Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1231/13.9TBCVL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: EXECUÇÃO
SUSTAÇÃO DA EXECUÇÃO
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
Data do Acordão: 04/04/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - COVILHÃ - JL CÍVEL - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.788, 794 CPC
Sumário: 1. Com o estatuído no art.º 794º, n.º 1 do CPC pretende-se evitar que em processos diferentes se opere a adjudicação ou a venda dos ´mesmos bens`; a liquidação tem de ser única e há-de fazer-se no processo em que os bens foram penhorados em primeiro lugar.

2. Considerando que a reclamação de créditos constitui uma fase da instância executiva, não tendo autonomia processual própria, a sustação da execução por existência de uma penhora anterior sobre um bem (art.º 794º, n.º 1 do CPC) determina, necessariamente, a sustação do apenso de reclamação e graduação de créditos no que a esse bem respeita, e nunca a extinção deste por inutilidade superveniente da lide.

Decisão Texto Integral:   





         
            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
           
           

            I. Em 09.5.2016, por apenso aos autos de execução em que é exequente N (…) S. A., e é executada, entre outros, O (…) a N (…), S. A., veio reclamar um crédito sobre a executada O (…), no montante de € 83 061,83, acrescido de juros de mora vincendos.

            Alegou, em síntese:

            - No exercício da sua actividade bancária, em 01.3.2007, celebrou com a executada e outro, dois contratos de mútuo com hipoteca, formalizados pelas escrituras públicas reproduzidas a fls. 4 verso e 15, um no montante de € 75 000 e outro no montante de € 17 500;

            - Para garantia do capital mutuado, respectivos juros e despesas (até ao montante máximo de € 106 125 e € 24 762,50, respectivamente), constituiu a executada, a favor da reclamante, hipotecas sobre o “prédio urbano composto por edifício de rés-do-chão e sótão, sito na Q (...) , inscrito na matriz predial sob o art.º 430 e descrito na Conservatória do Registo Predial da (...) sob o n.º 631/20030310”;

            - As últimas prestações pagas pela executada em referência aos ditos empréstimos venceram-se em 24.3.2016 e 24.02.2016, respectivamente;

            - A dívida global de capital e juros relativa aos mencionados empréstimos ascende ao montante de € 83 061,13.

            Porque relativamente ao referido prédio urbano penhorado na execução dos autos principais foi “registada penhora anterior a favor da Fazenda Nacional” e atendendo a que por decisão do Agente de Execução de 07.10.2016 foi determinada a sustação da execução quanto ao dito prédio (nos termos do disposto no art.º 794º do CPC), a Mm.ª Juíza a quo, por sentença de 18.10.2016, concluiu que “a penhora sobre o bem que recai a garantia real do reclamante não subsiste nestes autos, devendo improceder a reclamação de créditos deduzida por inexistência de garantia real sobre bem penhorado” e declarouextinta a presente instância de reclamação de créditos, por impossibilidade superveniente da lide, ao abrigo do disposto no art.º 277º, al. e), do CPC”.

             Inconformada, a reclamante interpôs a presente apelação formulando as seguintes conclusões:

            1ª - O despacho recorrido enferma de error in judicando e faz errada interpretação do disposto nos art.ºs 277º, alínea e)[1] e 794º, n.º 1 do CPC.

            2ª - Da decisão de sustação da execução em virtude de penhora prévia não decorre a extinção do apenso da reclamação de créditos por inutilidade superveniente da lide mas antes a sustação/suspensão da referida instância.

            3ª - A sustação da execução também não implica a “inexistência de garantia real sobre o bem penhorado” - as garantias objecto da reclamação de créditos do recorrente subsistem independentemente do prosseguimento ou não da execução sobre o identificado bem.

            4ª - O sentido da decisão recorrida, porque não expectável, justifica a junção aos autos, nos termos do disposto no art.º 651º, n.º 1 do CPC, de certidão permanente do imóvel sub judice, o que se requer.

            5ª - Deve ser o despacho recorrido revogado e substituído por outro que determine, identicamente ao verificado no processo principal relativamente ao bem objecto de penhora prévia, a suspensão/sustação do apenso da reclamação de créditos.

            Remata dizendo que deverá ser “revogado/modificado o despacho recorrido, nos termos acima expostos”.

            Não houve resposta à alegação de recurso.

            Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar e decidir se a instância do apenso de reclamação de créditos deverá ser declarada extinta ou apenas suspensa (por a sustação da execução relativamente a um bem penhorado, por existência de penhora anterior, não determinar a extinção da reclamação de créditos deduzida por credor com garantia real sobre o mesmo bem).


*

            II. 1. Para a decisão do recurso releva o que se descreve no antecedente relatório e ainda o seguinte:[2]

            a) A reclamante deduziu a reclamação de créditos no seguimento da citação[3] que para o efeito lhe foi remetida pela agente de execução, com data de 18.4.2016, reproduzida a fls. 31 a 33.

            b) Consta do auto reproduzido a fls. 32 verso e seguinte que o aludido prédio urbano foi penhorado nos autos principais para pagamento da quantia total de € 21 800,33.

            c) As hipotecas supra referidas foram registadas pelo BES, S. A., em 19.02.2007 (AP. 29 e 30) e a transmissão dos créditos à reclamante foi levada ao registo predial em 24.4.2015 (AP. 6181 e 6182).

            d) A Fazenda Pública registou uma penhora sobre o mesmo prédio urbano em 27.02.2015 (AP. 4931) para pagamento da quantia de € 2 004,50.

            e) A penhora dos autos principais (quantia exequenda de € 19 818,48) foi efectuada a 13.4.2016 e registada na mesma data (AP. 1873).

            2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

            A instância extingue-se com a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide (art.º 277º, alínea e), do Código de Processo Civil/CPC[4]).

            Só o credor que goze de garantia real sobre os bens penhorados pode reclamar, pelo produto destes, o pagamento dos respectivos créditos (art.º 788º, n.º 1, sob a epígrafe “reclamação dos créditos”). A reclamação tem por base um título exequível e é deduzida no prazo de 15 dias, a contar da citação do reclamante (n.º 2). Os titulares de direitos reais de garantia que não tenham sido citados podem reclamar espontaneamente o seu crédito até à transmissão dos bens penhorados (n.º 3). Quando, ao abrigo do n.º 3, reclame o seu crédito quem tenha obtido penhora sobre os mesmos bens em outra execução, esta é sustada quanto a esses bens, quando não tenha tido já lugar sustação nos termos do artigo 794º (n.º 5). As reclamações são autuadas num único apenso ao processo de execução (n.º 8).

            Pendendo mais de uma execução sobre os mesmos bens, o agente de execução susta quanto a estes a execução em que a penhora tiver sido posterior, podendo o exequente reclamar o respectivo crédito no processo em que a penhora seja mais antiga (art.º 794º, n.º 1, com a epígrafe “pluralidade de execuções sobre os mesmos bens”). Se o exequente ainda não tiver sido citado no processo em que a penhora seja mais antiga, pode reclamar o seu crédito no prazo de 15 dias a contar da notificação de sustação; a reclamação suspende os efeitos da graduação de créditos já fixada e, se for atendida, provoca nova sentença de graduação, na qual se inclui o crédito do reclamante (n.º 2). Na execução sustada, pode o exequente desistir da penhora relativa aos bens apreendidos no outro processo e indicar outros em sua substituição (n.º 3). A sustação integral determina a extinção da execução, sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 850º (n.º 4).

            3. In casu, a execução dos autos principais foi sustada/suspensa ao abrigo do disposto no art.º 794º, n.º 1 e o apenso das reclamações de créditos foi julgado extinto “por inexistência de garantia real sobre bem penhorado” (a penhora dos autos principais “deixou de subsistir”…).

            Questiona-se, assim, se a sustação da execução quanto ao bem que se encontra onerado com garantia real a favor do credor reclamante, por existência de penhora anterior, determina a extinção da reclamação do crédito que garante.

            4. A reclamação, verificação e graduação dos créditos é uma fase da acção executiva que tem lugar numa acção declarativa de carácter incidental, sendo todas as reclamações deduzidas pelos vários credores autuadas num único apenso ao processo de execução (art.º 788º, n.º 8).

            Este apenso, visando directamente o mesmo fim que a execução, reveste uma natureza instrumental, sendo caracterizado como um processo declarativo de estrutura autónoma, mas funcionalmente subordinado ao processo executivo.[5]

            5. Com o estatuído no citado art.º 794º, n.º 1 pretende-se evitar que em processos diferentes se opere a adjudicação ou a venda dos ´mesmos bens`; a liquidação tem de ser única e há-de fazer-se no processo em que os bens foram penhorados em primeiro lugar.[6]

            6. Da sustação da execução relativamente ao bem com penhora anterior registada não decorre automaticamente/necessariamente - excepto nas situações previstas no n.º 4 do aludido art.º 794º - a extinção da execução e, muito menos, a extinção dos respectivos apensos como é o caso do presente apenso da reclamação de créditos.

            7. Considerando que a reclamação de créditos constitui uma fase da instância executiva, não tendo autonomia processual própria, antolha-se evidente que a sustação da execução por existência de uma penhora anterior sobre um bem (art.º 794º, n.º 1) determina, necessariamente, a sustação do apenso de reclamação e graduação de créditos no que a esse bem respeita, e nunca a extinção deste por inutilidade superveniente da lide.

            É que caso a penhora que determinou a sustação da execução, à qual se encontra apensa a reclamação de créditos, venha, por qualquer motivo, a ser levantada, a execução sustada prosseguirá no que respeita a esse bem (por ter deixado de existir a razão de ser da sustação), pelo que manterá toda a utilidade a reclamação deduzida; devidamente satisfeito o crédito do exequente que primeiro logrou a penhora do bem, cessa a circunstância a que a lei atribui efeito suspensivo, devendo em tal caso a segunda execução prosseguir a sua normal tramitação, incluindo a reclamação e graduação de créditos.

            Em qualquer das mencionadas hipóteses, o prosseguimento da execução suspensa e do respectivo apenso só é possível caso não tenha sido julgada extinta a instância na reclamação de créditos.

            Com a sustação, a reclamação de créditos não se tornou inútil, uma vez que a execução poderá continuar.[7]

            8. Dada a assinalada dependência/subordinação do apenso de reclamação de créditos, a sustação da execução determinou a suspensão do apenso (enquanto se mantiver suspensa a execução relativamente ao imóvel penhorado).

            E é evidente que se mantém a garantia real constituída e registada a favor da reclamante/recorrente.

            9. Procedem, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.


*

            III. Pelo exposto, procedendo a apelação, revoga-se a decisão recorrida, devendo o apenso de reclamação de créditos aguardar nos termos ordenados no processo principal, como se refere em II. 8., supra.

            Sem custas.


*

04.4.2017


             

           

Fonte Ramos ( Relator )

Maria João Areias

Vítor Amaral


[1] Rectificou-se lapso manifesto.

[2] Atendendo aos documentos de fls. 31 a 33 e 39 verso a 41 (este, junto ao abrigo do disposto no art.º 651º, n.º 1 do CPC de 2013, para “prova cabal e irrefutável da existência e validade da(s) garantia(s) real(ais) hipoteca(as) reclamada(s)”).
[3] Com o seguinte teor: “Fica V. Exa citada, nos termos da alínea b) do artigo 786º e 788º do CPC, para, no prazo de QUINZE DIAS, reclamar que crédito, tendo em consideração que a garantia real que possa ainda perdurar sobre o bem adiante referido” (sic); “Não sendo apresentada reclamação o seu crédito não será graduado” (fls. 31).
[4] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.
[5] Vide J. Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 6ª edição, 2014, Coimbra Editora, pág. 363 e, entre outros, o acórdão da RP de 25.3.2010-Proc.º 1627/07.5TBSTS-A.P1, publicado no “site” da dgsi.
[6] Vide Alberto dos Reis, Processo de Execução, Vol. 2º (reimpressão), Coimbra Editora, 1985, pág. 287 (comentando idêntica disposição do CPC de 1939).
   Acolhendo e desenvolvendo este entendimento, cf. os acórdãos da RC de 05.4.2005-processo 154/05 e da RL de 30.10.2006-8559/2006-8, publicados no “site” da dgsi.

[7] Cf., de entre vários, os acórdãos da RP de 21.02.2008-processo 0736918 e de 10.3.2009-processo 5512/05.7TBMAI, publicados no “site” da dgsi e o citado acórdão da mesma Relação de 25.3.2010-Proc.º 1627/07.5TBSTS-A.P1.

  Cf., ainda, o cit. acórdão da RL de 30.10.2006-8559/2006-8, no qual se concluiu que “sustada a execução nos termos do art.º 871º do Código de Processo Civil [de 1961], se a execução, onde houve penhora anterior e onde foi reclamado o crédito da execução sustada, vier a ficar suspensa, interrompida ou por qualquer modo ´parada`, pode prosseguir a instância na execução sustada para, assim, se evitar o impasse em ambas as execuções”.