Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
171/14.9PFCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO CHAVES
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
IN DUBIO PRO REO
Data do Acordão: 05/27/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 412.º DO CPP
Sumário: I - Se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objectivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção – obtida com o benefício da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.

II - A crítica à convicção do tribunal a quo sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência não pode ter sucesso se se alicerçar apenas na diferente convicção do recorrente sobre a prova produzida.

III - O princípio in dubio pro reo encerra uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa, pelo que a sua violação exige que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

1. No âmbito do processo sumário n.º 171/14.9PFCBR.C1, a correr termos na Instância Local de Coimbra, Secção Criminal, Juiz 1, da Comarca de Coimbra, foi proferida sentença que condenou o arguido A..., com os sinais dos autos, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de 5 (cinco) euros, num total de 450 (quatrocentos e cinquenta) euros, com 60 (sessenta) dias de prisão subsidiária, bem como na pena acessória de proibição de condução de veículos com motor, prevista e punida pelo artigo 69.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, pelo período de 5 (cinco) meses.

2. Inconformado com a decisão dela interpôs recurso o arguido, retirando da sua motivação as seguintes conclusões (transcrição):

«1. O ora Recorrente, não praticou os factos que lhe foram imputados em sede de acusação e sobre os quais a douta sentença ora posta em crise tem por provados, porquanto:

2. O Arguido não conduziu o veículo descrito em sede de acusação, nos dias e hora aí também descritos;

3. Outrossim, fora o dito veículo, no visado dia e hora conduzido pelo Sr. B...;

4. O qual, uma vez inquirido em sede de audiência de discussão e julgamento, assumira ter sido o próprio a conduzir o dito veiculo e não o ora recorrente.

5. Assim, a douta sentença encerra grave erro de julgamento, porquanto:

6. Imputa ao Recorrente a prática de factos que o mesmo não praticou, não obstante:

7. Em sede de audiência de discussão e julgamento haver sido produzida prova suficiente e bastante de modo a considerar provado que o Recorrente não conduziu qualquer veiculo no dia e hora constantes da acusação, e bem assim:

8. O Recorrente não conduziu qualquer veículo sob o estado de embriaguez.

9. Acresce que, caso não fosse de considerar provado que o ora recorrente não conduziu qualquer veículo no dito dia e hora, sempre se deveria considerar suficientemente forte a dúvida sobrevinda em sede de audiência de discussão e julgamento;

10. Duvida que emerge do simples facto de, o agente da PSP que abordara o Recorrente e o conduzira à realização de teste de alcoolemia, ser peremptório em afirmar que fora a testemunha B... quem conduzira o veículo;

11. Pelo que se impunha, in minime, fazer uso do princípio in dubio pro reo.

12. A sentença ora posta em crise faz errada interpretação das normas constantes dos artigos 292º/1 e 69º/1 alínea a), ambos do Código Penal.

                                                      Nestes termos e nos mais de

                                                      Direito, deve o presente

                                                      Recurso ser julgado

                                                      procedente, por provado, assim

                                                      se fazendo:

                                                      Justiça!!!»

3. O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção do julgado.

4. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 417.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, acompanhando a resposta à motivação de recurso apresentada pelo Ministério Público na 1ª instância, emitiu parecer no sentido de que o recurso deve improceder, mantendo-se a sentença recorrida.

5. Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP, o arguido nada disse.

6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.

                                          *

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. A sentença recorrida.

1.1. Na sentença proferida na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos (tal como se ouvem no registo da audiência de julgamento com numeração por nós aditada):

“(…).

1. No dia 21/11/14, pelas 05:11 horas, conduzia o arguido o veículo ligeiro de passageiros de matrícula NU..., na Rua S. Pedro, da União de Freguesias da Sé Nova, Santa Cruz, Almedina e S. Bartolomeu, em Coimbra;

2. Na sequência da qual condução foi interceptado por agentes da PSP e submetido ao teste de pesquisa de álcool no sangue foi apurado uma TAS de 1,84 g/l registada, correspondente a uma TAS de 1,75 g/l apurada;

3. Agiu livre, voluntaria e conscientemente;

4. Sabia a sua conduta proibida e criminalmente punível;

5. Vive com os pais que o sustentam;

6. Frequenta o 4º e 5º ano de Engenharia Electrotécnica e Automação e Robótica;

7. Foi condenado em 7/7/2014 pela prática, em 5/7/2014, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez em 50 dias de multa e 4 meses de proibição de conduzir.

(…)”.

*

1.2. Quanto a factos não provados consta da sentença recorrida:

“(...).

[Não se provou] que o arguido circulava na Rua Dr. Ernesto Sena de Oliveira, em Coimbra.

(…)”.

                                          *

1.3. O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (com as adaptações exigidas pela circunstância de a decisão ter sido proferida oralmente):

“ (…).

Relativamente aos factos provados objectivos foram determinantes para fundamentar a convicção as declarações do arguido na parte em que referiu que seguia na viatura nesse dia e nessa rua dada por assente e a abordagem efectuada por agentes de autoridade, assim como a sujeição ao exame qualitativo e posteriormente quantitativo de que resultou a taxa dada por assente, as quais foram complementadas pelos depoimentos da testemunha C... , agente da PSP interveniente e autuante, que confirmou a condução da referida viatura por parte do arguido nesse dia e hora, assim como o exame que lhe foi efectuado e resultado respectivo, do agente interveniente D... que confirmou também essa condução da viatura por parte do arguido, o exame e resultado respectivo, da testemunha B... na parte em que confirmou seguir também na viatura, seguindo a mesma nessa rua em que foram interceptados e ainda pelo teor do documento de fls. 6 que é o talão de resultado de pesquisa de álcool no ar expirado que confirma o valor registado dado por assente, tudo em detrimento das declarações do arguido na parte em que referiu que não era ele o condutor da viatura, cuja condução atribuiu à testemunha B... que, segundo o arguido, conduzia a viatura, seguindo o arguido como co-piloto, não obstante ser o titular da mesma, e precisando que já se encontravam fora do veículo, a afastarem-se do mesmo, quando foram chamados pelos agentes da autoridade que lhes perguntaram quem era o proprietário, que depois do próprio se identificar, dizendo que não tinha sido o condutor, ignoraram essa informação e o sujeitaram ao teste de pesquisa de álcool no sangue.

Declarações estas que não tiveram suporte probatório bastante, não obstante a confirmação por parte da testemunha B... na parte em que referiu que era ele que conduzia a viatura e que se encontrava ao lado do arguido quando foram ambos abordados pelos agentes e sujeito o arguido ao teste de pesquisa de álcool no sangue porquanto estas declarações foram contraditadas pelos depoimentos dos referidos agentes que precisaram, nesta parte, que nenhum dos dois, aquando da abordagem, levantou a questão de não ser o arguido a pessoa que conduzia a viatura e que não têm dúvidas de que a pessoa que conduzia a viatura foi a pessoa que foi fiscalizada, precisando ambos que, contrariamente ao que diz o arguido e a testemunha B... , o veículo em que se faziam transportar não se encontrava estacionado à frente da Faculdade das Químicas mas vinha da rua que passa à frente do Machado de Castro e sobe para o que eles chamam a lomba, que se situa ao nível das faculdades, para depois descer para a rua onde o veículo acabou por estacionar quando o arguido e a testemunha B... referem que o veículo estava estacionado à frente das Químicas e apenas contornou a esquina para descer a rua onde acabaram por estacionar pouco depois.

Acresce a isto a circunstância de a testemunha B... ter referido que os agentes, quando os abordaram, perguntaram pelo condutor, tendo respondido ao chamamento o arguido A... , o que, só por si, é indício de que, de facto, quem conduzia o veículo era o arguido A... e não a testemunha B... .

Para além disso, também se nos afigura estranho que, como dizem os agentes de autoridade, essa questão não tenha sido colocada, a questão de ser outra pessoa a conduzir a viatura, para além da pessoa que fez o teste, não ter sido colocada no local, e até que a testemunha B... , quando viu o amigo, arguido, a ser sujeito ao exame qualitativo, não se tenha oferecido para fazer o exame pois que, na sua versão e do arguido, era essa testemunha que tinha conduzido o veículo e que teria obviamente a obrigação de fazer o teste, como o próprio também referiu não se prestou a esse facto.

Donde se conclui, para nós, sem margem para dúvidas, que o arguido conduzia, de facto, a viatura e não a testemunha B... .

Relativamente aos elementos pessoais do arguido o tribunal funda a convicção nas declarações do arguido, informando o tribunal sobre os seus elementos pessoais que, na ausência de outros elementos mais consistentes, se consideraram atendíveis.

Quanto ao passado criminal do arguido, o mesmo resulta do teor do documento de fls. 13 e 14 que é o CRC do arguido, donde resultam os elementos especificados.

Quanto aos factos não provados foi feita prova em contrário por todas as pessoas ouvidas porquanto todas confirmaram que a ocorrência se verificou na Rua S. Pedro, conforme resulta dos factos dados como provados.

 (…)”.

                                          *

2. Apreciando

Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal([1]) que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso([2]), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso([3]).

Assim, atenta a conformação das conclusões formuladas, importa conhecer das seguintes questões, organizadas pela ordem lógica das consequências da sua eventual procedência:

– impugnação da matéria de facto;

- violação do princípio in dubio pro reo.

2.1. Da impugnação da matéria de facto

Nos termos do disposto no artigo 428.º os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito.

Uma vez que no caso em apreço houve documentação da prova produzida em audiência, com a respectiva gravação, pode este tribunal reapreciar em termos amplos a prova, nos termos dos artigos 412.º, n.º 3 e 431.º, b), ficando, todavia, o seu poder de cognição delimitado pelas conclusões da motivação do recorrente.

É sabido que a matéria de facto pode ser sindicada no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, no que se convencionou chamar de “revista alargada”, ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, nºs 3, 4 e 6.

No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos estranhos àquela para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento([4]).

No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412.º.

Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.

O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados.

Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa([5]).

Justamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deve expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º 3, o seguinte:

«Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.»

A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.

A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.

A especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º).

Estabelece ainda o n.º 4 do artigo 412.º que, havendo gravação das provas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 6 do artigo 412.º)([6]).

Ao apreciar-se o processo de formação da convicção do julgador não pode ignorar-se que a apreciação da prova obedece ao disposto no artigo 127.º, ou seja, fora as excepções relativas a prova legal, assenta na livre convicção do julgador e nas regras da experiência, não podendo também esquecer-se o que a imediação em 1.ª instância dá e o julgamento da Relação não permite.

Como se tem entendido, a reapreciação, com base em meios de prova com força probatória não vinculativa, da decisão da 1ª instância quanto à matéria de facto deverá ser feita com o cuidado e ponderação necessárias, face aos princípios da oralidade, imediação e livre apreciação da prova.

São inúmeros os factores relevantes na apreciação da credibilidade do teor de um depoimento que só são apreensíveis pelo julgador mediante o contacto directo com os depoentes na audiência.

Embora a reapreciação da matéria de facto, no que ao Tribunal da Relação se refere, esteja igualmente subordinada ao princípio da livre apreciação da prova e sem limitação (à excepção da prova vinculada) no processo de formação da sua convicção, deverá ela ter em conta que dos referidos princípios decorrem aspectos de relevância indiscutível (reacções do próprio depoente ou de outros, hesitações, pausas, gestos, expressões) na valoração dos depoimentos pessoais que melhor são perceptíveis pela 1ª instância.

À Relação caberá, sem esquecer tais limitações, analisar o processo de formação da convicção do julgador, apreciando, com base na prova gravada e demais elementos de prova constantes dos autos, se as respostas dadas apresentam erro evidenciável e/ou se têm suporte razoável nas provas e nas regras da lógica, experiência e conhecimento comuns, não bastando, para eventual alteração, diferente convicção ou avaliação do recorrente quanto à prova testemunhal produzida.

Assim, se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objectivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção – obtida com o benefício da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.

Não basta, pois, que o recorrente pretenda fazer uma “revisão” da convicção obtida pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção “era possível”, sendo imperiosa a demonstração de que as provas indicadas impõe uma outra convicção.

Torna-se necessário que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais, ou seja, que demonstre não só a possível incorrecção decisória mas o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção.

Tudo isto vem para se dizer que o trabalho que cabe à Relação fazer, na sindicância do apuramento dos factos realizado em 1.ª instância, se traduz fundamentalmente em analisar o processo de formação da convicção do julgador, e concluir, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado por provado o que se deu por provado([7]).

O Tribunal da Relação só pode/deve determinar uma alteração da matéria de facto assente quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão([8]).

Expostas estas breves considerações sobre o sentido e alcance da impugnação ampla da matéria de facto, assim como sobre os ónus impostos ao recorrente, passemos à análise do caso concreto.

No caso em apreço, o recorrente impugna os pontos 1, 2 (1ª parte), 3 e 4 da matéria de facto provada que dizem respeito a factos que consubstanciam a prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, a), ambos do Código Penal, pelo qual foi condenado.

Para tanto, alega que não conduziu o veículo descrito em sede de acusação, nos dias e hora aí também descritos, antes foi o dito veículo, no visado dia e hora, conduzido pela testemunha B... , a qual, em sede de audiência de julgamento, assumiu ter sido ela a conduzir o dito veiculo e não o ora recorrente.

As razões da discordância do recorrente relativamente à forma como o tribunal a quo decidiu estes pontos da matéria de facto provada prendem-se exclusivamente com o facto de a convicção assentar em elementos probatórios que, no seu entender, não permitiam concluir pela autoria dos factos e não em qualquer discrepância entre o que foi dito e o que foi considerado provado.

Analisando a motivação e as conclusões constata-se que o recorrente não alega que a descrição que a sentença recorrida faz do conteúdo das declarações do arguido e dos depoimentos das testemunhas não corresponde ao que, na realidade, disseram o arguido ou as testemunhas.

Na verdade, nenhuma discrepância desta natureza existe posto que, através da audição do registo da prova oral produzida, facilmente se constata que nenhuma das pessoas ouvidas prestou declarações contrárias à forma como o tribunal a quo demonstrou tê-las percebido e que os meios de prova indicados na motivação como sustentáculo da decisão de facto conferem plausibilidade à forma como foi formada a convicção alcançada.

O que o recorrente faz é coisa totalmente diferente.

O recorrente faz a leitura de partes seleccionadas das suas declarações e dos depoimentos das testemunhas para, a partir de tais excertos, conferir à prova produzida uma outra leitura, sem apontar em concreto um erro de julgamento, fazendo o ataque à decisão da matéria de facto pela via da credibilidade que o tribunal deu a determinados meios de prova.

Sendo certo que o tribunal recorrido alcançou a sua convicção ponderando de forma conjugada e crítica o conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, ou seja, as declarações prestadas pelo arguido e os depoimentos prestados pelas testemunhas, debalde se encontra no recurso em causa alegação que infirme a formação de tal convicção, sendo que uma coisa é não agradar ao recorrente o resultado da avaliação que se fez da prova e outra é detectar-se no processo de formação da convicção do julgador erros claros de julgamento, posto que o recurso da matéria de facto deve incidir sobre provas que imponham decisão diversa e não simplesmente sobre provas que permitam decisão diferente.

No caso em apreço, conforme resulta da decisão sobre a matéria de facto, a prova pessoal produzida, como sucede frequentemente, apontou em dois sentidos ou direcções completamente distintas.

Por um lado, o depoimento prestado pela testemunha C..., agente da PSP, a qual referiu a condução da viatura por parte do arguido nas descritas circunstâncias de tempo, modo e lugar, assim como o depoimento prestado pela testemunha D..., agente da PSP, a qual, apesar das dificuldades em identificar o arguido em sede de audiência de julgamento, não teve dúvidas em afirmar que «a pessoa que fez o teste foi a pessoa que viram a conduzir a viatura» (tempo de gravação: 09.12 a 09:20).

Por outro lado, o arguido negou ser o condutor da viatura nas circunstâncias de tempo, modo e lugar descritas na acusação, cuja condução atribuiu ao seu amigo e testemunha B... , a qual assumiu ser ela a pessoa que conduzia a viatura.

No corpo da motivação de recurso, o recorrente transcreve parte das suas declarações e dos depoimentos prestados pelas testemunhas B... e D..., expondo a sua versão dos factos e contrapondo a sua ponderação da prova produzida à ponderação tomada na matéria pelo tribunal recorrido, o que se configura irrelevante em termos de impugnação da matéria de facto em sede de recurso.

Na verdade, “a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção.

Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão”([9]).

No mesmo sentido se pronuncia a jurisprudência dos tribunais superiores: “Quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear numa opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”([10]).

Consequentemente, a crítica à convicção do tribunal a quo sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência não pode ter sucesso se se alicerçar apenas na diferente convicção do recorrente sobre a prova produzida.

Na verdade, o julgador é livre, ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja “vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório”([11]).

Conforme resulta da análise da motivação de facto acima transcrita, o tribunal a quo recorreu às regras de experiência e apreciou a prova de forma objectiva e motivada, expondo de forma clara e segura as razões que fundamentam a sua opção, justificando os motivos que levaram a dar credibilidade à versão dos factos constante da acusação e a não dar credibilidade à versão dos factos apresentada pelo arguido, permitindo aos sujeitos processuais e a este tribunal de recurso proceder ao exame do processo lógico ou racional que subjaz à convicção do julgador.

Esse processo lógico ou racional baseia-se no relato efectuado pelos agentes de autoridade C... e D..., em detrimento das declarações prestadas pelo arguido e do depoimento prestado pela testemunha B... , amigo do arguido, apreciadas à luz das regras da experiência comum.

Aliás, diga-se que as declarações prestadas pelo arguido, corroboradas pelo depoimento prestado pela testemunha B... , revelaram-se totalmente interessadas e inverosímeis, sendo manifesto que o arguido apenas prestou tais declarações porque sabia que lhe seriam favoráveis e como tal lhe poderiam aproveitar, contrapondo, desse modo, uma versão dos factos oposta à da acusação, não logrando convencer acerca da sua veracidade.

Saliente-se que o arguido começou a sua narrativa, sem que nada lhe fosse perguntado que o levasse a tal, dizendo «posso contar a minha história?», para acrescentar que «já tinha antecedente com o álcool e sei perfeitamente que não posso conduzir com o álcool, ainda para mais já tendo antecedentes e já tendo passado por isto» (tempo de gravação: 03:27 a 03:28 e 04:00 a 04:41).

Sendo assim, como é, pois, o arguido já foi condenado em 7/7/2014 pela prática, em 5/7/2014, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, não faz qualquer sentido, como sublinha a decisão recorrida, que a questão de ser outra pessoa a conduzir a viatura, para além da pessoa que fez o teste, não tenha sido colocada no local e bem assim que a testemunha B... , quando viu o amigo, arguido, a ser sujeito ao exame qualitativo, não se tenha prontificado a realizar o exame posto que, na sua versão e do arguido, era a ela que cabia realizar o teste por ser a condutora da viatura.

Aliás, a própria testemunha B... acabou por referir que os agentes de autoridade, quando os abordaram, perguntaram pelo condutor da viatura, tendo sido o arguido A... quem respondeu ao chamamento (tempo de gravação: 13:02 a 13:09), o que significa que, de facto, era ele quem conduzia a viatura.

Através da motivação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida fica-se ciente do percurso efectuado pelo tribunal a quo onde seguramente a racionalidade se impõe mas onde a livre convicção se afirma com apelo ao que a imediação e a oralidade, e só elas, conseguem conceber, espelhando aquela decisão o confronto crítico das versões dos factos, explicitando o resultado desse confronto e justificando a convicção formada quanto à matéria em causa de forma lógica e de acordo com as regras da experiência comum que indica e não são questionadas.

Assim, não se evidenciando qualquer afrontamento às regras da experiência comum, ou qualquer apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, fundada em juízos ilógicos ou arbitrários, de todo insustentáveis, nenhuma censura pode merecer o juízo valorativo acolhido em 1ª instância.

Improcede, portanto, a impugnação da matéria de facto.

2.2. Da violação do princípio in dubio pro reo

O nosso regime jurídico processual-penal consagra no artigo 127.º o princípio da livre apreciação da prova.

A livre apreciação da prova pressupõe que esta seja considerada segundo critérios objectivos que permitam estabelecer o substrato racional da fundamentação da convicção.

O princípio in dubio pro reo constitui um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova na medida em que impõe orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre os factos: em tal situação, impõe-se que o Tribunal decida pro reo, a favor do arguido, pois.

Como acentua Jescheck “serve para resolver dúvidas a respeito da aplicação do direito que surjam numa situação probatória incerta”([12]) ou, dito de outro modo, significa que a persistência de dúvida razoável, após a produção de prova, tem de actuar em sentido favorável ao arguido([13]).

A dúvida que há-de levar o tribunal a decidir «pro reo», tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária. Por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal([14]) ([15]).

Não é assim toda a dúvida que justifica a absolvição com base neste princípio. Mas apenas aquela em que for inultrapassável, séria e razoável a reserva intelectual à afirmação de um facto que constitui elemento de um tipo de crime ou com ele relacionado, deduzido da prova globalmente considerada (…) A própria dúvida está sujeita a controlo, devendo revelar-se conforme à razão ou racionalmente sindicável, pelo que, não se mostrando racional, tal dúvida não legitima a aplicação do citado princípio([16]).

A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida ligeira, meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, argumentada, coerente, razoável([17]).

Daí que o tribunal de recurso só poderá censurar o uso feito desse princípio (in dubio) se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele, escolheu a tese desfavorável ao arguido([18]).

O princípio in dubio pro reo encerra, portanto, uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa, pelo que a sua violação exige que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.

Em sede de recurso a violação do princípio in dubio pro reo apenas ocorre quando tal vício resulte da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, pois o recurso não constitui um novo julgamento, antes sendo um remédio jurídico.

No caso em apreço o recorrente alega a violação do princípio in dubio pro reo essencialmente como corolário do erro de julgamento que invoca, o qual já foi objecto de apreciação, sendo que, em momento algum, resulta da sentença recorrida que relativamente aos factos provados e objecto dos autos, o tribunal se defrontou com dúvidas que resolveu contra o recorrente ou demonstrou qualquer dúvida na formação da convicção e, ademais, se impunha que a devesse ter tido.

Ao contrário, o que sobressai da motivação da decisão da matéria de facto é uma descrição das declarações e dos depoimentos que foram acolhidos, bem como da prova documental produzida, perfeitamente convergente, atenta a credibilidade que lhes foi atribuída, assim como a desconsideração feita relativamente às declarações do recorrente com destrinça subsequente na matéria de facto provada e naquela outra não provada.

Tudo a permitir concluir pela inexistência de qualquer violação ao invocado princípio in dubio pro reo.

Improcede, portanto, também esta questão.

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III – DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.

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Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC.

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(O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do CPP)

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Coimbra, 27 de Maio de 2015

(Fernando Chaves - relator)

(Orlando Gonçalves - adjunto)


[1] - Diploma a que se referem os demais preceitos legais citados sem menção de origem.
[2]  - Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, volume III, 2ª edição, 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 7ª edição, 107; Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17/09/1997 e de 24/03/1999, in CJ, ACSTJ, Anos V, tomo III, pág. 173 e VII, tomo I, pág. 247 respectivamente.
[3] - Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado no Diário da República, Série I-A, de 28/12/1995.
[4] - Cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal, Anotado, 10ª edição, pág. 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., pág. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recurso em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e segs.
[5] - Cfr. Acórdãos do STJ de 14/3/2007, de 23/5/2007 e de 3/7/2008, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.
[6] - Na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, o Supremo Tribunal de Justiça veio fixar jurisprudência no sentido de bastar, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas – Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 3/2012, de 8/3, publicado no DR, I Série, de 18/4/2012.
[7] - Cfr. Acórdãos do STJ de 23/4/2009 e de 29/10/2009, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.

[8] - Cfr. Acórdãos do STJ de 15/7/2009, de 10/3/2010 e de 25/3/2010, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.
[9] - Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004, de 24/3/2004, DR, II Série, de 2/6/2004.
[10] - Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 6/3/2002, CJ, Ano XXVII, Tomo II, pág. 44; No mesmo sentido, Acórdãos da Relação do Porto de 19/6/2002, 4/2/2004 e 16/11/2005, in www.dgsi.pt/jtrp.
[11] - Prof. Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, 1º volume, pág. 211.
[12] - Tratado de Derecho Penal, Parte General, 4ª edição, pág. 127.
[13] - Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, edição de 1974, pág. 215.
[14] - Cf. Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de inimputáveis e in dubio pro reo, página 166.
[15] - No mesmo sentido, entre muitos outros, os acórdãos do STJ de 05.02.2009, 14.10.2009 e de 15.04.2010, proferidos nos processos nºs 2381/08 - 5, 101/08.7PAABT.E1.S1 - 3 e 154/01.9JACBR.C1.S1 - 5, in www.stj.pt/jurisprudencia/sumáriosdeacórdãos/secçãocriminal.
[16] - Acórdão do STJ de 4.11.1998, in BMJ n.º 481, pág. 265.
[17] - Neste sentido, Jean-Denis Bredin, Le Doute et L’intime Conviction, Revue Française de Théorie, de Philosophie e de Culture Juridique, Vol. 23, (1966), pág. 25.
[18] - Acórdão do STJ de 02.05.1996, CJ, ACSTJ, 1996, Tomo II, pág. 177.