio de B (...) ”. De resto, não ficaram demonstrados factos que apontem no sentido de o requerido ser o (único) responsável pela degradação e abandono desse património imobiliário e, menos ainda, que tenha praticado quaisquer actos de dissipação desse (ou de outro) património (do casal ou dos seus familiares), pelo que queda totalmente insubsistente, como melhor se verá adiante, a perspectiva apresentada pela requerente de que se deverá “dar por provada a dissipação desregrada de bens por parte do Recorrido com fundamento na prodigalidade do Recorrido”.

            Muito simplesmente, no que àquela realidade diz respeito, não ficaram provados quaisquer actos praticados pelo requerido que possamos qualificar como objectivamente incompreensíveis e ruinosos para o seu património e/ou para as condições da sua vida. Ademais, e por exemplo, a invocada actuação, de sentido contrário, da testemunha (…) sempre reclamaria uma melhor demonstração - quiçá documental -, e os virtuais, potenciais ou efectivos lesados sempre teriam ao seu dispor outros meios, adequados e menos gravosos (para o requerido), para fazer valer os seus direitos (cf., designadamente, os art.ºs 1471º e 1482º, do Código Civil/CC).

            Tendo presentes os depoimentos ditos em II. 5. supra, e a demais prova aí indicada, não vemos, pois, como seja possível modificar e ampliar a matéria de facto (obviamente, se e na medida em que interessasse ao desfecho da acção…), sendo que, até em razão da exigência de (especial) prudência na apreciação da prova testemunhal[9], a Mm.ª Juíza a quo não terá desconsiderado regras elementares desse procedimento, inexistindo elementos seguros que apontem ou indiciem que não pudesse ou devesse ponderar a prova no sentido e com o resultado a que chegou (ainda que no âmbito de aplicação do preceituado no art.º 901º, n.º 4), pela simples razão de que não se antolha inverosímil e à sua obtenção não terão sido alheias as regras da experiência e as necessidades práticas da vida[10]

A Mm.ª Juíza analisou criticamente as provas e especificou os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, não se mostrando violados quaisquer normas ou critérios segundo a previsão dos n.ºs 4 e 5 do art.º 607º, sendo que a Relação só poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1).

            Soçobra, pois, a pretensão da apelante de ver modificada a decisão de facto.

            7. Segundo o art.º 901º, “A sentença que decretar, definitiva ou provisoriamente, a interdição ou a inabilitação, consoante o grau de incapacidade do arguido e independentemente de se ter pedido uma ou outra, fixará, sempre que seja possível, a data do começo da incapacidade e confirmará ou designará o tutor e o protutor ou o curador e, se for necessário, o subcurador, convocando o conselho de família, quando deva ser ouvido” (n.º 1).

Podem ser inabilitados os indivíduos cuja anomalia psíquica (…), embora de carácter permanente, não seja de tal modo grave que justifique a sua interdição, assim como aqueles que, pela sua habitual prodigalidade ou pelo abuso de bebidas alcoólicas ou de estupefacientes, se mostrem incapazes de reger convenientemente o seu património (art.º 152º do CC).

No dizer de Manuel de Andrade é causa de incapacidade qualquer anomalia psíquica que inabilite um indivíduo para convenientemente reger a sua pessoa ou administrar os seus bens.

Referindo-se à prodigalidade, afirma o insigne Mestre que a mesma consiste prevalentemente – ou até exclusivamente – num defeito da vontade ou do carácter: é a tendência para a dissipação, para malbaratar o próprio património, gastando-o em despesas desproporcionadas, ao mesmo tempo que improdutivas e injustificáveis[11]; pródigo é aquele que “desordenamente gasta e destrói sua fazenda” (Ordenações, livro 4º, n.º 6), aquele que por meio de dissipações loucas destrói o seu património.[12]

Devem ser sujeitos a inabilitação os indivíduos portadores de anomalia psíquica[13] que, embora de carácter permanente, não seja tão grave que justifique a interdição ou aqueles que se revelem incapazes de reger o seu património por habitual prodigalidade ou pelo abuso de bebidas alcoólicas ou estupefacientes, tratando-se, neste caso, de pessoas que praticam habitualmente actos de delapidação patrimonial (actos de dissipação ou despesas desproporcionadas aos rendimentos, improdutivas e injustificáveis).[14]

8. Sendo este o enquadramento legal e doutrinal a considerar, é evidente que os factos apurados não possibilitam decretar a inabilitação do requerido por anomalia psíquica (no sentido de doença mental ou de transtorno de personalidade) ou por habitual prodigalidade[15]

A factualidade apurada, designadamente, em II. 1. j), k), l), m) e o), supra (a da última alínea, melhor explicitada pelo teor dos documentos em causa) - sem se demonstrar que tais actos ou factos foram injustificados e reprováveis (indiciando “propensão para delapidar os bens que lhe pertencem e/ou fazer despesas reprováveis e desproporcionadas”, “propensão para gastos inúteis ou desproporcionados à situação patrimonial daquele que habitualmente os pratica”) -, não permite considerar verificados os requisitos necessários para a aplicação da medida de inabilitação por prodigalidade [e, atente-se, também, na factualidade não provada mencionada em II. 1. alíneas p) a t), supra], que é uma medida de carácter excepcional só adequada aos casos de manifesta dissipação do património.[16]

9. Existirá, sim, uma situação de grave conflito familiar e seus reflexos a nível pessoal e patrimonial, mas nada mais do que isso; lembrando as palavras produzidas por uma Senhora Perita em audiência de julgamento, o que se logrou apurar nos autos dever-se-á, principalmente, a “culpa de todo o contexto” (sic) da vida/vivência do requerido, da requerente e dos familiares mais próximos. 

10. Em suma, no caso em análise, nada de concreto ficou provado acerca de comportamentos anómalos (e habituais) do requerido que evidenciem incapacidade de tal forma grave para cuidar dos seus bens que se justifique a intervenção dos tribunais para o proteger de si próprio, e só a sua comprovada existência poderia justificar a pretendida inabilitação.

11. Soçobram, desta forma, as demais “conclusões” da alegação de recurso.


*

III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se, assim, a sentença recorrida.

            Custas pela requerente/apelante.


*

13.9.2016


Fonte Ramos ( Relator )

Maria João Areias

Fernando Monteiro


[1] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.
[2] Vide, de entre vários, Antunes Varela, e Outros, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, pág. 671 e os acórdãos do STJ de 21.5.1998, 22.6.1999, 30.9.2004-processo 04B2894 e 06.7.2011-processo 7295/08.0TBBRG.G1.S1, in CJ-STJ, VI, 2, 95; BMJ 488º, 296 e “site” da dgsi, respectivamente.
[3] Preceitua-se no referido normativo: “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
[4] Vide, de entre vários, A. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, 1982, págs. 142 e seguinte e Lebre de Freitas, e Outros, CPC Anotado, Vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, pág. 670.
[5] Que reza o seguinte: “Na decisão da matéria de facto, deve juiz oficiosamente tomar em consideração todos os factos provados, mesmo que não alegados pelas partes.”
   Trata-se, assim, de uma importante excepção ao ónus de alegação dos factos essenciais pelas partes prevista no art.º 5º do CPC.
[6] Preceitua-se no referido número: “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados [a)]; os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida [b)]; a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas [c)].”

[7] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 284 e 386 e Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. II, 4ª edição, 2004, págs. 266 e seguinte.
[8] Vide C. A. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 1980, págs. 296 e 309.
[9] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 277.
[10] Vide, nomeadamente, Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 192 e nota (1) e Vaz Serra, Provas (Direito Probatório Material), BMJ, 110º, 82.
[11] Vide Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, Almedina, 1974, págs. 81 e 98.
[12] Portalis, apud Alberto dos Reis, Processos Especiais, Vol. I, Coimbra Editora, 1982, pág. 137.

[13] Tendo o nosso legislador prescindido de fornecer uma definição do conceito de anomalia psíquica, o que constitui um necessário reenvio às correspondentes noções científicas, na sua contínua evolução, permitindo a actualização do seu conteúdo, há que salientar que a jurisprudência (e a doutrina) tem defendido que a anomalia psíquica compreende qualquer perturbação das faculdades intelectuais ou intelectivas (afectando a inteligência, a percepção ou a memória) ou das faculdades volitivas (atinente quer à formação da vontade, quer à sua manifestação), abrange tanto as deficiências de intelecto, de entendimento ou discernimento, como as deficiências da vontade e da própria afectividade ou sensibilidade – cf., entre outros, o acórdão do STJ de 21.7.1983-processo 070840, publicado no “site” da dgsi e no BMJ, 329º, 523.
[14] Vide C. A. Mota Pinto, ob. e loc. citados.
[15] Cf., a propósito, de entre vários, o acórdão do STJ de 22.10.1996-processo 96A447, publicado no “site” da dgsi.
[16] Cf., ainda, entre outros, o acórdão do STJ de 25-01-2005-processo 04A4480, publicado no “site” da dgsi.