Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1417/16.4T9GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
DESPACHO
CASO JULGADO FORMAL
INVOCAÇÃO DA PRESCRIÇÃO EM RECURSO DA SENTENÇA
Data do Acordão: 02/17/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE SEIA – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 118.º E SS. DO CP
Sumário: O despacho, transitado em julgado, apreciador da prescrição do procedimento criminal obsta a que, em sede de recurso da sentença, sem que tenham sobrevindo factos verificados ou conhecidos em momento posterior àquela decisão [realidade insusceptível de ser confundida com a adução de outros fundamentos] e/ou sem que o decurso do tempo desde então decorrido detenha qualquer influência, o tribunal se debruce de novo sobre essa questão.
Decisão Texto Integral:





I. Relatório

1. No âmbito do processo comum singular n.º 1417/16.4T9GRD do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, Seia – Juízo C. Genérica – Juiz 2, mediante acusação pública, foi o arguido P., melhor identificado nos autos, submetido a julgamento, sendo-lhe então imputada a prática, em autoria material, na forma continuada, de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelos artigos 205.º, n.º 1 e n.º 4, alínea b), com referência ao artigo 202.º, alínea b), e 30.º, n.º 2, todos do Código Penal.

2. Realizada a audiência e julgamento, por sentença de 10.07.2020, o tribunal decidiu [transcrição do dispositivo]:

“a) Condenar o arguido P. pela prática, em autoria material, na forma consumada e continuada, de um crime de abuso de confiança agravado, previsto e punido pelos artigos 30.º n.º 2 e 205.º n.ºs 1 e 4, alínea b), por referência ao artigo 202º, alínea b), todos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.

b) Suspender na sua execução, por igual período de tempo, a pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.

(…)”.

3. Inconformado com a decisão recorreu o arguido, formulando as seguintes conclusões:

B1. O recorrente vem condenado, em autoria material e na forma consumada e continuada, da prática de um crime de abuso de confiança agravado, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 30.º n.º 2 e 205º, nº 1 e nº 4 alínea b), por referência ao artigo 202º, alínea b), todos do Código Penal, na pena de dois anos e seis meses de prisão, o que não concede por, no seu entender, a sentença padecer dos vícios de erro de julgamento da matéria de facto e de direito. Vejamos:

B2. Nos termos do disposto no artigo 412º-3 do CPP, o recorrente indica os pontos incorretamente julgados: foram incorretamente julgados como não provados: a) O arguido restituiu à (…) as quantias referidas em 8. dos factos provados); Por outro lado, foram mal julgados como provados os factos que passarão a transcrever-se: 14. Ao atuar da forma descrita, emitindo cheques pertencentes à ofendida à sua ordem pessoal, sem consentimento e autorização daquela, bem como sem motivo justificativo, onde fez constar as quantias acima mencionadas, bem sabendo que não lhe pertenciam e que devia devolver as mesmas, quis fazer suas as aludidas quantias que não devolveu e integrou no seu património, e posteriormente, no património da (…), nos termos anteriormente descritos, causando à ofendida um prejuízo de montante equivalente. 15. Assim, no aludido período temporal entre os anos de 2004 a 2005, de forma reiterada e sucessiva e dentro de idêntico circunstancialismo factual, quis fazer suas as aludidas quantias monetárias, integrando-as no seu património e subsequentemente no património da (…), bem sabendo que as mesmas não lhe pertenciam e que, dessa forma, obtinha um benefício patrimonial a que sabia não ter direito. 16. Agiu ainda livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.

B3. Obedecendo ao disposto no citado art. 412º CPP, cumpre agora ao recorrente indicar os meios de prova que impõem decisão diversa da recorrida e, após, a indicação do sentido em que o Tribunal recorrido deveria ter decidido: J., prestou depoimento na sessão de julgamento que teve lugar no dia 25.06.2020, o qual ficou documentado através de gravação digital, no sistema H@bilus Media Studio, entre as 10:39:18 e as 11:03:15 horas, ficheiro 20200625103919; A., prestou depoimento na sessão de julgamento que teve lugar no dia 25.06.2020, o qual ficou documentado através de gravação digital, no sistema H@bilus Media Studio, entre as 11:04:18 e as 11:25:54 horas, ficheiro 20200625110422; M. prestou depoimento na sessão de julgamento que teve lugar no dia 25.06.2020, o qual ficou documentado através de gravação digital, no sistema H@bilus Media Studio, entre as 11:27:09 e as 11:41:59 horas, ficheiro 20200625112713; J. prestou depoimento na sessão de julgamento que teve lugar no dia 06.07.2020, o qual ficou documentado através de gravação digital, no sistema H@bilus Media Studio, entre as 14:41:08 e as 14:55:37 horas 06-07-2020, ficheiro 20200706144107; Declarações do arguido P. prestou declarações na sessão de julgamento que teve lugar no dia 21/01/2020, documentadas através de gravação digital, no sistema H@bilus Media Studio, entre as 11:58:00 e as 11:59:23 horas, ficheiro 20200121115801;

B4: Quanto ao facto a) não provado: O Tribunal a quo julgou, após a produção de prova, que o arguido não pagou os montantes desapossados à (…), tendo contribuído decisivamente para tal julgamento, a circunstância de não existir qualquer documento escrito nos autos que permitisse apreender que o pagamento foi realizado, o que não se concede.

B5. Desde logo, porque a prova do pagamento não depende de documento comprovativo do mesmo. Isto é, por outras palavras, a prova do pagamento pode ser realizada, como o foi, através de testemunhas (cfr. art. 392º e 393º CC).

B6. Por outro lado, as testemunhas, nomeadamente J., prestou depoimento na sessão de julgamento que teve lugar no dia 25.06.2020, o qual ficou documentado através de gravação digital, no sistema H@bilus Media Studio, entre as 10:39:18 e as 11:03:15 horas, ficheiro 20200625103919, A., prestou depoimento na sessão de julgamento que teve lugar no dia 25.06.2020, o qual ficou documentado através de gravação digital, no sistema H@bilus Media Studio, entre as 11:04:18 e as 11:25:54 horas, ficheiro 20200625110422M. prestou depoimento na sessão de julgamento que teve lugar no dia 25.06.2020, o qual ficou documentado através de gravação digital, no sistema H@bilus Media Studio, entre as 11:27:09 e as 11:41:59 horas, ficheiro 20200625112713 e J. prestou depoimento na sessão de julgamento que teve lugar no dia 06.07.2020, o qual ficou documentado através de gravação digital, no sistema H@bilus Media Studio, entre as 14:41:08 e as 14:55:37 horas 06-07-2020, ficheiro 20200706144107), de entre elas o Pároco da (…) [representante da (…), vinculando-a, para todos os efeitos, às declarações/atos por si praticados naquela qualidade], confirmaram, perante o Tribunal a quo que o arguido pagou os montantes devidos à (…), corroborando, desse jeito, a versão do arguido P. prestou declarações na sessão de julgamento que teve lugar no dia 21/01/2020, documentadas através de gravação digital, no sistema H@bilus Media Studio, entre as 11:58:00 e as 11:59:23 horas, ficheiro 20200121115801)

B7. Todas as testemunhas supra mencionadas depuseram no sentido de que o arguido pagou à (…) todos os montantes em causa na acusação até ao final do ano de 2005 e, a circunstância de não haver qualquer documento não pode ser entendida estranha face à relação de efetiva confiança existente entre o arguido e os demais membros da (…).

B8. Efetivamente estes, quando obtiveram conhecimento dos factos, antes de qualquer medida judicial – que não tomaram – contactaram o arguido, este admitiu os factos e disse que ia devolver as quantias em causa, não foi estipulado prazo para o efeito, o arguido devolveu as referidas quantias e não foi apresentada queixa.

B9. Mais: o Tribunal a quo, no exame que fez do depoimento das testemunhas supra mencionadas, foi claro ao referir que aquelas depuseram “de forma serena, séria e coerente e cujos depoimentos e declarações, por via disso, se afiguram credíveis (…)” pelo que não se entende porque, nesta parte, o Tribunal a quo desvalorou, de todo, as declarações prestadas por aquelas testemunhas.

B10. E, dirigindo-se toda a prova produzida pelo arguido no sentido de que o mesmo pagou, in tottum, os valores “desviados” da (…), não podia o Tribunal a quo envidar por caminho totalmente oposto, isto é, pelo julgamento do não pagamento. Com efeito,

B11. Livre apreciação da prova não significa que o julgamento de facto pode assentar em qualquer convicção puramente subjetiva ou emocional.

B12. O Tribunal a quo incorreu neste vício ao deixar prevalecer a sua convicção subjetiva (a necessidade de haver documento escrito) sobre a prova que efetivamente foi produzida (incluindo aquela arrolada pela própria Acusação).

B13. Ao assim proceder, para além de erro no julgamento de facto, o Tribunal a quo violou outrossim o princípio da livre apreciação da prova ínsito no art. 127º do CPP.

B14. Ante o exposto, deve o facto a) dos factos não provados ser dado como provado.

B15. No que concerne aos factos provados 14, 15, 16: o dissídio do recorrente no que tange aos factos supra referenciados prende-se com a menção, levada a cabo pelo Tribunal a quo, de que o arguido quis fazer suas as aludidas quantias, integrou-as no seu património e que não as devolveu.

B16. Quanto à devolução das quantias dá-se aqui por integralmente reproduzido o que acima se referiu quanto ao facto a) não provado.

B17. Acresce que, da prova produzida resulta outrossim que o arguido sempre teve intenção de devolver as quantias pertença da (…) e sabia que tinha (haveria de ter) capacidade para o efeito – como teve – pois, por um lado, tinha expectativas legítimas que (…) viesse a receber os prometidos patrocínios da Câmara Municipal de (…) e de algumas sociedades como a A., Lda. e a (…), S.A. e, por outro lado sabia que podia pagar, ainda que por interposição de familiares, como veio a suceder (neste sentido cfr. declarações do arguido P. prestou declarações na sessão de julgamento que teve lugar no dia 21/01/2020, documentadas através de gravação digital, no sistema H@bilus Media Studio, entre as 11:58:00 e as 11:59:23 horas, ficheiro 20200121115801, da testemunha M. prestou depoimento na sessão de julgamento que teve lugar no dia 25.06.2020, o qual ficou documentado através de gravação digital, no sistema H@bilus Media Studio, entre as 11:27:09 e as 11:41:59 horas, ficheiro 20200625112713, e J. prestou depoimento na sessão de julgamento que teve lugar no dia 06.07.2020, o qual ficou documentado através de gravação digital, no sistema H@bilus Media Studio, entre as 14:41:08 e as 14:55:37 horas 06-07-2020, ficheiro 20200706144107).

B18. Considerando o teor dos depoimentos transcritos, sempre devem os factos 14, 15 e 16 ser dados como não provados.

B19. Acresce que, e considerando a argumentação expendida ut supra e, bem assim, a prova invocada (declarações do arguido P. prestou declarações na sessão de julgamento que teve lugar no dia 21/01/2020, documentadas através de gravação digital, no sistema H@bilus Media Studio, entre as 11:58:00 e as 11:59:23 horas, ficheiro 20200121115801, da testemunha M. prestou depoimento na sessão de julgamento que teve lugar no dia 25.06.2020, o qual ficou documentado através de gravação digital, no sistema H@bilus Media Studio, entre as 11:27:09 e as 11:41:59 horas, ficheiro 20200625112713, e J. prestou depoimento na sessão de julgamento que teve lugar no dia 06.07.2020, o qual ficou documentado através de gravação digital, no sistema H@bilus Media Studio, entre as 14:41:08 e as 14:55:37 horas 06-07-2020, ficheiro 20200706144107) sempre deveria o Tribunal a quo ter dado como provados os seguintes factos: i) o arguido sempre teve intenção de restituir o dinheiro à (…); ii) o arguido tinha expectativas legítimas que o (…) viesse a receber patrocínios vários; iii) o arguido, por si e / ou por terceiros, tinha capacidade económica para pagar à (…) os montantes em causa; iv) o arguido devolveu à (…) todas as quantias em causa, o que fez integralmente no ano de 2005 e com o acordo e assentimento do Pároco da (…);

B20. Assim, deve a matéria de facto ser alterada nos termos explanados.

B21: Acresce que: Ainda antes do início do presente processo (as quantias foram todas restituídas até final de 2005 e os presentes autos iniciaram somente em 05.12.2016), arguido e ofendida resolveram o assunto entre elas, isto é, acordaram os termos da devolução do dinheiro, aceitando que o receberam nos moldes acordados, pelo que inexiste prejuízo.

B22: Assim, sempre soçobra um dos elementos do tipo, pelo que ao decidir pela condenação do arguido, o Tribunal a quo violou o disposto no art. 205º do CP.

B23: Acresce que, face à devolução do dinheiro, o assunto ficou resolvido internamente, isto é, a (…) (a ofendida) considerou-se inteiramente ressarcida dos prejuízos que lhe tinham sido causados pelo arguido, motivo por que dele não participou criminalmente nem deduziu pedido de indemnização civil.

B24: Considerando o espírito da lei, a devolução integral do dinheiro à ofendida com a consequente repristinação da sua situação, a posição da (…) quer no sentido de não participar criminalmente do arguido quer declarando-se integralmente ressarcida de qualquer prejuízo, os factos objeto do presente procedimento criminal não têm qualquer relevância criminal.

B25: Assim, ao não julgar extinta a responsabilidade criminal do arguido, aqui recorrente, o Tribunal a quo violou o disposto no art. 206º do CP.

B26: Ainda, e sem prescindir: Não resulta dos autos suficientemente indiciado o preenchimento, por parte do arguido, do tipo subjetivo de ilícito. Com efeito, considerando que o arguido desde sempre demonstrou vontade de restituir a quantia em causa; Tinha fundados motivos para acreditar que a quantia seria restituída através de capitais do clube a quem se destinou a quantia em causa; Restituiu integralmente os valores em causa no período que lhe foi concedido,

B27: Podemos concluir que sempre houve, por banda do arguido, intenção de restituir as verbas em causa, o que exclui o dolo de apropriação e, por conseguinte, o tipo subjetivo do crime de abuso de confiança.

Dito isto:

B29: Ao condenar o arguido pela prática do crime de abuso de confiança, o Tribunal a quo violou o disposto no art. 20º da CRP e os artigos 30º-2, 205º-1-4, al. b), 202º al. b) e 206º, todos do CP. Por conseguinte, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que absolva o arguido do crime pelo qual vem acusado, com as legais consequências. Por fim:

B30. O procedimento criminal extingue-se logo que decorridos dez anos sobre a prática do crime, nos termos do disposto no art. 118º-1, b) do CP;

B31. O último facto imputado ao arguido data de 05.12.2005;

B32. O aqui recorrente foi constituído arguido em 23.02.2017, data em que, também, pela primeira vez tomou conhecimento dos factos que lhe são imputados concretamente nestes presentes autos,

B33. O presente procedimento criminal encontra-se prescrito.

B34. Nesta confluência, deve o procedimento criminal ser declarado prescrito, com as legais consequências.

Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, extraídos os corolários dimanados das “conclusões” tecidas, assim se fazendo a acostumada JUSTIÇA!

 

4. Foi proferido despacho de admissão do recurso.

5. Em resposta ao recurso o Ministério Público concluiu:

1) O procedimento criminal não se mostra prescrito.

2) Lendo-se a sentença sob recurso não se nota qualquer erro notório na apreciação da prova.

3) Não se vislumbra na decisão recorrida qualquer incorreta valoração da prova produzida, porquanto a livre convicção do julgador quanto aos factos dados como provados foi corretamente apoiada na análise crítica, arguta e conjugada das declarações prestadas pelo arguido, testemunhas e documentos juntos nos autos, assim como nas regras de experiência comum e encontra-se corretamente fundamentada, sem qualquer contradição entre os factos provados e os não provados ou erro notório na apreciação da prova.

4) Na sentença recorrida fez-se uma rigorosa apreciação da prova e uma judiciosa aplicação do Direito.

Nestes termos, a douta sentença recorrida deve ser mantida negando-se, consequentemente, provimento ao recurso interposto pelo arguido.

No mais, Vossas Excelências farão a habitual Justiça!

6. Na Relação o Exmo. Procurador-Geral da República apôs o visto.

7. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cabendo, pois, apreciar.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

Tendo presente as conclusões, pelas quais se delimita o objeto do recurso, sem prejuízo do conhecimento de eventuais questões de natureza oficiosa, no caso em apreço importa, em princípio, decidir se (i) se mostra prescrito o procedimento criminal; (ii) se verifica erro de julgamento; (iii) incorreu a sentença em erro de direito.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar da sentença em crise [transcrição parcial]:

A) DOS FACTOS

Factos Provados

Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:

1. A (…) sita na freguesia de (…), concelho de (…), é uma pessoa coletiva religiosa constituída em 5 de Novembro de 1940 e encontra-se inscrita no livro de Associações de Solidariedade Social.

2. Entre os anos de 2000 a 2011, exerceu funções de Presidente do Conselho Económico da (…) o Padre JM e de Vice-Presidente A.

3. Entre os anos de 2004 a 2005, J. exerceu funções de secretário, sendo que JMS e M. exerceram funções de vogal.

4. Desde data não apurada, mas pelo menos, entre os anos de 2004 a 2005, o arguido P. integrou o aludido Conselho Económico da (…) como tesoureiro.

5. Assim, no âmbito de tais funções incumbia-lhe receber os dinheiros da Paróquia, guardá-los e colocá-los de acordo com o que fosse decidido, promover a escrituração de receita e despesa e arquivar os respetivos documentos; assinar as autorizações de pagamento e as guias de receita, conjuntamente com o Pároco; apresentar, periodicamente, o balancete das receitas e despesas; e proceder aos pagamentos autorizados.

6. Nessa altura, o arguido era igualmente trabalhador do Banco (…), tendo aqueles decidido abrir uma conta bancária no referido banco, dada a relação de confiança que possuíam com o arguido e as funções de tesoureiro do referido Conselho, e assim facilitar a gestão diária do dinheiro que aquela instituição possuía no mencionado Banco.

7. Durante o aludido período temporal, o arguido foi igualmente Presidente da (…).

8. Acontece que, entre os anos de 2004 a 2005, por motivos não concretamente apurados, aproveitando-se da confiança que os referidos membros do Conselho Económico depositavam na sua gestão, bem como das funções de trabalhador da referida agência bancária, o arguido emitiu diversos cheques da conta n.º (….) (…) de que era única titular a (…) da freguesia de (…), no Banco (…), no montante total de 66.500€, sem conhecimento daquela e sem qualquer autorização, manuscrevendo para o efeito a sua assinatura e preenchendo os locais destinados ao montante (por extenso e em numeração) e ao lugar, bem como datando o cheque, concretamente:

- cheque n.º (…), com data de emissão de 12-04-2004, no montante de 4.000€;

- cheque n.º (…), com data de emissão de 19-04-2004, no montante de 3.000€;

- cheque n.º (…), com data de emissão de 30-11-2004, no montante de 1.000€;

- cheque n.º (…), com data de emissão de 20-01-2005, no montante de 3.000€;

- cheque n.º (…), com data de emissão de 19-05-2005, no montante de 7.500€;

- cheque n.º (…), com data de emissão de 20-05-2005, no montante de 8.500€;

- cheque n.º (…), com data de emissão de 25-05-2005, no montante de 9.000€;

- cheque n.º (…), com data de emissão de 27-05-2005, no montante de 9.000€;

- cheque n.º (…), com data de emissão de 01-06-2005, no montante de 3.500€;

- cheque n.º (…), com data de emissão de 30-06-2005, no montante de 9.000€;

- cheque n.º (…), com data de emissão de 01-08-2005, no montante de 9.000€.

9. Depois de ter emitido tais cheques, o arguido P. depositou-os na conta bancária n.º (…), domiciliada na agência de (…), do (…), de que o mesmo era titular, os quais foram debitados nos dias seguintes às datas de emissão supra identificadas, concretamente:

- o cheque n.º (…), com data de emissão de 12-04-2004, no montante de 4.000€, foi debitado em 13-04-2004;

- o cheque n.º (…), com data de emissão de 19-04-2004, no montante de 3.000€, foi debitado em 20-04-2004;

- o cheque n.º (…), com data de emissão de 30-11-2004, no montante de 1.000€, foi debitado em 02-12-2004;

- cheque n.º (…), com data de emissão de 20-01-2005, no montante de 3.000€, foi debitado em 21-01-2005;

- cheque n.º (…), com data de emissão de 19-05-2005, no montante de 7.500€, foi debitado em 20-05-2005;

- cheque n.º (…), com data de emissão de 20-05-2005, no montante de 8.500€, foi debitado em 23-05-2005;

- cheque n.º (…), com data de emissão de 25-05-2005, no montante de 9.000€, foi debitado em 27-05-2005;

- cheque n.º (…), com data de emissão de 27-05-2005, no montante de 9.000€, foi debitado em 30-05-2005;

- cheque n.º (…), com data de emissão de 01-06-2005, no montante de 3.500€, foi debitado em 02-06-2005;

- cheque n.º (…), com data de emissão de 30-06-2005, no montante de 9.000€, foi debitado em 01-07-2005;

- cheque n.º (…), com data de emissão de 01-08-2005, no montante de 9.000€, foi debitado em 02-08-2005.

10. Depois disso, igualmente por motivos não concretamente apurados, o arguido emitiu diversos cheques da conta n.º (…) de que era titular no Banco (…), no montante total de 46.100€, manuscrevendo para o efeito a sua assinatura e preenchendo os locais destinados ao montante (por extenso e em numeração) e ao lugar, bem como datando o cheque, concretamente:

- cheque n.º (…), com data de emissão de 05-08-2005, no montante de 100€;

- cheque n.º (…), com data de emissão de 25-05-2005, no montante de 1.500€ à ordem da (…);

- cheque n.º (…), com data de emissão de 02-06-2005, no montante de 32.000€ à ordem da (…);

- cheque n.º (…), com data de emissão de 24-11-2005, no montante de 1.500€ à ordem da (…);

- cheque n.º (…), com data de emissão de 30-11-2005, no montante de 500€ à ordem da (…);

- cheque n.º (…), com data de emissão de 07-12-2005, no montante de 1.200€ à ordem da (…);

- cheque n.º (…), com data de emissão de 15-11-2005, no montante de 600€ à ordem da (…);

- cheque n.º (…), com data de emissão de 18-11-2005, no montante de 5.000€ à ordem da (…);

- cheque n.º (…), com data de emissão de 05-12-2005, no montante de 500€ à ordem da (…);

- cheque n.º (…), com data de emissão de 23-11-2005, no montante de 2.200€ à ordem da (…);

- cheque n.º (…), com data de emissão de 22-11-2005, no montante de 300€ à ordem da (…);

- cheque n.º (…), com data de emissão de 30-11-2005, no montante de 700€ à ordem da (…).

11. Os cheques acima mencionados foram depois depositados na conta bancária n.º (…) do Banco (…), de que era titular a (…), concretamente:

- cheque n.º (…), com data de emissão de 25-05-2005, no montante de 1.500€ foi debitado em 27-05-2005;

- cheque n.º (…), com data de emissão de 02-06-2005, no montante de 32.000€ foi debitado em 03-06-2005;

- cheque n.º (…), com data de emissão de 24-11-2005, no montante de 1.500€ foi debitado em 25-11-2005;

- cheque n.º (…), com data de emissão de 30-11-2005, no montante de 500€ foi debitado em 02-12-2005;

- cheque n.º (…), com data de emissão de 07-12-2005, no montante de 1.200€ foi debitado em 09-12-2005;

- cheque n.º (…), com data de emissão de 15-11-2005, no montante de 600€ foi debitado em 16-11-2005;

- cheque n.º (…), com data de emissão de 18-11-2005, no montante de 5.000€ foi debitado em 21-11-2005;

- cheque n.º 2927800094, com data de emissão de 05-12-2005, no montante de 500€ foi debitado em 07-12-2005;

- cheque n.º 1127427422, com data de emissão de 23-11-2005, no montante de 2.200€ foi debitado em 24-11-2005;

- cheque n.º (…), com data de emissão de 22-11-2005, no montante de 300€ foi debitado em 23-11-2005;

- cheque n.º (…), com data de emissão de 30-11-2005, no montante de 700€ foi debitado em 05-12-2005.

12. Assim, o arguido preencheu, assinou e utilizou indevidamente os cheques acima identificados em seu benefício pessoal e da (…).

13. O arguido sabia que tais quantias monetárias não lhe pertenciam, mas que pertenciam à referida (…) e, não obstante preencheu os aludidos cheques nos termos acima descritos, depositou-os na sua conta bancária particular e após transferiu tais quantias nos termos acima mencionados para a conta bancária da (…).

14. Ao atuar da forma descrita, emitindo cheques pertencentes à ofendida à sua ordem pessoal, sem consentimento e autorização daquela, bem como sem motivo justificativo, onde fez constar as quantias acima mencionadas, bem sabendo que não lhe pertenciam e que devia devolver as mesmas, quis fazer suas as aludidas quantias que não devolveu e integrou no seu património, e posteriormente, no património da (…), nos termos anteriormente descritos, causando à ofendida um prejuízo de montante equivalente.

15. Assim, no aludido período temporal entre os anos de 2004 a 2005, de forma reiterada e sucessiva e dentro de idêntico circunstancialismo factual, quis fazer suas as aludidas quantias monetárias, integrando-as no seu património e subsequentemente no património da (…), bem sabendo que as mesmas não lhe pertenciam e que, dessa forma, obtinha um benefício patrimonial a que sabia não ter direito.

16. Agiu ainda livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.

Mais se provou:

(…).


*

Factos Não Provados

Com interesse para a decisão da causa não se provaram quaisquer factos para além dos que, nessa qualidade, se descreveram supra, designadamente:

a) O arguido restituiu à (…) as quantias referidas em 8. dos factos provados.


*

Motivação

(…).

3. Apreciação

§1. Da prescrição do procedimento criminal

Nos pontos B30 a B34 das conclusões, em função de o último facto que na acusação pública lhe vem imputado remontar a 05.12.2005 e de a primeira causa com eficácia interruptiva se haver tão só verificado em 23.02.2017 – data em que foi constituído arguido e em que lhe foram dados a conhecer os factos objeto dos presentes autos -, invoca o recorrente a extinção, por prescrição, do procedimento criminal, porquanto correspondendo ao crime a moldura penal abstrata de prisão de prisão de 1 a 8 anos (artigo 205.º, n.ºs 1 e 4, alínea b) do Código Penal), considerando o prazo previsto no artigo 118.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal aquando da sua constituição como arguido já o mesmo se encontraria prescrito.

Trata-se de questão já em momento anterior suscitada no processo e objeto de apreciação no despacho proferido em 11.02.2020 (notificado ao Ilustre mandatário do arguido em 26.02.2020) cujos termos se transcreve:

Veio o arguido P. requerer a extinção do procedimento criminal, invocando, para tanto e em suma, que o procedimento criminal se mostra prescrito desde 5 de dezembro de 2015 (…).

(…)

Apreciando.

O arguido (…) encontra-se acusado nos presentes autos pela prática, nos meses de abril e novembro de 2004 e nos meses de janeiro, maio, junho, agosto, novembro e dezembro de 2005 – datando o último facto/ato imputado ao arguido de 5 de dezembro de 2005 – em autoria material, na forma consumada e continuada, de um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelos artigos 30.º, n.º 2, 205.º, n.ºs 1 e 4, alínea b), por referência ao artigo 202.º, alínea b), todos do Código Penal (…).

O crime imputado ao arguido é punido com pena de 1 (um) a 8 (oito) anos de prisão.

Por seu turno, no que concerne aos prazos de prescrição do procedimento criminal, dispõe o artigo 118.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, que o procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime tiver decorrido o prazo de 10 (dez) anos, quando se trate de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a 5 (cinco) anos, mas que não exceda 10 (dez) anos.

(…)

O prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado, sendo que o prazo de prescrição só ocorre, nos crimes continuados, desde o dia da prática do último ato (artigo 119.º, n.º 1 e n.º 2, alínea b), do Código Penal) que, no caso dos autos e como supra referido, data de 5 de dezembro de 2005.

Compulsados os autos, mais se verifica que o arguido foi investido nessa qualidade a 7 de março de 2014 relativamente aos factos pelos quais se mostra acusado nestes autos (vide certidão do auto de constituição de arguido e auto de interrogatório de arguido datados de 7 de março de 2014, junta a fls. 12 seguintes dos autos, mormente fls. 16, verso, linhas 246 a 253, onde se lê, designadamente “(…) Confrontado com as declarações prestadas a esta Polícia pelo Padre (…), designadamente, quando referiu que o ara arguido teria utilizado indevidamente cheques da (…) a favor da mencionada coletividade [(…)] enquanto dirigente, mas que depois repôs na íntegra tais valores, confirma o facto), nessa data se interrompendo o procedimento criminal, nos termos do disposto no artigo 121.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal.

Mais se verifica que o arguido foi notificado da acusação pública contra si deduzida a 2 de setembro de 2019, nessa data se interrompendo e suspendendo o procedimento criminal, nos termos do disposto no artigo 120.º, n.º 1, alínea b) e 121.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal.

(…)

Verifica-se, assim que, mercê das supra mencionadas causas de suspensão e de interrupção da prescrição do procedimento criminal, este não se mostra prescrito.

Nestes termos e contrariamente ao invocado pelo arguido, não se mostra decorrido o prazo de prescrição do procedimento criminal.”

A questão que se coloca, traduz-se em saber se, não tendo o arguido – tão pouco qualquer sujeito processual - reagido contra o despacho supra transcrito, há muito transitado em julgado, pode agora retomar o problema da prescrição.

Com o devido respeito, afigura-se-nos que não!

Com efeito, uma vez apreciada, por decisão transitada em julgado, a invocada prescrição do procedimento criminal, o caso julgado formal que a propósito se formou, obsta a que, não se baseando a alegação “em facto ocorrido ou só conhecido posteriormente” ao da prolação do despacho exarado em 11.02.2020, “ou no mero decurso do tempo entretanto verificado”, este tribunal se debruce sobre a questão – [cf. acórdão do STJ de 06.11.2002, proferido no âmbito do proc. n.º 2340/02 – 3.ª Secção, publicado no Boletim Interno do STJ].

Se não merece reparo a consideração de que a apreciação da prescrição do procedimento criminal “é dinâmica e tem de ser efetuada em cada momento em que a questão possa ser suscitada” e, bem assim, que “o caso julgado formal constitui (…) um efeito de vinculação intraprocessual, pressupondo a imutabilidade dos pressupostos em que assenta” – [cf. acórdão do STJ de 12.11.2008, proferido no proc. n.º 08P2868, disponível em www.dgsi.pt/stj.], no caso em apreço, perante os factos alegados – que surgem a suportar neste particular o recurso - é inequívoca essa imutabilidade. Na verdade, o problema, tal como equacionado no recurso, reconduzir-se-ia a saber se a constituição como arguido [seguida da comunicação dos factos indiciados] do ora recorrente verificada no âmbito do inquérito crime donde foi extraída a certidão que deu origem ao presente processo se erigiu em causa de interrupção da prescrição do procedimento criminal; contudo, trata-se de questão já objeto de decisão transitada no âmbito dos autos, não podendo agora em sede de recurso da sentença, sem que tenham sobrevindo factos verificados ou conhecidos em momento posterior à decisão anteriormente proferida [realidade insuscetível de ser confundida com a adução de outros fundamentos] e/ou sem que o decurso do tempo desde então decorrido a influencie, ser retomada.

Não pode, assim, nesta parte conhecer-se do recurso, o que conduz à sua rejeição.

§2. Da impugnação da matéria de facto

Não se conforma o recorrente com o acervo factual que vem dado por assente na sentença, indicando como tendo sido incorretamente julgados os factos não provados inscritos em a), bem como os provados, sob os itens 14, 15 e 16, a saber:

a) O arguido restituiu à (…) as quantias referidas em 8. dos factos provados.

14) Ao atuar da forma descrita, emitindo cheques pertencentes à ofendida à sua ordem pessoal, sem consentimento e autorização daquela, bem como sem motivo justificativo, onde fez constar as quantias acima mencionadas, bem sabendo que não lhe pertenciam e que devia devolver as mesmas, quis fazer suas as aludidas quantias que não devolveu e integrou no seu património, e posteriormente, no património da (…), nos termos anteriormente descritos, causando à ofendida um prejuízo de montante equivalente.

15) Assim, no aludido período temporal entre os anos de 2004 a 2005, de forma reiterada e sucessiva e dentro de idêntico circunstancialismo factual, quis fazer suas as aludidas quantias monetárias, integrando-as no seu património e subsequentemente no património da (…), bem sabendo que as mesmas não lhe pertenciam e que, dessa forma, obtinha um benefício patrimonial a que sabia não ter direito;

16) Agiu ainda livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.

Mais defende o recorrente que passem a integrar o elenco dos factos provados:

i. O arguido sempre teve intenção de restituir o dinheiro à (…);

ii. O arguido tinha expetativas legítimas que o (…) viesse a receber patrocínios vários;

iii. O arguido, por si e/ou por terceiros, tinha capacidade económica para pagar à (…) os montantes em causa;

iv. O arguido devolveu à (…) todas as quantias em causa, o que fez integralmente no ano de 2005 e com o acordo e assentimento do Pároco da (…).

Vejamos.

No que se reporta ao que consignado vem em a) dos factos não provados, concretamente quanto à restituição à (…) das quantias descritas em 8) dos factos provados, convoca o recorrente o depoimento das testemunhas JM, AF, MP, JC, destacando os segmentos em que referiram haver o arguido restituído a quantia em causa, corroborando, assim, nessa parte, as declarações do próprio, conforme as passagens indicadas.

Iniciando pelo depoimento de JM [pároco, à data dos factos Presidente do Conselho Económico da (…)] se é certo haver o mesmo afirmado ter o arguido reposto a dita quantia, da audição (integral) do seu depoimento resultam momentos de indefinição sobre um conjunto de aspetos relevantes, os quais, conforme dá conta a fundamentação da decisão, o fragilizam, retirando-lhe, neste ponto, consistência/credibilidade. Com efeito, descortinam-se um conjunto de imprecisões e hesitações, à luz das regras da experiência comum, dificilmente explicáveis e compatíveis com a dimensão que os factos assumiram.

Assim é, enquanto disse: «não me recordo bem do montante»; «deve ter sido mais de um cheque» [reportando-se à conduta do arguido]; «não sei em que prazo repôs»; «não tenho a certeza se estipulámos um prazo para ele resolver a questão»; «não houve documento para a regularização dos valores em causa»; «não me recordo se existe algum documento sobre os montantes»; «tínhamos as coisas bem-feitas e organizadas em termos da contabilidade da paróquia»; «tínhamos uma contabilidade bastante bem feita»; «não me recordo como a quantia foi devolvida: se em dinheiro; cheques ou transferência bancária; sei que esteve envolvida a família»; «tenho a ideia que foram repostos todos os dinheiros»; «não sei se [a reposição] foi em mais do que uma parcela»; «tenho a certeza que fiz tudo para reaver o dinheiro»

Também a testemunha AF [à data dos factos Vice-Presidente do Conselho Económico da (…)], reportando-se ao arguido, referiu que quando descobriram que não havia dinheiro na conta chamaram o tesoureiro (arguido) o qual «assumiu e disse que ia repor o dinheiro, como fez!», mas «nunca disse porque ficou com o dinheiro», acrescentando, não lhe ter sido «marcado o tempo» para o repor e que «precisavam do dinheiro para as obras»; no que concerne à quantia em questão referiu: «na altura entre 50.000 € e 60.000 €»; revelou desconhecer «como o dinheiro foi tirado da conta: se foi só um movimento ou vários»; quanto à forma como teria sido reposta a quantia disse: «uns devem ter sido em transferência, outros em monetário», adiantando ter recebido por uma vez das mãos do arguido um envelope com dinheiro, não sabendo quanto seria; porém, questionado como sabia se o envelope [o qual, segundo o próprio, estava fechado] continha dinheiro, referiu: «Eu confio no arguido! Confio que o Sr. (…) repôs o dinheiro; a igreja não apresentou queixa; se não apresentou queixa é porque ele repôs!»; «Às vezes, o Sr. Padre dizia-me: olha o Sr. (…) já trouxe mais uma prestação». Diretamente perguntado sobre se o arguido havia efetivamente pago, respondeu: «Nunca cheguei a ver!»; «O Sr. Padre deu [o assunto] como encerrado»; «Eu continuo a acreditar que ele [arguido] tenha reposto do dinheiro»; «Claro que foi reposto porque o Sr. Padre com certeza não ia ficar calado»; «Nunca assisti a nenhuma entrega de dinheiro»; «Confio que o Sr. P. tenha entregue o dinheiro, mas saber não sei»!

De semelhante depoimento, apenas se pode extrair o desconhecimento da testemunha sobre se o arguido repôs, ou não, a quantia em questão, encontrando, assim fundamento a decisão quando a propósito refere: “Já no que concerne (…) a AF e pese embora não se duvide que o mesmo confie/acredite que o arguido devolveu as quantias de que se apropriou, a verdade é que do depoimento desta testemunha resulta tão-somente que o arguido lhe entregou, por uma vez, um envelope fechado – que a testemunha não abriu – e que o arguido dizia conter dinheiro.”

Já testemunha MP, amigo do arguido há vários anos, pessoa que nunca teve intervenção na (…), sobre o segmento em questão, limitou-se a dizer que o arguido, entre o Natal e o Ano Novo de 2005, lhe transmitiu «que já tinha devolvido o dinheiro», reportando o estado de espirito - «parecia que tinha ressuscitado!» - que o mesmo então apresentava.

Por fim, do depoimento de JC [há muitos anos amigo do arguido, com quem já trabalhou numa imobiliária] sobre a matéria ora em questão referiu que o dinheiro foi devolvido porque «O arguido apresentou-me um papel» dizendo: «olha o que devo à igreja … é isto e pagou duas vezes 20.000,00 €» e uma terceira …», dando-lhe conta de que «estava tudo arrumado com a igreja». Concretamente questionado sobre a natureza do papel, revelou tratar-se «de um manuscrito», sem qualquer assinatura, concluindo: «era um rascunho»!

Como é bom de ver a razão de ciência das duas últimas testemunhas – quanto à questão que ora nos ocupa - assenta no que lhes foi transmitido pelo arguido.

As declarações do arguido no sentido de haver restituído, entre setembro e dezembro de 2005, cerca de 60.000,00 € à (…), o que fez em dinheiro ao Sr. Pároco (..) e à testemunha AG, referindo que as coisas se processaram «por acordo verbal entre todos», «porque não há papel; as pessoas conheciam-se, eram de bem», acrescentando que eles consideraram tudo pago, não se apresentam, no contexto, credíveis, sendo curioso notar como a alegada inexistência de «papel» não o teria impedido de exibir um «manuscrito» à testemunha JC…!

Não podemos estar mais de acordo com o recorrente quando diz que a livre apreciação da prova não pode assentar em qualquer convicção puramente subjetiva, numa mera opção voluntarista, sem recurso a dados objetiváveis; contudo já divergimos do mesmo enquanto pretende fazer crer ter sido esse o caso dos autos.

Efetivamente, não foi sem mais o facto de inexistir um documento escrito que conduziu a que a convicção do julgador se tivesse formado no sentido acolhido na sentença; prevaleceram, antes sim, um conjunto de fatores que, relacionados entre si, sem descurar a debilidade dos depoimentos das duas testemunhas que estariam em condições de esclarecer – caso nisso tivessem interesse, o que não ressuma dos mesmos, constando-se no discurso da testemunha JC um apelo constante à doutrina social da Igreja - os factos, apontam inequivocamente para a falta de verosimilhança quer das declarações do arguido, quer dos depoimentos que visaram suportá-las.

Na verdade, realçando a sentença a circunstância de não ter «sido lavrado qualquer documento por forma a registar a invocada entrega das quantias apropriadas», não deixa de convocar aspetos que, conjugados entre si, sustentam o processo de formação de convicção.

Assim é enquanto consigna: “ …considerando a forma de atuar do arguido (deixando um rastro documentada sua conduta), atentando no valor considerável das quantias em causa nos autos (66.500,00) e atendendo, ainda, na profissão do arguido (contabilista), não se afigura verosímil que o arguido tenha pago quantia tão considerável em numerário sem se salvaguardar com um documento comprovativo do pagamento de tais quantias.

Do mesmo modo, não se afigura crível que os familiares a quem o arguido disse ter recorrido, lhe tenham entregue quantia tão considerável em numerário e que o arguido tenha depois restituído estas quantias aos seus familiares em dinheiro sem que, uma vez mais, …tivesse sido lavrado o correspetivo documento.

De notar que para além da inexistência de um qualquer documento (um princípio de prova documental, pelo menos) que pudesse corroborar a versão do arguido, tampouco foi produzida prova testemunhal no que a esta matéria concerne, o que mal se compreende já que, de acordo com o arguido, alguns dos familiares que lhe emprestaram o dinheiro ainda estão vivos.

De salientar que, durante o período em que o arguido afirmou ter pago as quantias apropriadas (após terem sido reveladas as suas condutas), o arguido continuou a fazer pagamentos/transferências para o (…), optando por prosseguir com a sua conduta, decidindo não destinar o dinheiro que ainda não havia sido gasto para a restituição das quantias à ofendida.

Na verdade, é verdadeiramente atentatório das mais elementares regras da experiência comum e das quais nunca nos podemos distanciar que alguém que pretenda restituir 66.500,00€ (num curto espaço de tempo) recorra a empréstimos de familiares e simultaneamente continue a gastar uma boa parte das quantias de que se apropriou [vide a propósito a seguinte passagem: “De salientar que, durante o período em que afirmou ter pago as quantias apropriadas (após terem sido reveladas as suas condutas), o arguido continuou a fazer pagamentos/transferências para o (…), optando por prosseguir com a sua conduta, decidindo não destinar o dinheiro que ainda não havia sido gasto para a restituição das quantias à ofendida”.]

No que respeita, por seu turno, ao depoimento de JM, este pautou-se pela hesitação e imprecisão, não sendo o Sr. Padre capaz de responder que quantias teriam sido entregues pelo arguido, nem tampouco onde, por que forma e de que modo as mesmas teriam sido entregues pelo arguido.

Ademais, não pode o Tribunal deixar de salientar que a incerteza quanto aos contornos do alegado pagamento e a inexistência de elementos documentais que atestem tais pagamentos contrasta de forma flagrante com a afirmação espontânea [da mesma testemunha] de que a contabilidade da ofendida é cuidada”.

Ora, o que nos diz o princípio estabelecido no artigo 127.º do CPP é que «o valor dos meios de prova não está legalmente pré-estabelecido, devendo o tribunal [valorá-los] de acordo com a experiência comum e com a concorrência de critérios objetivos que permitam estabelecer um substrato racional de fundamentação e convicção» - [cf. acórdão do STJ de 07.01.2004 (proc. n.º 03P3213)]. A livre convicção é, por conseguinte, um meio de descoberta da verdade, subordinada à razão e à lógica, sendo que «a atividade judiciária na valoração dos depoimentos há-de atender a uma multiplicidade de fatores que têm a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas as hesitações, a linguagem … as coincidências, as contradições … e até saber interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para perceber e aquilatar quem estará a falar a linguagem da verdade (…)» - [cf. o acórdão do TRP de 05.06.2002 (proc. n.º 0210320)].

Retornando ao caso concreto a fundamentação da convicção não deixa dúvida sobre haver-se o tribunal a quo debruçado sobre um conjunto de factos, os quais à luz das regras da experiência, contribuíram para descredibilizar o depoimento das testemunhas – o mesmo sucedendo em relação às declarações do arguido – na parte em que referiram ter o ora recorrente reposto a quantia em dívida, não se resumindo a questão, como se pretende fazer crer, à ausência de um documento escrito.

Isto dito, importa concluir no sentido de não impor a prova indicada – criticamente apreciada na sentença – decisão diversa da recorrida.

No que concerne à matéria descrita sob os itens 14, 15 e 16, o dissidio do recorrente incide sobre os segmentos: «o arguido quis fazer suas as aludidas quantias»; «integrou-as no seu património» e «não as devolveu».

Na perspetiva do mesmo as suas declarações, bem como o depoimento das testemunhas AF, MP e JC, nas passagens identificadas imporiam decisão diversa da recorrida.

Para simplificar, atenhamo-nos aos dois últimos segmentos.

Não vindo impugnados os pontos 8, 9, 10, 11 e 13 afigura-se-nos inequívoco ter o arguido (objetivamente) «integrado no seu património» as quantias descritas em 8 dos factos provados, pelo que nesta parte – independentemente do teor da prova indicada, mostrando-se, desde logo, os mesmos para além de documentalmente demonstrados, sustentados nas suas próprias declarações – apresenta-se a sua pretensão destituída de fundamento.

A impugnação do segmento «não as devolveu» vem alicerçada nas declarações do arguido e, exceção feita a JM, no depoimento das testemunhas indicadas a propósito da alínea a) dos factos não provados, assistindo-se agora a uma expressiva redução das passagens, para o efeito, relevantes.

Nesta sede, por uma questão de economia processual, dá-se por reproduzida a apreciação que nos mereceu a impugnação da matéria contida na referida alínea, reforçada pela circunstância de as ditas testemunhas (MP e JC) não terem revelado conhecimento direto dos factos – tendo-se limitado, no essencial, a transmitir o que lhes foi dito pelo arguido -, sendo certo que a parte agora indicada do depoimento de AF [versando sobre o propósito, desde o início, por parte do arguido, de devolver o dinheiro] em nada contraria o segmento em questão, e seguramente não impõe decisão diversa da recorrida.

Fica-nos, assim, o segmento «o arguido quis fazer suas as aludidas quantias»; A impor decisão diversa da recorrida indica o recorrente passagens das suas declarações, bem como do depoimento de AF, MP e JC. Do arguido enquanto referiu que não quis ficar com as quantias em causa; ser sua intenção devolvê-las assim que tivesse disponibilidade; não ter sido essa a sua intenção; pretendeu resolver um problema do (….) porque se sentia apertado com jogadores, fornecedores e tinha de resolver o problema; não ter solucionado o caso (do …) com dinheiro seu porque na altura não o tinha; as promessas de donativos que lhe haviam sido feitas, designadamente por parte da Câmara e das empresas da região, não se concretizaram na altura devida. Da testemunha AF na parte em que transmitiu que quer ele quer o Sr. Pároco sempre acreditaram no arguido; ter sido sempre intenção deste devolver o dinheiro; não constituir seu propósito ficar com o dinheiro; ser sua convicção que o arguido – até pela forma como se prontificou em repor o dinheiro – teve sempre a intenção de o repor. Da testemunha MP enquanto reportou ter tido conhecimento, por intermédio do arguido, que este contratou pessoas em 2004/2005 na expetativa de receber um apoio da Câmara e de empresas da região, ocasião em que o advertiu para ter cuidado porque as promessas eram fáceis, já cumprir era mais difícil; Da testemunha JC na parte em que referiu que o arguido lhe disse que andava aflito porque não tinha dinheiro para pagar nem aos jogadores, nem ao treinador, pelos quais era pressionado; bem como que o mesmo gastou até as suas economias, pois tinha promessas de patrocínios da Câmara e de outras empresas da zona, chegando o Presidente de Câmara a prometer-lhe 40.000,00€ para pagar ao clube, aos jogadores e aos treinadores, dinheiro esse que não chegou; acrescentou ser intenção do arguido devolver o dinheiro, não querendo que ninguém soubesse da situação, pretendendo, assim, repô-lo antes que as pessoas tomassem conhecimento.

Pois bem, os depoimentos vindos de citar – corroborando as declarações do arguido – mais não constituem do que impressões e opiniões em grande parte sustentadas no que as testemunhas teriam ouvido ao ora recorrente. Porém, considerando o alargado período de tempo pelo qual se arrastaram as condutas, sem escamotear que o arguido só admitiu os factos quando foi descoberto – no dizer da testemunha AF na ocasião em que, por estarem prestes a iniciar obras na casa paroquial, se deslocaram ao banco e constataram “que não tínhamos lá o dinheiro”; o procedimento adotado: primeiro com a emissão de vários cheques da conta de que era titular a ofendida; depois com o depósito dos mesmos na conta de que o próprio era titular e finalmente, a partir desta, com a emissão de cheques à ordem da (…); a circunstância, como se refere na fundamentação, de já depois de descoberto, ter continuado a fazer pagamentos/transferências para o (…), “decidindo não destinar o dinheiro que ainda não havia sido gasto para restituir as quantias à ofendida”; e, alegadamente, possuir [ou os seus familiares] património suficiente para proceder ao pagamento das quantias de que se apropriou – suscitando-se então a questão de saber o motivo pelo qual não se socorreu do mesmo em vez de proceder como resultou apurado -, parece-nos inequívoco o propósito do arguido em fazer suas as ditas quantias.

Como evidencia – e bem – a decisão recorrida «… os elementos subjetivos do crime pertencem à vida intima e interior do agente, sendo, contudo, possível captar a sua existência através e mediante a factualidade material que os possa inferir ou permitir divisar, ainda por meio de presunções ligadas ao princípio da normalidade ou às regras da experiência comum (cfr, neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de outubro de 2019, disponível em www.dgsi.pt). Na verdade, e fazendo apelo à praxis dos Tribunais, verificamos que “os atos interiores” que respeitam à vida psíquica, a maior parte das vezes não se provam diretamente, mas por ilação de indícios ou factos exteriores (vide, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, página 101, apud Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de outubro de 2009 supra mencionado).”

Em suma, a prova indicada não impõe, sequer sugere decisão contrária à recorrida.

Sobre os supra identificados factos que o recorrente pretende ver aditados aos provados, descritos em:

- i) Reiteram-se os fundamentos que suportaram a apreciação do ponto que antecede, não sendo, assim, de proceder ao aditamento.

- ii) A irrelevância do facto tal como vem concebido [«o arguido tinha expetativas legítimas que o (…) viesse a receber patrocínios vários»], uma vez que não estabelece o nexo entre o facto e as suas condutas, preclude o respetivo aditamento.

- iii) Nenhuma das passagens indicadas relativamente à prova, a propósito, convocada permite/impõe concluir nesse sentido. Contudo, como já atrás referido, a ser verdade ter o arguido, por si ou por terceiro, capacidade económica para pagar à (…) as quantias em questão - não vindo sequer alegado que se tratasse de condição superveniente - sempre ficaria por perceber a razão pela qual não se socorreu desses meios em momento anterior ao da prática dos factos, evitando assim incorrer em semelhantes condutas;

- iv) Renovam-se os fundamentos que sustentaram a apreciação do recurso na parte respeitante à alínea a) dos factos não provados, razão pela qual não há lugar ao aditamento.

De uma forma sintética, podemos dizer não impor, em qualquer dos casos, a prova convocada decisão diversa da recorrida; não se assistir – como cremos ter demonstrado – a uma convicção puramente subjetiva, isto é sem recurso a factos e circunstâncias que apreciados de acordo com as regras da experiência comum, dos juízos presuntivos/presunções judiciais sustentaram, à margem da dúvida razoável – também esta não meramente subjetiva -, o sentido da decisão. Com efeito, não transparecendo da sentença a dita dúvida sustentada, jamais estaria vedado a este tribunal concluir, à luz do normal acontecer [regras da experiência comum], mesmo com apelo aos juízos de inferência, por uma apreciação em que aquela se deveria ter colocado, o que equivale a dizer que também nesta sede – funcionamento do pro reo – se impõe sair do limbo da pura subjetividade. Não é, contudo, o caso! Na verdade, a audição da prova – bem mais profícua do que a sua simples leitura – permitiu, o que já decorria da fundamentação, concluir não haver espaço para a dúvida sustentada.

Na ausência de invalidade e/ou vício que o impeça, tem-se por definitivamente fixada a matéria de facto.

§3. Da qualificação jurídico-penal

Entende o recorrente que não se mostram reunidos os elementos do ilícito típico de abuso de confiança, concretamente o prejuízo porquanto o arguido e ofendida teriam acordado «os termos da devolução do dinheiro, aceitando que o receberam nos moldes acordados», o que conduziria à sua absolvição – [cf. os pontos B21 e B22 das conclusões].

Foi o arguido acusado e condenado pela prática, em autoria material, na forma continuada e consumada, de um crime de abuso de confiança agravado, p. e p. pelos artigos 30.º n.º 2 e 205.º n.ºs 1 e 4, alínea b), por referência ao artigo 202º, alínea b), todos do Código Penal.

Dispõe o artigo 205.º, n.ºs 1 e 4, do Código Penal, na redação em vigor à data da prática dos factos:

1. Quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de pisão até três anos ou com pena de multa.

[…]

4. Se a coisa referida no n.º 1 for:

a) De valor elevado, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias;

b) De valor consideravelmente elevado, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.

[…]”.

Elemento essencial do crime é, pois, a ilegítima apropriação.

Como refere Figueiredo Dias, “o elemento típico que exprime por excelência o bem jurídico protegido” é a apropriação; enquanto no furto “a apropriação intervém como elemento do tipo subjetivo de ilícito (com “intenção de apropriação”)”, no abuso de confiança, diferentemente, intervém “na sua veste objetiva de elemento do tipo objetivo de ilícito”, por isso “a apropriação no abuso de confiança “não pode ser … um puro fenómeno interior (…) mas exige que o animus que lhe corresponde se exteriorize, através de um comportamento, que o revele e execute (…)” – cf. Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra Editora, pág. 103).

Podemos, assim, dizer que a conduta típica no crime em referência consiste na apropriação ilegítima da coisa que tenha sido entregue ao agente por título não translativo da propriedade [aqui se incluindo qualquer ato jurídico que invista o agente no poder de disposição da coisa, ficando obrigado à sua devolução ao transmitente ou a um terceiro: o agente passa a agir como se fosse seu proprietário, invertendo a posse ou detenção [preexistente à apropriação]. A “entrega” não tem de se traduzir num ato material [não implicando necessariamente a transmissão física da coisa, nem o poder de disposição do transmitente – [cf. Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, pág. 566], bastando para tanto que o agente se encontre investido num poder sobre a coisa que torne possível desencaminhá-la ou dissipa-la. A consumação ocorre quando o agente, que recebeu a coisa móvel por título não translativo da propriedade para lhe dar determinado destino, da mesma se apropria.

Por seu turno, o tipo subjetivo exige uma atuação dolosa – admitindo qualquer modalidade de dolo – “com a consciência de que deve restituir-se, apresentar ou aplicar a certo fim a coisa que o agente detém em seu poder; e que o agente queira apropriar-se dela, integrando-a no seu património ou desencaminhando-a ou dissipando-a” – [cf. M. Miguez Garcia e J.M. Castela Rio, Código Penal, Parte geral e especial, Almedina, pág. 860].

Sobre o prejuízo escreve Figueiredo Dias, “O art. 453.º do nosso CP de 1886 considerava ainda como elemento integrante da tipicidade objetiva do abuso de confiança o “prejuízo do proprietário, possuidor ou detentor”. Ao que a doutrina – cf. EDUARDO CORREIA, RLJ 90º 52 ss., na esteira da RLJ 82º 3 ss. – e a jurisprudência entre nós dominante faziam equivaler o perigo de prejuízo. Não parece haver hoje razão nem textual, nem teleológica para esta exigência. Uma interpretação correta dos restantes elementos do tipo de ilícito, nomeadamente da apropriação e do respetivo dolo (…), dão guarida bastante às exigências político-criminais de restrição da punibilidade.” – [cf. ob. cit., pág. 106-107].

Significa, pois, que diferentemente do que defende o recorrente, o prejuízo “qua tale” não constitui elemento típico do crime, discussão que sempre resultaria, no caso concreto, perante o acervo factual definitivamente assente, inútil.

Ocorrendo a apropriação de coisa fungível, como é o dinheiro, quando o agente não a restitui no tempo e sob a forma combinada, ou dispõe dela de modo injustificado, resulta inequívoco que o arguido [então tesoureiro do Conselho Económico da (…), com acesso à conta da dita instituição], ao agir conforme descrito em 8, 9 e 10 dos factos provados - conduta que se prolongou desde abril de 2004 a dezembro de 2005 -, passou a conduzir-se como se fosse dono das ditas quantias, assim invertendo a posse ou detenção, da coisa que lhe foi entregue [sobre a qual se encontrava investido de um poder que tornava possível desencaminhá-la ou dissipa-la] por título não translativo da propriedade. Com efeito, o conjunto de atos elencados sob os referidos itens, praticados pelo arguido, não podem deixar de ser encarados como concludentes no sentido de que foi sua intenção fazer seu o dinheiro, como o fez, num primeiro momento integrando-o no seu património, e no momento seguinte transferindo-o para a conta de uma terceira entidade. A atitude subjetiva do arguido de dispor da coisa como própria, o propósito de se comportar em relação à mesma uti dominus não nos suscita qualquer reserva. Também o elemento subjetivo do tipo, a consciência de que a quantia em dinheiro, em relação à qual estava em condições de aceder se encontrava adstrita a outro fim, bem como a vontade de dela se apropriar, integrando-a no seu património, resulta perfetibilizado nos factos.

A pretensão do recorrente no sentido de ver aplicado o disposto no artigo 206.º do Código Penal não encontra respaldo nos factos provados, não ocorrendo, assim, violação do referido preceito.

No que à qualificação jurídico-penal respeita, consta-se, contudo, haver o tribunal a quo, ao subsumir os factos à alínea b), do n.º 4, do artigo 205.º do Código Penal, incorrido em erro de direito, impondo-se agora repor a legalidade, posto que se trata de questão passível de conhecimento oficioso.

O crime continuado «é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação» - [cf. o artigo 79.º, n.º 1 do Código Penal]. Daqui decorre que, apesar da pluralidade de ações unificadas no conceito de crime continuado, a punição do agente far-se-á, de entre os crimes praticados em «concurso», apenas por um deles, precisamente o mais grave que integra a continuação.

Porém, considerou o tribunal a quo, desde logo para efeito de agravação do crime, o montante total das quantias discriminadas sob o item 8 dos factos provados, ou seja os 66.500,00 [valor total da apropriação], fazendo, assim, funcionar a circunstância agravante da alínea b, do n.º 4, do artigo 205.º do Código Penal, quando é certo nenhuma das quantias no mesmo discriminadas ultrapassa os € 17.800,00, valor a partir do qual, tendo como referência a unidade de conta à data dos factos [€ 89,00], seria de considerar «valor consideravelmente elevado» - [cf. a alínea b) do artigo 202.º do Código Penal].

Deverá, pois, em função da quantia mais gravosa que integra a continuação criminosa respeitar à apropriação de € 9.000 [cf. o item 8], o arguido sofrer condenação pela prática, na forma continuada, de um crime de abuso de confiança agravado – pela circunstância «valor elevado» - nos termos da alínea a) do n.º 4, do artigo 205.º do Código Penal, conjugado com a alínea a), do artigo 202.º do mesmo diploma.

Por fim, apenas dizer que a diferente qualificação jurídico-penal dos factos, atenta a moldura penal abstrata correspondente ao crime [prisão até cinco anos] e o disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 118.º do Código Penal, não é suscetível de produzir alteração na apreciação levada a efeito, no despacho proferido em 11.02.2020, pelo tribunal a quo.

§4. Da escolha e medida da pena

A alteração produzida à qualificação jurídica-penal dos factos torna inevitável a reformulação da matéria relativa à pena.

Correspondendo ao crime, em alternativa, pena de prisão ou multa será de dar preferência à pena não privativa da liberdade se for de concluir que através desta se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição – [cf. artigo 70.º do Código Penal]. Finalidades estas, exclusivamente preventivas, quer de prevenção geral positiva, como meio de proteção dos bens jurídicos, quer de prevenção especial, como meio de reintegração do agente na sociedade.

Como refere Pinto de Albuquerque, a “articulação entre estas necessidades deve ser feita do seguinte modo: em princípio, o tribunal deve optar pela pena alternativa ou de substituição mais conforme com as necessidades de prevenção especial de socialização, salvo se as necessidades de prevenção geral (rectius, a defesa da ordem jurídica) impuserem a aplicação da pena de prisão”.

No caso concreto, constata-se encontrar-se o arguido familiar, social e profissionalmente integrado, tratando-se de pessoa considerada na comunidade, onde é tida por séria/honesta, não registando antecedentes criminais, aspeto este que assume relevância acrescida tendo presente a data dos factos [2004-2005]. Significa, pois, apresentarem-se diminutas as exigências de prevenção especial. Já as necessidades de prevenção geral, em função da relativa frequência com que sucedem condutas similares, não raramente praticadas por pessoas próximas das instituições, contribuindo para o descrédito destas, e com reflexos muito negativos na comunidade, são consideráveis. Não obstante, ponderando o longo período de tempo já decorrido sobre os factos, afigura-se-nos ser de optar pela pena de multa, ainda compatível com a defesa da ordem jurídica, cuja salvaguarda não demanda, agora, a punição do arguido com uma pena de prisão.

Correspondendo ao crime a moldura penal abstrata de prisão até 5 anos ou multa até 600 dias, na determinação da medida concreta da pena, são mais uma vez exigências de prevenção, sempre limitadas pela «medida da pena» [artigo 40.º do Código Penal], as coordenadas a ter em conta, havendo, ainda, a considerar as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, designadamente as previstas no n.º 2, do artigo 71.º do Código Penal.

Sobre as exigências de prevenção geral e especial, como meio de proteção dos bens jurídicos, por um lado, e de ressocialização, por outro lado, damos por reproduzidas as considerações levadas a efeito a propósito da opção pela pena de multa.

Militam a favor do arguido a sua integração familiar, social e profissional, a consideração e estima que lhe são devotadas na comunidade, a ausência de antecedentes criminais, a confissão, ainda que apenas em parte, dos factos, a circunstância de sobre os mesmos ter decorrido um período de tempo considerável, sem que tenha voltado a delinquir; contra o mesmo não pode deixar de ser ponderado o elevado grau de ilicitude, decorrente quer do montante global da quantia apropriada – aspeto que, como vimos, não sendo de considerar para o efeito de qualificação jurídico-penal do crime, assume relevância na determinação da medida da pena -; do considerável período de tempo por que se arrastou a atividade criminosa; da proveniência das quantias apropriadas [da comunidade de paroquianos], bem assim, dada a natureza da instituição ofendida, do fim a que se mostravam destinadas, e a culpa, manifestada na modalidade mais intensa do dolo.

Tudo sopesado tem-se por adequada e proporcional a pena de 275 (duzentos e setenta e cinco) dias de multa, a qual não ultrapassando a medida da culpa, se nos afigura realizar satisfatoriamente as exigências de prevenção.

No que à quantia correspondente a cada dia de multa concerne, ponderada a situação económica do arguido e os respetivos encargos, fixa-se a mesma em € 7,00 (sete euros) – [cf. artigo 47.º do Código Penal].

III. Dispositivo

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar improcedente o recurso, não obstante com diferente fundamento:

 (i) Condenam o arguido P. pela prática, como autor material, na forma consumada e continuada, de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelos artigos 205.º, n.ºs 1 e 4, alínea a), 30.º, n.º 2 e 79.º, n.º 1, todos do Código Penal, na pena de 275 (duzentos e setenta e cinco) dias de multa, à razão diária de € 7,00 (sete euros), revogando na parte afetada a sentença recorrida.

(ii) Sem tributação.

Coimbra, 17 de Fevereiro de 2021

[Texto elaborado e revisto pela relatora]

Maria José Nogueira (relatora)

Frederico Cebola (adjunto)