Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2946/15.2T9VIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: INSOLVÊNCIA DOLOSA
RECONHECIMENTO JUDICIAL
PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
SUSPENSÃO DA PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 06/30/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE VISEU – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 227.º, N.ºS 1 E 2, 118.º, N.º 2, E 120.º, N.º 1, AL. A), DO CP
Sumário: I – O segmento normativo, actualmente previsto no n.º 2 do artigo 227.º do CP, «é punido com a pena prevista nos números anteriores, conforme os casos» constitui lapso do legislador, evidenciado pela manutenção da redacção anteriormente dada ao n.º 3 do mesmo artigo, não obstante a eliminação, pelo DL n.º 53/2004, de 18-03, do anterior n.º 2 e a consequente assunção por aquele da numeração a este antes conferida.

II – Na concretização do prazo de prescrição do procedimento criminal, para a determinação do máximo da pena aplicável a cada crime, são consideradas, não as circunstâncias modificativas previstas na Parte Geral do CP, mas sim todas as particularidades previstas na Parte Especial, sempre que com elas se crie um novo tipo.

III – Em consonância, perante o limite máximo da moldura penal estabelecida para o crime previsto no n.º 2 do artigo 227.º do CP – 3 anos e 4 meses de prisão – e o disposto no artigo 118.º, n.º 1, al. c), daquele diploma, àquele ilícito corresponde o prazo prescricional de 5 anos.

III – O reconhecimento judicial da insolvência constitui apenas uma condição objectiva de punibilidade.

IV – Donde, sem esse reconhecimento não pode iniciar-se o procedimento criminal, suspendendo-se a respectiva prescrição, nos termos do disposto no artigo 120.º, n.º 1, al. a), do CP.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

Os arguidos A. e B. foram acusados da prática de um crime de insolvência dolosa p. e p. pelo artigo 227º, n.º 2, do CP, com referência à alínea a) do n.º 1 do mesmo normativo legal.

Os arguidos requereram a abertura de instrução e, como questão prévia, invocaram a prescrição do procedimento criminal relativo a tal crime.

Por despacho de 20-5-2019, a Mmª Juiz de Instrução declarou extinto, por prescrição, o procedimento criminal pelo crime por que os arguidos se encontravam acusados.


*

O Ministério Público e a assistente (…), por discordarem de tal decisão, interpuseram recurso da mesma, tendo extraído das respectivas motivações as seguintes as conclusões:

-- O Ministério Público:

1. No âmbito dos presentes autos foi proferido despacho de acusação pelo Ministério Público imputando aos arguidos A. e B. um crime de insolvência dolosa previsto e punido pelo artigo 227º n.º 2 do Código Penal com referência à alínea a) do n.º 1 do mesmo normativo legal.

2. A sentença de insolvência proferida em 26.10.2010 e transitou em julgado em 10.03.2011.

3. O arguido A. foi constituído arguido em 24 de Outubro de 2018.

4. O arguido B. foi constituído arguido em 7 de Novembro de 2018.

5. Não existe qualquer causa de suspensão ou interrupção dos prazos de prescrição.

6. O prazo de prescrição do crime previsto no artigo 227º n.º1 do Código Penal é de 10 anos, tendo em conta o disposto no artigo 118º n.º 1 alínea b) do Código Penal,

7. Sendo também esse o prazo a aplicar sobre a mesma factualidade mas cometida por um terceiro – n.º 2 daquele dispositivo legal.

8. Dispõe o n.º 2 do artigo 227º do Código Penal: “O terceiro que praticar algum dos factos descritos no n.º 1 deste artigo, com conhecimento do devedor ou em benefício deste é punido com a pena prevista nos números anteriores, conforme os casos, especialmente atenuada.

9. Ora, a expressão, “conforme os casos, especialmente atenuada”, confere uma possibilidade de atenuação da pena e não uma atenuação automática da pena, que produza efeitos sobre o prazo de prescrição do procedimento criminal.

10. Ao considerar que esta atenuação não é automática, o prazo de prescrição para o terceiro, é de 10 anos – o do tipo base ou fundamental.

11. Acresce que, o n.º 3 do mesmo preceito dispõe que: “Sem prejuízo do disposto no artigo 12º, é punível nos termos dos n.ºs 1 e 2 deste artigo, no caso do devedor ser pessoa colectiva, sociedade ou mera associação de facto, quem tiver exercido de facto a respectiva gestão ou direcção efectiva e houver praticado algum dos factos previstos no n.º 1”

12. Como se constata a disposição normativa refere que é punível nos termos do n.º 1 e n.º 2, não nos termos do n.º 1 ou n.º 2.

13. No caso dos autos, e em relação aos arguidos A. e B., o procedimento criminal pela prática do crime de crime de Insolvência dolosa previsto e punido pelo artigo 227º n.º 2 do Código Penal com referência à alínea a) do n.º1 do mesmo normativo legal, não se encontra prescrito, porquanto a atenuação da pena a que se refere o n.º 2 não é de aplicação automática e é apenas de aplicação na determinação concreta da medida da pena em sede de sentença.

Razões pelas quais deve ser revogado o despacho da Mm.ª Juiz de Instrução Criminal, de que ora se recorre, e, substituído por outro que não declare prescrito o procedimento criminal quanto aos arguidos A. e B..


*

-- A Assistente (…):

I- A Recorrente considera, na linha do arrazoado infra oferecido e naturalmente ressalvado o devido e máximo respeito pela posição ali sustentada, ter o Digníssimo Tribunal a quo andado mal ao decidir, no douto despacho sub judice, que "o procedimento criminal pelo crime em causa prescreveu em 26.10.2015" (sic);

II- O "pecado original" de que padece o douto despacho sub judice reside no facto de laborar em erro no que tange ao prazo de prescrição in casu aplicável;

III- Com efeito, a verdade é que, ante a moldura penal abstracta do crime de insolvência dolosa cuja prática é imputada aos Arguidos, o prazo prescricional é de 10 (dez) anos [ex vi do disposto no art. 118º, n.º 1, alínea b), do Código Penal] e não, como ali erradamente se invoca, de 5 (cinco) anos;

IV- Nesse conspectu, dúvidas não remanescem de que entre a data de declaração da insolvência da sociedade comercial "(…) , Lda." e a data do interrogatório dos Arguidos não transcorreu o dito prazo prescricional,

V- Falta de preenchimento de requisito que determina, de per si, a desnecessidade de análise dos demais requisitos legalmente previstos para a verificação da (putativa) prescrição ora declarada pelo Digníssimo Tribunal a quo;

VI- Obiter dictum, em reforço de tal conclusão e ex vi do disposto no art. 120°, n.º 1, alínea a), do Código Penal, mais se dirá que dúvidas igualmente não sobejam de que o prazo prescricional esteve suspenso até ao trânsito em julgado da decisão judicial que decretou a insolvência da (…), Lda., pois que, como é doutrinal e jurisprudencialmente pacífico, o reconhecimento judicial da situação de insolvência é condição objectiva de punibilidade do tipo de crime sub judice

VII- Assim, em face do arrazoado supra concluído, afigura-se manifesto não estarem, in casu, preenchidos todos os requisitos legalmente previstos para considerar verificada a (putativa) prescrição do procedimento criminal sub judice, declarada no douto despacho recorrido;

VIII- Destarte, considera a Recorrente que, ao decidir nos moldes ora impugnados, o Digníssimo Tribunal a quo interpretou e aplicou incorrectamente, entre outras, as normas ínsitas nos art. 118º e 227º do Código Penal, normas que, salvo o devido e máximo respeito por opinião contrária, deveriam ter sido interpretadas no sentido de não estarem preenchidos os requisitos da prescrição do procedimento criminal sub judice;     

IX. Termos em que deve ser revogado o douto despacho recorrido e, em consequência, substituído por uma decisão que declare não verificada a prescrição do procedimento criminal sub judice.


*

Responderam os arguidos, defendendo a improcedência dos recursos e, consequentemente, a manutenção da decisão recorrida.

Nesta instância, o Exmº Procurador da República concordando com o teor das alegações do Ministério Público na 1ª instância, emitiu parecer no sentido de que deve ser dado provimento ao recurso.

Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417º do CPP, responderam a assistente (reiterando o que alegara na sua motivação de recurso) e o arguido A. (mantendo a resposta que ofereceu aos recursos).

Os autos tiveram os vistos legais.


***

II – FUNDAMENTAÇÃO

Consta do despacho recorrido:

Da prescrição do procedimento criminal:

Quer o arguido A., quer o arguido B. invocam a prescrição do procedimento criminal, no que tange ao crime de insolvência dolosa, pelo qual se encontram acusados.

Na acusação é imputado a estes arguidos a prática de um crime de insolvência dolosa, p.p.p artigo 227, nº 2 do CP.

De acordo com o mencionado artigo:

“O devedor que com intenção de prejudicar os credores:

a) Destruir, danificar, inutilizar ou fizer desaparecer parte do seu património;

b) Diminuir ficticiamente o seu ativo, dissimulando coisas ou animais, invocando dívidas supostas, reconhecendo créditos fictícios, incitando terceiros a apresentá-los, ou simulando, por qualquer outra forma, uma situação patrimonial inferior à realidade, nomeadamente por meio de contabilidade inexata, falso balanço, destruição ou ocultação de documentos contabilísticos ou não organizando a contabilidade apesar de devida;

c) Criar ou agravar artificialmente prejuízos ou reduzir lucros; ou

d) Para retardar falência, comprar mercadorias a crédito, com o fim de as vender ou utilizar em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente;

é punido, se ocorrer a situação de insolvência e esta vier a ser reconhecida judicialmente, com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.

2 - O terceiro que praticar algum dos factos descritos no n.º 1 deste artigo, com o conhecimento do devedor ou em benefício deste, é punido com a pena prevista nos números anteriores, conforme os casos, especialmente atenuada.

À data dos factos estava em vigor a Lei 53/2004, mas, no que interesse para a questão a decidir é irrelevante.

Para decidir a questão suscitada cumpre apreciar se para efeitos do prazo de prescrição do crime em causa o Tribunal tem em conta a moldura penal do tipo do artigo 227, nº1 do CP, ou a moldura penal do crime depois de aplicada a atenuação especial.

Dispõe o artigo 118 do CP que:

“O procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido os seguintes prazos:

a) 15 anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for superior a 10 anos ou dos crimes previstos nos artigos 335.º, 372.º, 373.º, 374.º, 374.º-A, 375.º, n.º 1, 377.º, n.º 1, 379.º, n.º 1, 382.º, 383.º e 384.º do Código Penal, 16.º, 17.º, 18.º e 19.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho, alterada pelas Leis n.ºs 108/2001, de 28 de novembro, 30/2008, de 10 de julho, 41/2010, de 3 de setembro, 4/2011, de 16 de fevereiro, e 4/2013, de 14 de janeiro, 7.º, 8.º e 9.º da Lei n.º 20/2008, de 21 de abril, e 8.º, 9.º, 10.º e 11.º da Lei n.º 50/2007, de 31 de agosto, e ainda do crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção;

b) Dez anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a cinco anos, mas que não exceda dez anos;

c) Cinco anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a um ano, mas inferior a cinco anos;

d) Dois anos, nos casos restantes.

2 - Para efeito do disposto no número anterior, na determinação do máximo da pena aplicável a cada crime são tomados em conta os elementos que pertençam ao tipo de crime, mas não as circunstâncias agravantes ou atenuantes”.

Assim, coloca-se a questão de saber se, na situação concreta, estamos perante a previsão deste nº 2.

Ora, da análise do artigo em causa parece resultar que o nº 2 não tem aplicação quando a atenuante ou a agravante são levadas em causa pela própria lei para criar um tipo legal novo (neste sentido Maia Gonçalves, in CP anotado, em anotação ao artigo 118).

Na situação concreta não estamos perante o tipo do artigo 227, nº 1 do CP, mas perante um novo tipo, previsto no nº 2, que prevê a punição de terceiro.

De facto, os pressupostos do tipo do nº 1, são distintos do nº 2, não restando dúvidas que estamos perante um tipo legal novo.

Logo, a moldura penal do crime, para efeitos de prescrição é de prisão de um mês a 3 anos e quatro meses (artigo 73 do CP), sendo o prazo de prescrição do procedimento criminal de 5 anos.

No caso em análise e dando como assente que a declaração de insolvência funciona como uma condição de procedibilidade ou punibilidade, o prazo para efeitos de prescrição iniciou-se em 26.10.2010.

Acontece que o arguido A. foi constituído arguido em 24.10.2018 e o arguido B. em 7 de Novembro de 2018.

Ora, até à constituição dos mesmos como arguidos inexiste qualquer causa de suspensão ou interrupção dos prazos de prescrição.

Assim, o procedimento criminal pelo crime em causa prescreveu em 26.10.2015.

Pelo exposto, declaro o procedimento criminal pelo crime de insolvência dolosa, p.p.p artigo 227, nº 2 do CP, pelo qual os arguidos A. e B. se encontram acusados, extinto por prescrição. (…).


***

APRECIANDO

Sendo o objecto do recurso fixado pelas conclusões retiradas das respectivas motivações, nos recursos interpostos pelo Ministério Público e pela Assistente apenas vem suscitada a questão da (não) extinção do procedimento criminal, por efeito da prescrição.

Ou seja, em função da pena aplicável ao terceiro a que alude o n.º 2 do artigo 227º do CP, o que verdadeiramente se questiona é qual o prazo de prescrição do procedimento criminal: se de 10 anos (al. b) do n.º 1, do art. 118º do CP) ou de 5 anos (al. c) do mesmo preceito).


*

Foi deduzida acusação (em 14-2-2019) contra os arguidos A. e B. imputando-lhes a prática de um crime de insolvência dolosa p. e p. pelo artigo 227º, n.º 2, do CP, com referência à alínea a) do n.º 1 do mesmo normativo legal.

Estabelece o artigo 227º do CP:

«1- O devedor que com intenção de prejudicar os credores:

 a) Destruir, danificar, inutilizar ou fizer desaparecer parte do seu património;

b) (…); c) (…); ou d) (…);

é punido, se ocorrer a situação de insolvência e esta vier a ser reconhecida judicialmente, com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.

2- O terceiro que praticar algum dos factos descritos no n.º 1 deste artigo, com o conhecimento do devedor ou em benefício deste, é punido com a pena prevista nos números anteriores, conforme os casos, especialmente atenuada.

3- (…).»    são nossos o negrito e os sublinhados

Foram os arguidos acusados pela prática do crime p. e p. pelo n.º 2 do citado artigo 227º, com referência à alínea a) do n.º 1, do CP, estando, assim, em causa a actuação de um terceiro.

A este propósito, sublinha Fernanda Palma ([1]) “o artigo 227º, n.º 3 (actual n.º 2), refere-se, explicitamente, a um terceiro, isto é, a alguém para quem não é transferível juridicamente a caracterização objectiva do autor e que, portanto, não possui (ou não pode possuir) sequer o elemento subjectivo especial da ilicitude (a intenção de prejudicar os credores). A sua responsabilidade atenuada adequa-se a um menor desvalor da acção relativamente ao património dos credores.”.

No crime de insolvência dolosa, as modalidades da conduta típica encontram-se descritas nas alíneas do n.º 1 do artigo 227º do CP; porém, tais condutas só são puníveis se ocorrer a situação de insolvência e esta vier a ser reconhecida judicialmente.

Por conseguinte, a sentença que declarou a insolvência constitui uma condição objectiva de punibilidade, pois “(…) é o reconhecimento judicial da insolvência que evidencia a insatisfação dos credores e, portanto, o perigo penalmente perseguido: se o devedor causa ilícita e culposamente a sua própria impotência económica, mas consegue satisfazer os interesses dos credores, e a insolvência não é, por esse facto, objecto de reconhecimento judicial, o facto carece de dignidade penal.” ([2]).

Sobre a condição objectiva de punibilidade, trata-se de elementos que não se ligam  nem à ilicitude, nem à culpa, mas decidem sobre a punibilidade do facto; ou como sublinhou Germano Marques da Silva ([3]) “são elementos suplementares do tipo, mas não se incluem no mesmo, caracterizando-se precisamente pela circunstância de serem exteriores (…), condicionam a punibilidade do facto a circunstâncias alheias”.

Relativamente ao crime por que os arguidos foram acusados, estatui o n.º 2 do artigo 227º que O terceiro que praticar algum dos factos descritos no n.º 1 deste artigo, com o conhecimento do devedor ou em benefício deste, é punido com a pena prevista nos números anteriores, conforme os casos, especialmente atenuada.

Consideram os recorrentes que a expressão, “conforme os casos, especialmente atenuada”, confere uma possibilidade de atenuação da pena e não uma atenuação automática da pena, que produza efeitos sobre o prazo de prescrição do procedimento criminal. Pelo que, ao considerar que esta atenuação não é automática, o prazo de prescrição para o terceiro, é de 10 anos – o do tipo base ou fundamental.

Ora, na anterior redacção do artigo 227º resultante da revisão do Código Penal levada a efeito pelo DL n.º 48/95, de 15.3, o n.º 1 apenas divergia da actual redacção quanto à medida da pena: pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

Porém, havia um n.º 2 que dispunha «Se a falência vier a ser declarada em consequência da prática de qualquer dos factos descritos no número anterior, o devedor é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.»; sendo esta a pena cominada para o actual n.º 1.

Acontece que este n.º 2 veio a ser eliminado pelo DL n.º 53/2004, de 18.3., diploma que aprovou o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) e, que para os tipos criminais eliminou todas as referências a “falência”, que foram substituídas por “insolvência” e introduziu uma agravação para alguns dos crimes (227º, 227º-A, 228º e 229º), entre eles a insolvência dolosa.

Ou seja, na vigência da revisão do Código Penal levada a efeito pelo DL n.º 48/95, de 15.3, estavam previstas diferentes penas nos n.ºs 1 e 2 do artigo 227º do CP (respectivamente, prisão até 3 anos ou com pena de multa e, prisão até 5 anos ou pena de multa até 600 dias se a falência viesse a ser decreta em consequência de qualquer dos factos descritos no número anterior).

Porém, com a alteração introduzida pelo citado DL n.º 53/2004 tendo sido eliminado o n.º 2, que passou a ter a redacção do anterior n.º 3, não foram retirados do preceito, certamente por lapso, a referência à pena prevista nos números anteriores, conforme os casos, posto que agora apenas está prevista a pena do n.º 1.

Contrariamente ao que entendem os recorrentes, a decisão recorrida considerou que: “Na situação concreta não estamos perante o tipo do artigo 227º, n.º 1 do CP, mas perante um novo tipo, previsto no n.º 2, que prevê a punição de terceiro.

De facto, os pressupostos do tipo do n.º 1, são distintos do n.º 2, não restando dúvidas que estamos perante um tipo legal novo.

Logo, a moldura penal do crime, para efeitos de prescrição é de prisão de um mês a 3 anos e quatro meses (artigo 73º do CP), sendo o prazo de prescrição do procedimento criminal de 5 anos.

Portanto, sendo o crime imputado aos arguidos punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias, especialmente atenuada nos termos do artigo 73º do CP, tal significa que, reduzido de um terço, o limite máximo da pena aplicável é de 3 anos e 4 meses (ou de multa até 400 dias), afigurando-se-nos correcta a moldura penal do crime indicada na decisão recorrida.

Com efeito, também Fernanda Palma entende (ob. cit. pág. 413) que “no n.º 2 do artigo 227º o legislador concebeu uma atenuação especial da pena (nos termos do artigo 73º do Código Penal), explicitando, ao nível da ilicitude e da culpa, as razões que determinam o privilegiamento (razões derivadas da ausência da qualidade de devedor) (…) [pena que passará a ser de prisão até 3 anos e 4 meses ou multa até 400 dias, por força das alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 73º]”.

No mesmo sentido vem a anotação de Maia Gonçalves ao artigo 118º do CP.

Nos termos do n.º 1 deste preceito, «O procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido os seguintes prazos:

a); b);

c) Cinco anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a um ano, mas inferior a cinco anos;

d) .»

E, acrescenta o n.º 2: «Para efeito do disposto no número anterior, na determinação do máximo da pena aplicável a cada crime são tomados em conta os elementos que pertençam ao tipo de crime, mas não as circunstâncias agravantes ou atenuantes

A este propósito refere Maia Gonçalves: “A disposição no n.º 2 não tem aplicação quando agravantes ou atenuantes modificativas são levadas em conta na própria lei para criar um novo tipo de crime. A expressão dentro do mesmo tipo de crime foi introduzida na fase final dos trabalhos preparatórios precisamente para vincar este entendimento. A expressão veio a ser substituída na revisão do Código (levada a efeito pelo DL n.º 48/95, de 15 de Março) por outra - que pertençam ao tipo de crime -, ficando até desse modo, o entendimento reforçado.

Do exposto resulta que para a determinação do máximo da pena aplicável a cada crime, a que se refere o n.º 1, só não são levadas em conta as circunstâncias modificativas previstas na Parte Geral. Portanto, todas as circunstâncias previstas na Parte Especial contam, sempre que com elas se crie um novo tipo”.

Portanto, à infracção imputada aos arguidos corresponde o prazo prescricional de 5 anos.

E, quanto ao início do prazo, dispõe o n.º 1 do artigo 119º do CP que «O prazo de prescrição do procedimento criminal corre deste o dia em que o facto se tiver consumado.»

Acrescentando o n.º 4 que «Quando for relevante a verificação de resultado não compreendido no tipo de crime, o prazo de prescrição só corre a partir do dia em que aquele resultado se verificar.»

Ora, para efeitos deste n.º 4 o resultado deve ser relevante, designadamente, enquanto pressuposto da punibilidade.

Assim, se a condição objectiva de punibilidade se integra na cláusula de resultado não compreendida no tipo, o início do prazo de prescrição conta-se da data da sua verificação.

Actualmente, para a verificação do crime de insolvência dolosa já não se exige que a actuação do devedor seja causa directa da situação de insolvência e do respectivo reconhecimento judicial, bastando, apenas, que se mostre preenchido o tipo de ilícito com uma das actuações previstas no n.º 1, realizadas com intenção de prejudicar os credores, sendo que a declaração de insolvência, como já mencionado, constitui apenas uma condição objectiva de punibilidade.

Donde, sem o reconhecimento judicial da insolvência não pode iniciar-se o procedimento criminal, suspendendo-se a respectiva prescrição, nos termos do artigo 120º, n.º 1, al. a) do CP.

Como decidiu esta Relação no acórdão de 2-10-2013 (de que a ora relatora foi adjunta), proferido no proc. 253/05.8TAPMS.C1, in www.dgsi.pt, “sem o reconhecimento judicial da insolvência o agente não pode ser perseguido pelo crime de insolvência dolosa. Assim, independentemente da data em que tenham sido praticados os actos integradores daquele ilícito penal, o prazo de prescrição do procedimento criminal não pode começar a correr antes da declaração de insolvência, por a tal obstar o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 120º do Código Penal”.

Como resulta dos autos,

- a sociedade (…) foi declarada insolvente nos autos de Insolvência de Pessoa Colectiva com o n.º (…) da secção única da IL de (…), por acórdão proferido por esta Relação de Coimbra, em 26-10-2010 (fls. 89/118), e,

- os arguidos foram constituídos como tal: o A. em 24-10-2018 (fls. 119) e, o B. em 7-11-2018 (fls. 120/121).

Acresce que, in casu é de 5 anos o prazo de prescrição do procedimento criminal.

Por conseguinte, o procedimento criminal pelo crime de insolvência dolosa, p. e p. pelo artigo 227º, n.º 2 do CP, pelo qual os arguidos se encontram acusados, prescreveu em 26-10-2015.


*****

III - DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:

- Negar provimento aos recursos, confirmando-se, consequentemente, o despacho recorrido.

Sem tributação, quanto ao recurso do Ministério Público.

Custa a cargo da recorrente/assistente, fixando-se em 3 UC´s a taxa de justiça.


*****

Coimbra, 30-6-2020

 Texto processado em computador e integralmente revisto pela relatora e assinado electronicamente - artigo 94º, n.º 2 do CPP

Elisa Sales (relatora)

Jorge Jacob (adjunto)


[1] - Aspectos Penais da Insolvência e da Falência: Reformulação dos Tipos Incriminadores e Reforma Penal, - Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Vol. XXXVI, 1995, pág. 412.
[2] - Pedro Caeiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, págs. 425.
[3] - Direito Penal Português, Parte Geral, Tomo II, Teoria do Crime, Editorial Verbo, 1998, págs. 38/39.