Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
405/09.1TMCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: NOTIFICAÇÕES ELECTRÓNICAS
PRESUNÇÃO JUDICIAL
IMPUGNAÇÃO DE FACTO
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO
DIVÓRCIO
CONSTITUCIONALIDADE
LEI
Data do Acordão: 06/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE FAMÍLIA E MENORES DE COIMBRA – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 248º NCP; 640º, NºS 1 E 2, AL. A), DO NCPC; LEI Nº 61/2008, DE 31/10
Sumário: I – Antes da entrada em vigor do Novo C. P. Civil, para efeitos de determinação das datas das notificações electrónicas, existiam duas presunções:
– a contida no art.º 254º, n.º 5, do C. P. Civil de que a notificação por transmissão electrónica de dados se presume feita na data da expedição e,

– a contida no n.º 5 do art.º 21º-A da Portaria 1538/2008, de 30 de Dezembro, que presume que a expedição é feita no terceiro dia posterior ao da elaboração da notificação, ou no primeiro dia útil seguinte a este, quando o final do prazo termine em dia não útil.

II - No que respeita a notificações, o art.º 248º do Novo C. P. Civil, universalizando o regime da notificação electrónica, incorpora a presunção que constava do nº 5 do art.º 21º-A da Portaria nº 114/2008, de 6 de Fevereiro, nada resultando da mesma que a notificação se considere ou presuma efectuada no dia em que o correio electrónico for lido, mas tão somente que a mesma se considera efectuada no 3º dia posterior ao da sua elaboração no sistema informático.

III - Assim, mantêm-se o mesmo sentido da lei anterior, segundo o qual as presunções da notificação só podem ser ilididas pelo próprio mandatário notificado para alargamento do prazo, provando que não foram efectuadas ou que ocorreram em data posterior à presumida, por razões que lhe não sejam imputáveis, não podendo essa ili­são ser efectuada pelo critério da leitura da peça processual, critério que não encontra qualquer apoio no texto da lei.

IV – Em caso de impugnação da matéria de facto, a especificação dos concretos meios probatórios constantes da gravação deve ser acompanhada, sob pena de imediata rejeição do recurso nessa parte, da indicação exacta das passagens da gravação em que se funda o seu recurso – art.º 640º, n.º 2, a), do Novo C. Processo Civil.

V - Deste modo, não basta ao recorrente atacar a convicção que o julgador for­mou sobre cada uma ou sobre a globalidade das provas, para provocar uma alteração da decisão da matéria de facto, mostrando-se necessário que cumpra os ónus de especifica­ção impostos pelos n.ºs 1 e 2 do art.º 640º do Novo C. P. Civil, devendo ainda proceder a uma análise critica da prova, de molde a demonstrar que a decisão proferida sobre cada um dos concretos pontos de facto, que pretende ver alterados, não é possível, não é plausível ou não é a mais razoável.

VI - A Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, introduziu profundas alterações no modelo do divórcio, tendo abolido qualquer relevância da culpa na causação das circunstâncias que determinaram uma ruptura definitiva das relações conjugais justificativa do divórcio.

VII - O “divórcio sem consentimento de um dos cônjuges”, substituindo o ante­rior “divórcio litigioso”, eliminou a relevância da ocorrência de um ilícito conjugal culposo, centrando a sua justificação exclusiva na verificação de uma ruptura definitiva das relações conjugais, revelada por qualquer circunstância, que além das situações objectivas tipificadas nas alíneas a), b) e c) do art.º 1781º do C. Civil, pode ser subsumida pelos tribunais na cláusula geral constante da alínea d) do mesmo artigo.

VIII - Esta erradicação da culpa não residiu apenas no abandono das “causas subjectivas” do divórcio, mas também na desconsideração total de tal factor nos efeitos do divórcio.

IX - Por estas razões, no processo de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge não se determina, nem gradua, a culpa dos cônjuges, nem há lugar à aplicação de quais­quer penas civis, ficando as discussões sobre a culpa e indemnizações fora desse processo.

X - O Tribunal Constitucional já se pronunciou pela conformi­dade constitucional do divórcio assente em causas meramente objectivas, designada­mente no seu Acórdão n.º 255/2006 que, decidindo sobre a constitucionalidade da alteração do art.º 1781º, a), levada a efeito pela Lei n.º 47/98, de 10 de Agosto, que encurtou para três anos o prazo da duração da separação de facto como fundamento objectivo de divórcio.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
O Autor intentou em 9.5.2009 a presente acção de divórcio sem consenti­mento do outro cônjuge contra a Ré, alegando, em síntese:

- O casal está separado de facto desde 10 de Janeiro de 1982, na sequência do abandono do lar pelo Autor, que passou desde essa data a viver em Coimbra.

- O casal, desde então, deixou de ter vida em comum, nunca mais tendo partilhado cama, mesa e habitação.

Concluiu, pedindo o decretamento do divórcio, com fundamento na verificação da situação prevista na al. a) do art.º 1781º do C. Civil, pedindo também, nos termos do art.º 1789º, n.º 2, do mesmo diploma que os efeitos patrimoniais do divórcio retroajam a 10 de Janeiro de 1982.

A Ré contestou e impugnando a factualidade alegada pelo Autor, concluiu pela improcedência da acção.

No entanto, com fundamento na violação pelo Autor dos deveres conjugais de fidelidade, cooperação, respeito, assistência e coabitação, formulou pedido reconvencional, pedindo o decretamento do divórcio e a fixação de um regime provisório quanto à atribuição da casa de morada de família.

O Autor apresentou réplica, impugnando os factos alegados pela Ré no seu articulado e concluiu como na p. inicial.

Após incidentes variados veio a ser proferida sentença que julgou a acção nos seguintes termos:

Face ao exposto, julgo PROCEDENTE, por provada, a presente acção e reconvenção, decretando, assim, o divórcio entre J... e M..., o que tem por efeito principal a dissolução do casamento celebrado entre ambos em 25 de Setembro de 1966.

Nos termos do art. 1789º/2 do CC, porque tal foi requerido, fixa-se a data em que começou a separação no ano de 1982/1983.

A Ré, inconformada, interpôs recurso da sentença, formulando as seguintes conclusões:

...

O Autor apresentou resposta, invocando como questões prévia a extempo­raneidade do recurso e a deficiente impugnação da matéria de facto, defendendo a confirmação da decisão recorrida e peticionando a condenação da Ré como litigante de má-fé em multa.

1. Da tempestividade do recurso

O Autor, alegando que ao presente recurso se aplicam as disposições do Novo Código de Processo Civil, invoca o preceituado no art.º 248º daquele diploma, o qual, na sua leitura, contém uma presunção que pode ser ilidida por qualquer das partes, para concluir que, tendo o mandatário da Recorrente sido notificado em 6.11.2013 e o recurso interposto em 6.1.2014, o mesmo é extemporâneo, uma vez que o prazo para a sua interposição terminou em 16.12.2013, podendo ser interposto até ao dia 19.12.2013 com pagamento de multa.

Vejamos:

A sentença foi notificada aos mandatários das partes por via electrónica em 6.11.2013.

A Ré em 12.11.2013 formulou pedido de aclaração da sentença, o qual veio a ser decidido por despacho de notificado, por via electrónica, às partes em 21.11.2013.

O recurso deu entrada em tribunal em 6.1.2014.

Sendo facto indiscutível que o pedido de aclaração deduzido não suspende o prazo para a interposição do recurso, temos que averiguar qual o seu termo, atendendo à data em que as partes se devem considerar notificadas da sentença.

Defende o Réu que, tendo o mandatário da Recorrente lido a notificação da sentença no próprio dia em que a mesma lhe foi efectuada é esse o dia que a lei considera como data de notificação, iniciando-se nessa data o prazo para a interposi­ção do recurso.

O art.º 254º do anterior C. P. Civil, no que respeitava à notificação por transmissão electrónica, tinha a seguinte redacção:

5 - A notificação por transmissão electrónica de dados presume-se feita na data da expedição.

6. As presunções estabelecidas nos números anteriores só podem ser ilididas pelo notificado provando que a notificação não foi efectuada ou ocorreu em data posterior à presumida, por razoes que lhe não sejam imputáveis.

A tramitação electrónica dos processos judiciais foi regulamentada pela Portaria n.º 114/2008, de 6 de Fevereiro.

Esta Portaria foi alterada pela Portaria 1538/2008, de 30 de Dezembro, que implementou o CITIUS, visando, através da utilização de sistemas informáticos, criar condições para uma tramitação mais célere, dispondo o n.º 1 do art.º 21º-A desta Portaria que as notificações por transmissão electrónica de dados são realizadas através do sistema informático CITIUS, que assegura automaticamente a sua disponi­bilização e consulta no inerente endereço.

O n.º 5 deste art.º 21º-A dispunha:

O sistema informático CITIUS assegura a certificação da data de elabo­ração da notificação, presumindo-se feita a expedição no terceiro dia posterior ao da elaboração, ou no primeiro dia útil seguinte a esse, quando o final do prazo termine em dia não útil.

Daqui resulta que o legislador visou uma equiparação do sistema da notifi­cação electrónica ao sistema da notificação postal, nomeadamente no respeitante a prazos, o mesmo acontecendo quanto ao modo de ilisão das presunções, pois ambas só podiam ser ilididas pelo notificado [1].

Assim, antes da entrada em vigor do Novo C. P. Civil, para efeitos de determinação das datas das notificações electrónicas, existiam duas presunções:

1ª – a contida no art.º 254º, n.º 5, do C. P. Civil de que a notificação por transmissão electrónica de dados se presume feita na data da expedição e,

2ª – a contida no n.º 5 do art.º 21º-A da Portaria 1538/2008, de 30 de Dezembro, que presume que a  expedição é feita no terceiro dia posterior ao da elaboração da notificação, ou no primeiro dia útil seguinte a este, quando o final do prazo termine em dia não útil.

No que respeita a notificações dispõe o art.º 248º do Novo C. P. Civil:

Os mandatários são notificados nos termos definidos na portaria prevista no n.º 1 do artigo 132.º, devendo o sistema informático certificar a data da elabora­ção da notificação, presumindo-se esta feita no 3.º dia posterior ao da elaboração ou no 1.º dia útil seguinte a esse, quando o não seja.

Esta disposição, universalizando o regime da notificação electrónica, incorpora a presunção que constava do nº 5 do art.º 21º-A da Portaria nº 114/2008, de 6 de Fevereiro, nada resultando da mesma que a notificação se considere ou presuma efectuada no dia em que o correio electrónico for lido, mas tão somente que a mesma se considera efectuada no 3º dia posterior ao da sua elaboração no sistema informático.

Pelo facto da lei não ter estabelecido a forma da ilisão desta presunção – tanto no Novo C. P. Civil, como na Portaria 280/2013, de 26 de Agosto, que regulamenta a tramitação electrónica dos processos, na sequência da revogação da Portaria 114/2008, não se pode concluir que a legitimidade para tal pertence a qualquer uma das partes.

Esta presunção foi estabelecida tendo em vista a uniformização das datas de notificação [2], tal como a que anteriormente contava do art.º 254º do anterior Código de Processo Civil, não atribuindo a lei qualquer relevância ao facto da mesma ter ocorrido em data anterior àquela que presume, pois daí só resultariam complica­ções para as contagens dos prazos com início na data de notificação.

Assim, mantêm-se o mesmo sentido da lei anterior, segundo o qual as presunções da notificação só podem ser ilididas pelo próprio mandatário notificado para alargamento do prazo, provando que não foram efectuadas ou que ocorreram em data posterior à presumida, por razões que lhe não sejam imputáveis, não podendo essa ili­são ser efectuada pelo critério da leitura da peça processual, critério que não encontra qualquer apoio no texto da lei.

Assim, tendo as partes sido notificadas em 11.11.2013, o prazo para inter­posição do recurso terminava em 6.1.2014, uma vez que no mesmo é impugnada a matéria de facto.

Tendo o recurso sido interposto no último dia do prazo, julga-se o mesmo tempestivo.

2. Da impugnação da matéria de facto

O Autor, no que respeita à impugnação da matéria de facto, alega que a Recorrente não deu cumprimento às exigências contidas no art.º 640º do Novo C. P. Civil, porquanto não especificou os concretos pontos da matéria de facto que consi­dera incorrectamente julgados, não indicou os concretos meios probatórios que impõem uma decisão diferente, não indicou a decisão que no seu entender deve ser proferida em cada uma das questões de facto, nem indicou com precisão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, limitando-se a transcrever toda a prova.

Conclui pela rejeição do recurso na parte respeitante à impugnação da matéria de facto.

Dispõe o art.º 640º do diploma referido:

1 — Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 — No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3 — O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636º.

Da leitura das alegações do recurso interposto resulta manifesta a discor­dância da Ré quanto às respostas dadas aos quesitos formulados na base instrutória sob os n.ºs 2º, 3º 5º que deveriam ter sido dados como não provados, e todos os restantes, dados como provados, com a excepção do quesito 36º, uma vez que só mais tarde é que o Autor se envolveu com a referida ...

A recorrente entende que as respostas em causa devem ser alteradas por se encontrarem em total contradição com a prova produzida em julgamento e docu­mentos juntos aos autos.

Assim, no corpo das alegações a Recorrente deu satisfação à exigência contida no n.º 1, a), do artigo acima transcrito.

No que respeita à indicação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida – al. b) do n.º 1 – a Recor­rente no corpo da suas alegações invoca os depoimentos das seguintes testemunhas:

- P... – gravação de ...

Analisado o registo da prova resulta que as passagens indicadas não são mais que a totalidade do depoimento prestado pela testemunha P... na audiência de julgamento.

Refere ainda as testemunhas por si indicadas ..., dizendo, em síntese, que as mesmas corroboram nos seus depoimentos os factos descritos pelos filhos do casal.

A Recorrente ao invocar, do modo como o fez, os depoimentos que, na sua perspectiva, tinham virtualidade para modificar a decisão da matéria de facto, não deu satisfação à exigência contida naquela alínea b).

Limitou-se a indicar as horas de inicio e fim do depoimento em cada uma das sessões da testemunha P..., sem menção dos trechos que em seu entender apresentavam relevância para o efeito pretendido, nada referindo quanto às demais testemunhas.

Já nas conclusões apresentadas, a Recorrente, usando do mesmos método para as demais testemunhas – indicando o tempo dos depoimentos integrais – diz remeter o seu conteúdo para a transcrição anexa ao recurso.

A especificação dos concretos meios probatórios constantes da gravação deve ser acompanhada, sob pena de imediata rejeição do recurso nessa parte, da indicação exacta das passagens da gravação em que se funda o seu recurso – art.º 640º, n.º 2, a), do Novo C. Processo Civil.

A transcrição das passagens dos depoimentos que o recorrente considere relevantes para a modificação pretendida, resultando da lei como uma faculdade que lhe é concedida, não configura uma alternativa à obrigatoriedade de indicação exacta das passagens da gravação.

Deste modo, não basta ao recorrente atacar a convicção que o julgador for­mou sobre cada uma ou sobre a globalidade das provas, para provocar uma alteração da decisão da matéria de facto, mostrando-se necessário que cumpra os ónus de especifica­ção impostos pelos n.ºs 1 e 2 do art.º 640º do Novo C. P. Civil, devendo ainda proceder a uma análise critica da prova, de molde a demonstrar que a decisão proferida sobre cada um dos concretos pontos de facto, que pretende ver alterados, não é possível, não é plausível ou não é a mais razoável.

No caso em apreço a Recorrente limitou-se a requerer a análise de docu­mentos que não concretiza, e dos depoimentos, cujos autores identificam, sem cumprirem o ónus de especi­ficação imposto pelo n.º 2, a), do art.º 640º do Novo C. P. Civil, ou seja, não indicando as passa­gens exactas da gravação em que funda a sua impugnação, sendo certo que tendo a mesma sido efectuada digitalmente, no sistema H@bilus Media Studio, conforme da acta consta, tal era possível, nem fazendo qualquer análise crítica dos meios de prova que, em seu entender, provocam as alterações por si pretendidas.

Assim, considerando que as alegações da Recorrente não dão satisfação às mencionadas exigências legais, nos termos expostos, rejeita-se o recurso no que se refere à impugnação da decisão que fixou a matéria de facto provada.

 3. Do objecto do recurso

Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das ale­gações apresentadas pela Recorrente, cumpre conhecer das seguintes questões:

a) A sentença recorrida é nula?

b) Há necessidade de proceder à renovação da prova?

c) As normas aplicadas pela decisão recorrida como fundamento para o divórcio por separação de facto são inconstitucionais?

d) A aplicação dessas normas a casamentos celebrados em data anterior à sua entrada em vigor é inconstitucional?

4 . Da nulidade da sentença

A Recorrente, alegando que indicou para depor como testemunha M..., tendo pago o respectivo preparo, e que não foi notificada da devolução da carta enviada para notificação daquela testemunha, ficando desse modo impedida de requerer a sua substituição ou a sua audição em data posterior, conclui que tais factos consubstanciam nulidade da sentença nos termos do art.º 668º, n.º 1, d), do C. P. Civil então em vigor, e do 615º, n.º 1, d), do Novo C. P. Civil.

Estes preceitos ferem de nulidade a sentença que não se pronuncie sobre questões que devesse apreciar.

Ora, a eventual omissão apontada pela Recorrente não respeita à sentença, mas sim a anterior acto processual que carecia de ser arguida atempadamente para poder ser conhecida.

Não sendo a regularidade da notificação à Ré da impossibilidade da notifi­cação de uma testemunha questão que devesse ter sido apreciada na sentença, improcede a invocada nulidade.

5. Da renovação da prova

A Ré, com vista à alteração da matéria de facto, no que respeita à data em foi fixada a separação de facto com o Autor, formula também a pretensão de reinquirição das testemunhas que identifica.

A renovação da produção de prova na 2ª instância está prevista no art.º 662º, n.º 2, do Novo C. P. Civil, o qual dispõe:

2 — A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:

b) Ordenar a renovação da produção de prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento.

A este respeito escreve Abrantes Geraldes [3]:

… a renovação dos meios de prova não corresponde a um direito potestativo da recorrente a que a Relação deva corresponder necessariamente, antes é de interpretar como um poder/dever da Relação que esta deve exercitar “mesmo oficiosamente”, sempre que, no seu   pudente critério e em termos objectivos, considerar preenchido o condicionalismo legal.

… a alteração introduzida deve ser encarada fundamentalmente como o reforço do mecanismo já anteriormente previsto e cuja utilidade e pertinência deve ser avaliada pelo Tribunal da Relação, ponderando a sua necessidade em face das provas que foram produzidas e dos resultados reflectidos na decisão recorrida. Nesta perspectiva, a iniciativa do recorrente ou do recorrido servirão para criticamente demonstrar a conveniência em que se produza essa diligência suplementar, tendo em vista a sanação de eventuais dúvidas fundadas sobre os aspectos da causa.

Será pois com redobrado rigor, que a Relação deverá apreciar a “serie­dade” das dúvidas invocadas quanto à credibilidade do depoente ou relacionadas com o teor do depoimento, sendo mais compreensível que essa necessidade resulte de uma apreciação desapaixonada ou descomprometida da Relação que pondere todo o circunstancialismo envolvente e o relevo maior que poderá ser atribuído a algum depoimento.

Assim, a necessidade para que a Relação use este poder deve encontrar justificação em dúvidas sérias sobre a credibilidade de depoentes ou sobre o sentido do seu depoimento.

Essas dúvidas só poderão ocorrer no decurso da apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

Não havendo lugar a essa apreciação, por ter sido rejeitado o recurso nessa parte, não pode haver lugar a um juízo sobre a necessidade da renovação da prova, pelo que também improcede o recurso com este fundamento.

6. Os factos

Os factos provados são os seguintes:

 I – Autor e Ré contraíram casamento católico em 25-09-1966, sem con­venção antenupcial de bens. – al. A) dos factos assentes;

II – Dessa relação, não existem filhos menores. – al. B) dos factos assentes;

III – A contestação-reconvenção foi junta aos autos em 15 de Fevereiro de 2010. – al. C) dos factos assentes;

IV – Após o casamento, o casal fixou residência na Rua ... – resposta ao quesito 1º;

V – Desde o ano de 1982/1983 que A. e Ré não partilham cama, mesa e habitação. – resposta ao quesito 2º;

VI – Passando a partir dessa data (ano de 1982/1983) o A. a viver em Coimbra com ... – resposta ao quesito 3º;

VII – Permanecendo a R. até hoje a viver na casa de morada de família identificada em 1º. – resposta ao quesito 4º;

VIII – Desde a data referida no quesito 2º, apenas foi dado pelo A. segui­mento à administração do património comum, intervindo ele sem a intervenção da R. ou representado pelos filhos, a quem outorgava procuração quando era exigida a intervenção de ambos. – resposta ao quesito 5º;

IX – O R. antes de iniciar o seu relacionamento com ..., teve outros relacionamentos. – resposta ao quesito 7º;

X – Desinteressando-se ele completamente, da mulher. – resposta ao quesito 9º;

XI – Em 1986 deixaram de ser pagas as prestações do crédito à habitação, na CGD, do imóvel da Rua ... – resposta ao quesito 11º;

XII – A dívida foi liquidada em 1991, tendo sido usados na sua amortiza­ção cheques, uns sacados pela R. de conta pessoal sua, outros sacados pelo A. de conta conjunta com ... e ainda outros sacados pelo filho de conta conjunta deste, à ordem do A. – resposta ao quesito 12º;

XIII – Apresentaram A. e R. declaração conjunta de IRS e IVA comuns, até 2007, na sequência do seguimento da administração do património comum referido em 5º. – resposta ao quesito 14º;

XIV – O Autor deslocava-se diariamente a Cadima, onde viviam os seus pais e a irmã (que sofre de trissomia 21) na casa por baixo da Casa de Morada de Família, bem como onde mantinha cães – o que ocorre até à actualidade – e guardava a sua colecção de viaturas (automóveis e motos) antigas. – resposta ao quesito 15º;

XV – Existiu uma empregada agrícola que se reformou em 1984, aí conti­nuando a viver até à actualidade com a R., esclarecendo-se que nunca houve vacaria, o aviário acabou no final dos anos 70 e a pocilga em data indeterminada do início da década de 90. – resposta ao quesito 18º;

XVI – Na sequência da administração do património comum até data não apurada da década de 90, cultivou o casal géneros alimentícios – ervilhas, feijões e favas –, que vendiam a empresas, recolhendo os lucros. – resposta ao quesito 19º;

XVII – Nos mesmos termos (na sequência da administração do património comum até data não apurada da década de 90), cultivou também o casal as vinhas do casal, recebendo o A., sócio da Adega Cooperativa de ..., os lucros. – resposta ao quesito 20º;

XVIII – O Autor fez obras nuns anexos (aviários e pocilgas), para albergar o “museu” de automóveis e motos, em data não concretamente apurada. – resposta ao quesito 24º;

XIX – A Ré intentou em 20-02-2008 acção de anulação de negócios, que corre termos no Tribunal de ... – resposta ao quesito 63º;

XX – A Ré é pessoa honesta, de boa formação moral e cívica, sendo con­siderada socialmente no meio em que vive. – resposta ao quesito 64º.

6. O direito aplicável

A decisão recorrida decretou o divórcio entre Autor e Ré, julgando proce­dente quer a acção, quer a reconvenção.

Na verdade, ambas as partes pediram o divórcio, sendo que o Autor baseou esse pedido na existência de uma separação de facto – art.º 1781º, a), do C. Civil – e a Ré na violação por parte do Autor de vários deveres conjugais – art.º 1781º, d), do C. Civil.

Tendo-se provado ambas as realidades a decisão recorrida decretou o divórcio com fundamento quer na existência de uma situação de separação de facto por período superior a um ano, quer na violação de vários deveres conjugais por parte do Autor, tendo fixado a data da separação do casal no ano 1982/1983, nos termos do art.º 1789º, n.º 2, do C. Civil.

A Recorrente no recurso interposto pede que se julgue inconstitucional o actual regime do artigo 1781º, a) e d), do C. Civil, na redacção da Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, bem como a norma revogatória do artigo 1787° do C. Civil, inclusa no artigo 8° daquela mesma Lei, e a sua aplicação aos casamentos celebrados antes da sua entrada em vigor.

A Recorrente invoca como fundamento para este julgamento de inconstitucionalidade a desconsideração da culpa pelo divórcio no actual regime, que resultaria numa violação dos princípios da igualdade, da dignidade da pessoa humana, do Estado de direito democrático, do direito de constituir família, da protecção devida à família e, ainda, quanto à aplicação do novo regime aos casamen­tos anteriormente celebrados, numa violação do princípio da confiança.

Com esta pretensão a Recorrente não pretende que se revogue a decisão de decretar o divórcio, mas sim que o Autor seja declarado cônjuge culpado, para efeitos de aplicação do regime do divórcio anterior às alterações introduzidas pela Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, e que não seja fixada a data do início da separação, por falta de legitimidade do Autor para requerer tal fixação, atenta a sua condição de cônjuge culpado pelo termo da coabitação.

6.1. Da constitucionalidade da desconsideração da culpa no divórcio

A Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, introduziu profundas alterações no modelo do divórcio, tendo abolido qualquer relevância da culpa na causação das circunstâncias que determinaram uma ruptura definitiva das relações conjugais justificativa do divórcio.

O “divórcio sem consentimento de um dos cônjuges”, substituindo o ante­rior “divórcio litigioso”, eliminou a relevância da ocorrência de um ilícito conjugal culposo, centrando a sua justificação exclusiva na verificação de uma ruptura definitiva das relações conjugais, revelada por qualquer circunstância, que além das situações objectivas tipificadas nas alíneas a), b) e c) do art.º 1781º do C. Civil, pode ser subsumida pelos tribunais na cláusula geral constante da alínea d) do mesmo artigo.

E esta erradicação da culpa não residiu apenas no abandono das “causas subjectivas” do divórcio, mas também na desconsideração total de tal factor nos efeitos do divórcio.

Assim, foram eliminadas as regras de que o cônjuge culpado não podia na partilha receber mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime da comunhão de adquiridos – art.º 1790º do C. Civil –, de que perdia os benefícios que tivesse recebido ou houvesse de receber em vista do casamento ou em consideração do estado de casado – art.º 1791º do C. Civil –, de que teria de reparar os danos não patrimoniais causados ao cônjuge inocente pela dissolução do casa­mento – art.º 1792º do C. Civil –, de que teria que prestar alimentos se o cônjuge inocente deles necessitasse – art.º 2016º, n.º 1, a), do C. Civil –, e de que não podia requerer a fixação da data da falta de coabitação para efeitos patrimoniais – art.º 1789º, n.º 2, do C. Civil.

Daí que o abandono da declaração de culpas na sentença – revogação do art.º 1787º do C. Civil – se apresente como um mero corolário da irrelevância da culpa nos efeitos do divórcio.

Esta mudança de paradigma limitou-se a seguir a tendência dominante nas legislações dos países europeus, como se refere na exposição de motivos do Projecto Lei n.º 509/X, apresentado pelo Partido Socialista, que está na origem da Lei n.º 61/2008:

“Em primeiro lugar, elimina-se a culpa como fundamento do divórcio sem o consentimento do outro, tal como ocorre na maioria das legislações da União Europeia e alargam-se os fundamentos objectivos da ruptura conjugal. O abandono do fundamento da culpa é, aliás, ponto de convergência na legislação europeia como se pode ler na obra atrás citada: “A eliminação a qualquer referência à culpa é consistente com a evolução da lei e da prática nos sistemas legais europeus analisa­dos. Em muitos desses sistemas a culpa foi abandonada. Mesmo os poucos que, de forma parcial, a mantém muitas vezes na prática evoluíram na direcção do divórcio sem culpa. De qualquer dos modos é difícil atribuir culpa apenas a um dos cônju­ges” (in Boele-Woelki et al. (2004), Principles of European Family Law Regarding Divorce and Maintenance Between Former Spouses, Commission on European Family Law, Antwerp-Oxford, Intersentia, p.55).

Nesta exposição de motivos identificam-se três ideias motrizes no plano da vida conjugal que suportam estas alterações do regime do divórcio: sentimentalização, individualização e secularização.

1.1. Para identificar o processo da sentimentalização basta analisar diacronicamente as práticas da vida conjugal e familiar nas últimas décadas para inevitavelmente concluir que os afectos estão no centro da relação conjugal e na relação pais-filhos. Não excluindo a existência de outras dimensões importantes da conjugal idade e da vida familiar, como a dimensão contratual, a económica e a patrimonial, que obviamente também é necessário ter em consideração, é no entanto inegável ser a dimensão afectiva o núcleo fundador e central da vida conjugal. Quanto às relações familiares entre pais e filhos foi ficando cada vez mais claro que o bem-estar psico-emocional dos últimos passou a estar em primeiro plano.

É o facto de a dimensão afectiva da vida se ter tornado tão decisiva para o bem-estar dos indivíduos que confere à conjugalidade particular relevo. Sendo esta decisiva para a felicidade individual, tolera-se mal o casamento que se tornou fonte persistente de mal-estar. Assim, é a importância do casamento e não a sua desvalori­zação que se destaca quando se aceita o divórcio. Daqui decorre também que importa evitar que o processo de divórcio, já de si emocionalmente doloroso, pelo que representa de quebra das expectativas iniciais, se transforme num litígio persistente e destrutivo com medição de culpas sempre difícil senão impossível de efectivar.

É neste intuito que se propõe o afastamento do fundamento da culpa para o divórcio sem o consentimento do outro abandonando, de resto, a própria designação de divórcio litigioso. Isso mesmo aconteceu já na maioria das legislações europeias visto que, como é expressamente assumido “(eliminar qualquer referência à culpa) evita indesejável investigação quanto ao estado do casamento pela autori­dade competente e respeita melhor a integridade e autonomia dos cônjuges” (in Boele-Woelki, K. et al, p. 55).

Não pode significar esta elisão que se desprotejam situações de injustiça ou desigualdade. Nas consequências do divórcio está prevista a reparação de danos bem como a existência de créditos de compensação quando houver manifesta desigualdade de contributos dos cônjuges para os encargos da vida familiar. É decisivo, com efeito, observar rigor no domínio das consequências, quer relativa­mente aos filhos, quer nas situações de maior fragilidade e desigualdade entre cônjuges. Demonstração dessa necessidade de ao eliminar a culpa evitar a despro­tecção é, aliás, o facto de este projecto consagrar, de forma muito inovadora relativamente à legislação anterior, que a violação dos direitos humanos, designadamente a violência doméstica, constituírem fundamento para requerer o divórcio. Não é nesta situação, aliás, necessário esperar pelo período de um ano de ruptura de facto, para o requerer, na medida em que se considera que esse tipo de violações persistentes evidencia de forma óbvia a ruptura da vida em comum.

Aliás, afastar o litígio e evitar arrastamentos ainda mais dolorosos das situações de divórcio é justamente o que os portugueses pela sua prática têm demonstrado fazer.

1.2 A individualização significa a liberdade de assumir para si, aceitando também para os outros, a escolha de modos próprios de encarar e viver a vida privada Como tendência valorativa que se afirma desde o século XIX, a gradual afirmação dos direitos dos indivíduos na esfera familiar aparece já como elemento central do que Durkheim considera ser a família conjugal moderna. Para reforçar este ponto de vista escrevia o autor, já nessa viragem do século XIX para o XX, que no tipo de família que então se começava a afirmar “os indivíduos são mais importantes do que as coisas”: ele valorizava assim no casamento o bem-estar individual e familiar em detrimento das lógicas patrimoniais. Mas o percurso dos processos de individualização ao longo do século XX vem ainda introduzir novos elementos. A afirmação da igualdade entre homens e mulheres é outro sinal da individualização que se reflecte de forma directa no casamento e o transforma numa ligação entre iguais.

Maior liberdade na vida privada, mais margem de manobra individual quanto à condução da vida conjugal e familiar, maior afirmação dos direitos individuais numa relação entre pares centrada fundamentalmente nas lógicas afectivas, são adquiridos da modernidade. É claro que o novo modelo traz também problemas novos. A maior ocorrência do divórcio é um deles, mas também se pode falar de forma genérica de aumento do risco, da incerteza, das tensões ou dos conflitos de lealdade. São as contrapartidas cujos efeitos importa atenuar, sobretudo quando as partes em conflito estão em situações de clara assimetria.

1.3 Quanto à secularização também em Portugal os seus efeitos se fazem sentir. O que está em causa não é necessariamente o abandono das referências religiosas, mas antes uma retracção destas para esferas mais íntimas e assumindo dimensões menos consequenciais em outros aspectos da vida…”

Mas as alterações introduzidas também não deixaram de procurar acompa­nhar as realidades do divórcio em Portugal nos últimos tempos, como reflecte a Exposição de Motivos do Projecto-Lei que temos vindo a citar :

“O divórcio aumentou nos últimos quarenta anos nas nossas sociedades por várias razões, entre as quais podemos destacar três fundamentais. Em primeiro lugar, é necessário ter em conta as recomposições sociais e económicas que se traduziram, num primeiro momento, na desruralização das sociedades e no cresci­mento das classes médias. Para a grande maioria, nos diferentes sectores sociais, os aspectos estritamente patrimoniais passaram a desempenhar papel de menor relevo na família e no casamento. A lógica tradicional em que a família, em torno da figura do patriarca, decidia o casamento dos filhos – a família fundava o casamento – transforma-se no modelo de família conjugal moderna a partir do qual se define que é casamento que funda a família. Sociedades mais organizadas em torno do assalariamento dependem menos do património familiar para tomar decisões em torno da conjugalidade, têm mais liberdade para decidir. Foi uma mudança que se foi operando no decurso do século XX e que se aprofundou, afirmando novos contornos, nos seus últimos 40 anos.

Em segundo lugar, mudou a própria forma de encarar o casamento. Dada a centralidade dos afectos para o bem-estar dos indivíduos, passou a considerar-se que em caso de persistente desentendimento no casamento os indivíduos não seriam obrigados a manter a qualquer preço a instituição. Assume-se, aliás, ser difícil construir a harmonia familiar sobre o sacrifico e o mal-estar de algum dos seus membros. Aceitar o divórcio passou a ser sinal, não de facilitismo, mas de valoriza­ção de uma conjugalidade feliz e conseguida. Voltar a casar ou à conjugalidade é, de resto, a prática da maioria dos divorciados nas nossas sociedades.

Em terceiro lugar, passou a depender-se menos do casamento como modo de vida. A entrada progressiva das mulheres para o mercado de trabalho, fenómeno mais visível em Portugal desde o início dos anos 80, permite menor dependência do casamento como modo de vida, para ambos os cônjuges, e maior autonomia para acabar com situações persistentemente indesejáveis.

O aumento do divórcio faz parte, como se sublinhou no início, de um movimento mais vasto de transformações sociais que foi sendo acompanhado nas sociedades desenvolvidas por mudanças no plano legislativo. Maior liberdade e menos constrangimentos neste plano da vida privada, não deixaram, em contrapar­tida, também de fazer surgir novos problemas e tensões que o legislador foi procurando acautelar.

Sendo a ruptura conjugal, com muita frequência, um processo emocionalmente doloroso, a tendência tem sido também, ao nível legislativo, e nos países europeus que nos vão servindo de referência, para retirar a carga estigmatizadora e punitiva que uma lógica de identificação da culpa só pode agravar. Privilegia-se o mútuo acordo na ruptura conjugal. Incentiva-se ainda o recurso a formas de dirimir o conflito através da mediação familiar como solução de proximidade e no sentido de evitar arrastamentos judiciais penosos e desgastantes. Sempre que a modalidade do mutuo acordo seja impossível e não haja consentimento de uma das partes, a lei procura assentar em causas objectivas a demonstração da ruptura da vida em comum e a vontade de não a continuar.

Exige-se em contrapartida sempre, com acordo ou sem ele, rigor e equilí­brio na gestão das consequências do divórcio, sobretudo quando há crianças envolvidas ou situações de assimetria e fragilidade de uma das partes. Os direitos das crianças serão o referente aquando da regulação do exercício das responsabilidades parentais. Procura-se acautelar o não agravamento de situações de desigual­dade e assimetria entre cônjuges, protegendo os mais fragilizados.”

Por estas razões, no processo de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge não se determina, nem gradua, a culpa dos cônjuges, nem há lugar à aplicação de quais­quer penas civis, ficando as discussões sobre a culpa e indemnizações fora desse processo.

É esta desconsideração da culpa que a Recorrente considera violadora dos princípios da igualdade, da dignidade da pessoa humana, do Estado de direito democrático, do direito de constituir família e da protecção devida à família.

O Tribunal Constitucional já se pronunciou anteriormente pela conformi­dade constitucional do divórcio assente em causas meramente objectivas, designada­mente no seu Acórdão n.º 255/2006 que, decidindo sobre a constitucionalidade da alteração do art.º 1781º, a), levada a efeito pela Lei n.º 47/98, de 10 de Agosto, que encurtou para três anos o prazo da duração da separação de facto como fundamento objectivo de divórcio, afirmou:

 “Em primeiro lugar, como se depreende do n.º 1 do artigo 36.º da Lei Funda­mental (e notam Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, p. 351, anotação III ao artigo 67.º), “o conceito de família não pressupõe o vínculo matrimonial”. No mesmo sentido, podem ver-se Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, 2005, pp. 394-395, anotação III ao artigo 36.º, e o acórdão n.º 690/98 deste Tribunal (Acórdãos do Tribunal Constitucio­nal, 48.º vol., pp. 579-596), onde se escreveu, designadamente, o seguinte: “A distinção constitucional entre família, por um lado, e matrimónio por outro, referida no artigo 37.º, n.º 1, e ainda entre aquela e os conceitos de paternidade e maternidade, operada nos artigos 67.º e 68.º, em nada dificulta, antes parece espelhar um entendimento e reconhecimento da família como uma realidade mais ampla do que aquela que resulta do casamento, que pode ser denominada de família conjugal”.

Logo se vê, pois, que a invocação das normas de protecção constitucional da família para opor à dissolução de um casamento não pode ser feita de modo directo e automático. A protecção da unidade familiar, constitucionalmente imposta ao legislador, não pode desconhecer, como se escreveu no referido acórdão, que “cada vez mais, na sociedade actual, por largas camadas da população, o casamento deixa de ser encarado como uma instituição acima dos próprios cônjuges”.

Em segundo lugar, como referem os mesmos autores (Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit.), “a família é feita de pessoas e existe para realização pessoal delas, não podendo a família ser considerada independentemente das pessoas que as constituem, muito menos contra elas” (anotação IV ao mesmo artigo 67.º).

Dando conta da introdução de “causas de natureza objectiva, que pura e sim­plesmente exprimem a ‘ruptura da vida em comum’, escreveu-se no Acórdão n.º 105/90 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 15.º vol., p. 365):

«Ou seja: tratou-se de abandonar uma exclusiva ideia de “divórcio-sanção” (como usualmente se diz, e sem curar agora do rigor da qualificação: cfr. Pereira Coelho, Curso de Direito de Família, I, Coimbra, 1965, p. 443), que fora perfilhada pelo Código Civil, na sua versão originária de 1966, e de retomar mais amplamente a ideia de “divórcio-remédio”, alargando-a mesmo a uma concepção de “divórcio-consumação” ou “divórcio-falência” (cfr. Antunes Varela, Direito da Família, Lisboa, 1987, p. 466) – ideia que justifica e propugna a dissolução jurídica do vínculo matrimonial quando, independen­temente da culpa de qualquer dos cônjuges, ele se haja já dissolvido de facto, por se haver perdido definitivamente, e sem esperança de retorno, a possibilidade de vida em comum.

Desse modo, e como se sabe, voltou-se a uma visão das coisas que já fora perfi­lhada pelo nosso direito, na vigência da Lei do Divórcio de 1910 (embora sem “repristinar” exactamente as respectivas soluções); e, por outro lado, acompanhou o legislador portu­guês, nesse ponto, a tendência evolutiva mais recente (não só no plano jurídico, mas, desde logo, no plano sociológico), no sentido do que pode chamar-se um modelo “moderno” de casamento (por contraposição ao seu modelo “tradicional”), modelo esse que “desvaloriza o lado institucional e faz do sentimento dos cônjuges, ou seja, da sua real ligação afectiva, o verdadeiro fundamento do casamento” o qual passa a ser “tendencialmente” (ou no limite), antes que uma “instituição”, “uma simples associação de duas pessoas, que buscam, através dela, uma e outra, a sua felicidade e a sua realização pessoal” [assim, e utilizando justamente os qualificativos mencionados, Pereira Coelho, Casamento e família no direito português, em “Temas de Direito da Família” (Ciclo de Conferências na Ordem dos Advogados – Porto), Coimbra, 1986, pp. 10 e 14].»

Em terceiro lugar, ainda segundo os mesmos autores, a protecção da família é, em primeiro lugar, “protecção da unidade da família”, ou seja, do “direito dos membros do agregado familiar e viveram juntos” (anotação V ao referido artigo) – ou seja, precisa­mente o inverso do que está em causa nos presentes autos.

Tendo o legislador de 1998 entendido que uma separação de facto por três anos consecutivos era ela própria suficientemente reveladora da inviabilidade da continuidade da relação matrimonial, nenhum dos parâmetros constitucionais da tutela da família é decisivamente posto em causa por essa opção, qualquer que tenha sido a anterior opção do legislador em tal matéria. Aliás, o confronto com o direito anterior é, em termos de análise da conformidade constitucional das normas infra-constitucionais, muito pouco elucidativo.

Diz também a recorrente que tal alteração legislativa constitui factor de desi­gualdade entre os cônjuges, invocando a estrutura social do País, mormente “nas popula­ções envelhecidas e que vivem fora dos centros urbanos”. Refere-se a recorrente a implica­ções do divórcio que não estão acauteladas em termos de segurança social: o marido é que trabalha (e desconta), a mulher fica em casa e beneficia de protecção social enquanto cônjuge. Desfeito o vínculo matrimonial, também isso se perde.

O que este Tribunal tem para apreciar não são, porém, as normas que prevêem a protecção social dos ex-cônjuges, anteriormente beneficiários da extensão da protecção social conferida ao outro ex-cônjuge, mas apenas uma norma que fixa o prazo de duração da separação de facto que constitui fundamento de divórcio litigioso. Ora, para esta norma, a argumentação a que se fez referência é alheia e desajustada, não tendo finalidades de segurança social de relevar decisivamente, por imposição constitucional, para o regime dos fundamentos do divórcio. Por outro lado, em termos de princípio de igualdade, é óbvio que uma tal norma se aplica, sem qualquer desvio, entre populações envelhecidas e jovens, dentro e fora dos centros urbanos, e em todos os estratos da estrutura social. Por outro lado, o facto de um prazo idêntico se aplicar em todos estes casos também não viola o princípio da igualdade: não há qualquer imposição de diferenciação expressa na Constituição e as diferenças que possam existir entre diversos tipos de casais, consoante o seu meio social, não impedem o legislador de poder considerar que, quando a separação de facto se prolonga já por um período de três anos, com o propósito de não restabelecer a vida em comum por parte de um dos cônjuges, tal afastamento constitua fundamento de divórcio (sem prejuízo da declaração da culpa de um ou ambos os cônjuges – cfr. o artigo 1782.º do Código Civil).

Finalmente, diz a recorrente que tal lei – a Lei n.º 47/98, que operou a alteração ao artigo 1781.º do Código Civil – “ao prosseguir fins hedonistas, viola o disposto nos art.ºs 36.º e 67.º da C.R.P.”. Mesmo que se pudesse dizer que tal lei prossegue fins hedonistas – e a decisão recorrida entendeu que não –, mesmo nesse caso, não se poderia dizer que, só por isso, violaria a Constituição. Não se vê como pretender que a prossecução de fins hedonis­tas, mesmo (ou até, numa certa perspectiva, sobretudo) por diplomas legais, seja inconstitucional. Aliás, o que o artigo 36.º, n.º 2, da Constituição estabelece é que a lei regula os efeitos da dissolução do matrimónio, entendendo-se (com Jorge Miranda/Rui Medeiros, ob. cit., p. 141), que “[o] legislador dispõe, nos termos do artigo 36.º, n.º 2, de uma margem de liberdade não dispicienda na regulamentação dos requisitos e dos efeitos do divórcio”.

Estas considerações são transponíveis para a questão de constitucionalidade colocada no presente recurso, em que está agora em jogo uma extensão a todo o regime do divórcio da concepção “divórcio-consumação” ou “divórcio-falência”. Apesar da opção, em regime de exclusividade, por este modelo de divórcio, a consagração do respectivo regime não deixa de se situar na área da liberdade de conformação do legislador que lhe é conferida precisamente pela Constituição quando no artigo 36º, n.º 2, remete para este a definição do regime do divórcio.

Como afirmou o Tribunal Constitucional no seu Acórdão n.º 105/90: “…o controlo jurisdicional da constitucionalidade das soluções jurídico-normativas a que o legislador tenha, desse modo, chegado (no controlo, afinal, do modo como o legislador preencheu o espaço que a Constituição lhe deixou, precisamente a ele, para preencher) deve operar-se com uma particular cautela e contenção. Decerto, assim, que só onde ocorrer uma real e inequívoca incompatibilidade de tais soluções com o princípio regulativo constitucional que esteja em causa — real e inequívoca, não segundo o critério subjectivo do juiz, mas segundo um critério objectivo, como o será, p. ex. (e para usar aqui uma fórmula doutrinária expressiva), o de «todos os que pensam recta e justamente» —, só então, quando for indiscutível que o legislador, afinal, não “concretizou”, e antes “subverteu”, a matriz axiológica constitucio­nal por onde devia orientar-se, será lícito aos tribunais (e ao Tribunal Constitucional em particular) concluir pela inconstitucionalidade das mesmas soluções.

E, se estas considerações são em geral pertinentes, mais o serão ainda quando na comunidade jurídica tenham curso perspectivas diferenciadas e pontos de vista díspares e não coincidentes sobre as decorrências ou implicações que dum princípio «aberto» da Constituição devem retirar-se para determinado domínio ou para a solução de determinado problema jurídico. Nessa situação sobretudo — em que haja de reconhecer-se e admitir-se como legítimo, na comunidade jurídica, um “pluralismo” mundividencial ou de concepções — sem dúvida cumprirá ao legisla­dor (ao legislador democrático) optar e decidir.»

E é precisamente neste campo aberto ao poder conformador do legislador que se situa a opção política pelo modelo de divórcio que se alheia do factor culpa, que se pretende mais “amigo” da família e dos seus membros, individualmente considerados.

Não se vislumbrando, e não adiantando o Recorrente quaisquer razões, em que medida é que tal opção possa violar o princípio da dignidade da pessoa humana, do Estado de direito democrático, ou da igualdade, e não sendo possível afirmar que a opção legislativa efectuada descaracterize o conceito constitucional aberto de casamento e não garanta a exigência constitucional de protecção da família, não se vê qualquer fundamento para o juízo de inconstitucionalidade pretendido pela Recor­rente.

6.2. Da constitucionalidade da aplicação do novo regime do divórcio a casamentos anteriormente celebrados

A recorrente invoca ainda a inconstitucionalidade das normas contidas no art.º 1781º, a) e d), na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 61/2008, de 31.10, quando aplicadas aos casamentos celebrados antes da sua entrada em vigor, por violação do princípio da confiança contido no art.º 2º da Constituição.

O princípio da confiança, pese embora não consagrado expressamente, é um dos princípios essenciais na Constituição, imprescindível aos particulares, para a necessária estabilidade, autonomia e segurança dos seus próprios planos de vida.[4]

No entanto, esta protecção da confiança dos particulares não pode impos­sibilitar qualquer alteração das leis em vigor, ou seja, a segurança jurídica não pode somente caracterizar-se pela imutabilidade e cristalização do direito legislado.

No que respeita à tutela do princípio da confiança o Tribunal Constitu­cional tem dito que a afectação de expectativas legítimas resultantes duma alteração legislativa só é inadmissível quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas delas constantes não possam contar, não sendo a mesma ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes.[5]

Nesta situação, a incerteza do divórcio, aliada ao facto das condi­ções exigidas pelo C. Civil para o mesmo se reportarem ao momento da dedução do pedido respectivo, não permite de modo algum que se reconheça como legí­tima qualquer expectativa nos fundamentos existentes na lei anterior, alicerçada apenas num juízo de prognose que tem por base a manutenção hipotética de todos os dados de facto e de direito até à formulação do pedido de dissolução do casamento.

Na verdade, só nesse momento é que era possível constatar se estavam ou não preenchidos os requisitos do divórcio, pelo que não tem fundamento a constituição anterior de qualquer posição de confiança merecedora de protecção.

As normas anteriores não permitiram à Ré, num juízo de razoabilidade, a forma­ção de qualquer expectativa legítima de que iriam permanecer imutáveis e que pudesse limitar a aplica­ção de qualquer alteração legislativa nesse domínio, no sentido de não admitir essa alteração.

Tendo o casamento cuja dissolução por divórcio se pretende com esta acção sido celebrado sob a forma católica em 1966, a aplicação do princípio da confiança, nos termos defendidos pela Ré levar-nos-ia à impossibilidade do decretamento do divórcio, pois o quadro legislativo vigente na data daquela celebração não o permitia.

Assim, a aplicação das normas em causa aos casamentos celebrados antes  da sua entrada em vigor não viola o princípio da confiança, como emanação da ideia de Estado de direito democrático.

Conclusão

Improcedendo todos os fundamentos do recurso interposto pela Ré deve ser confirmada a decisão recorrida.

Decisão:

Nos termos expostos, julgando-se improcedente o recurso, confirma-se a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente.

Coimbra, 17 de Junho de 2014.

Relatora: Sílvia Pires

Adjuntos: Henrique Antunes

Regina Rosa

[1] Neste sentido o Ac. do STJ de 19.1.2022, relatado por Granja da Fonseca, acessível em www.dgsi.pt .

[2] Decorre do art.º 249º do N. C. P. Civil que também para as notificações às partes que não constituam mandatário, as quais são efectuadas por correio, a lei presume-as feitas nos mesmos termos da notificação por via electrónica, o mesmo acontecendo às notificações entre os mandatários, conforme decorre do art.º 255º do mesmo diploma.

[3] Recursos no Novo Código de Processo Civil, ed. 2013, pág. 229, Almedina.

[4] Jorge Reis Novais, in Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, pág. 262 e segs., ed. 2004, Coimbra Editora.

[5] Ac. do T. C. n.º 190/2010, acessível em www.tribunalconstitucional.pt .