Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1933/11.4 TBACB-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS GIL
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
PREJUÍZO
CREDOR
INQUISITÓRIO
Data do Acordão: 06/20/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALCOBAÇA 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ARTS.11, 17, 238 CIRE, 712 Nº4 CPC
Sumário: 1. No caso de eventual atraso na apresentação à insolvência, o simples avolumar do passivo decorrente da contagem de juros de mora sobre o capital em dívida não integra a causação de prejuízo aos credores para os efeitos previstos na alínea d), do nº 1, do artigo 238º do CIRE.

2. O artigo 11º do CIRE é aplicável ao pedido de exoneração do passivo restante.

3. Verificando-se em segunda instância a insuficiência da base de facto para uma apreciação conscienciosa da verificação ou inverificação dos fundamentos legais de indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante deduzido pelos recorrentes, ao abrigo do disposto no artigo 712º, nº 4, do Código de Processo Civil, aplicável ao caso ex vi artigo 17º do CIRE, deve anular-se a decisão recorrida e determinar-se a ampliação da matéria de facto.

Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            1. Relatório

            A 09 de Setembro de 2011, no Tribunal Judicial da Comarca de Alcobaça, R (…) e esposa M (…) vieram apresentar-se à insolvência requerendo que sejam declarados insolventes, que lhes seja concedida a exoneração do passivo restante e que seja nomeado Administrador da Insolvência o Sr. Dr. J (…)

            A 22 de Setembro de 2011 foi proferida sentença que, entre outras decisões, declarou a insolvência de R (…) e M (…), nomeou Administrador da Insolvência o Sr. Dr. J (…)  e declarou aberto incidente de qualificação da insolvência com carácter pleno.

            A 10 de Janeiro de 2012, realizou-se assembleia de credores, sendo todos os credores representados nessa assembleia contra a proposta de exoneração do passivo restante a favor dos insolventes.

            A 20 de Janeiro de 2012 foi proferida decisão de indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante deduzido por R (…) e M (…), decisão notificada em expediente electrónico elaborado nesse dia.

            A 02 de Fevereiro de 2012, inconformados com a decisão que indeferiu o pedido de exoneração do passivo restante, R (…) e M (…)  interpuseram recurso de apelação contra a mesma terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

(…)

            Os recorrentes terminam as suas alegações pedindo a revogação do despacho impugnado e a sua substituição por decisão que admita o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos recorrentes.

            Não foram oferecidas contra-alegações.

            As partes foram notificadas para, querendo, se pronunciarem sobre o eventual preenchimento da previsão da alínea e), do nº 1, do artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

            Os recorrentes pronunciaram-se reiterando sinteticamente a argumentação desenvolvida no recurso, nada aduzindo relativamente à questão concretamente suscitada.

Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

            2. Questões a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelos recorrentes nas conclusões das suas alegações (artigos 684º, nº 3 e 685º-A nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil

2.1 Do preenchimento do fundamento legal de indeferimento do requerimento de exoneração do passivo restante previsto na alínea d), do nº 1, do artigo 238º do CIRE;

2.2 Do eventual preenchimento do fundamento legal de indeferimento do requerimento de exoneração do passivo restante previsto na alínea e), do nº 1, do artigo 238º do CIRE.

3. Fundamentos de facto constantes da decisão sob censura e que não se mostram impugnados, não impondo os elementos do processo decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, nem tendo sido oferecido qualquer documento superveniente, a que se aditou a factualidade resultante dos documentos autênticos juntos a folhas 150 e 151, dada a sua pertinência para a apreciação do pedido de exoneração do passivo restante[1]


3.1

Os requerentes apresentaram-se à insolvência a 09.09.2011.

3.2

Os requerentes são pessoas singulares, casadas entre si em regime de comunhão de adquiridos, em 2001, com um filho[2].

3.3

            Após o matrimónio, surgiu aos aqui requerentes, a possibilidade de concretização da aquisição de uma empresa ligada ao sector dos plásticos, passando os mesmos a serem sócios e gerentes da sociedade comercial denominada, (…) Lda., pessoa colectiva, nº (...) .

3.4

            Em Maio de 2009, os requerentes adquiriram as acções de uma outra sociedade comercial denominada (…), S.A., pessoa colectiva nº (...) .

3.5

            Todavia uma crise no sector e falta de liquidez levou a sociedade (…) SA, [a formular, a ver deduzido contra si?[3]] um pedido de insolvência, ao qual foi atribuído o nº 1869/09.9TBMGR e que correu termos legais pelo 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca da Marinha Grande, que culminou com o encerramento da sociedade Trandefil[4].

3.6

            Como ambas as sociedades se encontravam directamente ligadas[5], não restou outra alternativa aos requerentes, senão o de posteriormente e na qualidade de sócios e gerentes da sociedade (…), Lda., apresentarem esta sociedade à insolvência, que veio a ser declarada a 12.04.2010, no âmbito do processo nº 385/10.0TBMGR, que correu os seus termos pelo 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca da Marinha Grande.

3.7

            No exercício da sua então actividade de gerente/administrador os requerentes foram prestando os seus avais[6] às sociedades agora insolventes, nomeadamente em contratos de mútuo celebrados com bancos[7], letras, as quais têm vindo a ser accionadas pelos credores que possuíam garantias [prestadas?] pelos requerentes.

3.8

            O requerente marido aufere um vencimento mensal ilíquido de 500,00 euros[8], no âmbito da actividade profissional desempenhada para a sociedade comercial (…), Lda..

3.9

            A requerente encontra-se a trabalhar por conta de outrem, para a sociedade denominada (…) S.A., mediante celebração de contrato de trabalho a termo certo e auferindo um vencimento mensal ilíquido de 1.500,00 euros[9].

3.10

            Os requerentes têm um passivo de € 1.015.693,39.

3.11

            Os requerentes reputam[10] que o orçamento familiar, de despesas correntes, é de € 1.980,00 mensais.

3.12

            Os requerentes declaram que com os seus rendimentos mensais não conseguem actualmente pagar as suas responsabilidades e ainda fazer face às despesas correntes do dia-a-dia[11].

3.13

            Os requerentes declaram que desde o encerramento das empresas, que os requerentes não geraram qualquer outra dívida, nem contraíram empréstimos bancários[12].

3.14

            Os requerentes declaram que possuem como activo apenas um imóvel, a saber a fracção autónoma P, correspondente à moradia quinze, destinada a habitação, constituída por cave para garagem com 81 m2, rés-do-chão e primeiro andar com 192 m2, logradouro e telheiro situado a tardoz com 45 m2 e jardim na frente com 35 m2[13], inscrita na matriz sob o artigo (...) da freguesia e concelho da Marinha Grande e descrito na Conservatória do Registo Predial da Marinha Grande sob o nº (...) , a que atribuem o valor de € 1.500,00[14].

3.15

            Os requerentes têm a correr contra si quatro acções executivas:

            - processo de execução ordinária[15] nº 955/10.7TBMGR, 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca da Marinha Grande, em que é exequente (…)S.A.;

            - processo de execução ordinária[16] nº 956/10.5TBMGR, 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca da Marinha Grande, em que é exequente (…), S.A.;

            - processo de execução ordinária[17] nº 1740/10.1TBMGR, 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca da Marinha Grande, em que é exequente (…)Aluguer, S.A.;

            - processo de execução ordinária[18] nº 1096/10.2TBMGR, 3º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca da Marinha Grande, em que é exequente (…)Lda..


3.16

            Em 08 de Julho de 2011, R (…) e M (…) Caseiro não tinham antecedentes criminais.

4. Fundamentos de direito

4.1 Do preenchimento do fundamento legal de indeferimento do requerimento de exoneração do passivo restante previsto na alínea d), do nº 1, do artigo 238º do CIRE

Em síntese, os recorrentes afirmam que se apresentaram à insolvência dentro do prazo dos seis meses, porquanto, só com o encerramento da sociedade “P (…)” em 01 de Março de 2011 deixaram de ter qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica, que o mero avolumar de juros decorrente da mora no cumprimento de obrigações pecuniárias não integra o prejuízo previsto na alínea d), do nº 1, do artigo 238º do CIRE, que os credores bem sabiam aquando da concessão dos créditos que os recorrentes não tinham outro rendimento para além do vencimento nas sociedades de que eram sócios e gerentes e que o único património que possuíam não se encontrava desonerado, sendo que alguns créditos foram concedidos já após incumprimento, sendo alguns reestruturados após a insolvência das empresas e tendo em atenção o facto dos recorrentes ainda serem titulares de uma empresa, a “P (…), Lda.”, que veio a ser declarada insolvente no decurso do mês de Março de 2011.

Os recorrentes invocam nas suas conclusões alguma factualidade que não está minimamente documentada ou por outro meio comprovada e que nem sequer foi alegada aquando da formulação do requerimento para exoneração do passivo restante (referimo-nos ao conhecimento por parte dos credores da situação financeira dos insolventes, à data da concessão dos créditos, que só com o encerramento da “P (…) em 01 de Março de 2011 deixaram de ter qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica e que foi a titularidade dessa sociedade que determinou a reestruturação de alguns créditos, já após a insolvência de outras duas, no decurso do ano de 2010). Mais, alguma desta factualidade contradiz a que havia sido articulada no requerimento inicial de apresentação da insolvência pois, enquanto nesta peça alegaram que desde o encerramento das empresas os requerentes não geraram qualquer outra dívida, nem contraíram empréstimos bancários (artigo 34º do requerimento inicial), sendo que as empresas a que se referem são a “(…) Lda.”, a “(…)S.A.” e a “(…)Lda.” (artigos 9º, 10º, 12º, 19º e 20º do requerimento inicial), agora, neste recurso de apelação, afirmam que foi a titularidade da sociedade “(…)” que foi decisiva para a reestruturação de alguns créditos, já após a insolvência das outras duas sociedades, no decurso do ano de 2010.

É evidente que em sede de recurso, meio precipuamente destinado à reapreciação de uma certa decisão, tal factualidade não pode ser relevada, sob pena do recurso se transformar num instrumento para conhecimento de questões novas, em primeira instância, com perversão do figurino próprio dos recursos.

Porém, isso não significa que este tribunal não deva no uso dos seus poderes oficiosos conferidos pelo artigo 712º, nº 4, do Código de Processo Civil, em conjugação com a inquisitoriedade que vigora no domínio do processo de insolvência (artigo 11º do CIRE[19]), se necessário e útil, determinar o alargamento da base factual em ordem a uma fundada decisão da questão de direito.

Antes de mais, recordemos os normativos pertinentes.

            “Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo” (artigo 235º do CIRE).

            Sempre que esteja em causa requerimento de insolvência por apresentação, o pedido de exoneração do passivo restante deve ser feito em tal requerimento (artigo 236º, nº 1, do CIRE).

            “Do requerimento de exoneração do passivo restante consta expressamente a declaração de que o devedor preenche os requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas nos artigos seguintes” (artigo 236º, nº 3, do CIRE).

            “Na assembleia de apreciação do relatório é dada aos credores e ao administrador da insolvência a possibilidade de se pronunciarem sobre o requerimento” (artigo 236º, nº 4, do CIRE).

            Nos termos do disposto no artigo 237º do CIRE, a “concessão efectiva da exoneração do passivo restante pressupõe que:

a) Não exista motivo para o indeferimento liminar[20] do pedido por força do disposto no artigo seguinte;

b) O juiz profira despacho declarando que a exoneração será concedida uma vez observadas as condições previstas no artigo 239º durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado despacho inicial;

c) Não seja aprovado e homologado um plano de insolvência;

d) Após o período mencionado na alínea b), e cumpridas que sejam efectivamente as referidas condições, o juiz emita despacho decretando a exoneração definitiva, neste capítulo designado despacho de exoneração”.

O artigo 238º, nº 1, do CIRE dispõe que “o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:

a) For apresentado fora de prazo;

b) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza;

c) O devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência;

d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica;

e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186º;

f) O devedor tiver sido condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227º a 229º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data;

g) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração, que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência.”

“A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência” (artigo 186º, nº 1, do CIRE).

            No caso dos autos, sendo os requerentes da insolvência pessoas singulares e não resultando da factualidade alegada que fossem titulares de empresas, não impendia sobre eles o dever de apresentação à insolvência (artigo 18º, nº 2, do CIRE)[21].

No entanto, mesmo não estando os insolventes obrigados a apresentar-se à insolvência, importa ainda assim apurar se tendo-se abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da insolvência houve prejuízo para os credores, e se sabiam, ou não podiam ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica (artigo 238º, nº 1, alínea d), do CIRE).

A exoneração do passivo restante, como se expõe no número 45 do preâmbulo do decreto-lei nº 53/2004, de 18 de Março que aprovou o CIRE, constitui o acolhimento entre nós do “princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência”, princípio que “é agora também acolhido entre nós, através do regime da «exoneração do passivo restante».

            Suscita-nos algumas reservas a afirmação contida no mesmo ponto do citado preâmbulo de que o “Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica”, na medida em que dos requisitos necessários para o deferimento do requerimento para exoneração do passivo restante não consta que seja necessária a satisfação de um valor mínimo dos créditos dos credores do insolvente. Acresce que a exoneração do passivo restante só opera relativamente a certos créditos, porquanto não abrange os créditos por alimentos, as indemnizações por facto ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamadas nessa qualidade, os créditos por multas, coimas e outras sanções pecuniárias por crimes ou contra-ordenações e os créditos tributários (artigo 245º, nº 2, do CIRE).

Assim, interpretadas literalmente as referidas normas, a não se relevar a alusão à exoneração do passivo restante, referência que tem ínsita a necessária satisfação de pelo menos algum passivo, permitindo o funcionamento do instituto em análise mesmo em casos em que à partida se sabe que não se logrará qualquer satisfação do passivo, agravando-se o mesmo ainda mais por força das despesas com o fiduciário (artigo 240º do CIRE), afigura-se-nos que tal regime constituirá uma ofensa desproporcionada e injustificada dos direitos dos credores afectados pela exoneração do passivo restante, incurso em inconstitucionalidade material por conjugação dos artigos 18º, nº 2 e 62º, nº 1, ambos da Constituição da República Portuguesa[22].

Deste modo, entende-se que o deferimento inicial do requerimento para exoneração do passivo restante depende não apenas da não verificação dos fundamentos de indeferimento previstos no artigo 238º do CIRE[23], mas também, pelas razões já antes aduzidas, numa interpretação teleológica e em conformidade com a Constituição da República Portuguesa, da verificação da possibilidade de satisfação de um mínimo do passivo existente, mediante a liquidação do activo existente e pela cessão do rendimento disponível durante cinco anos.

No caso em apreço, a titularidade de um imóvel por parte dos insolventes, não obstante as actuais condições adversas do mercado, permitirá previsivelmente a satisfação de algum passivo mediante a liquidação desse activo. Já a via da cessão do rendimento disponível, a ser verdadeiro o cenário delineado pelos insolventes no seu requerimento de insolvência, parece votada ao insucesso, prevendo-se que nesse quadro não venha a ser mais que uma fonte de mais despesas.

Os credores do insolvente, enquanto sujeitos directamente afectados pela procedência do requerimento do insolvente para exoneração do passivo restante, são admitidos a pronunciar-se sobre a pretensão do insolvente (artigos 236º, nº 4 e 238º, nº 2, ambos do CIRE). No entanto, nestes normativos, nem em qualquer outro normativo do CIRE se confere aos credores o poder de mediante a sua mera oposição obstarem à procedência da pretensão do insolvente para exoneração do passivo restante[24].

No caso em apreço, dada a delimitação objectiva do recurso em função das respectivas conclusões, importa verificar se os recorrentes se atrasaram na apresentação à insolvência e, na hipótese afirmativa, se por causa desse atraso causaram prejuízos aos credores, sabendo ou não podendo ignorar, sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

A resposta à existência de atraso dos recorrentes na apresentação à insolvência implica, antes de mais, a determinação da data em que se verificou aquela insolvência.

Nos termos do disposto no artigo 3º, nº 1 do CIRE, “é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.”

“Equipara-se à situação de insolvência actual a que seja meramente iminente, no caso de apresentação pelo devedor à insolvência” (artigo 3º, nº 4 do CIRE).

Analisando a factualidade provada importa assim determinar se se verifica uma situação de impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas por parte dos requerentes ou, pelo menos, se se regista uma iminência dessa impossibilidade.

No caso em apreço, está provado que o requerente aufere um vencimento bruto de quinhentos euros, enquanto a requerente auferirá um vencimento bruto no montante de mil e quinhentos euros. Por outro lado, deu-se como provado que o passivo de ambos os insolventes era de € 1.015.693,39, não se tendo curado de apurar desde quando se venceu esse passivo, nem de discriminar a composição concreta do mesmo. Embora conste dos autos que em 2010 foram instauradas quatro acções executivas contra os insolventes, desconhece-se qual a quantia exequenda reclamada em cada uma delas, não se sabendo se os valores que os insolventes indicaram na relação dos seus cinco maiores credores correspondem ou não às quantias exequendas das referidas acções executivas. Estas omissões, facilmente supríveis com o necessário cuidado na instrução dos autos[25], nomeadamente notificando os requerentes da insolvência para juntar os documentos comprovativos das obrigações assumidas, solicitando certidões das acções executivas instauradas contra os insolventes e por eles identificadas no requerimento inicial[26], impedem-nos de situar de forma temporalmente precisa o momento em que se verificou o vencimento das obrigações que impendem sobre os insolventes e a consequente impossibilidade de cumprimento das mesmas.

Não obstante estas omissões, que obstam a que se possa determinar com rigor se a apresentação à insolvência ocorreu para além dos seis meses subsequentes à verificação da insolvência[27] e, por isso, ao preenchimento da previsão da segunda parte da alínea d), do nº 1, do artigo 238º do CIRE, sem prejuízo de em momento ulterior se aferir dos concretos reflexos processuais destas omissões, analisar-se-á se o prejuízo identificado pelo tribunal a quo é passível de integrar a aludida previsão legal.

Na perspectiva do tribunal a quo esse prejuízo decorreria da acumulação de juros de mora, sendo que a contracção de dívidas para as quais os insolventes sabiam não ter meios para as pagar e que sabiam estar acima das suas possibilidades económicas[28] integraria o elemento cognitivo previsto na parte final da alínea d), do nº 1, do artigo 238º do CIRE.

A nosso ver, no caso em apreço, face à factualidade genérica apurada, o único prejuízo que se pode chamar à liça para integrar a alínea d), do nº 1, do artigo 238º do CIRE é o avolumar do passivo decorrente da contagem de juros de mora; a contracção de obrigações de forma irresponsável por parte dos insolventes integra outro fundamento de indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante, em nosso entender, a previsão da alínea e), do nº 1, do artigo 238º do CIRE. Será esse avolumar do passivo decorrente da contagem de juros de mora bastante para afirmar que um eventual atraso dos recorrentes na apresentação à insolvência causou prejuízo para os credores juridicamente relevante à face do disposto na alínea d), do nº 1, do artigo 238º do CIRE?

A jurisprudência acha-se dividida na concretização deste segmento da previsão da alínea d), do nº 1, do artigo 238º do CIRE.

Na verdade, entendem alguns, que constituem prejuízo para os efeitos deste normativo, os juros devidos pelo atraso no cumprimento de obrigações pecuniárias[29]. Numa posição intermédia, sustenta-se que demonstrado o atraso na apresentação à insolvência é lícito presumir, com base em presunção natural, a existência de prejuízo para os credores[30]. Ao invés, em nítida contraposição, sustentam outros, ainda que com argumentações não coincidentes, que os juros de mora devidos pelo atraso no cumprimento de obrigações pecuniárias não integram o prejuízo requerido pela previsão legal em análise[31].

Apreciemos tomando posição neste dissídio jurisprudencial.

O processo de insolvência é um processo executivo especial e universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente (artigo 1º do CIRE).

O objectivo precípuo do processo de insolvência é assim a satisfação total ou parcial dos créditos de um insolvente, tendo a generalidade das obrigações incumpridas a natureza de obrigações pecuniárias e, quando não é esse o caso, a lei prevê casos de conversão de prestações de facto ou de coisas em prestações pecuniárias (vejam-se, por exemplo, os artigos 102º e 103º do CIRE).

Actualmente, ao invés do que sucedia no Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência (artigo 151º, nº 1) e, anteriormente, no Código de Processo Civil (artigo 1196º do Código de Processo Civil), a declaração de insolvência não obsta à contagem de juros de mora, apenas sucedendo que tais créditos por juros de mora constituídos após a declaração de insolvência são havidos como créditos subordinados (artigo 48º, alínea b), do CIRE), o que implica que apenas serão solvidos depois de integralmente pagos os créditos com garantia real, os créditos privilegiados e os créditos comuns e pela ordem por que vêm legalmente identificados no artigo 48º, na proporção dos respectivos montantes, quanto aos que constem da mesma alínea, se a massa for insuficiente para o seu pagamento integral (artigo 177º, nº 1, do CIRE).

O atraso ou o retardamento no cumprimento da obrigação imputável ao devedor (presumindo-se a culpa, ex vi artigo 799º, nº 1, do Código Civil) constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor, sendo que na obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora (artigo 806º, nº 1, do Código Civil). A lei dispensa assim o credor de provar o prejuízo sofrido, ficcionando que o dano corresponde, em princípio, aos frutos civis (artigo 212º, nº 2, do Código Civil) que o capital em dívida era susceptível de produzir tendo em conta a taxa supletiva legal[32], salvo se antes da mora for devido um juro mais elevado ou as partes houverem estabelecido um juro moratório diferente do legal (artigo 806º, nº 2, do Código Civil). Nos casos de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o credor pode ainda exigir uma indemnização suplementar desde que prove que a mora lhe causou danos de montante superior aos juros legalmente previstos (artigo 806º, nº 3, do Código Civil).

Na economia desta decisão, este excurso pelo regime da mora nas obrigações pecuniárias justifica-se para comprovar que a contagem de juros de mora é uma consequência necessária do atraso no cumprimento daquelas obrigações, sendo por isso uma realidade omnipresente no processo de insolvência. Dito de outro modo: face ao regime legal de sancionamento da mora no cumprimento das obrigações pecuniárias, o legislador do CIRE não podia deixar de saber que as situações de insolvência estão necessariamente associadas a casos em que se verifica a contagem de juros de mora.

Se assim é, como cremos que resulta demonstrado pelo que precede, qual o sentido a atribuir à causação de prejuízo para os credores com o atraso na apresentação à insolvência?

Se acaso o legislador pretendesse abarcar com tal previsão os prejuízos decorrentes da simples mora no cumprimento de obrigações pecuniárias, seria desnecessária a expressa alusão à causação de danos por força do atraso na apresentação à insolvência, bastando apenas que previsse o atraso na apresentação à insolvência para que tais danos fossem contemplados.

Neste quadro normativo, ao autonomizar a provocação de danos consequentes do retardamento na apresentação à insolvência, afigura-se-nos que o legislador terá tido em vista algo mais do que os simples juros advindos da mora no cumprimento de obrigações pecuniárias.

Não por acaso, em sede de incidente de qualificação da insolvência, o legislador previu expressamente que “se a pessoa singular insolvente não estiver obrigada a apresentar-se à insolvência, esta não será considerada culposa em virtude da mera omissão ou retardamento na apresentação, ainda que determinante de um agravamento da situação económica do insolvente” (artigo 186º, nº 5, do CIRE).

Tendo em conta a teleologia subjacente ao instituto de exoneração do passivo restante e a sua congruência com o incidente de qualificação da insolvência (assim se percebe o disposto na alínea e), do nº 1, do artigo 238º do CIRE), parece que a causação do prejuízo aos credores não se bastará com os juros decorrentes da mora no cumprimento de obrigações pecuniárias e antes visará a prática pelo devedor de actos que levem à dissipação do património ou à contracção de novas responsabilidades após a verificação da situação de insolvência[33].

Daí que também nos afastemos daqueles que sustentam que demonstrado o atraso na apresentação à insolvência, se presume judicialmente a causação de prejuízos aos credores, cabendo ao insolvente a alegação e prova de factos que ilidam aquela presunção.

E afastamo-nos desta orientação por duas razões.

Em primeiro lugar, porque embora invocando a utilização de uma presunção judicial para comprovação da causação de prejuízo aos credores, a orientação criticada, na prática, cria uma presunção legal iuris tantum ilidível por prova do contrário (artigo 350º, nº 2, do Código Civil), quando o resultado probatório obtido por presunção judicial é ilidível mediante simples contraprova (artigo 346º do Código Civil); isto é, para ilidir o resultado probatório obtido por presunção judicial não é necessário fazer prova do contrário, bastando apenas tornar duvidoso o resultado probatório obtido daquela forma.

Em segundo lugar, porque mesmo que se conceda na verificação dos requisitos para que opere a aludida presunção judicial[34], sempre ficará por demonstrar qual o prejuízo concreto causado com o atraso na apresentação (contagem de juros, contracção de novas dívidas, diminuição do activo?), o que na perspectiva que temos vindo a defender será insuficiente para o preenchimento da previsão legal interpretanda.

Assim, por tudo quanto precede, conclui-se que no caso em apreço não se preenche o fundamento de indeferimento do incidente de exoneração do passivo restante previsto na alínea d), do nº 1, do artigo 238º do CIRE.

4.2 Do eventual preenchimento do fundamento legal de indeferimento do requerimento de exoneração do passivo restante previsto na alínea e), do nº 1, do artigo 238º do CIRE.

Na decisão recorrida, como já se aludiu, referiu-se que em face da factualidade provada, “outra não pode ser a conclusão se não a de que os insolventes tinham pleno conhecimento que contraiam dívidas para as quais sabiam não ter meios de as pagar, que sabiam estar acima das suas possibilidades económicas, com prejuízo para os seus credores (circunstância que igualmente determina a integração do terceiro requisito)[35]. As partes foram advertidas da possibilidade desta factualidade ser qualificada como reveladora da causação ou do agravamento da insolvência, pelo menos com culpa grave dos insolventes.

Apreciemos.

De acordo com o disposto na alínea e), do nº 1, do artigo 238º do CIRE, o pedido de exoneração do passivo deve ser indeferido quando constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa no devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186º do mesmo diploma legal. Por outro lado, de acordo com o nº 1, do artigo 186º do CIRE, a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

No caso em apreço, a factualidade apurada é suficiente para firmar a conclusão de que os insolventes tinham pleno conhecimento que contraíam dívidas para as quais sabiam não ter meios de as pagar, que sabiam estar acima das suas possibilidades económicas. Porém, a factualidade provada não nos dá conta nem do ritmo do endividamento, nem dos momentos precisos em que foram sendo assumidas as obrigações, sendo certo que não obstante estarem em causa obrigações emergentes de garantias pessoais prestadas pelos insolventes, dada a natureza autónoma dos avales prestados, sempre era elevado o risco dos garantes poderem ser responsabilizados independentemente da responsabilização das entidades garantidas.

A apreciação conscienciosa da existência ou não de qualquer obstáculo ao deferimento do pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos recorrentes, nomeadamente o preenchimento da previsão da alínea e), do nº 1, do artigo 238º do CIRE, depende da determinação de factualidade que não foi apurada e cuja comprovação é viável não só com a colaboração dos recorrentes, mas também dos credores e ainda com a realização de diligências oficiosas por parte do tribunal. Essas diligências mais se justificam quando se apresenta um quadro com algumas incongruências e elementos suspeitos ou geradores de dúvidas fundadas sobre a lisura dos requerentes, conforme se deixou expresso na segunda parte da nota 24, quadro que poderia ter sido clarificado se o tribunal a quo tem feito uso dos seus poderes-deveres de averiguação oficiosa dos factos.

Acresce ainda que foi vertida na fundamentação de facto matéria ambígua ou que não constitui verdadeira matéria de facto. Na perspectiva deste tribunal, estão em causa respostas deficientes dadas pelo tribunal a quo e que não são passíveis de suprimento nesta instância, quer porque não se dispõe de toda a prova que pode e poderia ter sido usada pelo tribunal a quo, quer ainda porque se impõe o uso dos poderes-deveres de averiguação oficiosa dos factos, nos termos do disposto no artigo 11º do CIRE. Enquadram-se neste leque de respostas viciadas de insuficiência as que constam dos pontos 3.5, 3.11, 3.12, 3.13 e 3.14 dos fundamentos de facto, pelo que devem ser anuladas as respostas em causa.

Não tendo sido feito uso de tais poderes-deveres no momento mais azado para o efeito, mas verificando-se em segunda instância a insuficiência da base de facto para uma apreciação conscienciosa da verificação ou inverificação dos fundamentos legais de indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante deduzido pelos recorrentes, ao abrigo do disposto no artigo 712º, nº 4, do Código de Processo Civil, aplicável ao caso ex vi artigo 17º do CIRE, deve determinar-se a ampliação da matéria de facto no sentido de se apurar concretamente quais as obrigações que foram sendo assumidas pelos recorrentes e quando foram assumidas, a natureza de tais obrigações, os respectivos montantes e condições de pagamento e quais as despesas efectivamente suportadas pelos recorrentes. Para esse efeito deverão efectuar-se, sem prejuízo de outras que se venham a revelar necessárias em função da própria instrução, as seguintes diligências:

- notificação dos recorrentes para juntarem aos autos os necessários suportes documentais (das obrigações assumidas e das despesas alegadamente suportadas) e ainda para responderem às sete interrogações suscitadas na segunda parte da nota 24;

- notificação dos credores identificados no ponto 3.15 dos fundamentos de facto para juntarem aos autos os suportes documentais dos créditos de que se arrogam a titularidade sobre os insolventes;

- requisição de certidões do registo comercial referentes às sociedades (…);

- requisição de certidões das acções executivas mencionadas no ponto 3.15 dos fundamentos de facto contendo o requerimento inicial, o título exequendo e a data de citação dos executados.

Assim, pelo que precede, deve a decisão recorrida ser oficiosamente anulada por ser indispensável a ampliação da base factual nos termos e com os fins supra-expostos e com a prática dos actos instrutórios antes indicados, sem prejuízo de outros que se venham a revelar necessários, tal como devem ser anuladas as respostas vertidas nos pontos 3.5 e 3.11 a 3.14 dos fundamentos de facto, por padecerem de deficiência, matéria que deverá ser objecto de nova decisão no tribunal a quo, mantendo-se, no mais, intocada a decisão da matéria de facto, salvo na medida em que das novas respostas ou da ampliação da base factual resulte a necessidade de remover contradições e na estrita medida para o efeito (artigo 712º, parte final do nº 4, do Código de Processo Civil).

A anulação oficiosa da decisão recorrida nos termos que ficaram precedentemente expostos prejudica o conhecimento do objecto da apelação.

 5. Dispositivo

Pelo exposto, em audiência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra acordam em anular oficiosamente a decisão recorrida proferida a 20 de Janeiro de 2012, determinando-se a ampliação da matéria de facto nos termos e para os fins supra expostos e anulando-se os pontos 3.5 e 3.11 a 3.14 dos fundamentos de facto, por padecerem de deficiência, matéria que deverá ser objecto de nova decisão no tribunal a quo, mantendo-se, no mais, intocada a decisão da matéria de facto, salvo na medida em que das novas respostas ou da ampliação da base factual resulte a necessidade de remover contradições com os fundamentos subsistentes e na estrita medida para o efeito (artigo 712º, parte final do nº 4, do Código de Processo Civil), declarando-se consequentemente prejudicado o conhecimento do objecto da apelação; custas do recurso de apelação a cargo da massa insolvente (artigo 304º do CIRE), sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso.


***

Carlos Gil ( Relator )

Fonte Ramos

Carlos Querido



[1] Veja-se o artigo 238º, nº 1, alínea f), do CIRE.
[2] Nascido a 21 de Fevereiro de 2012 (folhas 152 e 153 destes autos).
[3] No artigo 9º do requerimento inicial os ora recorrentes alegaram: “Como consequência directa de tais atrasos, viram os requerentes, ser instaurado contra a sociedade (…), S.A., um pedido de insolvência, ao qual foi atribuído o nº 1869/09.9TBMGR e que correu os seus termos legais pelo 1º Juízo do Tribunal Judicial da Marinha Grande, (cfr. Doc. nº 2 que ora se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).” No entanto, no final do requerimento inicial, refere-se a junção de dez documentos, sendo o documento nº 2 uma certidão de nascimento.
[4] Mas foi declarada a insolvência da sociedade?
[5] Reproduz-se a formulação conclusiva e genérica usada pelo tribunal a quo com correcção de um erro de concordância e alteração da posição de um pronome reflexo.
[6] Ter-se-á querido dizer avales.
[7] Não se vê como é que o aval, enquanto garantia própria dos títulos cambiários, possa ser prestado em contratos de mútuo. Isso só será viável se aquando da outorga dos mútuos foram emitidos títulos de crédito avalizados.
[8] No entanto, a folhas 55 destes autos está junto um recibo de vencimento do requerente onde, além do recebimento do vencimento no montante de € 500,00, se dá conta do recebimento de subsídio de alimentação no montante de € 134,64. Do mesmo recibo resulta que esse vencimento é pago pelo exercício de funções de gerência.
[9] Não se mostra junto aos autos qualquer recibo de vencimento da recorrente. Refira-se que o contrato de trabalho foi celebrado no mês anterior à apresentação à insolvência.
[10] Esta formulação do tribunal a quo é claramente errada, pois, desta forma, em rigor, fica-se sem saber quais são efectivamente as despesas mensais correntes dos requerentes. A declaração é um mero meio de prova e distingue-se do enunciado probatório a cuja prova se destina. Se acaso o tribunal tem dúvidas quanto à veracidade de uma declaração oferecida para prova de um certo facto, deve diligenciar pelo oferecimento e produção das provas necessárias para o efeito, fazendo uso não só dos poderes conferidos pelo artigo 11º do CIRE (abreviatura doravante usada para nos referirmos ao Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), mas também dos que vêm previstos, em geral, no artigo 265º, nº 3, do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável, ex vi artigo 17º do CIRE.
[11] Esta formulação usada pelo tribunal a quo é passível da mesma crítica que consta da nota 9, sendo além disso claramente conclusiva.
[12] Esta formulação usada pelo tribunal a quo é passível da mesma crítica que consta da nota 9.
[13] Em atenção ao princípio da auto-suficiência dos actos processuais, reproduziram-se as menções fácticas constantes do documento a que se aludia neste ponto da matéria de facto.
[14] Esta formulação usada pelo tribunal a quo no segmento final deste ponto da matéria de facto é passível da mesma crítica que consta da nota 9, além de revelar uma pouco criteriosa apreciação da prova, pois desconsidera, sem justificar, o valor patrimonial atribuído ao imóvel em 2009, no montante de € 51.862,11 (veja-se folhas 77 destes autos). Além do mais, mal se compreende que uma moradia adquirida no final do ano de 2000, pelo preço de € 74.000,00, a fazer fé nas declarações dos recorrentes (veja-se folhas 37 destes autos), possa actualmente ter um valor de € 1.500,00. Ainda que essa moradia tivesse sido destruída num incêndio ou num terramoto, apelando às regras da experiência comum, crê-se que o simples solo sobre o qual se achava implantada teria um valor necessariamente superior a € 1.500,00.
[15] Estranha-se a instauração de uma acção executiva sob forma ordinária em 2010 pois desde a reforma operada pelo decreto-lei nº 38/2003, de 08 de Março, passou a haver uma única forma de acção executiva: a forma comum (artigo 465º do Código de Processo Civil).
[16] Reitera-se a estranheza manifestada na nota que antecede.
[17] Reitera-se a estranheza manifestada na penúltima nota.
[18] Reitera-se a estranheza manifestada na antepenúltima nota.
[19] Pode suscitar-se a dúvida sobre a aplicação deste normativo em sede de exoneração do passivo restante face à previsão expressa da sua aplicabilidade aos incidentes de qualificação de insolvência. Cremos porém que esta previsão se justificou em virtude do incidente de qualificação da insolvência ser processado por apenso (artigos 188º, nº 7 e 132º, ambos do CIRE), ao invés do que sucede com a exoneração do passivo restante que apenas para efeitos tributários é qualificado como incidente (artigo 303º do CIRE), sendo configurado como uma especialidade da insolvência das pessoas singulares (veja-se a denominação do Título XII do CIRE), processando-se nos próprios autos de insolvência. Daí que, salvo melhor opinião, seja desprovido de base de apoio um argumento a contrario sensu extraído da aludida previsão legal e no sentido de que na exoneração do passivo restante não é aplicável essa norma.
[20] Assinale-se a manifesta impropriedade legislativa na qualificação dos fundamentos de indeferimento do requerimento para exoneração do passivo restante como constituindo um indeferimento liminar pois que, como expressamente resulta do disposto no nº 2, do artigo 238º do CIRE, o despacho de indeferimento apenas é proferido após a audição dos credores e do administrador da insolvência, na assembleia de credores para apreciação do relatório. Não se trata por isso de um indeferimento liminar.
[21] Na nossa perspectiva, a qualidade de sócio ou gerente de uma sociedade comercial não confere à pessoa singular em causa a qualidade de titular de empresa que se integre na esfera jurídica dessa sociedade. Em nosso entender, para a determinação de tal titularidade, o que releva é que a própria pessoa singular seja titular de uma empresa. A razão de ser do dever de apresentação de pessoa singular apenas nos casos de titularidade de empresa prende-se com as presumíveis consequências económicas mais gravosas da não apresentação à insolvência nesses casos (neste sentido veja-se, A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito, Coimbra Editora 2009, Catarina Serra, páginas 341 a 343). Por isso, discordamos da interpretação seguida no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30 de Abril de 2009, proferido no processo nº 2598/08.6TBGMR-G.G1, acessível no site do ITIJ.

[22] Sobre o alcance do conceito normativo de direito de propriedade, do ponto de vista constitucional, veja-se, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora 2010, 2ª edição, Jorge Miranda e Rui Medeiros, páginas 1247 e 1248, anotação VIII e página 1261, anotação XXI.
[23] Como esclarecem Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 2008, página 784, terceiro parágrafo, as alíneas b) a g), do nº 1, do artigo 238º do CIRE definem, pela negativa, requisitos de cuja verificação depende a exoneração. Importa não olvidar que por força do disposto no artigo 11º do CIRE as regras gerais de distribuição do ónus de alegação e prova dos factos são atenuadas por força da intervenção oficiosa do tribunal.
[24] Neste sentido veja-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 23 de Outubro de 2008, acessível no site do ITIJ, processo 0835723.
[25] Esse cuidado deveria incidir também sobre a parca e conclusiva factualidade articulada pelos requerentes da insolvência, convidando-se os requerentes da insolvência a explicitar em que condições e por que preço adquiriram as quotas da sociedade (…)Lda., a concretizar por que razão a sociedade (…), SA complementava a actividade da sociedade (…), Lda., em que condições e por que preço adquiriram as acções da sociedade (…), SA, quais as razões concretas por que a aquisição desta última sociedade veio prejudicar gravemente o bom funcionamento da sociedade (…), Lda. e em que se traduziu concretamente a crise profunda no sector. Além disso, a necessária diligência crítica sobre toda a prova produzida deveria ter suscitado algumas interrogações ao tribunal a quo, nomeadamente: 1ª por que razão vivem os insolventes em casa sita em São Martinho do Porto, alegadamente arrendada por seiscentos euros (não se dando ao cuidado de juntar um só recibo de renda), em local geograficamente mais distante do local de trabalho de ambos, já que o do requerente se situa na Marinha Grande (folhas 55) e o da requerente na Figueira da Foz (folhas 56 a 61); 3ª como se deslocam os requerentes para os seus locais de trabalho, já que não relacionam qualquer veículo automóvel; 3ª por que razão o requerente omite a sua qualidade de sócio e gerente da sociedade (…)Lda., a fazer fé no que consta de folhas 80 destes autos; 4ª por que razão a requerente omite a sua qualidade de sócia e gerente da sociedade (…) Lda., a fazer fé no que consta de folhas 81 destes autos; 5ª por que razão as sociedades (…) Lda. têm o mesmo domicílio fiscal (folhas 84 e 88), aludindo-se relativamente a esta última sociedade a mudança frequente de morada e à pendência de execuções fiscais (veja-se folhas 88); 6ª por que razão aludem os requerentes da insolvência à existência de um crédito contraído para aquisição de habitação quando da fotocópia da descrição da Conservatória do Registo Predial relativa ao único imóvel de que os requerentes se afirmam donos consta a inscrição da aquisição do direito de propriedade desse imóvel a 10 de Outubro de 2000 e apenas está inscrita uma hipoteca a favor do Barclays Bank, PLC, a 09 de Junho de 2006; 7ª por que razão os requerentes não relacionam quaisquer bens móveis, nomeadamente mobiliário e electrodomésticos.
[26] A cópia não certificada da descrição do imóvel de que os insolventes se afirmam donos e respectivas inscrições emitida pela Conservatória do Registo Predial da Marinha Grande e junta de folhas 71 a 75 permite-nos concluir que a quantia exequenda na acção executiva instaurada pela (…), Lda. sob o nº 1096/10.2TBMGR, no 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca da Marinha Grande, é no montante de € 1.302,68, enquanto a quantia exequenda na acção executiva instaurada pelo (…)SA, no 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca da Marinha Grande, sob o nº 955/10.7TBMGR, é de € 431.278,65. No que respeita uma inscrição de penhora realizada a 27 de Janeiro de 2011, pelo montante de € 373.966,84, existem divergências quer no nº do processo (inscreveu-se que respeita ao processo nº 956/10.7TBMGR, quando nos autos se alegou a pendência da acção executiva nº 956/10.5TBMGR), quer no juízo em que essa acção executiva terá sido instaurada (inscreveu-se que a acção executiva pende no 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca da Marinha Grande, tendo-se alegado nos autos que a acção executiva nº 956/10.5TBMGR pendia no 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca da Marinha Grande) que nos impedem de ter a certeza que se trata da mesma acção executiva identificada pelos requerentes da insolvência
[27] Os recorrentes referem nas conclusões do recurso que apenas em 01 de Março de 2011 (conclusão 12ª), data do encerramento da sociedade “(…)”, deixaram de ter qualquer perspectiva séria da melhoria da sua situação económica, inferindo-se desta alegação que se achavam então já em situação de insolvência. Porém, como já se referiu, trata-se de matéria que não foi alegada no requerimento inicial e que, compreensivelmente, não foi objecto de diligências de prova.
[28] Na decisão sob censura afirma-se que os requerentes adquirem uma sociedade em 2009 que no mesmo ano apresentam à insolvência, inferindo esta factualidade da numeração do processo. Sucede que a factualidade dada como provada não sustenta esta afirmação (vejam-se os pontos 3.4 e 3.5 dos fundamentos de facto), sendo certo que a insolvência pode resultar de apresentação do próprio insolvente ou ser requerida por um credor do insolvente. Por outro lado, não se mostra junto a estes autos qualquer documento que permita determinar em que data foi decretada a insolvência desta sociedade, se é que foi decretada, pois apenas se deu como provado o encerramento da sociedade, sem se indicar a causa de tal encerramento...
[29] Neste sentido, cingindo-nos às decisões mais recentes, por ordem cronológica, vejam-se os seguintes acórdãos, todos acessíveis no site do ITIJ:
                - acórdão da Relação de Guimarães, de 30 de Abril de 2009, proferido no processo nº 2598/08.6TBGMR-G.G1 [5];
                - acórdão da Relação do Porto, de 15 de Julho de 2009, proferido no processo nº 6848/08.0TBMTS.P1;
                - acórdão da Relação de Lisboa, de 28 de Janeiro de 2010, proferido no processo nº 1013/08.0TJLSB-D.L1-8;
- acórdão da Relação do Porto, de 20 de Abril de 2010, proferido no processo nº 1617/09.3TBVZ-C.P1;
- acórdão da Relação de Coimbra, de 14 de Dezembro de 2010, proferido no processo nº 326/10.5T2AVR-B.C1.
[30] Neste sentido, além do já citado acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14 de Dezembro de 2010, o acórdão do mesmo tribunal de 07 de Setembro de 2010, proferido no processo nº 72/10.0TBSEI-D.C1.
[31] Neste sentido, cingindo-nos também às decisões mais recentes, por ordem cronológica, vejam-se os seguintes acórdãos, todos acessíveis no site do ITIJ:
                - acórdão da Relação de Lisboa de 14 de Maio de 2009, proferido no processo nº 2538/07.OTBBRR.L1-2;
                - acórdão da Relação de Lisboa, de 24 de Novembro de 2009, proferido no processo nº 44/09.7TBPNI-C.L1-1
                - acórdão da Relação do Porto, de 11 de Janeiro de 2010, proferido no processo nº 347/08.8TBVCD-D.P1;
                - acórdão da Relação de Coimbra, de 23 de Fevereiro de 2010, proferido no processo nº 1793/09.5TBFIG-E.C1;
                - acórdão da Relação do Porto, de 19 de Maio de 2010, proferido no processo nº 1634/09.3TBGDM-B.P1;
                - acórdão da Relação do Porto, de 30 de Setembro de 2010, proferido no processo nº 430/09.2TJPRT.P1 [2];
                - acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21 de Outubro de 2010, proferido no processo nº 3850/09.9TBVLG-D.P1.S1;
                - acórdão da Relação do Porto de 18 de Novembro de 2010, proferido no processo nº 1826/09.5TJPRT-E.P1;
- acórdão da Relação de Lisboa, de 14 de Dezembro de 2010, proferido no processo nº 2575/09.0TBALM.L1-1;
                - acórdão da Relação do Porto, de 10 de Fevereiro de 2011, proferido no processo nº 1241/10.8TBOAZ-B.P1;
                - acórdão da Relação de Lisboa, de 24 de Março de 2011, proferido no processo nº 444/10.0TBPNI-D.L1-6;
                - acórdão da Relação de Coimbra, de 07 de Junho de 2011, proferido no processo nº 460/10.1TBESP.C1;
                - acórdão da Relação de Lisboa, de 16 de Junho de 2011, proferido no processo nº 1189/10.6TYLSB-B.L1-8;
                - acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Abril de 2012, proferido no processo nº 434/11.5TJCBR-D.C1.S1.
[32] Afastamo-nos da posição daqueles que entendem que os juros de mora não constituem um prejuízo quer na modalidade de dano emergente, quer na modalidade de lucro cessante (assim veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14 de Maio de 2009, proferido no processo nº 2538/07.OTBBRR.L1-2), pois na nossa perspectiva constituem um lucro cessante, correspondendo à remuneração que o titular do capital auferiria se aplicasse o capital que ainda não lhe foi pago. É a natureza frutífera do capital que subjaz à solução legal de dispensar o credor de provar o dano sofrido com o atraso no cumprimento da obrigação pecuniária.
[33] Desenha-se uma orientação jurisprudencial menos exigente quanto à natureza dos prejuízos causados, sustentando-se que bastará para tanto que se verifique uma qualquer hipótese de redução da possibilidade de pagamento dos créditos, desde que causalmente decorrente do atraso na apresentação à insolvência. Neste sentido vejam-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 03 de Novembro de 2011, proferido no processo nº 85/10.1TBVCD-F.P1.C1 e o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 09 de Janeiro de 2012, proferido no processo nº 434/11.5TJCBR-D.C1 e revogado pelo já citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferida a 19 de Abril de 2012.
[34] Critica o uso de presunções judiciais fundadas somente no que é verosímil ou no normal acontecer Michelle Taruffo in Simplesmente la Verdad, El Juez y la Construcción de los Hechos, Marcial Pons 2010, páginas 105 e 106 e 238, c).
[35] O terceiro requisito a que a decisão se refere é o do conhecimento ou ignorância indesculpável da inexistência de qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.