Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
13/11.7GBMIR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO CHAVES
Descritores: PENA DE MULTA
PENA DE SUBSTITUIÇÃO
PENA PRINCIPAL
INCAPACIDADE ECONÓMICA
Data do Acordão: 09/14/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (INSTÂNCIA LOCAL DE CANTANHEDE– SECÇÃO CRIMINAL – JUIZ 1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 43.º E 49.º DO CP; ARTS. 340.º E 491.º DO CPP
Sumário: I - As consequências a nível de incumprimento da pena de multa de substituição e da pena de multa principal são diversas.

II - Enquanto o não pagamento da multa de substituição leva a que o condenado cumpra a pena de prisão aplicada na sentença, o não pagamento da multa, enquanto pena principal, leva ao cumprimento da prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços.

III - O termo «imputável», usado na norma do artigo 49.º, n.º 3, do Código Penal, aponta para a formulação de um juízo sobre a «culpa» do condenado no não pagamento da multa.

IV - Com o requerimento em que pediu a suspensão da execução da prisão subsidiária, o arguido indicou também meios de prova tendentes a demonstrar a alegada carência de meios económicos para pagar a multa em que foi condenado.

V - Pelo que o Tribunal a quo deveria cuidar de saber se a concreta situação económica e financeira do recorrente justificava ou não a falta de pagamento da multa em que foi condenado.

Decisão Texto Integral:





Acordam na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

No âmbito do processo comum singular n.º 13/11.7GBMIR, do extinto 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Cantanhede [agora Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra – Cantanhede – Instância Local – Secção Criminal –J1], por sentença de 26 de Março de 2014, transitada em julgado em 5 de Maio de 2014, foi o arguido A... , com os demais sinais dos autos, condenado, além do mais, pela prática, em autoria material, de um crime de aproveitamento de obra contrafeita ou usurpada, p. e p. pelos artigos 197.º e 199.º do CDADC, na pena de 3 (três) meses de prisão, substituída por 90 (noventa) dias de multa, e ainda na pena de 175 (cento e setenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 5,50, cumuladas materialmente na pena de 265 (duzentos e sessenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 5,50.

Mais foi condenado pela prática, em autoria material, de um crime de venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos, p. e p. pelo artigo 324.º, por referência ao artigo 323.º, c), ambos do Código de Propriedade Industrial, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,50.

Em cúmulo jurídico destas penas parcelares, foi condenado na pena única de 290 (duzentos e noventa) dias de multa, à taxa diária de € 5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos), num total de € 1.595,00 (mil quinhentos e noventa e cinco euros) [fls. 2 a 20 do recurso].

Em 26 de Agosto de 2015 o arguido requereu o pagamento da multa em dez prestações mensais e sucessivas [fls. 114 a 116 do recurso]. 

Por despacho de 22 de Setembro de 2015 foi indeferido o pagamento da multa em prestações e determinado o cumprimento pelo arguido de 193 dias de prisão subsidiária, correspondente a 2/3 dos dias de multa não paga em que foi condenado [fls. 21 a 22 do recurso].

Na sequência desta decisão, o arguido veio requerer, ao abrigo do disposto no artigo 49.º, n.º 3 do Código Penal, a suspensão da execução da pena de prisão subsidiária, o que foi indeferido por despacho de 9 de Novembro de 2015 [fls. 23 a 24 do recurso].

                                          *

Inconformado com a decisão, recorreu o arguido, terminando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

«1. O presente recurso visa a sindicância do Despacho proferido nos presentes autos de processo-crime que “(...) indefere (...) o pedido de suspensão da execução da pena de prisão subsidiária, por falta de verificação das condições estabelecidas no art.º 49º, n.º 3 do Código Penal”.

2. Entendeu o Tribunal recorrido, sem mais, que o arguido não deve beneficiar do disposto no art.º 49º, n.º 3 do Código Penal porquanto a “falta de pagamento da pena de multa é, in casu, imputável ao condenado, sendo certo que o período temporal decorrido desde a prolação da sentença até à sua conversão em prisão subsidiária, podia (e devia) ter servido para aquele angariar o montante necessário ao pagamento da multa que lhe foi aplicada, até porque foi opção sua não requerer o seu pagamento faseado, nem a sua substituição por trabalho.

3. O arguido/recorrente, por sentença proferida em 26.03.2014, transitada em julgado em 05.05.2014, foi condenado na pena de 290 dias de multa, à taxa diária de €5,50, o que perfaz o montante de €1.595,00, convertida em pena de prisão subsidiária, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 49º, n.º 1 do Código Penal, em 193 dias de prisão subsidiária.

4. O arguido/recorrente requereu a suspensão da execução da prisão subsidiária, ao abrigo do disposto no art.º 49º, n.º 3 do Código Penal, pelo facto de não possuir meios económicos que lhe permitissem efectuar o pagamento, requereu a sua audição, requereu a produção de prova testemunhal e a elaboração de relatório social.

5. O Tribunal indeferiu a pretensão do arguido porque entendeu que este não provou que circunstâncias podiam servir para desculpabilizar o incumprimento da pena que lhe foi aplicada considerando, nomeadamente, que o arguido/condenado não demonstrou a sua inimputabilidade pelo não pagamento da multa.

6. A falta de meios económicos do arguido/recorrente era já existente à data da prolação da sentença, e no requerimento de suspensão da execução da prisão subsidiária não foram alegados factos novos ou supervenientes quanto à carência de meios económicos.

7. O Tribunal recorrido não permitiu ao arguido a produção da prova que este requereu no requerimento de suspensão da execução da prisão subsidiária, e não valorou em favor do arguido toda a prova de insuficiência económica que constava da sentença, dos autos, e que serviram para o Ministério Público se decidir pela não instauração da execução para cobrança coerciva da multa e das custas do processo por falta de bens com valor venal, dando-se aqui por reproduzida a alegação supra feita nesta matéria.

8. Resultando provado dos autos de processo crime que o arguido/recorrente tem 3 filhos e mulher, residentes em Marrocos, que trabalha em Espanha, na agricultura e na construção civil, aufere cerca de 300€ mensais e que paga renda de casa em Marrocos, não possui meios económicos capazes de suportar o pagamento de uma multa deste montante, incumbia ao Tribunal valorar tais factos em favor do arguido/recorrente, o que não fez.

9. Para que o Tribunal pudesse afirmar que o condenado não pagou porque não quis, porque agiu com culpa, tornava-se necessário demonstrar que ele tinha condições económicas para efectuar o pagamento no momento da condenação e ou que se colocou voluntariamente na situação de não poder pagar, nomeadamente deixando de trabalhar, o que não sucede.

10. Por ser um poder-dever ou poder vinculado do Tribunal é que a aplicação e apreciação do pedido de suspensão da execução da prisão subsidiária deve ser feita de forma cuidada e criteriosa, e apenas uma falta grosseira e voluntária é que devem impedir o deferimento da suspensão da prisão subsidiária.

11. “Para aferir da suspensão da execução da pena de prisão, nos termos previstos no art.º 49º, n.º 3 do C. Penal, ainda que a arguida não tenha indicado prova do alegado, deve o tribunal considerar os factos assentes, para o efeito relevantes, que constem da sentença condenatória.”

12. Ao não valorar favoravelmente ao arguido toda a prova que se encontra junta aos autos e que permitem concluir que a falta de pagamento não lhe é imputável, o tribunal violou o disposto no art.º 49º, n.º 3 do Código Penal e o art.º 32º da CRP.

13. A decisão recorrida não se pronunciou acerca das circunstâncias sócio económicas relativas à vida do arguido e que já se encontravam provadas nos autos, nem lhe permitiu a produção de prova que permitisse ao Tribunal recorrido decidir em favor do arguido.

14. Determina a alínea c) 1ª parte do art.º 379º do CPP que é nula a sentença “quando o Tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões de que devesse conhecer...”

15. Sendo obrigação do Tribunal apreciar todos os factos que lhe permitam concluir pela aplicação ou não do instituto da suspensão da execução da prisão subsidiária, a falta de pronúncia implica a nulidade da decisão.

16. O despacho recorrido é nulo por violação do disposto no art.º 49º, n.º 3 do Código Penal.

Termos em que, e nos mais de direito aplicáveis, com o douto suprimento de V. Exas., deve o presente recurso ser julgado TOTALMENTE PROCEDENTE, revogando-se o Despacho proferido pelo Tribunal Recorrido e substituindo-se o mesmo por decisão que determine a suspensão da prisão subsidiária, subordinada ao cumprimento dos deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro que se mostrem adequadas ao caso, fazendo-se assim a

                   Elevada e Costumada Justiça!»

                                          *

Notificado do interposto recurso, o Ministério Público respondeu defendendo a sua improcedência.

                                          *

Nesta instância, na intervenção a que alude o artigo 417.º, n.º 1 do Código de Processo Penal([1]), o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, emitiu parecer no sentido de que deve ser negado provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

                                          *

No âmbito do disposto no artigo 417.º, n.º 2, o arguido nada disse.

                                          *

Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.

                                          *

II - FUNDAMENTAÇÃO

1. É o seguinte o teor do despacho recorrido (transcrição):

«Veio o arguido/condenado requerer, ao abrigo do disposto no artigo 49.º n.º 3 do Código Penal, a suspensão da execução da pena de prisão subsidiária em que foi condenado nos presentes autos, alegando que se encontra numa situação económica difícil, vivendo entre Espanha e Portugal para angariar rendimentos que lhe permitam assegurar o sustento da sua família, não tendo, por isso, meios para suportar o pagamento da multa.

O Ministério Público pronunciou-se no sentido de não se verificar o circunstancialismo previsto no artigo 49.º n.º 3 do Código Penal, promovendo o cumprimento da pena de prisão subsidiária.

Cumpre apreciar e decidir.

Segundo as disposições conjugadas dos n.º 1 e 2 do artigo 43.º do Código Penal, não sendo paga a pena de multa aplicada em substituição da pena de prisão, o condenado cumpre a pena de prisão aplicada na sentença, sendo correspondentemente aplicável o disposto no n.º 3 do artigo 49.°.

Por sua vez, dispõe este último normativo que se o condenado provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável, pode a execução da prisão ser suspensa, por um período de um a três anos, desde que a suspensão seja subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro.

Ou seja, por razões de justiça material fundadas nos mais elementares princípios de respeito pela dignidade humana, confere-se, assim, ao condenado, perante a falta de pagamento da pena de multa, o “benefício da dúvida”, admitindo a possibilidade de aquela falha não lhe ser imputável e resultar antes de uma absoluta impossibilidade de angariar meios económicos para suportar o pagamento da multa.

Trata-se, como está bem de ver, de uma hipótese excepcional, pensada para situações muito especiais, como a contracção de uma doença incapacitante, a prisão ou qualquer outro acontecimento, alheio à vontade do condenado, que o torne incapaz de solver a multa.

Por outro lado, conforme refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23.05.2007 (disponível in www.dgsi.pt) esta impossibilidade tem de decorrer de motivos supervenientes, ou seja, de factores posteriores à condenação e tem de residir numa alteração fortuita das condições económico-financeiras do condenado após a condenação.

Na verdade, só assim se justifica e compreende a concessão desta última oportunidade ao condenado, sendo certo que na sentença foram já tidas em consideração todas as circunstâncias sociais e económicas em que aquele vive.

Exposto o Direito, vejamos, então, os factos.

Por sentença proferida em 26.03.2014, já transitada em julgado, foi o arguido condenado na pena de 290 dias de multa, à taxa diária de € 5,50.

O arguido não requereu atempadamente o pagamento da multa em prestações, nem a sua substituição por dias de trabalho, pretendendo agora, decorrido mais de 1 ano do trânsito em julgado da decisão, que o tribunal lhe conceda o benefício de cumprir a pena mediante a observância de deveres de carácter não económico com fundamento na sua escassez de rendimentos.

Ora, resulta do próprio requerimento do arguido/condenado que, apesar da instabilidade da sua situação laboral, aquele tem exercido sempre, com carácter regular, a actividade de vendedor ambulante, fazendo-o quer em Portugal, quer em Espanha, onde terá fixado residência. Pelo que o simples facto de o arguido não auferir um salário fixo mensal por força de um emprego certo não é, no contexto circunstancial em causa, suficiente para se concluir que aquele vive numa situação de carência económica tal que inviabilize a angariação de meios económicos suficientes para pagar a multa em que foi condenado.

Por outro lado, independentemente desta sua situação económica, não podemos aceitar que aquela alegada carência de rendimentos tenha surgido supervenientemente à decisão condenatória, não se vislumbrando, desta perspectiva, que circunstâncias possam servir paradesculpabilizar o arguido/condenado face ao incumprimento da pena que lhe foi aplicada, sendo certo que era àquele que competia demonstrar a sua inimputabilidade pelo não pagamento da multa.

Com efeito, podendo o condenado não ser uma pessoa com vastos recursos económicos e aceitando-se até que se trata de alguém que sustenta, com dificuldades, as suas necessidades de vida, certo é que esta é uma realidade que aquele enfrenta, pelo menos, desde a data em que foi proferida a sentença nestes autos, não tendo ocorrido, entretanto, qualquer alteração significativa do seu modo de vida que possa justificar o incumprimento da pena de multa passado mais de um ano da sua aplicação.

Pelo que, conforme bem nota o Ministério Público, conceder ao arguido/condenado o benefício por si pretendido consistiria, efectivamente, não só em desvirtuar o sentido e os efeitos punitivos decorrentes da aplicação da pena de multa como ainda contrariar materialmente a decisão condenatória proferida nos autos, já transitada em julgado, cujos fundamentos partiram já da mesma situação de carência económica que o arguido/condenado ora invoca.

Daí que se possa já concluir que a falta de pagamento da pena de multa é, in casu, imputável ao condenado, sendo certo que o período temporal decorrido desde a prolação da sentença até à sua conversão em prisão subsidiária, podia (e devia) ter servido para aquele angariar o montante necessário ao pagamento da multa que lhe foi aplicada, até porque foi opção sua não requerer o seu pagamento faseado, nem a sua substituição por trabalho.

Face a todo o exposto, indefere-se o pedido de suspensão da execução da pena de prisão subsidiária, por falta de verificação das condições estabelecidas no artigo 49.º n.º 3 do Código Penal.

                                          *

Notifique e, após trânsito, passe e entregue os competentes mandados de detenção.»

                                          *

2. Apreciando

Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso([2]), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso([3]).

No caso em apreço, atenta a conformação das conclusões formuladas pelo recorrente, a questão essencial a apreciar e decidir consiste em saber se deve subsistir o despacho recorrido que indeferiu o pedido de suspensão da execução da prisão subsidiária por falta de verificação das condições estabelecidas no artigo 49.º, n.º 3 do Código Penal.

Antes de mais, cumpre salientar que a pena de multa de substituição regulada no artigo 43.º do Código Penal é dotada de autonomia e de especificidade perante a pena pecuniária especial, pese embora de um ponto de vista político-criminal ambas se situem no terreno da reacção geral contra as penas privativas da liberdade tout court, pois a pena de multa de substituição é pensada como meio de obstar, até ao limite, à aplicação de penas curtas de prisão, actualmente até 12 meses, constituindo um específico instrumento de domínio da pequena criminalidade([4]).

As consequências a nível de incumprimento da pena de multa de substituição e da pena de multa principal são diversas, o que não foi devidamente equacionado ao converter-se a pena única de multa em prisão subsidiária: enquanto o não pagamento da multa de substituição leva a que o condenado cumpra a pena de prisão aplicada na sentença, o não pagamento da multa, enquanto pena principal, leva ao cumprimento da prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços.

Assim, não sendo paga voluntariamente a multa de substituição e não tendo o condenado bens suficientes e desembaraçados susceptíveis de execução patrimonial (art.º 491.º, nºs 1 e 2 do CPP), o artigo 43.º, n.º 2 do Código Penal impõe o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença, determinando, porém, a 2ª parte deste n.º 2 ser aplicável o disposto no n.º 3 do artigo 49.º do Código Penal.

Por outro lado, se a multa, pena principal, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços, nos termos do n.º 1 do artigo 49.º do Código Penal.

De acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 49.º do Código Penal, se o condenado provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável, pode a execução da prisão subsidiária (assim como a execução da pena de prisão decretada na sentença) ser suspensa, por um período de um a três anos, desde que a suspensão seja subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro.

Se os deveres ou as regras de conduta não forem cumpridos, executa-se a prisão subsidiária (ou a pena de prisão decretada na sentença); se o forem, a pena é declarada extinta.

Posto isto.

Em processo penal não há um ónus da prova, mesmo em relação à matéria da indemnização civil([5]).

Ao passo que no processo civil predomina o princípio do dispositivo que se repercute e desenvolve sob diferentes ónus de prova, já no processo penal vigora o princípio da investigação ou da verdade material que se traduz no poder-dever que ao tribunal incumbe de esclarecer e instruir autonomamente, mesmo para além das contribuições da acusação e da defesa, o “facto” sujeito a julgamento, criando as bases necessárias à sua decisão.

Assim, o juiz tem competência para ordenar oficiosamente a produção de todos os meios de prova que entenda necessários para a “descoberta da verdade” e “à boa decisão da causa” – artigo 340.º do Código de Processo Penal.

Este preceito vale não apenas para a decisão sobre a admissão da prova relativa ao objecto do processo, isto é, a prova para a “descoberta da verdade” mas também para a decisão sobre a prova relativa às questões prévias e incidentes que se suscitam na pendência do processo, isto é, a prova para a “boa decisão da causa”([6]).

Destarte, o preceito abrange a admissão da prova dos factos relevantes para a decisão sobre as questões incidentais verificadas na pendência do processo, como é o caso do presente incidente de suspensão de execução da prisão subsidiária (artigo 474.º, n.º 1 do Código de Processo Penal).

O despacho recorrido considerou que a situação descrita pelo arguido no seu requerimento, designadamente o facto de o arguido não auferir um salário fixo mensal por força de um emprego certo, não é suficiente para se concluir que aquele vive numa situação de carência económica tal que inviabilize a angariação de meios económicos suficientes para pagar a multa em que foi condenado.

Por outro lado, considerou que, independentemente da sua situação económica, não se pode aceitar que a alegada carência de rendimentos tenha surgido supervenientemente à decisão condenatória, não se vislumbrando, desta perspectiva, que circunstâncias possam servir para desculpabilizar o arguido/condenado face ao incumprimento da pena que lhe foi aplicada.

Considerando, aliás, que se trata de alguém que sustenta, com dificuldades, as suas necessidades de vida, afirmou o despacho recorrido que esta é uma realidade que o arguido enfrenta, pelo menos, desde a data em que foi proferida a sentença nestes autos, não tendo ocorrido, entretanto, qualquer alteração significativa do seu modo de vida que possa justificar o incumprimento da pena de multa passado mais de um ano da sua aplicação.

Assim, considerando que se pode já concluir que a falta de pagamento da pena de multa é, in casu, imputável ao condenado, acrescentando que o período temporal decorrido desde a prolação da sentença até à sua conversão em prisão subsidiária, podia (e devia) ter servido para o arguido angariar o montante necessário ao pagamento da multa que lhe foi aplicada, até porque foi opção sua não requerer o seu pagamento faseado, nem a sua substituição por trabalho, o tribunal a quo indeferiu o pedido de suspensão de execução da prisão subsidiária.

Ora, ressalvado sempre o devido respeito por diversa opinião, dir-se-á que não acompanhamos a posição defendida no despacho recorrido.

O termo «imputável», usado na norma do artigo 49.º, n.º 3 do Código Penal, aponta para a formulação de um juízo sobre a «culpa» do condenado no não pagamento da multa.

A «culpa» consiste no juízo de censura ético-jurídica dirigida ao agente por ter actuado de determinada forma quando podia e devia ter agido de modo diverso([7]).

Quando se ajuíza a «culpa» mais do que a correcta formulação de bons princípios, importa a ponderação do caso concreto, com todas as variáveis conhecidas do julgador.

Ao contrário do que parece ser o entendimento do despacho recorrido, a própria impossibilidade de pagamento contemporânea da sentença condenatória releva para a suspensão da execução da prisão subsidiária e se o cumprimento da prisão só é justificado quando sujeito à cláusula de ultima ratio, impunha-se, então, ao tribunal a quo verificar se na sentença condenatória constavam ou não como provados, factos que permitissem concluir pela ausência de culpa do arguido quanto ao não pagamento da multa.

Como salienta Maria João Antunes, quer a impossibilidade de pagamento contemporânea da condenação, quer a superveniente levam à suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do n.º 3 do artigo 49.º do CP (artigo 43.º, n.º 2, do CP), quando a razão não seja imputável ao condenado, em observância do princípio da igualdade (artigo 13.º, n.º 2 da CRP)([8]).

Aliás, se o arguido tivesse indicado a própria sentença como documento de prova, o tribunal não deixaria de considerar os factos dela constantes, relevantes para o efeito, a existirem, não se vislumbrando que, constando a sentença dos autos, diferente comportamento se justifique, no caso de o arguido não fazer tal indicação, estando em causa, como está, o direito à liberdade([9]).

Acresce que, no caso em apreço, com o requerimento em que pediu a suspensão da execução da prisão subsidiária, o arguido indicou também meios de prova tendentes a demonstrar a alegada carência de meios económicos para pagar a multa em que foi condenado.

O Tribunal a quo não cuidou, porém, de saber se a concreta situação económica e financeira do recorrente justifica ou não a falta de pagamento da multa em que foi condenado, servindo-se de uma fundamentação que peca pela generalização e não tem em conta as concretas obrigações que o arguido decidiu satisfazer em vez de proceder a qualquer liquidação da multa, ainda que parcial e mínima.

Neste conspecto, não pode acolher-se a tese sufragada no despacho recorrido por não se puder extrair daquelas considerações que a razão do não pagamento da multa seja imputável ao arguido.

Como já se sublinhou em acórdão da Relação de Guimarães «[s]em prejuízo do contributo que cada um dos sujeitos processuais possa dar para a prova dos factos relevantes, ao juiz penal cabe sempre cuidar em último termo do conseguimento das bases necessárias à sua decisão»([10]).

Assim, no caso em apreço, há que indagar se a real e concreta situação do recorrente justifica ou não a inexistência de qualquer liquidação da multa em que foi condenado, realizando-se as diligências de prova necessárias para o apuramento da situação económica e financeira do recorrente, designadamente as diligências que por ele foram requeridas, criando-se, desta forma, os suportes para uma boa e correcta decisão da causa.

Procede, portanto, o recurso interposto.

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III – DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os juízes desta Relação em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido e, em consequência, revogar o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que, após a realização das diligências de prova consideradas necessárias para o apuramento da situação económica e financeira do recorrente, aprecie o pedido de suspensão da execução da prisão subsidiária.

                                          *

Sem tributação.

                                          *

(O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do CPP)

                                          *

Coimbra, 14 de Setembro de 2016

(Fernando Chaves - relator)

(Orlando Gonçalves - adjunto)


[1] - Diploma a que se reportam as demais disposições legais citadas sem menção de origem.
[2]  - Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, volume III, 2ª edição, 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 7ªedição, 107; Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17/09/1997e de 24/03/1999, in CJ, ACSTJ, Anos V, tomo III, pág. 173 e VII, tomo I, pág. 247 respectivamente.
[3] - Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado no Diário da República, Série I-A, de 28/12/1995.
[4] - Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, págs. 329 e 361.
[5] - Cfr. Acórdão do STJ de 12/1/1995, CJ, ACSTJ, Ano III, Tomo I, página 181 e Acórdão do TRC de 10/11/1999, CJ, Ano XXIV, Tomo V, página 47.
[6] - Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª edição actualizada, página 852.
[7]- Eduardo Correia, Direito Criminal, volume. I, pág. 316.
[8] - Consequências Jurídicas do Crime, 2013, Coimbra Editora, pág. 96. 
[9] - Cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 18/3/2015, Proc.º 189/11.3PAPBL-B.C1, disponível em www.dgsi.pt.
[10] - Acórdão de 26/4/2010, Proc. 977/08.8TAVCT.G1, disponível em www.dgsi.pt.