Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6399/18.5T9CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: FALSIDADE DE TESTEMUNHO
RECUSA A DEPOR
JUSTA CAUSA
ILICITUDE
CAUSA DE JUSTIFICAÇÃO
Data do Acordão: 05/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE COIMBRA – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 360.º, N.º 2, E 31.º, DO CP
Sumário: IA referência normativa “sem justa causa” constante do n.º 2 do artigo 360.º do CP não integra o tipo objectivo do crime de “recusa a depor”, constituindo a “justa causa” dessa recusa uma circunstância dirimente da ilicitude.

II – Tendo presente o carácter geral e abstracto dos tipos justificadores, bem como o leque de situações passíveis de consubstanciar causas de justificação, não é exigível que a acusação tenha de narrar factos destinados a demonstrar a inexistência de qualquer causa de exclusão da ilicitude.

III – A recusa de o arguido prestar, enquanto testemunha, perante um agente da PSP, declarações em processo no qual se investigava a prática de um crime de ofensa à integridade física e onde então era arguido um recluso, sob invocação de se ter de “proteger no estabelecimento prisional” onde também estava preso, não legitima (justifica) a referida omissão.

IV – Não obstante as dificuldades acrescidas na vivência no interior de estabelecimento prisional, designadamente quanto aos “diferendos” que se podem gerar, compete às instâncias formais, designadamente à Direcção daquela instituição e, afinal, ao Estado, prover à segurança/protecção dos reclusos.

Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do processo comum singular n.º 6399/18.5T9CBR, do Tribunal Judicial de Coimbra, Coimbra – JL Criminal – Juiz 1, mediante acusação pública, foi o arguido A., melhor identificado nos autos, submetido a julgamento, sendo-lhe então imputada a prática de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.

2. Realizada a audiência de discussão e julgamento, por sentença de 04.10.2019, o tribunal decidiu [transcrição do dispositivo]:

1. Condenar o arguido A. pela prática de um crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo artigo 360º, nº 1 e 2 do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão efetiva.

[…].

3. Inconformado recorreu o arguido, formulando as seguintes conclusões:

i. O presente recurso tem como objeto toda a matéria de facto e de direito da sentença proferida nos presentes autos, que condenou o recorrente pela prática do crime de um crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo artigo 360º, nº 1 e 2 do Código Penal

ii. O Tribunal a quo cometeu um erro na apreciação e valoração de determinada prova e julgou incorretamente determinados factos, porquanto, a prova produzida em audiência de discussão e julgamento impunha uma decisão diversa da verificada.

iii. A sentença recorrida enferma de manifesto erro na apreciação e valoração da prova constante dos autos, que impunha uma decisão diversa no sentido da absolvição do arguido, aqui recorrente.

iv. No concerne ao enquadramento jurídico-penal o ora recorrente veio acusado e condenado, na douta sentença de que se recorre, de um crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo artigo 360.º, n. º1 e 2 do Código Penal.

v. Refere o nº 1 do referido 36º que: “1 - Quem, como testemunha, perito, técnico, tradutor ou intérprete, perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento, relatório, informação ou tradução, prestar depoimento, apresentar relatório, der informações ou fizer traduções falsos, é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias”.

vi. Entendemos que face a esta previsão o legislador ordinário pretendeu que o bem jurídico a tutelar fosse o da realização da justiça, daí se encontrar na sistemática do Código Penal, no capítulo dos “Crimes Contra a Realização da Justiça” e para isso impõe, sobre a testemunha, um dever de colaboração no processo judicial ou análogos em que é interveniente.

vii. No caso do recorrente, e atento o provado em julgamento, a recusa deste em depor visou defender um bem maior, isto é, a vida do aqui Recorrente.

viii. O universo dos Estabelecimentos Prisionais é pautado por regras, posturas e realidades bastante peculiares, que por diversas vezes se afastam dos princípios basilares do nosso Estado de Direito, onde impera a Lei do mais forte e princípios, que hoje são repugnados pelo nosso ordenamento jurídico mas que em tempos desregrados imperaram, como a tão antiga Lei de Talião – a retaliação em medidas proporcionais, no vulgo conhecida como olho por olho dente por dente.

ix. É neste complexo contexto, e que aos olhos de um jurista se afigura desvirtuado, que o Recorrente passou e passará parte da sua vida adulta, onde sobre a sua cabeça paira a Espada de Dâmocles, não remetendo para o poder, mas antes à constante insegurança vivida no mundo Prisional, onde existe a dita espada.

x. Esta realidade molda e condiciona todo o comportamento a ter pelos reclusos e com os reclusos,

xi. A simples ideia de que um recluso pode ou veio a denunciar um companheiro é motivo para atentar contra a vida do denunciante, porquanto a vida de um rato não tem qualquer valor no meio prisional.

xii. O Recorrente encontra-se inserido neste universo peculiar e também ele tem que se reger pelas regras aí ditadas e aplicadas,

xiii. O recorrente sabe perfeitamente que existem limites intransponíveis e que a não atuação de acordo com o preestabelecido determina, irremediavelmente, problemas com os seus pares.

xiv. Perante duas realidades tão disformes entre si, de um lado o dever do testemunho, do outro a problemática da vida de um delator dentro de uma prisão, não será difícil de compreender a relutância, do aqui Recorrente, em falar no dia no dia 14 de Maio de 2018,

xv. Perante uma situação com a particularidade como é a nossa, qualquer pessoa que preze a sua vida e que tenha amor-próprio faria o mesmo, isto é, recusaria delatar sobre o que fosse relativamente a um acontecimento verificado no interior de uma EP, sabendo que ao fazê-lo estaria a pôr a sua própria vida em perigo.

xvi. O caso do recorrente apresenta dois pesos bem diferentes na balança da justiça e é esse a analise que terá que ser aqui feita,

xvii. Não pode, em sistema algum, o bem jurídico da Realização da Justiça ter o mesmo peso que o bem jurídico da vida – sem o qual a própria ideia de justiça é inexistente, inócua e obsoleta.

xviii. O crime de que o Recorrente foi acusado tem, no seu número 2 do artigo 360 do código penal, uma válvula de segurança que acrescenta alguma elasticidade e abertura ao formalismo positivado pelo legislador.

xix. Admitindo esta disposição legal a existência da tão digna Justa Causa – a contrário, nos seguintes termos: “2 - Na mesma pena incorre quem, sem justa causa, se recusar a depor ou a apresentar relatório, informação ou tradução”.

xx. A existência de «justa causa» para a recusa de depor é causa de «exclusão da ilicitude» (art. 31 do Cod. Penal).

xxi. A justa causa para depor faz parte dos «tipos justificadores».

xxii. Ora, nos termos do nº 1 daquele art. 31 do Cod. Penal, “o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade”.

xxiii. A expressão «sem justa causa» usada pelo legislador é redundante, porque nenhum comportamento é criminalmente punido quando o agente atua com «justa causa».

xiv. São exemplos de «justa causa» para a recusa de depoimento as prerrogativas consignadas na lei processual para alguns familiares do arguido (art. 134 do CPP), a existência de segredo (art. 135 do CPP) ou a alegação pela testemunha de que das respostas resulta a sua responsabilização penal (art. 132 nº 2 do CPP).

xxv. Não foi intenção do legislador – conclusão que se retira da analise da jurisprudência Nacional dos Tribunais Superiores bem como o entendimento da doutrina maioritária – tornar a justa causa um tipo justificador taxativo, inerte e sem qualquer abertura à realidade jurídica que constantemente se manifesta na mutabilidade dela mesma,

xxvi. A situação do recorrente não pode nem deve ser uma situação alheia a esta mutabilidade e adaptação do próprio sistema jurídico,

xxvii. A situação do recorrente submetida a julgamento e sentenciada, deve ser visto como uma manifestação de uma realidade muito própria e complexa e que pelas suas características deve ser abordada com cautela e precaução, pois, caso não se faça podemos causar ações sem retorno.

xxviii. A justa causa não pode ser analisada como algo concreto e previamente prevista bem como não pode assumir uma natureza rígida, pois como doutamente ensina o Prof. Figueiredo Dias “os tipos justificadores ou causas de justificação são estruturalmente, por sua natureza, gerais e abstratos, no sentido de que não são em princípio referidos a um bem jurídico determinado, antes valem para uma generalidade de situações independentes da concreta conformação do tipo incriminador em análise”. (…). A causa justificativa, ao contrário do que constitucional e legalmente sucede com o tipo incriminador, não está sujeita em princípio à máxima nullum crimen sine lege, nem às suas consequências (…). Nem as concretas causas de justificação precisam de ser certas e determinadas como se exige nos tipos incriminadores; nem elas estão sujeitas à proibição de analogia; nem se está impedido de fazer causas supra legais de exclusão da ilicitude; nem relativamente a elas vale o princípio da irretroatividade da lei penal” - Direito Penal, parte geral, Tomo I, pág. 363.

xxix. ORA; a situação do recorrente não deve ser encarada de modo diferente, não sendo de estranhar a aplicação do n.º 2 do artigo 360.º do Código Penal, pois por diversas vezes a Jurisprudência Nacional tem abordado o conceito de Justa Causa como um conceito jurídico em constante mutação e de aplicação extensiva, nomeadamente no Acórdão n.º 354/13.9TAMDL.G1, 26-01-2015, Tribunal da Relação de Guimarães bem como no Acórdão da Relação de Évora, de 04.06.2013 (processo 207/11.5TAPSR.E1) em que “uma testemunha, em situação de reclusão, que, depois de transportada do estabelecimento prisional respetivo até ao tribunal, para prestar depoimento, aguardou até esse depoimento dentro da viatura celular e durante cerca de quatro horas, sem lhe ter sido facultada alimentação ou água para beber”, tendo-se considerado que “os seus deveres como testemunha não foram respeitados ponderado o cariz humanista de que se reveste todo o sistema penal português” e, por isso, assistir-lhe “justa causa para essa recusa”

xxx. No caso ora em recurso os pesos na balança da Deusa Justitia não são iguais, são bastante disformes entre si, concluindo-se que “(…) posto perante a acusação de se ter recusado a depor, o arguido pode alegar algum facto que integre o conceito de justa causa, suscetível de tornar lícito o seu comportamento.

xxxi. Alias, é a própria lei que permite e impõe que “Também o juiz deverá investigar autonomamente tal facto, se a questão se suscitar no julgamento.” (sublinhado do recorrente).

xxxii. Nesta parte, nenhuma diferença existe entre a «justa causa» do art.º. 360.º, nº 2 do Cod. Penal e as outras causas de «exclusão da ilicitude» nominadas, elencadas no art. 31 nº 2 do Cod. Penal.” - Acórdão n.º 354/13.9TAMDL.G1, 26-01-2015, Tribunal da Relação de Guimarães,

xxxiii. O Recorrente recusou-se a depor com o receio de ver a sua vida em risco caso tivesse delatado sobre a situação que o levou a assumir as vestes de testemunha.

xxxiv. Tal recusa fundamentada e justificada em audiência de julgamento, perante o julgador, visava tão-somente o exercício de uma “legitima defesa especial” com o objetivo de proteger a sua vida, a sua integridade física mesmo que isso lhe custasse uma condenação criminal,

xxxv. Esta necessidade de proteger o seu bem maior que é a sua vida, é no entender do recorrente, causa mais que suficiente para afastar a culpa do agente, pois que justifica e fundamenta a sua recusa em depor.

xxxvi. Analisada e valorada a causa invocada para se recusar a depor, impunha-se que a sua conduta não fosse criminalmente sancionada, nem desse lugar á instauração do procedimento criminal contra a sua pessoa.

xxxvii. Face á prova produzida impunha-se que o julgador absolvesse o arguido por falta de preenchimento do elemento subjetivo do crime de que vem acusado, ou seja por inexistência de culpa na prática do facto que poderia vir a subsumir.se num ilícito penal.

xxxviii. Desta feita, mal andou o tribunal a quo ao condenar, sem culpa o arguido, violando o princípio da nula peona sine culpa, e do in dúbio pro reo!

xxxix. A douta decisão em crise viola por erro notório na apreciação da prova, por erro de interpretação e aplicação o artigo 127 do CPP, e os princípios de presunção de inocência, principio do in dúbio pro reo consagrados no artigo 32 nº 2 da CRP e o princípio basilar do direito penal português de que não pode haver crime sem culpa” nullum crimen sine culpa

xl. O Tribunal a quo não tinha fundamentos legais e fácticos para condenar o arguido pelo crime de que vinha acusado!

Nestes termos e nos melhores de direito, devem Vªs Exs. dar provimento ao presente recurso e por via dele ser revogada a douta sentença proferida por outra que absolva o arguido

Por ser de inteira e merecida Justiça

4. Foi proferido despacho de admissão do recurso.

5. Em resposta ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público concluiu:

1º – Inexiste qualquer erro de julgamento na apreciação da prova produzida em julgamento;

2º – Inexiste justa causa na recusa do depoimento do arguido;

3º – A dosimetria da pena de multa foi adequada;

4º – Foi justa e adequadamente condenado o arguido pela prática do crime constante da acusação pública.

Termos em que deve negar-se PROVIMENTO ao recurso interposto pelo arguido, mantendo-se, na íntegra, a sentença recorrida, fazendo-se, desta forma, a desejada e costumada JUSTIÇA!

6. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pronunciando-se no sentido de o recurso não merecer provimento.

7. Cumprido o disposto no n.º 2, do artigo 417.º do CPP, o recorrente não reagiu.

8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cabendo, pois, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

Tendo presente as conclusões, pelas quais se delimita o objeto do recurso, sem prejuízo do conhecimento de eventuais questões de natureza oficiosa, no caso em apreço importa decidir se (i) ocorre «erro de julgamento», e/ou «erro notório na apreciação da prova» e/ou violação do «in dubio pro reo»; (ii) se verifica «justa causa» da recusa em depor.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar da sentença [transcrição parcial]

II - Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos:

1. No dia 14 de Maio de 2018, entre as 18h11m e as 18h25m, o arguido foi inquirido como testemunha no processo n.º (…), na esquadra da PSP de (…), sita na (…), pelo agente da PSP (…), tendo sido previamente advertido das circunstâncias em que se podia recusar a depor, nos termos definidos pelo artigo 134º, nº 1, als. a) e b), e 2, do CPP.

2. Como não se verificava relativamente ao arguido nenhuma causa de recusa legítima de depoimento nos termos do artigo 134.º, n.º 1, als. a) e b), do CPP, foi o mesmo, depois de identificado, questionado acerca da matéria dos autos que se investigavam no processo referido em 1, designadamente a prática de ofensas à integridade física entre terceiros.

3. Porém, o arguido recusou-se a prestar declarações, referindo que era “contra o sistema” e que “se tiver que passar por cima de alguém para ir para a sua cela, que o faz”.

4. Foi então o arguido informado por aquele agente da PSP a que só se poderia recusar a prestar declarações nos casos previstos na lei, e que naquele caso não estava dispensado de o fazer.

5. No entanto, o arguido continuou a recusar prestar declarações.

6. O arguido foi ainda elucidado por aquele agente da PSP que a recusa a prestar declarações o poderia fazer incorrer em responsabilidade criminal.

7. O arguido manteve sempre a sua recusa em prestar declarações, afirmando que “só ali estava porque é obrigado”, afirmando ainda o arguido que “não se importa de vir a incorrer em responsabilidade criminal”.

8. O arguido foi alertado por mais duas vezes que a sua recusa o faria incorrer em responsabilidade criminal, mantendo o arguido sempre a recusa em prestar declarações e inviabilizando, desse modo, a inquirição.

9. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de injustificadamente não prestar depoimento, bem sabendo que o seu depoimento, a que estava obrigado, constituía meio de prova, bem como sabia que com a sua conduta obstruía a o exercício da investigação criminal.

10. O arguido sabia ainda que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

11. O arguido já foi anteriormente condenado nos seguintes processos:

(…).

13. O arguido iniciou o seu percurso escolar em idade normal, com abandono aos 16 anos, após duas retenções no 9º ano de escolaridade. Logo a seguir trabalhou com o pai na construção civil até aos 19 anos, altura em que abandonou a casa dos pais para ir viver com uma namorada, mãe do seu filho, em (…).

14. Foi também nesta altura que iniciou o consumo de estupefacientes, na companhia da namorada.

15. Trabalhou pontualmente, em atividades indiferenciadas.

16. Logo após o nascimento do filho, este foi-lhes retirado pela Segurança Social e entregue aos pais do arguido.

17. Durante este período A. manteve-se ativo profissionalmente na empresa (…), bem como na construção civil com o seu pai.

18. Iniciou também nesta altura acompanhamento no CRI de (…), integrado no programa de substituição por metadona, com indicadores de estabilidade e conformidade às orientações clínicas.

19. O filho do arguido e a mãe foram viver para França, continuando a manter contacto, tendo o arguido intenção de ir para junto deles quando se encontrar em liberdade.

20. A. aparenta ter alguma consciência crítica face aos seus comportamentos, verbalizando arrependimento, contudo manifesta grandes fragilidades em termos pessoais no que diz respeito aos consumos.

21. É conotado como toxicodependente no meio social de residência, mas não se vislumbram sentimentos de rejeição à sua presença no local.

22. No EP de (…) terminou o curso de refrigeração e climatização, que lhe deu equivalência ao 12º ano de escolaridade, encontrando-se atualmente inativo, apesar de já ter pedido colocação laboral, em virtude de várias sanções que sofreu. Retomou o ensino regular frequentando o 11º ano de escolaridade, pois pretende frequentar a Universidade.

23. (…) é um recluso educado e mantém um comportamento adequado, contudo tem muitas fragilidades no que diz respeito aos seus comportamentos aditivos, tendo em virtude de tal situação várias sanções disciplinares, o que implica a ausência de medidas de flexibilização da pena.

24. Beneficia de várias visitas de familiares e amigos.

25. O arguido recusou prestar declarações contra outro recluso para se proteger no estabelecimento prisional.

III – Factos não provados

Inexistem factos não provados.

IV - Motivação da decisão de facto

3. Apreciação

§1. Da impugnação da matéria de facto

(…).

§2. Da verificação da «justa causa» da recusa a depor

Não se conforma o recorrente com a condenação pela prática do crime de falsidade de testemunho, p. e p. no artigo 360.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, defendendo a justificação da sua conduta por via da causa de exclusão da ilicitude, traduzida na circunstância de a recusa do depoimento se ter ficado a dever ao facto de temer represálias por parte de outro recluso.

Vejamos.

De acordo com o artigo 360.º do Código Penal:

“1 – Quem, como testemunha, perito, técnico, tradutor ou intérprete, perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento, relatório, informação ou tradução, prestar depoimento, apresentar relatório, der informações ou fizer traduções falsos, é punido com pena de prisão de seis meses a três anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias.

2 – Na mesma pena incorre quem, sem justa causa, se recusar a depor ou a apresentar relatório, informação ou tradução.

[…]”.

Trata-se de um crime, cujo bem jurídico protegido é a realização ou administração da justiça, enquanto função do Estado – [cf. Medina de Seiça, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Coimbra Editora, 2001, Tomo III, págs. 460-461], traduzindo-se o tipo objetivo nas ações e omissões descritas nos n.ºs 1 e 2, entre as quais se inscreve a “recusa em depor”, consubstanciando, nesta vertente, um crime de omissão pura – [cf. Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal”, Universidade Católica Editora, 2008, págs. 846-847], compatível com qualquer modalidade do dolo.

No caso em apreço, nas circunstâncias de tempo e lugar descritas na matéria de facto assente, tendo-se o arguido/recorrente, recusado a depor, enquanto testemunha, no âmbito do processo n.º 4040/17.2T9CRR, perante agente da PSP, após ter sido advertido das situações em que, de acordo com o artigo 134.º, n.º 1, als. a) e b), e 2, do CPP, se podia recusar a fazê-lo, o que na verdade se discute – se pode discutir – reside em saber se o que consignado vem sob o item 25 dos factos provados, é suscetível de integrar a “justa causa” a que se reporta o n.º 2, do artigo 360.º do Código Penal.

A propósito escreve Medina de Seiça “a lei pune, ainda, “quem sem justa causa, se recusar a depor ou apresentar relatório, informação ou tradução”. O legislador equipara, assim, à falsidade ativa a simples recusa a prestar depoimento que constitui, pois, um crime de omissão puro. Quanto aos comportamentos aqui abrangidos, incluem-se quer as situações em que o depoente manifestou, logo no início da declaração, a sua recusa (hipótese de recusa total de depoimento), quer aquelas em que, no decurso de um interrogatório, o declarante se recusa a responder a uma concreta pergunta (hipótese de recusa parcial de depoimento). (…) Decisivo, para a realização do tipo, é não haver uma justa causa para a recusa. Por justa causa entendem-se todos os fundamentos legítimos de recusa, maxime os privilégios consignados na lei processual para os familiares do arguido (cf. art. 134º do CPP; art. 618º do CPC), para os portadores de segredo (cf. art. 135º do CPP; art. 618º do CPP), para a não incriminação (cf. art. 132º, nº 2, do CPP).”- [ob. cit. pág. 478; no mesmo sentido, vide Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., pág. 847 e Victor de Sá Pereira, Alexandre Lafayette, CÓDIGO PENAL, Anotado e Comentado, QUID JURIS, pág. 875].

Se a “justa causa” para recusa de depoimento constitui elemento do tipo ou integra, antes, os tipos justificadores é questão que não tem merecido resposta unânime por parte dos tribunais, designadamente da Relação. Assim, enquanto no acórdão do TRC de 30.04.2014 (proc. n.º 245/13.3TACTB.C1) se fala em “factos negativos”, cuja alegação se tornaria necessária, considerando-a (a justa causa) elemento do tipo, já no acórdão do TRG de 26.01.2015 (proc. n.º 354/13.9TAMDL.G1) é a mesma encarada como causa de exclusão da ilicitude – ou como fazendo parte dos tipos justificadores – à luz do n.º 1 do artigo 31.º do Código Penal, nos termos do qual “O facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade”. A propósito consigna este último aresto: “Verdadeiramente, a expressão «sem justa causa» usada pelo legislador é redundante, porque nenhum comportamento é criminalmente punido quando o agente atua com «justa causa». Ainda que não existisse tal expressão na norma do art. 360 nº 2 do Cod. Penal, nunca seria penalmente punível a recusa do depoimento nos casos acima apontados (certos familiares, portadores de segredo e direito à não autoincriminação), porque a ilicitude do comportamento sempre estaria “excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade. A inexistência de «justa causa» não faz parte do tipo de crime. A expressão «sem justa causa» não indica mais de que a recusa não é ilícita se ocorrer algum tipo justificador”, daí que a acusação não tivesse de «narrar» factos destinados a demonstrar a inexistência de qualquer causa de exclusão da ilicitude. E mais adiante, “Afirmar que alguém atuou «sem justa causa» não é imputar um facto, mas formular um juízo ou conclusão” o que “implicaria que na acusação se discriminasse, concretizando, não terem ocorrido factos que demonstrassem não ser o caso de cada uma das hipóteses que poderiam configurar a existência de «justa causa» (…), tarefa impossível, pois como ensina o Prof. Figueiredo Dias “os tipos justificadores ou causas de justificação são estruturalmente, por sua natureza, gerais e abstratos, no sentido de que não são e princípio referidos a um bem jurídico determinado, antes valem para uma generalidade de situações independentes da concreta conformação do tipo incriminador em análise. (…) – Direito Penal, parte geral, Tomo I, pág. 363.”

Posição esta, que se perfilha!

Com efeito, constituindo um imperativo a narração, pela acusação, de factos – que não de juízos conclusivos, genéricos e/ou de direito -, tendo presente o caráter geral e abstrato dos tipos justificadores, bem como o leque de situações (factos) passíveis de consubstanciar causas de justificação, com refere o acórdão que vimos acompanhando de perto, “sempre seria votada ao insucesso a pretensão de na acusação se relatar factos que abrangessem todas as hipóteses conjeturáveis”.

Isto dito, importa retomar o caso concreto.

Decorre do acervo factual, agora definitivamente assente, que pese embora os motivos invocados (não sem que antes haja sido informado das circunstâncias em que o podia declinar, e após das consequências da respetiva recusa) por ocasião da recusa do arguido em prestar depoimento, na qualidade de testemunha, perante o agente da PSP, no âmbito do processo n.º (…), no qual se investigava a prática de ofensas à integridade física, entre terceiros, o mesmo “recusou prestar declarações contra outro recluso para se proteger no estabelecimento prisional” – [cf. item 25 dos factos provados].

Neste quadro, defende o recorrente consubstanciar semelhante motivo de recusa o conceito de «justa causa» e, assim, ver justificada, através de uma causa de exclusão da ilicitude, a sua conduta, muito embora - no que revela alguma confusão - se refira igualmente à inexistência de culpa por “falta de preenchimento do elemento subjetivo do crime de que vem acusado” (cf. os pontos xxxvi e xxxviii das conclusões), alegação esta que não encontra suporte no acervo factual, já no que concerne ao elemento intelectual, já no que respeita ao elemento volitivo do dolo.

Poderá, nas circunstâncias descritas, o motivo determinante da recusa em depor por parte do ora recorrente configurar a «justa causa» a que se reporta o n.º 2, do artigo 360.º do Código Penal?

Não temos qualquer rebuço em responder negativamente à questão!

Admitindo que para além dos casos expressamente previstos na lei de faculdade de recusa em depor, como os que são vulgarmente apontados nesse sentido (certos familiares, portadores de segredo e direito a não autoincriminação), outras situações possam ocorrer suscetíveis de consubstanciar, à luz do artigo 31.º do Código Penal, um tipo justificador e, assim, afastar a ilicitude do facto, não é certamente o propósito por parte de um recluso em se proteger, no estabelecimento prisional, de outro recluso, que legitima (justifica) a recusa em depor, muito menos, como preconiza o recorrente, por via do “exercício de uma legítima defesa (especial)” (cf. v.g. o ponto xxxiv das conclusões), cujos pressupostos (não presentes no caso) se mostram enunciados no artigo 32.º do Código Penal.

Ocupa o recorrente parte significativa das conclusões a discorrer sobre os “perigos” da vida prisional para justificar a sua conduta omissiva com o risco que o seu depoimento representaria para a sua vida ou integridade física. Ora, se poucos poderão duvidar das dificuldades acrescidas da vivência no interior do estabelecimento prisional, designadamente quanto aos “diferendos” que se podem gerar entre reclusos, não é menos verdade que compete às instâncias formais, designadamente à respetiva Direção – uma vez reportados os factos e apreciadas as concretas circunstâncias - prover à segurança/proteção dos reclusos, que enquanto tal são responsabilidade do Estado. Veja-se que pela “tese” do recorrente nunca os “crimes” praticados no interior de um estabelecimento prisional, que envolvessem indivíduos privados da liberdade, poderiam contar com o testemunho de um recluso, ainda que os tivesse presenciado, pois não seria de afastar um potencial risco (v.g. para a integridade física ou mesmo para a vida) que tal representaria.

É óbvio que a “coisa” não pode ser posta nestes termos, menos ainda com fundamento numa abstração, nunca compaginável com o tipo justificador, em que se traduz a «justa causa» da recusa.

Por fim, independentemente do que se pense sobre a solução encontrada no caso a que se reporta o acórdão do TRE de 04.06.2013, proferido no âmbito do processo n.º 207/11.5TAPSR.E1, convocado pelo recorrente, os factos ali e aqui em apreço não são passíveis de comparação, porquanto na situação naquele apreciada, como bem reporta o aresto, a testemunha, por razões intimamente ligadas a um estado de debilidade emocional, psicológica, em consequência de ter sido privado, por várias horas, das mais elementares necessidades de qualquer ser humano, se recusou naquele momento e naquelas circunstâncias a prestar depoimento, “mas não a prestar depoimento em momento e circunstâncias diferentes”.

Em suma, o recurso terá de improceder.

III. Dispositivo

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar improcedente o recurso.

Custas, com taxa de justiça que se fixa em 4 (quatro) UCs, a cargo do recorrente – [cf. artigos 513.º e 514.º do CPP; artigo 8.º do RCP, com referência à tabela III].

Coimbra,  13 de Maio de 2020  

[Texto processado e revisto pela relatora]

Maria José Nogueira (relatora)

Frederico Cebola (adjunto)