Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
56/19.2JAGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: ABUSO SEXUAL DE PESSOA INTERNADA
TIPO OBJECTIVO
Data do Acordão: 12/16/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA (JUÍZO CENTRAL CÍVEL E CRIMINAL DA GUARDA – J4)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 166.º DO CP
Sumário: I – O crime de abuso sexual de pessoa internada jamais pode prescindir, como primeiro fundamento da incriminação, da protecção da livre determinação sexual do sujeito passivo.

II – De facto, o aproveitamento do internamento da vítima (rectius, a instrumentalização do internamento com vista à facilitação do acto sexual) constitui o verdadeiro elemento diferenciador deste ilícito, afastando do âmbito da punibilidade as relações entre pessoas livremente consentidas, isto é, aquelas em que o agente não tem o dolo de aproveitamento da situação de “constrangimento institucional” do parceiro. A ilicitude da acção criminosa fica, assim, afastada pelo acordo da vítima.

III – Contudo, o apuramento dessa liberdade deve obedecer a um exame rigoroso em razão das concretas circunstâncias envolventes da vítima.

IV – Não obstante a verificação de uma relação funcional do arguido com o estabelecimento (Posto da GNR), no âmbito da qual lhe incumbia a guarda, na condição de detida, de outra pessoa, estando provada a iniciativa desta – no caso, reiterada e exteriorizada através da adopção de condutadas de sentido inequívoco [cf. v.g. o acariciar com a mão a zona genital do arguido; o desapertar a braguilha das calças daquele; o agarrá-lo pelo peito, puxando-o para a casa de banho; o levantar o vestido, baixar as meias e as cuecas –, visando a execução de actos sexuais pelo arguido, afastado está o “aproveitamento” exigido pelo tipo de crime em causa.

Decisão Texto Integral:







I. Relatório

1. No âmbito do processo comum coletivo n.º 56/19.2JAGRD do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, Guarda – JC Cível e Criminal, mediante acusação pública, foi o arguido P. submetido a julgamento, sendo-lhe então imputada a prática, como autor material, na forma consumada, de um crime de abuso sexual de pessoa internada agravado, p. e p. pelo artigo 166.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Código Penal.

2. Realizada a audiência de discussão e julgamento, em 10.02.2020 foi proferido acórdão, cujo dispositivo se transcreve:

Nos termos e com os fundamentos invocados, julgando a acusação deduzida improcedente, por não provada, o Tribunal Coletivo decide absolver o arguido P., pela prática de um crime de abuso sexual de pessoa internada agravado, previsto e punido pelo artigo 166.º, n.ºs 1 al. a) e n.º 2 do Código Penal.”

3. Inconformado com o assim decidido recorreu o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões:

1.ª - O Ministério Público vem recorrer da douta decisão que absolveu o arguido P. da prática de um crime de abuso sexual de pessoa internada, p. e p. no art.º 166º, n.º 1, al. a), do Código Penal, por o mesmo ter entendido que os atos sexuais praticados pelo arguido com a ofendida M., no Posto da GNR de (…), surgiram por iniciativa da detida M. que despoletou tais comportamentos por parte do arguido.

2.ª - A versão que cada um dos intervenientes apresentou em audiência de julgamento é coincidente quanto à prática pelo arguido P. de atos sexuais de relevo com a ofendida M., no Posto da GNR de (…), pouco tempo depois de M. aí ter sido entregue na condição de detida, por Inspetores da PJ, para pernoitar numa cela existente no Posto.

3.ª - A divergência entre a versão do arguido e o relato da ofendida M. prende-se com quem teve a iniciativa para a prática dos atos sexuais de relevo que o arguido manteve com a testemunha M..

4.ª - A factualidade julgada provada e não provada, pelo Tribunal recorrido, resulta integralmente da versão apresentada em audiência de julgamento pelo arguido P., tendo o Tribunal considerado estas declarações inteiramente credíveis e desinteressadas.

5.ª - As declarações que o arguido prestou não podem ser consideradas desinteressadas, pois que, o arguido P. na audiência de julgamento apresentou uma defesa visando a sua absolvição do crime que lhe está imputado nos autos e, naturalmente, tem um manifesto interesse no exercício da sua defesa, que no caso, se mostra exponenciado pela circunstância de os atos sexuais em apreço nos autos terem sido praticados no local de trabalho e no decurso o exercício das suas funções de militar da GNR, no atendimento ao Posto, e, assim, a sua condenação terá certamente reflexos na carreira profissional do arguido, podendo mesmo contender com a sua continuidade como militar da GNR.

6.ª - A estratégia adotada pelo arguido de “culpar” a vítima pelos atos sexuais que praticou com ela, é muito comum neste tipo de crimes e parte de um certo preconceito contra as vítimas de crimes contra liberdade e autodeterminação sexual, que leva a que estas sejam muitas vezes apontadas como as “culpadas” dos abusos sexuais, como forma de desculpabilizar ou mitigar a culpa dos seus agressores.

7.ª - A ofendida M., disse que depois de ter sido levada pelo arguido para junto de uma lareira, para aí se aquecer, o arguido disse-lhe que tinham de se ausentar dali, com o argumento que podia chegar alguém. No trajeto para a cela, ao passar junto de uma casa de banho, o arguido disse-lhe para entrar, enquanto lhe retorquiu que “já não fodia há muito tempo” e “se algum dia já tinha dado uma rapidinha”. M. disse ainda que o arguido a puxou para o interior da casa de banho, que não puxou com muita força, encostou-a ao lavatório, puxou-lhe o vestido e manteve com ela relações sexuais de cópula completa durante 2 ou 3 minutos. Mais disse a testemunha M. que, naquelas circunstâncias, não opôs resistência à investida do arguido, que simplesmente deixou acontecer, sem reagir.

8.ª - Resultou provado que os factos em apreço nos autos só se tornaram conhecidos das autoridades devido à intervenção muito proactiva da filha da arguida, da (…) – a primeira pessoa a quem M. relatou o sucedido, na manhã seguinte, no tribunal da Guarda.

9.ª - Resultou demonstrado, pelas declarações da própria ofendida M. e da testemunha Inspetor (…), que a ofendida apenas formalizou a denúncia que deu origem aos presentes autos por pressão da sua filha (…).

10.ª - A ofendida M. verdadeiramente não manifestou nestes autos qualquer pretensão punitiva ou indemnizatória contra o arguido. Não se constituiu como assistente nem deduziu pedido de indemnização civil. Manifestou, perante o Inspetor Chefe (…) vontade em desistir da queixa, ao que foi informada que tal não era possível, atenta a natureza pública do crime imputado ao arguido – cf. gravação do depoimento desta testemunha minutos 6:38 a 7:25.

11.ª - Do depoimento da testemunha (…) (na parte identificada na motivação) decorre também que o relato que M. fez perante a sua filha (…), e esta transmitiu ao Inspetor Chefe (…), coincide com o relato que a M. apresentou em audiência de julgamento, no sentido que os atos sexuais que o arguido P. manteve com ela no Posto da GNR não foram por procurados nem consentidos pela ofendida, mas antes foram praticadas contra a sua vontade – o que confere consistência e credibilidade ao depoimento da testemunha M..

12.ª - Tendo presente que a testemunha M. em momento algum procurou retirar vantagem, seja de que ordem fosse, da prática dos atos sexuais com o arguido, importa também ponderar a seguinte questão. Se os factos tivessem efetivamente ocorrido da forma como o arguido os descreveu em audiência de julgamento – e foram dados como provados pelo Tribunal a quo – ou seja, se a iniciativa da prática dos atos sexuais tivesse sido da testemunha M., que sentido fazia ela mesma relatar à filha que tinha sido violada por um militar da GNR? As regras da experiência comum dizem-nos que, certamente, nenhum.

13.ª - Se os factos tivessem ocorrido como descreve o arguido, seria normal, de acordo com as regras da experiência comum, a detida simplesmente nada ter revelado (sobretudo à filha), o que possibilitaria ficar no segredo da testemunha e do arguido tudo o havia ocorrido naquela noite no Posto da GNR.

14.ª - Não se descortina nos autos qualquer outra razão para a detida M. ter confidenciado à sua filha que “tinha sido violada” no Posto da GNR, que não seja o relato da uma situação efetivamente ocorrida com ela.

15.ª - A circunstância de a detida ter tirado o casaco que vestia no momento em que chegou à cela para dormir, parece-nos revelar uma certa normalidade. Se ia dormir é natural que tivesse despido o casaco. Este simples gesto, naquelas circunstâncias, em nosso entender, não pode ser integrado num processo de sedução do arguido, como o fez o Tribunal.

16.ª - A factualidade julgada provada no ponto 25., reportada ao relatório pericial de fls. 116, que revela a existência de uma mancha analisada nas cuecas que M. vestia, na qual foi identificada a presença de um haplótipo do cromossoma y, distinto do arguido P., em nosso entender, nada pode relevar para a compreensão dos factos em apreço dos autos – porque certamente aquela mancha tem a ver com situações anteriores à detenção de M. – e pode bem ser explicada pela factualidade dada como provada no ponto 2. Com efeito, resulta provado que M. foi detida por existirem suspeitas de, naquele dia, ter introduzido produto estupefaciente, que transportou na vagina, dentro de um preservativo, no Estabelecimento Prisional da (...) .

17.ª - Atenta esta vicissitude, apresenta-se plausível a existência da referida mancha e a mesma não coloca necessariamente em dúvida as declarações de M., ao referir que pela manhã vestiu umas cuecas lavadas e que, nesse dia, não manteve relacionamento sexual com outra pessoa.

18.ª - As fragilidades do depoimento da ofendida M. apontadas pelo Tribunal, em nosso entender, não revelam, de todo, que esta ofendida tenha produzido um relato distorcido ou falso da realidade, revelam antes uma pessoa com muitas fragilidades e sem efetivo interesse no desfecho do presente julgamento, que deve determinar que o Tribunal julgue provada a versão dos factos descrita pela ofendida M. e não provada a versão do arguido.

19.ª - Temos para nós que da prova produzida e mencionada na parte da fundamentação da douta decisão recorrida, não resulta uma base factual objetiva que permita ao Tribunal recorrido dar como provado que a detida M., aquando da sua detenção tentou seduzir algum elemento policial.

20.ª - A versão do arguido, quanto ao cerne da questão de saber de quem foi a iniciativa da prática dos atos sexuais de relevo, está em manifesta contradição com a versão apresentada pela ofendida, pessoa que efetivamente prestou um depoimento desinteressado e isento. Assim, as declarações do arguido não podem ser julgadas credíveis nem positivamente valoradas pelo Tribunal.

21.ª - Em nosso entender, a prova produzida e as regras da experiência comum não permitem que o Tribunal afaste a credibilidade que o depoimento da ofendida M. deve merecer; o Tribunal recorrido ao afastar, de forma incompreensível e injustificada, a credibilidade que deve merecer o depoimento da ofendida M. incorreu em erro de julgamento, que deve determinar a modificação da matéria de facto julgada provada e não provada.

22.ª - Assim, devem ser julgados provados, a par dos demais factos julgados provados (com exceção dos infra referidos) a seguinte factualidade que, resultou provada para além de qualquer dúvida razoável, mas que a douta decisão recorrida julgou como não provada:

“- O arguido P. disse para M. que tinha de regressar à cela porque podia chegar alguém

d) nas circunstâncias de tempo e lugar antes referidas, o arguido conduziu a então arguida para uma casa de banho existente naquele posto territorial da GNR, fechou a porta, debruçou M. sobre o lavatório, agarrou-a pela parte de trás do corpo, subiu-lhe o vestido, baixou os collants e as cuecas e, por detrás, introduziu o seu pénis ereto no interior da vagina de M., praticando cópula completa, por cerca de 2 a 3 minutos;

- Seguidamente o arguido conduziu M. até à cela onde esta pernoitou.

“i) Nas circunstâncias descritas, o arguido aproveitou-se do ascendente e da relação de domínio que granjeava por via desempenho das respetivas funções, tendo praticado os descritos atos sexuais, contra a vontade da vítima.

j) Bem sabia, o arguido, que a conduta que assumiu era proibida e punível por lei penal.”

23.ª - Paralelamente, deve ser modificada uma parte da factualidade julgada provada, julgando-se como não provados os seguintes factos, que assentam exclusivamente nas declarações do arguido, que a douta decisão recorrida julgou provados:

10. Aí chegados, M. transmitiu ao arguido que sentia falta de “calor humano”.

11. O arguido perguntou-lhe o porquê de tal conversa, ao que a mesma retorquiu que há muito que o seu marido se encontrava a cumprir pena na cadeia e que gostava de um momento de sexo visto que tal já não sucedia há muito.

12. Em ato contínuo, o arguido conduziu a detida à cela, sendo que, durante o trajeto, M. reiterou que há muito que não fazia sexo e que não se importaria de ter sexo.

14. Ao chegar à entrada da cela, M. abeirou-se do arguido e acariciou a sua zona genital com a mão.

14. Após o arguido fechou a detida no interior da cela e foi recolher o kit de lençóis descartáveis para lhe entregar.

15. Na posse do kit de lençóis, o arguido entrou na cela onde M. se encontrava, aproximou-se da cama onde a detida estava sentada, abriu o referido kit para ali deixar os lençóis necessários e recolher o sobrante.

16. Aproveitando-se da sua proximidade, M. voltou a acariciá-lo na sua zona genital e aproximou a sua face da mesma, no intuito de aceder ao seu pénis e colocá-lo na sua boca.

17. Neste momento, o arguido, sentindo-se excitado, não repudiou, uma vez mais, os avanços de M., permitindo-lhe que esta desapertasse a braguilha das suas calças, retirasse seu pénis e o introduzisse na boca, praticando coito oral durante alguns segundos.

18. Após, M. questionou-o quanto à possibilidade de ir a uma casa de banho com melhores condições do que a existente na cela.

19. Acedendo ao pedido de M., o arguido encaminhou-a para uma casa de banho no exterior da cela, com melhores condições nomeadamente, quanto à disponibilidade de papel higiénico.

20- Ali chegados, M. entrou na casa de banho, agarrou o arguido pelo peito e puxou-o para o seu interior.

21. Em ato contínuo, virou as costas ao arguido, debruçou-se sobre o lavatório, levantou o vestido que envergava, baixou as meias e cuecas e colocou as mãos para trás do seu corpo no intuito de o alcançar e, por trás, o arguido introduziu o seu pénis ereto no interior da vagina da então detida, praticando cópula por cerca de 2 a 3 minutos.

22. No dia 24.02.2019, M. Judiciária.

24.ª - Ainda que, por mera hipótese, não obtenha acolhimento o segmento do presente recurso quanto à matéria de facto, mantendo-se a factualidade provada e não provada tal como consta do douto acórdão recorrido, em nosso entender, a conduta do arguido P. deverá ser subsumida à prática do crime de abuso sexual de pessoa internada, p. e p. no art.º 166º, n.º 1, al. a), do Código Penal.

25.ª - Do elenco dos crimes contra a liberdade sexual, que constam da Secção I, Capítulo V, Livro II, do Código Penal, o crime de abuso sexual de pessoa internada, previsto no art. 166º e o crime de lenocínio, previsto no art. 169º, são os únicos crimes de natureza pública – cf. art. 178º, n.º 1, do Código Penal.

26.ª - Não faz sentido afirmar que o bem jurídico protegido por este tipo legal de crime é apenas a liberdade sexual da ofendida, quando, na verdade, o procedimento criminal não está dependente da vontade da vítima – aqui, ao contrário do que sucede com os restantes crimes contra a liberdade sexual.

27.ª - A interpretação sistemática do regime legal em apreço deve conduzir à interpretação que no tipo legal de crime de abuso sexual de pessoa internada, legislador quis proteger, a par da liberdade sexual da pessoa internada, também a incolumidade das funções e a correção dos procedimentos em matéria sexual por parte das pessoas prestam funções no tipo de estabelecimentos referidos na norma.

28.ª - O crime de abuso sexual de pessoa internada é um crime especifico próprio, no sentido que apenas pode ser cometido por pessoa que, a qualquer título, desempenhe funções num dos estabelecimentos mencionados no n.º 1, do art. 166º, referido, com pessoa que aí se encontre privada da liberdade e com a qual o agente estabeleça uma relação funcional, sem a utilização de violência ou constrangimento. Assim sendo, faz todo o sentido que o âmbito de proteção da norma se estenda à incolumidade das funções do agente e correção dos procedimentos em matéria sexual.

29.ª - A situação de privação da liberdade da pessoa que se encontra presa condiciona de forma relevante a liberdade da pessoa que se vê colocada numa situação de “constrangimento Institucional”, que lhe retira ou diminui significativamente a capacidade fáctica para opor resistência às investidas sexuais de quem exerce uma função na instituição – cf. Paulo Pinto de Albuquerque, em anotação ao artigo, no seu Comentário ao Código Penal, 2º ed. pág. 518.

30.ª - Como referem Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, no seu Código Penal Anotado, “censura aqui o legislador quem, pela posição que ocupa perante a vítima, dela se aproveita para mais facilmente consumar a infração. A razão de ser da incriminação radica assim na circunstância de o agente, nas condições em que se encontra, dispor de um ascendente sobre a vítima que simultaneamente facilita a concretização do delito e enfraquece a sua resistência em resultado da dependência em que se acha” - (4ª ed. pág. 513).

31.ª - O arguido, militar da GNR, a exercer funções no Posto da GNR de (…), no exercício dessas funções, e no interior daquele Posto, manteve com M. uma relação sexual de cópula completa, quando esta se encontrava detida na cela que existe no Posto da GNR, utilizada para arguidos detidos ali pernoitarem enquanto aguardam a apresentação em Tribunal.

32.ª - O arguido aproveitou-se do exercício das suas funções de militar da GNR, concretamente de ter a custódia da detida para manter relação sexual com a mesma; a detida M. só ficou acessível ao arguido pela circunstância de ali ter sido entregue, privada da liberdade, pela Policia Judiciária; o arguido aproveitou a permanência da detida no Posto e da relação funcional que estabeleceu com aquela para satisfação dos seus instintos libidinosos.

33.ª - A circunstância de a M. se encontrar privada da liberdade e ter sido confiada àquele militar da GNR, deixou a vítima perante o arguido numa situação de dependência, que lhe diminuiu naturalmente as hipóteses de opor resistência à investida sexual do arguido.

34.ª - A previsão do artigo 166º, do CP, reconduz-se às situações em que o agente não pratica atos constrangimento sobre a vítima, visando a prática dos atos sexuais de relevo - se existir constrangimento a conduta subsume-se ao tipo legal de coação sexual ou violação.

35.ª - Assim, em nosso entender, para o preenchimento dos elementos objetivos do tipo basta a prática pelo agente de atos sexuais de relevo com pessoa que esteja sob a sua guarda, numa relação funcional, nas circunstâncias enunciados no tipo legal de crime.

36.ª - A epígrafe do artigo “abuso sexual” não permite, em nosso entender, a interpretação que o legislador pretendeu afastar do seu âmbito de proteção as condutas que são praticadas com o consentimento ou por iniciativa da vítima. Com efeito, a prática de atos sexuais por parte de quem exerce funções em qualquer dos estabelecimentos indicados no n.º 1, do art. 166º, do Código Penal, com pessoa que aí se encontra detida/privada da liberdade, acessível ao agente em razão das funções configura um abuso funcional em matéria sexual.

37.ª - Temos para nós que mesmo que tivesse existido o consentimento da vítima para a prática da relação sexual (o que não se consente), resultam preenchidos todos os elementos do tipo de crime em causa, o que impõe a condenação do arguido.

38.ª - Atendendo às condições de vida do arguido e à confissão parcial dos factos, entendemos que o arguido deve ser condenado, como autor material de um crime de abuso sexual de pessoa internada, p. e p. no art. 166º, n.º 1, al. a), a pena de três anos de prisão e esta suspensa na sua execução por igual período de tempo.

39.ª - A douta decisão recorrida violou ou interpretou de forma incorreta o disposto nos artigos 166º, n.º 1, al. a), do Código Penal.

Termos em que deverá o presente recurso ser julgado procedente, nos termos acima expostos. Assim se fazendo justiça.

4. Foi proferido despacho de admissão do recurso.

5. Em resposta ao recurso o arguido concluiu:

I - O douto e bem elaborado acórdão sob apreciação não merece qualquer reparo ou censura, antes pelo contrário, apresenta-se bem discorrido e fundamentado, mais não demonstrando do que um manifesto e louvável brio profissional.

II - Salvo o devido respeito, que é muito, o Ministério Público assenta a sua impugnação da matéria de facto numa errónea interpretação no que o “erro de julgamento” consiste.

III - A (re)apreciação da matéria de facto pelo Tribunal ad quem não tem como propósito a realização de um “segundo julgamento”, conforme, aparentemente, pretendido pelo Recorrente, mas apenas a correção de erros relevantes (evidentes e óbvios) na apreciação e ou aquisição da prova produzida em sede de primeira instância.

IV - O legislador, ao consagrar em sede do artigo 127.º do Código de Processo Penal o princípio da livre apreciação da prova, elege como ideia rectora que o julgador não se encontra sujeito às regras rígidas da prova tarifada, concedendo-lhe antes uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, o qual terá e deverá, no entanto, ser possível e capaz de encontrar fundamento no razoar lógico e racional explanado em sede de motivação, como sucede no caso vertente.

V - A tarefa de apreciação da prova, ainda que vinculada ao principio de apreciação da prova, configura-se, contudo, de diferente graduação e intensidade entre a 1.ª e a 2.ª instância, dado o benefício que aquela dispõe da imediação e da oralidade e por estar esta última limitada à prova documental e ao registo de declarações e depoimentos, não podendo o reexame da matéria de facto pela mesma constituir uma nova ou suplementar audiência mas antes uma atividade de fiscalização e de controlo da decisão proferida, rigorosamente delimitada aos pontos que o recorrente entende erradamente julgados e ao reexame das provas que sustentam esse entendimento.

VI - Salvo o devido respeito, da, aliás, douta motivação do Recorrente decorre, claramente, que o mesmo fez “tábua rasa” da fundamentação de facto do acórdão sub judice ou, pelo menos, não alcançou o seu efetivo sentido e alcance, pretendendo, isso sim, um “novo julgamento” por este Venerando Tribunal.

VII - Foram as “declarações” do Arguido que foram tidas por coerentes, aparentemente isentas e, por isso, no essencial, credíveis, no confronto com a demais prova produzida, não obstante a qualidade em que depôs, pelo Tribunal a quo, ou seja, atento o seu teor e não o facto do mesmo ser desinteressado no desfecho dos autos.

VIII - O Arguido ao relatar os diversos atos de sedução de que foi alvo por parte da Queixosa assumiu e foi, consequentemente, dada por provada a prática de coito oral com a mesma, factualidade não constante do libelo acusatório e que apenas o poderia prejudicar, visto que, ao contrário da M., relatou toda a verdade dos factos, o que, entre outros fatores, revela a isenção e credibilidade das suas declarações, conforme melhor resulta da prova produzida em sede de audiência, supra especificada.

IX - O Recorrente sustenta primordialmente - de forma gratuita - a credibilidade do depoimento da Queixosa no facto da mesma ser desinteressada no desfecho do processo sub judice visto que “não manifestou nestes autos qualquer pretensão punitiva ou indemnizatória contra o Arguido”, confundindo a proveniência das declarações com a credibilidade do seu teor.

X - Ao analisar a credibilidade de declarações prestadas em juízo, nos termos do artigo 127.º do C.P.P., devemos atentar no seu teor e não apenas na sua proveniência e eventual motivação das partes, sob pena de ser desnecessário qualquer julgamento e nos podemos bastar no conteúdo das declarações prestadas em sede de inquérito para condenar os arguidos, o que sempre seria igualmente inconstitucional e cristalinamente violador do princípio do estado de Direito.

XI - Conforme consta da fundamentação de facto, o Tribunal a quo verificou contradições várias nas declarações da Queixosa, e, bem assim, uma manifesta inverdade, contraditada categoricamente por prova pericial, conforme melhor resulta da prova produzida em sede de audiência e documentação junta aos autos, supra especificadas.

XII - É, exclusivamente, com base num depoimento eivado de contradições, nos termos amplamente explanados no douto acórdão impugnado, que o Ministério Público pretende ver alterada a matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo, o que é, de todo, inadmissível.

XIII - O Recorrente desconsiderou, pura e simplesmente, todas as incoerências do depoimento da Queixosa M. , nem sequer as rebatendo, não obstante expressamente especificadas na fundamentação de facto do douto acórdão ora sob apreciação de Vossas Excelências.

XIV - Não se alcança, sequer, de que excerto do douto acórdão sob apreciação decorre que retirar o casaco configurou qualquer ato de sedução da Queixosa, ou bem assim, de que forma o seu “vestido justo ao corpo” influenciou a decisão da matéria de facto, como parece afirmar o Recorrente, não se podendo deixar de considerar que o primeiro é mais um fator que descredibiliza o depoimento da Queixosa, por incoerente, conforme melhor resulta da prova produzida em sede de audiência, supra especificada.

XV - O sémen encontrado nas cuecas da Queixosa é relevante apenas e só quando confrontado com as declarações da mesma ao afirmar, categoricamente, perante um coletivo de Senhores Magistrados, que no dia anterior, antes de pernoitar, tomou banho, nesse dia acordou, vestiu umas cuecas lavadas e não teve qualquer outro ato de natureza sexual com quem quer que fosse em nenhum desses dois dias para além do Arguido, ou seja, faltando conscientemente à verdade, conforme melhor resulta da prova produzida em sede de audiência e documentação junta aos autos, supra especificadas.

XVI - O interior da vagina não produz, por si próprio, sémen, não sendo credível que tomando a Queixosa banho e vestindo cuecas lavadas sem qualquer outro ato de natureza sexual naqueles dois dias apresentasse sémen de pessoa distinta do Arguido na sua roupa interior, conforme constatado imparcial e pericialmente.

XVII – O facto da Queixosa reconhecer que apenas limpou a boca e já não qualquer outra parte do corpo, nomeadamente, a sua zona genital é indiciador da existência do ato de sexo oral que o Arguido relatou ao Tribunal, considerando que, conforme explanado pela Queixosa, a mesma jamais foi beijada e/ou beijou o mesmo, o que não pode deixar de credibilizar a sua versão dos factos em detrimento da daquela, conforme melhor resulta da prova produzida em sede de audiência, supra especificada.

XVIII - O Sr. Inspetor José Alexandre Branco, testemunha nos autos, não presenciou a conversa da Queixosa com a sua filha nem esta última foi ouvida ou, sequer, indicada como testemunha pelo Ministério Público, apenas sabendo aquele que seria, porventura, alusiva a uma “violação”, o que, na gíria comum, configura coisa bem distinta daquela relatada em juízo, conforme melhor resulta da prova produzida em sede de audiência, supra especificada.

XIX - Permanece por esclarecer, de forma coerente, porque é que a Queixosa, alegadamente vítima de abuso sexual dentro de um posto da G.N.R., desconhecendo da presença de adicionais elementos policiais para além do Arguido, em momento algum pede auxílio ou manifesta, sequer, a mais leve oposição a tal comportamento “predatório”, conforme melhor resulta da prova produzida em sede de audiência, supra especificada.

XX - Não se alcança de qual elemento de prova se extrai a convicção do Recorrente no que concerne à pretensa existência de um “ascendente” e de “uma relação de domínio” do Arguido perante a Queixosa – alínea i) dos factos não provados - resultando, aparentemente, do seu recurso que a mesma se deverá presumir face às funções exercidas pelo primeiro e à qualidade de detida da segunda, o que se afigura manifestamente inadmissível, carecendo, salvo o devido respeito, tal facto - porquanto de um facto se trata - de prova que permita concluir a sua ocorrência, sendo, aliás, tais “relação de domínio” e “ascendente” incompatíveis de ser estabelecidos num curto espaço temporal de 15 minutos, ou seja aquele sob apreciação no caso vertente.

XXI - Não é legítimo presumir que a concordância da detida com o ato não foi livre mas antes motivada pela situação de necessidade criada pela sua detenção, na justa medida em que tal presunção não seria nem psicologicamente fundada, nem político-criminalmente credível, nem dogmaticamente aceitável.

XXII - Atentando nas manifestas omissões, incoerências e inverdades do relatado pela Queixosa em juízo, contrariando injustificavelmente a demais prova produzida - único sustentáculo apresentado pelo Recorrente como determinante de decisão distinta quanto à matéria de facto - e, bem assim, na aparente isenção do depoimento do Arguido - tudo conforme bem sustentado pelo Tribunal a quo na fundamentação de facto da decisão em crise, a qual, salvo o devido respeito, não foi, de forma alguma, afastada pelo Recorrente - não houve qualquer erro de julgamento e muito menos foi afastada “de forma incompreensível e injustificada” a credibilidade da Queixosa, pelo que entendemos que deverá ser mantida, ipis verbis a decisão da matéria de facto do Tribunal recorrido, vertida nos pontos 10 a 21 dos factos provados e d), i) e j) dos factos não provados.

XXIII - Face ao teor e credibilidade dos depoimentos das testemunhas (…) e (…), não abalada pelo depoimento da testemunha (…), ao transmitir apenas que a Queixosa, naquela circunstância detida, acabou por se disponibilizar para colaborar com a Polícia Judiciária, única prova indicada pelo Recorrente para abalar tal ponto de facto, deverá ser mantida, integralmente, a resposta dada pelo Tribunal a quo ao facto provado sob o ponto 26.

XXIV - Inexiste qualquer contradição que seja entre os factos provados e não provados pelo Tribunal a quo, tal como resulta, cristalinamente, do douto acórdão ora em análise por Vossas Excelências, sustentando-se o entendimento do Recorrente na sua convicção errónea de quais deveriam ter sido os factos provados e não provados, pelo que tal questão estará prejudicada.

XXV - Dúvidas não poderão subsistir de que “consentimento” e “iniciativa” configuram coisa manifestamente distinta e enquanto tal objeto de análise diversa.

XXVI - Não é por acaso que o artigo 166.º do Código Penal se refere expressamente à necessidade de “aproveitamento” por parte do agente para que seja preenchido o elemento objetivo do crime.

XXVII - O Arguido foi sucessiva e reiteradamente provocado pela Queixosa no intuito de praticar ato sexual com a mesma, quer verbalmente quer fisicamente, tendo aquela a efetiva iniciativa do mesmo, não se conformando com o inicial repúdio do primeiro – vide factos provados sob os pontos 8, 10, 11, 12, 13, 16, 17, 18, 20 e 21.

XXVIII - A Queixosa, naquele mesmo dia, não só seduziu o Arguido como vários elementos policiais, designadamente, inspetores da Polícia Judiciária – vide facto provado sob o ponto 26.

XXIX - Não estamos perante qualquer situação de “aproveitamento” do Arguido mas, quando muito, do não cumprimento de uma imposição de obstar à prática de ato sexual, uma obrigação de resistir estoicamente a todos os avanços da Queixosa, visto estar em exercício de funções.

XXX - Apenas se o legislador pretendesse criminalizar a prática do ato sexual independentemente de qualquer “aproveitamento” e para exclusiva proteção da incolumidade do exercício de funções no estabelecimento respetivo é que poderíamos ver preenchidos o elemento objetivo do crime sob apreciação, o que, salvo o devido respeito não sucede; se assim fosse, o crime previsto no artigo 166.º do C.P. não se encontraria na Secção I do Capítulo V do Código Penal, referente à violação do bem jurídico “liberdade sexual”, não haveria lugar à expressão “aproveitando-se” no seu n.º 1 nem seria exclusiva à prática de atos de natureza sexual entre quem exerce funções e quem está internado no estabelecimento em questão, sendo tal conduta criminalmente punida se ocorresse v.g. entre duas pessoas que ali exercem funções, ou seja, dois militares da Guarda Nacional Republicana, o que não sucede.

XXXI - Elevar a ideia de incolumidade do exercício de funções em certos estabelecimentos à categoria de bem jurídico seria um erro do ponto de vista político-criminal e dogmático, sendo necessário ao intérprete e aplicador ter uma interpretação restritiva, em função do bem jurídico protegido, de alguns dos elementos do tipo objetivo de ilícito e nomeadamente do aproveitamento da situação de vítima pelo agente.

XXXII - Deve-se afastar a interpretação do Recorrente do aludido normativo, a qual desconsidera, em absoluto, o lugar sistemático do artigo 166.º do C.P., o seu teor literal e, sobretudo, a sua intencionalidade teleológica, deixando completamente de poder considerar-se entre os crimes contra as pessoas a sua liberdade e autodeterminação sexual.

XXXIII - Conforme resulta dos pontos 8, 10, 11, 12, 13, 16, 17, 18, 20 e 21 dos factos provados, foi a provocação e mesmo iniciativa da Queixosa que determinou a ocorrência dos atos de natureza sexual em apreço, inexistindo qualquer vulnerabilidade da mesma na situação em causa, não se alcançando como a sua liberdade sexual poderia estar comprometida, o que, s.m.o., afasta a prática de qualquer ilícito criminal.

XXXIV - A conduta do Arguido, não obstante moral e disciplinarmente reprovável, trata-se de fraqueza humana e não um ato vil e degradante de abuso sexual de terceiro, em exercício de funções, conforme pretende retratar o Recorrente, não se enquadrando no artigo 166.º do Código Penal.

XXXV - Deste modo, ao contrário do que sustenta o Recorrente, não foram violadas ou erroneamente interpretadas quaisquer normas jurídicas e muito menos as por si invocadas, devendo ser mantida integralmente a douta decisão proferida pelo Tribunal a quo, sem qualquer reparo.

Termos em que deve ser negado provimento ao recurso sob juízo, mantendo-se ipsis verbis o douto acórdão recorrido, assim se fazendo sã e inteira JUSTIÇA. 

6. Na Relação a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

7. Cumprido o n.º 2 do artigo 417.º do CPP reagiu o recorrente, contrariando o parecer a que supra se alude, concluindo como já o havia feito em sede de resposta ao recurso.

8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cabendo, pois, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

Tendo presente as conclusões, pelas quais se delimita o objeto do recurso, sem prejuízo do conhecimento de eventuais questões de natureza oficiosa, no presente caso cabe, em princípio, decidir se (i) incorreu o tribunal a quo em “erro de julgamento”; (ii) ainda que os factos não sofram alteração, sempre serão os mesmos passíveis de subsunção ao crime de abuso sexual de pessoa internada.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar do acórdão em crise [transcrição parcial]:

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:

Da prova produzida em audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos, com relevância para a decisão da causa:

FACTOS PROVADOS:

1. M. foi constituída arguida no processo de inquérito n.º 52/19.0JAGRD da Procuradoria Local da Guarda, onde se investiga eventual prática, pela mesma, de um crime de tráfico de estupefacientes.

2. No âmbito do processo-crime supra mencionado, M. foi detida por existirem suspeitas de, a mesma, ter introduzido produto estupefaciente, que transportou na vagina, dentro de um preservativo, no Estabelecimento Prisional da (...) .

3. Para que fosse assegurada a comparência de M. em ato processual, no dia 25.2.2019, no Tribunal Judicial da Guarda, designadamente em interrogatório de arguida detida, a mesma foi mantida em detenção entre os dias 24 e 25 de fevereiro de 2019, tendo passado a noite nas instalações da GNR – Posto Territorial de (…).

4. Na noite de 24.2.2019, encontrava-se em tal posto da GNR, em pleno exercício de funções, apenas o Guarda Principal (…).

5. Na noite de 24.2.2019, entre as 23h00 e as 24h00, a então detida M. foi entregue pelos Inspetores da Policia Judiciária ao Guarda Principal da GNR P., ora arguido, no referido Posto Territorial da GNR de (…).

6. Assegurado que foi o respetivo expediente, os Inspetores da Policia Judiciária ausentaram-se daquele Posto Territorial, onde apenas permaneceu o arguido e a detida, M..

7. De seguida, o arguido encaminhou a detida para a cela.

8. Ali chegados, M. referiu estar com frio, perguntando ao arguido se havia algum local no qual se pudesse aquecer.

9. Acedendo ao pedido da detida, o arguido conduziu-a para a zona do bar, na qual se encontrava acesa uma lareira, permitindo-lhe que esta se aquecesse junto da mesma.

10. Aí chegados, M. transmitiu ao arguido que sentia falta de “calor humano”.

11. O arguido perguntou-lhe o porquê de tal conversa, ao que a mesma retorquiu que há muito que o seu marido se encontrava a cumprir pena na cadeia e que gostava de um momento de sexo visto que tal já não sucedia há muito.

12. Em ato contínuo, o arguido conduziu a detida à cela, sendo que, durante o trajeto, M. reiterou que há muito que não fazia sexo e que não se importaria de ter sexo.

13. Ao chegar à entrada da cela, M. abeirou-se do arguido e acariciou a sua zona genital com a mão.

14. Após, o arguido fechou a detida no interior da cela e foi recolher o kit de lençóis descartáveis para lhe entregar.

15. Na posse do kit de lenções, o arguido entrou na cela onde M. se encontrava, aproximou-se da cama onde a detida estava sentada, abriu o referido kit para ali deixar os lençóis necessários e recolher o sobrante.

16. Aproveitando-se da sua proximidade, M. voltou a acariciá-lo na sua zona genital e aproximou a sua face da mesma, no intuito de aceder ao seu pénis e colocá-lo na sua boca.

17. Neste momento, o arguido, sentindo-se excitado, não repudiou, uma vez mais, os avanços de M., permitindo-lhe que esta desapertasse a braguilha das suas calças, retirasse o seu pénis e o introduzisse na boca, praticando coito oral durante alguns segundos.

18. Após, M. questionou-o quanto à possibilidade de ir a uma casa de banho com melhores condições do que a existente na cela.

19. Acedendo ao pedido de M., o arguido encaminhou-a para uma casa de banho no exterior da cela, com melhores condições nomeadamente, quanto à disponibilidade de papel higiénico.

20. Ali chegados, M. entrou na casa de banho, agarrou o arguido pelo peito e puxou-o para o seu interior.

21. Em ato contínuo, virou as costas ao arguido, debruçou-se sobre o lavatório, levantou o vestido que envergava, baixou as meias e cuecas e colocou as mãos para trás do seu corpo no intuito de o alcançar e, por trás, o arguido introduziu o seu pénis ereto no interior da vagina da então detida, praticando cópula por cerca de 2 a 3 minutos.

22. Após, o arguido despejou o sémen e o papel higiénico com que se limpou para a sanita da referida casa de banho.

23. Bem sabia o arguido que se encontrava em pleno exercício de funções e que a vítima lhe foi entregue, no âmbito de tais funções, para que a mantivesse detida a aguardar pela realização de diligência em processo judicial de natureza criminal.

24. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, praticando os atos sexuais supra descritos a fim de satisfazer os seus instintos libidinosos.

25. Consta do Relatório Pericial de Criminalística Biológica de fls. 116, datado de 03 de maio de 2019, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido consta que: “na mancha analisada das cuecas”, pertencentes a M., foi detetada “a presença de um haplótipo do cromossoma y, distinto do arguido P., permitindo assim excluir que o material biológico analisado provenha deste arguido ou de seus familiares de linhagem paterna.”

26. No dia 24.02.2019, M. tentou seduzir vários elementos policiais aquando da sua detenção, designadamente inspetores da Polícia Judiciária.

27. O arguido não tem averbados antecedentes criminais no seu CRC.

Relativamente às condições pessoais e de vida do arguido, apurou-se que:

(…).

FACTOS NÃO PROVADOS:

Não de provaram quaisquer outros factos suscetíveis de influir na decisão da causa, nomeadamente não se provou que:

a) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 13) da factualidade provada, o arguido repudiou a conduta de M., afastando-a.

b) Após o sucedido na factualidade mencionada em 17), o arguido disse à detida que “aquilo não podia suceder”, interrompendo o ato sexual em curso, recolhendo o seu pénis para o interior das calças e recuando até à porta da cela.

c) Após o sucedido na factualidade mencionada em 17) da factualidade provada, o arguido ficou desorientado e arrependido de haver permitido que tal tivesse sucedido.

d) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas nos artigos 20) e 21) da factualidade provada, o arguido fechou a porta da casa de banho, debruçou M. sobre o lavatório, agarrando-a pela parte de trás do corpo, subiu-lhe o vestido, baixou-lhe os collants e as cuecas.

e) M. é uma pessoa não só sexualmente ativa mas manifestamente à vontade com a sua sexualidade.

f) No dia 24.02.2019, para além dos atos descritos em 13), 16), 17) e 21) da factualidade provada, M. praticou outros atos de natureza sexual.

g) M. pratica coito oral na via pública, tal como amplamente divulgado na internet.

h) Ao atuar nas circunstâncias mencionadas em 26) dos factos provados, M. pretendia satisfazer os seus instintos libidinosos.

i) Nas circunstâncias descritas em 17) e 21) da factualidade provada, o arguido aproveitou-se do ascendente e da relação de domínio que granjeava por via do desempenho das respetivas funções, tendo praticado os descritos atos sexuais, contra a vontade da vítima.

j) Bem sabia, o arguido, que a conduta que assumiu era proibida e punível por lei penal.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:

(…).

3. Apreciação

§1. Da impugnação da matéria de facto

§1.1. Não se conforma o Ministério Público quer com os factos dados por provados sob os itens 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21 e 26, quer com os não provados enunciados no ponto 22 das conclusões, os quais, não deixando para o efeito de convocar segmentos [com referência aos registos áudio] dos depoimentos – inclusive da denunciante – prestados em sede de audiência de julgamento, impugna.

Tendo sido documentadas, através de gravação, as declarações prestadas oralmente no decurso do julgamento, poderá este tribunal conhecer de facto [cf. os artigos 363.º e 428.º do CPP], desde que se mostre cumprido o disposto no artigo 412.º, n.º 3 do CPP, nos termos do qual, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente especificar: (i) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; (ii) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; e, eventualmente (iii) as provas que devem ser renovadas, prescrevendo, por seu turno, o n.º 4 que quando as provas tenham sido gravadas, «as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignada na ata, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação».

Exigências estas, que encontram explicação à luz do entendimento – reforçado com a Reforma de 2007 -, sistematicamente afirmado pelos tribunais superiores, de que os recursos constituem remédios jurídicos destinados a corrigir erros de julgamento, não configurando o recurso da matéria de facto para a Relação um novo julgamento em que este tribunal aprecia toda a prova produzida na primeira instância como se o julgamento ali realizado não tivesse existido – [cf., entre outros, os acórdãos do STJ de 15.12.2005, 09.03.2006 e 04.01.2007, proferidos respetivamente nos processos n.ºs 05P2951, 06P461 e 4093/06 – 3.ª].

Por isso, a «especificação dos “concretos pontos de facto” só se mostra cumprida com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida … que [o recorrente] considera incorretamente julgado, sendo insuficiente a alusão a todos ou parte dos factos compreendidos em determinados números ou itens da sentença, sendo a “exigência legal de especificação das “concretas provas” só se queda satisfeita com a indicação do conteúdo específico do meio de prova …» - [cf. o acórdão do TRC de 22.10.2008, proferido no processo n.º 1121/03.3TACBR.C1].

A este propósito, por se nos afigurar assaz esclarecedor, transcrevem-se as seguintes passagens do acórdão do STJ de 18.02.2016, proferido no processo n.º 9/13.4PATVR.E1.S1: «Com a Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, (…), o legislador propôs-se alcançar dois objetivos: «tornar mais exigente a especificação dos pontos de facto impugnados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida no recurso da decisão sobre a matéria de facto e de pôr cobro ao dever de transcrição dos registos gravados», e em matéria da especificação das provas concretas «só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida (…), devendo o recorrente explicitar «por que razão essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida. Este é o cerne do dever de especificação (…). Assim, “estando em causa a matéria de facto, «o recorrente tem sobre si o ónus de: (…) concretizar (não bastando uma alusão genérica) os pontos de facto tidos por mal julgados; (…) indicar as provas concretas que em seu entender impõem julgamento diverso daquele também concreto ponto de facto (…)».

Ora, no caso em apreço, vistas as conclusões, nas quais o recorrente coloca em crise parte significativa do acervo factual, dado por provado e não provado, não se assiste propriamente à individualização dos «concretos pontos de facto» que, em cada momento, pretende impugnar e menos ainda à indicação das «concretas provas» que na relação com cada um dos mesmos, imporiam decisão diversa da que foi acolhida pelo tribunal a quo; constata-se, isso sim, constituir seu propósito contrariar a leitura que da prova foi feita pelo Coletivo e, logo, a convicção dos julgadores, a qual, contudo, se mostra explicitada na fundamentação da decisão de facto de forma exaustiva, clara, sem que consinta a mínima dúvida sobre o processo que, com base na prova produzida e/ou analisada em sede de audiência de julgamento, criticamente ponderada e correlacionada entre si, a sustentou. Idêntica metodologia é seguida na correspondente motivação, no seio da qual o recorrente evidencia a sua própria interpretação da prova, insurgindo-se, no essencial, quanto à maior credibilidade, no confronto com o que depoimento da denunciante, conferida às declarações do arguido.

Sendo este o quadro, transversal às conclusões e motivação – circunstância que compromete o convite ao aperfeiçoamento [cf. v.g. os acórdãos do STJ de 17.02.2005 (proc. n.º 05P058), 09.03.2006 (proc. n.º 06P461), 28.06.2006 (proc. n.º 06P1940), 04.10.2006 (proc. n.º 812/06 – 3.ª), 04.01.2007 (proc. n.º 4093/06 – 3.ª) e de 10.01.2007 (proc. n.º 3518/06 – 3.ª)], solução que o Tribunal Constitucional já considerou não violar o direito ao recurso [cf. os acórdãos n.ºs 259/02 e 140/04, in DR II Série de, de 13.12.2002 e de 17.04.2004, respetivamente] -, em que o recurso se move, por inobservância, na dimensão legalmente exigível, dos ónus de impugnação, impõe-se, nesta parte, a sua rejeição.

§1.2. Prejudicada, assim, a sindicância ampla da matéria de facto importa indagar, a partir do texto da decisão, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, da sua correção técnica, isto é apurar se decorre da mesma omissão relevante, juízos contraditórios entre os factos ou entre estes e a correspondente motivação e/ou manifestamente ilógicos, a denunciar um erro de tal modo ostensivo que não escape ao normal do cidadão. E assim é, desde logo, por se tratar de matéria (vícios) de conhecimento oficioso.

Nesta sede, analisando o acórdão não se descortina que o mesmo encerre lacuna/omissão suscetível de impedir uma decisão jurídica criteriosa; ou seja, o tribunal não deixou de apurar os factos relevantes que podiam e deviam sê-lo. Por outro lado, não decorre do respetivo texto contradição – muito menos insanável – da fundamentação ou entre esta e a decisão.

O erro notório na apreciação da prova apenas pode ser afirmado quando do texto da sentença/acórdão, por si ou conjugado com as regras da experiência, for evidente que o tribunal incorreu em juízos ilógicos, flagrantemente contrários às regras da experiência comum, de tal modo ostensivos que não escapam à apreciação do cidadão comum, o que, também, não sucede no caso, tão pouco o invocando – de forma expressa - o recorrente.

Com efeito, o “pano de fundo” do dissídio, como frequentemente ocorre, centra-se na questão da credibilidade, ou falta dela, não se conformando o recorrente com a “aceitação” por parte do Coletivo dos juízes das declarações apresentadas pelo arguido, em detrimento do depoimento da denunciante M. , colocando, desde logo, em crise a “natureza” interessada das primeiras, em oposição ao “caráter” desinteressado do último. A propósito, adiantaremos tão só que no contexto da decisão quando o tribunal exara “Não obstante a qualidade em que depôs, as suas declarações, no confronto com a demais prova produzida, revelaram-se coerentes, aparentemente isentas e, por isso, no essencial, credíveis” está no essencial a dizer que as declarações do arguido se lhes afiguraram dignas de crédito. E de facto, não será a sua condição (de arguido) que o impedirá, para além de que a asserção surge “enquadrada” pela relação com a demais prova produzida. Partir do princípio que ao arguido como “parte” interessada no desfecho do processo – desde logo pelas consequências que daí lhe podiam/podem advir – não pode ser atribuída credibilidade e, ao contrário, que à denunciante – que nada teria a “ganhar” com o sentido da decisão – lhe era devida, com o devido respeito, encerra, na medida em que coloca a “coisa” à margem das concretas circunstâncias, alguma precipitação, sendo, por isso, de refutar.

Por outro lado, resulta da fundamentação da decisão de facto a concorrência de outros elementos de prova (pessoal e pericial), os quais – embora instrumentais -, criticamente apreciados, se revelam compatíveis com as declarações do arguido. Assim é quanto às atitudes previamente - nas instalações da Polícia Judiciária - adotadas pela denunciante [v.g. enquanto, por duas vezes, colocou as mãos sobre as mãos do Inspetor que procedia ao seu interrogatório, dizendo-lhe: se era possível resolver as coisas de forma diferente? … pois, estaria disposta a fazer o que fosse preciso …”; quando, durante o tempo em que aguardava o seu interrogatório na sala de um outro Inspetor, com uma intensidade e frequência que despertou a atenção da testemunha, encontrando-se sentada numa cadeira de frente para esta, envergando, na ocasião, um vestido curto, foi cruzando e descruzando as pernas, comportamento que só cessou, na sequência de para tanto ter sido instada, depois de haver virado a cadeira numa outra direção]. De salientar a análise crítica que incidiu sobre o depoimento da denunciante, retirando-lhe verosimilhança, quando apreciado à luz do Relatório Pericial de Criminalística Biológica; bem como a evidenciada compatibilidade entre declarações do arguido, quando reportadas à prática de sexo oral (negada pela denunciante) e a conduta traduzida no “limpar da boca” (conforme pela própria referido), por parte de M. .

Tudo isto para dizer que o sentido da convicção devidamente concretizado, com referência aos diferentes meios de prova produzidos e criticamente apreciados, na fundamentação da decisão de facto está longe de se revelar arbitrário, irrazoável, ilógico; pelo contrário, num caso em que não existem testemunhas presenciais, a prova que incidiu sobre factos instrumentais é de molde a justificar o crédito atribuído ao arguido, em detrimento da denunciante, e, assim, a sustentar, desde logo face às regras da experiência comum (artigo 127.º do CPP), a racionalidade da decisão.

Em suma, na ausência de causa de invalidade e ou vício que o impeça, tem-se por definitivamente fixada a matéria de facto tal como assente vem no acórdão.

§2. Da subsunção dos factos ao crime de abuso sexual de pessoa internada

Defende o recorrente que os factos, ainda que se mantenham inalterados, integram o crime de abuso sexual de pessoa internada, p. e p. 166.º, n.ºs 1, alínea a) e n.º 2 do Código Penal, cuja prática em sede de acusação, foi imputada ao arguido.

Afigura-se-nos, contudo, uma vez mais, não lhe assistir razão.

Com efeito, na parte que ora releva refere o acórdão: “Conforme ensina Figueiredo Dias, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 483 e ss., “não é isenta de dúvidas a definição exata dos contornos do bem jurídico protegido por esta incriminação.

O denominador comum do bem jurídico (…) reside na ideia de liberdade sexual de pessoas internadas em certos estabelecimentos (sejam eles de tipo prisional, hospitalar ou educativo-correcional) – onde, pela natureza das coisas, se verifica uma relação especial de poder entre elas e as pessoas a quem se encontram confiadas, e portanto uma grave dependência daquelas face a esta, que se encontra em princípio limitada e exige por isso uma especial proteção.”

Todavia, importa reter, que “… pode acontecer em muitos casos concretos a liberdade sexual da pessoa internada se não encontre minimamente limitada, ou mesmo que o ato sexual seja da sua iniciativa e da sua mais livre vontade; caso em que a punibilidade do facto jurídico significaria não uma proteção, mas antes um ataque ao bem jurídico da liberdade sexual. Parece indiscutível, por outro lado, que (…) o legislador se deixou guiar também pela preocupação do asseguramento da incolumidade do exercício de funções no estabelecimento respetivo”, pressupondo-se a correção dos procedimentos que aí tenham lugar em matéria sexual.

Sustenta, ainda, o mencionado autor que “elevar a ideia de incolumidade do exercício de funções em certos estabelecimentos à categoria de bem jurídico seria um erro do ponto de vista político-criminal e dogmático.”

(…) “O preceito só é político, politico-criminalmente fundado e dogmaticamente justificável se o conteúdo essencial do bem jurídico continuar a ver-se radicado na proteção da livre determinação sexual do internado. O que obriga o intérprete e aplicador a uma interpretação restritiva, em função do bem jurídico protegido, de alguns dos elementos do tipo objetivo de ilícito e nomeadamente do aproveitamento da situação da vítima pelo agente.”

Do exposto resulta que protegendo sobretudo a livre determinação sexual do internado, o interprete deverá adotar uma tarefa restritiva de interpretação, no sentido de excluir do tipo todos os comportamentos sexuais ocorridos com independência da pessoa internada. Efetivamente, tal como já aludimos, podem configurar-se hipóteses em que a liberdade sexual da pessoa internada não se encontra minimamente limitada, podendo o ato sexual, verificado num daqueles estabelecimentos, com pessoa internada, ser, inclusive, da iniciativa da pessoa internada e da sua livre vontade, impondo a exclusão do elemento típico “aproveitamento” de relações (amorosas ou não) que possam surgir nesses espaços.

(…)

Por seu lado, o tipo de crime pressupõe, ainda, o “aproveitamento” do agente, situação que deve afastar-se não só quando o ato o ato sexual de relevo tenha partido da iniciativa da pessoa internada (que assim não viu violada a sua liberdade sexual – bem jurídico protegido com a incriminação), mas também e sempre que a pessoa internada tenha revelado íntima e aberta concordância com o ato sexual proposto pelo agente. Neste sentido, só haverá “aproveitamento” se se provar que foi a dependência física ou psíquica da vítima originada pelo seu internamento que conduziu à sua não resistência ao facto.

(…)

Dos factos dados como provados, resulta evidente que a ação do arguido preenche o conceito de ato sexual de relevo, traduzido na prática de relações sexuais de cópula completa, bem como de coito oral com M. , enquanto esta se encontrava detida no posto da GNR.

Sucede que, no caso, cremos não estar verificado o “aproveitamento” pelo arguido por causa das suas funções ou do lugar que, a qualquer título, exerce ou detém na instituição, já que tais atos surgiram por iniciativa da detida que despoletou tais comportamentos por parte do arguido.

É certo que a atuação do arguido é, para além de eticamente reprovável, suscetível de colocar em causa a “incolumidade do exercício das funções” da GNR, no Posto Territorial de Celorico da Beira.

Sucede que, em face da factualidade que resultou provada em 8), 9), 109, 11) 12), 13), 16), 17), 18), 19), 20) e 21), cremos que a livre determinação sexual do internado, bem jurídico protegido pela incriminação, não se mostra violado. Com efeito, a liberdade sexual de M. não se encontrava limitada, posto que a prática de atos sexuais a que vimos de aludir resultaram da iniciativa e livre vontade da detida, circunstância que excluiu o elemento típico de aproveitamento, seja decorrente das funções do arguido, seja das instalações da GNR.”

Não divergimos de semelhante apreciação.

Na verdade, secundando o ensinamento de Figueiredo Dias, não olvidou o Coletivo de juízes que na configuração do ilícito típico em questão o “legislador se deixou guiar também pela preocupação do asseguramento da incolumidade do exercício de funções no estabelecimento respetivo”, constatação, porém, que não contraria o facto de o conteúdo essencial do bem jurídico protegido residir na proteção da livre determinação sexual do internado. Dito de outro modo, o tribunal a quo considerou – e na nossa perspetiva bem – que o crime de abuso sexual de pessoa internada, p. e p. no artigo 166.º do Código Penal, jamais pode prescindir, como primeiro fundamento da incriminação, da proteção da livre determinação sexual do sujeito passivo.

Por outro lado, ao contrário do que parece ser o entendimento do recorrente, a tipicidade objetiva enquanto exige o “aproveitamento” não se satisfaz com a presunção do mesmo, demandando antes a prova da sua efetiva verificação. Com efeito, situações ocorrem em que uma análise prudencial das circunstâncias concretas afasta a consideração do dito “aproveitamento”, como os factos assentes (provados) – cf. os itens 11, 12, 13, 16, 17, 20, 21 –, ao descreverem as sucessivas iniciativas de M., qualquer delas, sem qualquer dúvida, tendente a provocar o relacionamento sexual com o arguido, demonstram ter sido o caso.

No mesmo sentido pronunciam-se José Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro, in Crimes Sexuais, Almedina, 2019, 2.ª Edição, pág. 115 e segs., quando, reportando-se ao ilícito típico em questão, após referirem estar em causa a criminalização de condutas “que atentem gravemente contra a liberdade da vontade do sujeito, através de aproveitamento da situação de incapacidade do sujeito de dar o seu consentimento de uma forma livre, mas agora por virtude de uma situação de alguma vulnerabilidade que decorre da situação de poder que o agente detém face à vítima (…), aludindo a “um conjunto de circunstâncias objetivas que tornam a vítima mais vulnerável, potenciando a prática de atos sexuais que, se não fosse o local, função do agente e relação de dependência muito provavelmente não ocorreriam”, no que à relação de dependência concerne, escrevem: “Em todas as situações em causa neste crime está subjacente uma relação de dependência da vítima perante o autor, decorrente da situação factual em que se encontra, seja no meio prisional, seja no meio da saúde, em sentido lato, seja no meio educacional (…). A dependência da vítima fruto da “superioridade” que é conferida pela função que exerce o agente de crime e o condicionalismo psíquico do local onde se encontra podem conduzir à prática de atos sexuais que não correspondem a uma vontade séria, livre e esclarecida (…). Sem embargo, acrescentam os autores: “Serão atípicas as situações em que, não obstante ocorrerem as circunstâncias descritas no tipo (função do agente, local, relação de dependência), que fazem presumir um aproveitamento do agente do crime, este pressuposto não ocorre porque decorre da iniciativa da própria pessoa internada ou confiada a vontade de se relacionar sexualmente. O ato sexual de relevo consumou-se por vontade do sujeito passivo, seja por paixão ou desejo sexual, livremente assumido, sem qualquer atentado à liberdade de determinação sexual da pessoa internada”, prosseguindo: “A propósito da prática de atos sexuais de relevo praticados no interior de estabelecimentos prisionais entre detidos e não detidos, máxime funcionários do próprio estabelecimento prisional, Costa Andrade refere que o «legislador português propôs-se definir a área de tutela de incriminação na perspetiva da liberdade (pessoal) de expressão sexual de que o recluso é exclusivo portador (…). Assim parece não ser de incluir como ilícitas condutas que expressem uma verdadeira relação de amor entre o recluso e o «agente» do crime».

E coisa diferente não se retira das palavras de Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal”, Universidade Católica Editora, pág. 457, ao referir: “O aproveitamento do internamento da vítima (rectius, a instrumentalização do internamento com vista à facilitação do ato sexual) constitui o verdadeiro elemento diferenciador deste ilícito, afastando do âmbito da punibilidade as relações entre pessoas livremente consentidas, isto é, aquelas em que o agente não tem o dolo de aproveitar-se da situação de “constrangimento institucional” do parceiro (…). A ilicitude da ação criminosa fica, pois, afastada pelo acordo da vítima, mas o apuramento dessa liberdade deve obedecer a um escrutínio especialmente apertado em virtude do circunstancialismo envolvente da vítima (negando uma presunção de ausência de acordo da pessoa internada, FIGUEIREDO DIAS, anotação 12.ª ao artigo 166.º, in CCCP, 1999).”

Em síntese, não merece censura o acórdão recorrido quando, reconhecendo, embora, a relação funcional do arguido com o estabelecimento (Posto da GNR), no âmbito da qual lhe incumbia a guarda, na condição de detida, de M. , bem como a prática dos atos sexuais de relevo, tendo resultado provada a iniciativa – no caso reiterada e exteriorizada através da adoção de condutas de sentido inequívoco [cf. v.g. o acariciar com a mão a zona genital do arguido; o desapertar a braguilha das calças do arguido; o agarrá-lo pelo peito, puxando-o para o interior da casa-de-banho; o levantar o vestido, baixar as meias e as cuecas, procurando alcançar, por trás, o arguido], isto é que não consentem outra interpretação - da mesma, visando a execução dos atos sexuais pelo arguido, afastou o “aproveitamento” na prática dos atos sexuais das funções ou do lugar, a qualquer título, exercidas ou detidas pelo arguido, elemento indispensável à perfectibilização do ilícito típico, cujo bem jurídico protegido reside, no essencial, na livre determinação sexual da pessoa internada.

III. Dispositivo

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar improcedente o recurso.

Sem tributação.

Coimbra, 16 de dezembro de 2020.

[Texto processado e revisto pela relatora]

Maria José Nogueira (relatora)

Isabel Valongo (adjunta)