Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4725/17.3T9CBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: REQUERIMENTO PARA ABERTURA DA INSTRUÇÃO
REJEIÇÃO DO RAI NA DECISÃO INSTRUTÓRIA
CASO JULGADO FORMAL
Data do Acordão: 10/14/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DA GUARDA – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 4.º, 287.º E 307.º DO CPP, ARTS. 613.º, NºS 1 E 3, E 620.º DO CPC
Sumário: O despacho do Juiz de Instrução Criminal que admite o requerimento de abertura da instrução – no caso, apresentado pelo assistente – e declara a abertura da instrução faz caso julgado formal, ficando precludido o poder jurisdicional de rejeição, na decisão instrutória, daquele requerimento, fundada na inadmissibilidade legal da instrução decorrente da falta de descrição do elemento subjectivo do crime imputado ao arguido.
Decisão Texto Integral:





Acordam, em conferência, na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

S., assistente nos autos, veio interpor recurso da decisão instrutória de fls. 591/607, na parte em que:

- por inadmissibilidade legal da instrução, rejeitou o requerimento para abertura de instrução por si apresentado (a fls. 318/322 – no qual requereu a pronúncia dos arguidos M., A. e C. pela prática do crime de abuso de poder p. e p. pelo artigo 382º do CP);

- não pronunciou o arguido A. pela prática de um crime de difamação p. e p. pelo artigo 180º, n.º 1, do CP, que lhe havia imputado.


*

A razão da sua discordância encontra‑se expressa nas conclusões da motivação de recurso onde refere que:

DECISÃO RECORRIDA

1. A decisão de que se recorre é a Decisão instrutória de 29.10.2019, na parte em que decide “rejeitar o […] requerimento de abertura de instrução [apresentado pela Assistente] por inadmissibilidade legal da instrução”, assim como na parte em que decide não pronunciar o Arguido A. […] pela prática de um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180.º n.º 1, do Código Penal”.

FUNDAMENTOS DE RECURSO

2. São fundamentos de recurso os seguintes:

       a. A violação do caso julgado formado pelo Despacho proferido nos presentes autos a 5.06.2019, na parte em que decidiu julgar legalmente admissíveis o requerimento (de abertura) e a instrução requerida pela Assistente Recorrente;

       b. Erro na subsunção dos factos ao direito, na parte em que decide não pronunciar o Arguido A. pelo crime de difamação por que se encontrava acusado, apesar de reunidos indícios suficientes da prática do crime.


DA VIOLAÇÃO DO CASO JULGADO FORMAL

3. A 05.06.2019 foi, pelo Tribunal a quo, proferido Despacho nos termos do artigo 287.º, n.ºs 1, 2 e 3, do CPP, tendo o mesmo Tribunal expressamente julgado tempestivo e legalmente admissível o requerimento apresentado e a instrução requerida pela Assistente Recorrente.

4. Deste despacho não foi interposto qualquer recurso ou impugnada a respetiva validade ou eficácia, pelo que o mesmo se considera legalmente transitado em julgado.

5. Por via da Decisão recorrida – primeiro segmento –, foi violado o caso julgado formado pela decisão de 05.06.2019.

6. Depois de receber o requerimento de abertura de instrução, julgá-lo legalmente admissível e declarar aberta a instrução, o juiz de instrução está impedido de decidir, posteriormente, em sede de decisão instrutória, reverter a sua anterior decisão e declarar a inadmissibilidade legal do requerimento de abertura de instrução já julgado legalmente admissível por decisão anterior, transitada em julgado, sob pena de violação do princípio da segurança jurídica e da tutela da confiança, ínsito ao princípio do Estado de Direito democrático.

7. A Decisão recorrida violou o disposto nos artigos 620.º, n.º 1 e 625.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 4.º do CPP.

8. Por já ter decidido julgar legalmente admissível a instrução requerida pela Assistente Recorrente, cabia apenas ao Tribunal a quo decidir sobre a reunião, ou não, de indícios suficientes dos factos e crime imputados pela Assistente no requerimento de abertura de instrução que apresentou.

9. Tal questão deve ser apreciada em primeiro lugar pelo Tribunal a quo, assim se preservando o duplo grau de jurisdição que, quanto a essa questão, é expressa e legalmente previsto.

10. O mesmo é imposto, como se conclui, em face do caso julgado formado pela decisão que julgou legalmente admissível a instrução requerida pela Assistente Recorrente.

11. Nestes termos, em obediência ao disposto nos artigos 620.º, n.º 1 e 625.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi artigo 4.º do CPP, deverão V. Exas., Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação de Coimbra, revogar a Decisão instrutória recorrida, na parte em que decide “rejeitar o […] requerimento de abertura de instrução [apresentado pela Assistente] por inadmissibilidade legal da instrução”, determinando ao Tribunal a quo que, nos termos dos artigos 307.º e 308.º do Código de Processo Penal, profira decisão instrutória que, apreciando os indícios reunidos contra os Arguidos contra quem foi apresentado requerimento de abertura de instrução, imputando-se-lhes um crime de abuso de poder, decida pela sua pronúncia, ou não, em face do julgamento que realizar.


DA SUFICIÊNCIA DE INDÍCIOS DO CRIME DE DIFAMAÇÃO IMPUTADO AO ARGUIDO A.

12. Os mesmos fundamentos que conduziram o Tribunal a quo a pronunciar o Arguido M., impunham, igualmente, a pronúncia do Arguido A..

13. Por via das expressões concretamente empregues pelo Arguido A. e pelo facto de o mesmo as concretizar numa lógica sequencial de mensagens de correio eletrónico, que se sucedem umas às outras, aquele renova a intenção criminosa do Arguido M..

14. O Arguido A. não só concorda como reforça as considerações ofensivas da iniciativa do Arguido M., merecendo, por isso, o mesmo juízo de censurabilidade criminal que se firmou quanto àquele.

15. Ademais, a alusão à decisão de pretender eliminar o endereço de correio eletrónico utilizado pela Recorrente em associação à Faculdade de (...) da Universidade do (...) e de transmitir ao superior hierárquico da Assistente aquilo que o Arguido M. lhe transmitiu, evidencia, igualmente, da parte do Arguido A., uma intenção clara de exponenciar a ofensa das expressões transmitidas por aquele.

16. Impõe-se submeter a julgamento os Arguidos M. e A., por todos os factos narrados na acusação particular.

17. Assim, por se terem reunido indícios suficientes da prática, pelo Arguido A., enquanto autor material, do crime imputado na Acusação particular deduzida pela Assistente Recorrente, deverão V. Exas., Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação de Coimbra, revogar a decisão recorrida, na parte em que não pronuncia o Arguido A. pelo crime de difamação por que foi acusado e, em face do disposto no artigo 308.º, n.º 1, primeira parte, do CPP, deverão proferir decisão que o pronuncie por esse crime, enquanto autor material.

18. Devendo, igualmente, ser revogada a decisão recorrida na parte em que limita o julgamento de facto aos pontos 1, 2, 4, 10, 11, 15, 16, 17, 18, 24 e 25 da acusação particular, sendo a mesma substituída por outra que pronuncie os Arguidos por todos os factos deduzidos na Acusação particular.


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A Magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido defendeu a improcedência do recurso, tendo rematado a sua resposta nos seguintes termos:

«- Entende a Recorrente que, face ao caso julgado formal do referido despacho, não poderia a decisão instrutória ter decidido rejeitar o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente em virtude de o mesmo ser omisso quanto ao prejuízo que a assistente teve ou os benefícios que os arguidos obtiveram e quanto ao elemento subjectivo do crime de abuso de poder imputado àqueles pela assistente.

- Decorre quer da jurisprudência quer da lei que os despachos meramente tabelares, proferidos no âmbito do processo penal, porque não conhecem concretamente de questão que se vem a debater mais tarde, não têm força de caso julgado.

- O despacho proferido a 05.06.2019 não tem força de caso julgado quanto às referidas questões, pelo que a decisão instrutória não põe em causa este princípio.

- O despacho que declara aberta a instrução não se pronuncia nesta fase quanto ao conteúdo do requerimento de abertura de instrução nem sobre o mérito da causa.

- O caso julgado, enquanto pressuposto processual, conforma um efeito negativo que consiste em impedir qualquer novo julgamento da mesma questão.

- O caso julgado formal apenas tem força dentro do processo, obstando a que o juiz possa, na mesma acção, alterar a decisão proferida, mas não impede que, noutra acção, a mesma questão processual concreta seja decidida em termos diferentes, pelo mesmo tribunal ou por outro, entretanto chamado a apreciar a causa.

- Só a decisão que conheça de questões concretas produz o efeito de caso julgado formal e já não aquela que se limita a declarar, genericamente, a fórmula vaga e abstracta «por legais e tempestivos, admito os requerimentos de abertura de instrução apresentados (…)».

- No caso concreto, o despacho de admissão da abertura de instrução é meramente tabelar, limitando-se a declarar a tempestividade e legalidade do requerimento de abertura de instrução, pressupondo-a em termos genéricos, razão pela qual não deverá ter a virtualidade de conduzir à formação de caso julgado formal sobre essa questão.

- Nestes termos, o despacho proferido nos autos que considerou genericamente legal e tempestivo o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente não obsta a que, posteriormente, em sede de decisão instrutória, o Mmo. Juiz de Instrução rejeite o requerimento de abertura de instrução por ser omisso quanto ao elemento subjectivo do ilícito imputado aos arguidos e quanto a alguns dos elementos objectivos do crime em análise.

- Por outro lado, ao contrário do que defende a Recorrente, tal como bem entendeu a decisão instrutória ora recorrida, nos e-mail’s subscritos pelo arguido A. inexiste qualquer expressão ofensiva da honra e consideração da assistente.

- O facto de o arguido A. declarar em tais e-mail’s que ia tentar bloquear o e-mail da assistente, que lhe foi transmitido pelo líder do grupo geotécnico do IPG que este pensa que a mesma não pediu na universidade para assistir às conferências e que entregou uma justificação médica para explicar a sua ausência bem como as expressões “o que, mais uma vez, é de loucos”, “o problema agora é ela achar que não há limites” não atingem o núcleo essencial das qualidades morais da assistente, sendo atípicas.

- Ao Direito Penal compete apenas uma protecção subsidiária dos bens jurídicos, limitando-se a reacção penal aos casos de flagrante ruptura ou interrupção da convivência social entre os cidadãos, surgindo como uma resposta do ordenamento jurídico de “ultima ratio”, não sendo a resposta penal o único meio de protecção da sociedade, mas apenas o seu último recurso, de acordo com o princípio da intervenção mínima do Direito Penal.

- « (…) o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos em vez de garantia de paz social, que é a sua função.» (cfr. Acórdão do TRP, de 12.06.2002 (recurso n. 332/02, disponível em www.dgsi.pt).

- Ao contrário do que sustenta a Recorrente, o facto de o arguido A. responder aos e-mail’s do arguido M. não pode, obviamente, servir para o responsabilizar pelas expressões proferidas por este, sob pena de ser responsabilizado por facto de outrem no qual não teve qualquer participação e ao qual se limita a responder sem utilizar quaisquer expressões difamatórias.»

Também o arguido A. respondeu ao recurso, defendendo a sua improcedência e, quanto à suficiência de indícios do crime de difamação que lhe foi imputado pela assistente/recorrente referiu:

«- É de ressalvar que decorre unicamente de prova documental, concretamente de conversas via email que têm de ser apreciados no seu conjunto e onde se destaca que as expressões empregues pelo Arguido, não são passiveis de ser entendidas como ofensivas da honra da Assistente e muito menos, a sua conformação como indícios geradores de crime.

- Entendimento que já tinha sido sufragado pelo Digno Magistrado do Ministério Publico a fls… quando decidiu não acompanhar a (totalidade) acusação particular deduzida pela assistente.

- Do amontado de expressões ou do texto cuja autoria é imputada ao arguido inexiste qualquer ofensa à honra da Assistente e muito menos se formula um qualquer juízo negativo e pejorativo sobre a pessoa da assistente.  Aliás,

- As expressões proferidas pelo Arguido via email em resposta ao 1º arguido M., foram redigidas num contexto de questionamento de condutas e comportamentos da Assistente no âmbito da comunidade científica em que a mesma invoca títulos que não tem e dá a entender que desenvolve a investigação na Universidade do (...) sem ter qualquer ligação com a mesma, para além da sua condição de ex-aluna (designados como alumni).

- Dizer-se que este ato só por si é difamatório, não tem qualquer fundamentação, uma vez que da leitura dos emails, não se pode retirar por parte do Arguido, outro sentido que não a de um desabafo e de uma vontade em defender a credibilidade e a verdade junto da comunidade cientifica.

- E na senda deste entendimento, o Acórdão da Relação do Porto de 07-11-2012, menciona que para se “avaliar, em concreto, da específica danosidade social da expressão proferida, tem de atender-se ao sentido comum das palavras usadas, mas também ao contexto geral em que foram proferidas para se aquilatar da sua gravidade e, consequentemente, da necessidade de intervenção do direito penal.”  Logo,

- A proteção penal dada à honra só se justificará em situações em que objetivamente através das palavras proferidas e com intenção, se não teve outro sentido, que não ofender verdadeira e lesivamente um determinado indivíduo.

Ora conforme já se referiu anteriormente,

- O juiz de instrução só pode proferir despacho de pronúncia sempre que tenha existido uma recolha de indícios suficientes de que o Arguido praticou o crime conforme o artigo 308º, nº1 do Código de Processo Penal.   Portanto,

- Os indícios recolhidos em sede de inquérito consubstanciaram-se somente na única prova documental existente que eram os emails e destes, retiradas as expressões transcritas anteriormente.

- Essas mesmas expressões não se conformam com indícios suficientes ou melhor, nem sequer são indícios da existência de crime de difamação porque, mais não são do que manifestações de desagrado relativamente a condutas da Assistente. Até porque,

- Nos emails, não há concretamente um qualquer insulto ou ofensa dirigido à pessoa da Assistente não perfazendo um comportamento objetivo e eticamente reprovável que seja merecedor de uma censura e de tutela penal.  Sendo certo que,

- A Comunidade cientifica só existe devido à credibilidade das suas publicações e investigações.

- Alvitrar a posse de ligações académicas que não se verificam, falsear a ligação a uma entidade (ERSA) com a qual não é possível ter ligações individuais ou dar a impressão que pertence a uma comunidade académica (a Universidade do (...) ) quando se é apenas um ex aluno, como a assistente fez, é criar falsas credibilidades e impressões no trabalho produzido. Essas sim são habilidades que afetam a confiança na comunidade cientifica e que importam a prolação de juízos de censura sobre as mesmas.»

Nesta instância também o Exmº Procurador da República emitiu parecer no sentido de o recurso ser julgado totalmente improcedente e, consequentemente, ser confirmada a decisão recorrida.

Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417º do CPP, a assistente respondeu reiterando os fundamentos da motivação do recurso.

Os autos tiveram os vistos legais.


***

II - FUNDAMENTAÇÃO

Consta da decisão recorrida:

“I. Relatório:

A assistente S. deduziu acusação particular, a qual não foi acompanhada pelo Ministério Público, contra:

C., A. e M., todos melhor identificado nos autos, pela prática em autoria material e sob a forma consumada de um crime de difamação, previsto e punido pelos artigos 180.º, n.º1, do CP.


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Discordando do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, a folhas 190 a 194, quanto à prática, pelos arguidos C., A. e M., de um crime de abuso de poder veio a assistente S., requerer abertura de instrução, com os fundamentos contidos no seu RAI de folhas 318 a 322, pugnando a final que os arguidos sejam pronunciados pela prática de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382.º, do CP.

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Não concordando com a acusação particular contra si proferida, vieram os arguidos C., A. e M. requerer a abertura de instrução com os fundamentos constantes dos seus requerimentos de fls. 386 a 388, 389 a 390 e 470 a 471, respetivamente, negando a prática dos fatos pelas quais se encontram acusados.

Os actos de instrução:

Por despacho de fls. 533 a 535 foi declarada aberta a instrução.

Foi designada data para a audição das testemunhas e realização do debate instrutório com observância do legal formalismo.

II. Saneamento:

O Tribunal é competente em razão da matéria e hierarquia.

(Da inadmissibilidade legal do RAI da assistente)

A assistente S. veio requerer a abertura de instrução, com os fundamentos contidos no seu RAI de folhas 318 a 322, pugnando a final que os arguidos sejam pronunciados pela prática de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382.º, do CP.

Nos termos do artigo 286.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, a instrução tem como finalidade a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

Se o juiz de instrução decidir que a causa deve ser submetida a julgamento, aceitando as razões apresentadas pelo assistente, isso significa que recebe a acusação implícita no requerimento para abertura da instrução, pronunciando o arguido em conformidade com ela.

Assim, o requerimento apresentado pelo assistente para abertura de instrução há-de conter, substancialmente, uma verdadeira acusação, como resulta desde logo do n.º 2 do artigo 287.º do Código de Processo Penal, que remete para as alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º do mesmo diploma legal.

Nos termos das alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal a acusação contém, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada e ainda a indicação das disposições legais aplicáveis.

Como comenta Maia Gonçalves, o requerimento do assistente para abertura da instrução “deverá, a par dos requisitos do nº 1, revestir os de uma acusação, que serão necessários para possibilitar a realização da instrução, particularmente no tocante ao funcionamento do princípio do contraditório, e a elaboração da decisão instrutória” - in "Código de Processo Penal Anotado", 1999, 11ª Edição, pág. 552.

Neste sentido o Acórdão da Relação de Coimbra de 24 de Novembro de 1993, in CJ, T. IV, 61, ou seja, se no “requerimento de abertura de instrução em causa não se faz qualquer enumeração dos factos concretos que se pretende estarem indiciados nos autos, não se faz uma descrição da conduta do arguido.

Não compete ao Juiz de instrução perscrutar os autos para fazer a enumeração e descrição dos factos que se poderão indiciar como cometidos pelo arguido, pois, se assim fosse, estar-se-ia a transferir para o Juiz o exercício da acção penal, com violação dos princípios constitucionais e legais vigentes”.

Nesse mesmo sentido se pronunciou o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 22/5/2013, no Processo n.º 22/10.3TACBR: “O requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente há-de conter, necessariamente, a concretização precisa e concisa quer dos factos - objectivos e subjectivos conformadores do ilícito penal em causa - quer do direito, realidade não compatível com remissões, designadamente, para a “participação”.

Não existindo presunções de dolo, os princípios da vinculação temática e da garantia de defesa do arguido impõem ao assistente, requerente da abertura da instrução, entre outros, o dever de afirmar factualmente qual o tipo de atitude ético-pessoal do agente perante o bem jurídico-penal lesado pela conduta proibida.

Sendo o requerimento para abertura da instrução omisso em relação aos factos consubstanciadores do tipo objectivo e subjectivo de um determinado crime, tem de ser rejeitado, por inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do artigo 287.º, n.º 3, do CPP” (sublinhado nosso).

Assim, o requerimento para abertura de instrução deverá respeitar os requisitos exigidos para a acusação pública, isto é, deve conter não só a identificação completa do arguido, mas também a narração dos factos que lhe são imputados e a subsunção dos mesmos aos preceitos legais que constituem os ilícitos criminais respectivos. Isto é um pressuposto da instrução, uma vez que, desta forma se fixam os poderes de cognição do juiz. Sem tais elementos não poderá o juiz abrir tal fase processual.

Com efeito, tendo o requerimento de abertura de instrução por parte da assistente de configurar uma acusação é esta que condicionará a actividade de investigação do Juiz e a decisão instrutória, tal como flui, claramente, do disposto nos artigos 303.º, n.º 1 e 309.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, sendo que a decisão instrutória que viesse a pronunciar o arguido por factos não constantes daquele requerimento, estaria ferida de nulidade.

 

Apreciemos, pois, o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente.

O requerimento de abertura de instrução em causa contém os motivos de discordância do despacho de arquivamento, relata os factos que levaram a assistente a apresentar a queixa, ou seja, recomeça a contar os factos ab initio, transcreve parte dos mails que os denunciados trocaram entre si, onde referem que a assistente deverá ser retirada das listas de correspondência eletrónica, faz uma alusão às normas legais, contudo não enumera o prejuízo que teve, ou os benefícios que os denunciados obtiveram e por outro é completamento omisso quanto ao elemento subjectivo.

Sendo o processo penal enformado pelo princípio do acusatório, do qual resulta a indisponibilidade do objecto e do conteúdo do processo (princípio este que encontra acolhimento no art. 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa), constitui pressuposto processual da instrução, para além do mais e já supra referido, que haja uma imputação subjectiva dos elementos objectivos aos suspeitos da prática de qualquer facto que possa construir crime, ou tenha relevância penal, em última instância, não estando tal tarefa na disponibilidade do juiz de instrução, sob pena de incorrer na prática de uma nulidade caso se viesse a substituir à tarefe que incumbe à assistente.

Assim, e embora exista referência ao crime que supostamente os denunciados terão praticado, há uma omissão relativamente ao elemento subjectivo referente ao crime e a cada conduta que é imputada aos denunciados.

Nos termos do n.º 3 do art. 287.º do Código de Processo Penal, o requerimento de abertura de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal.

In casu, entendemos que estamos perante uma situação de inadmissibilidade legal, sendo que esta causa de rejeição é de conhecimento oficioso.

Na verdade, a realização da instrução quanto ao referido tipo de crime, ou seja a elaboração de uma decisão instrutória, constituiria um acto inútil, na medida em que, finda a mesma, sempre o tribunal ficaria sem saber quem haveria de pronunciar e a que título, pois o preenchimento de um tipo legal de crime faz-se pela imputação objectiva e subjectiva dos fatos ao seu autor, e no caso concreto inexiste qualquer imputação subjectiva, e no processo não é lícita a prática de actos inúteis – art. 137.º Código de Processo Civil.

Neste sentido vd Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 6/12/2010, Processo 121/09.4TAAVV: “O dolo constitui matéria de facto e, por isso, têm de ser devidamente alegados os factos donde tal se possa concluir

Assim sendo, não é legítimo afirmar o dolo simplesmente a partir das circunstâncias externas da acção concreta pois, a não ser assim, o arguido estaria impedido de se defender cabalmente por ignorar a modalidade do dolo.

Admitir um requerimento de instrução completamente omisso quanto ao elemento subjectivo do crime imputado ao arguido e prosseguir com a instrução estando o juiz limitado nos seus poderes cognitivos por esse requerimento, seria praticar acto inútil, o que é proibido por lei – artº 137º do Cód. Proc. Civil, ex vi do artº4º do C.P.P.”

O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 7/2005, em situação análoga veio declarar que “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.


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Nestes termos, decide-se rejeitar o presente requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal da instrução.

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Custas pela assistente, com taxa de justiça reduzida ao mínimo.

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Não há nulidades, ou outras questões prévias de que cumpra conhecer.

III. Fundamentação:

A) Considerações gerais sobre a Instrução:

(…)


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B) Os factos resultantes do inquérito:

No final do inquérito foi deduzida acusação particular pelos factos que aqui se dão por reproduzidos, a qual não foi acompanhada pelo Ministério Público.


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C) Resultado das diligências realizadas na Instrução quanto aos factos imputados:

Em sede de instrução foi ouvida a assistente e bem assim mais uma testemunha.

Contudo, as declarações por elas prestadas versaram mais sobre os factos que poderiam constituir o tipo legal de crime de abuso de poder. Dado o supra decidido, e porque a prova, relativa ao tipo legal de crime de difamação se resume a prova documental (mails), desnecessário se torna analisar, nesta sede, as declarações prestadas.

D) Ponderação global dos Indícios, por referência ao crime imputado:

Chegados a este ponto, importa proceder ao enquadramento jurídico-penal dos factos pelos quais os arguidos se encontram acusado pela acusação particular:

Dispõe o n.º 1 do artigo 180.º do Código Penal que: “Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra e consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.

A este nível, ou seja, a propósito da imputação de factos ou juízos ofensivos da honra e consideração, haverá que averiguar a existência, ou não, de uma conduta desvaliosa e pela avaliação do nível do desvalor da ofensa, a partir do qual a conduta do agente é susceptível de censura jurídico-penal.

O significado das palavras usadas - com vista a concluir-se estarmos perante palavras ofensivas da honra e consideração de outrem – há-de procurar-se no valor de uso da linguagem, apreciado no contexto situacional (neste sentido vide Faria Costa, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, vol. I, p. 630).

Pretende o referido tipo legal de crime proteger o bem jurídico honra, vista enquanto valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade mas também a sua reputação ou consideração exterior.

A honra é um direito constitucionalmente consagrado no artigo 26º da Constituição, onde expressamente se alude ao direito ao bom nome e reputação, dando guarida à dimensão antropológica assente na dicotomia dos seres humanos em duas categorias fundamentais: «os que possuem honra e os que a não possuem», na expressão de Peristiany in Honra e Vergonha, Valores das Sociedades Mediterrânicas. Fundação Gulbenkian, 1988, p. 4.

Na síntese conhecida de José Beleza dos Santos, in R.L.J ano 92º pg 164, “a honra é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral que são razoavelmente consideradas essenciais para que o individuo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale”.

A tutela jurídico penal da honra, como bem jurídico constitucionalmente protegido, quando a mesma é questionada por actos não dirigidos directa e pessoalmente ao lesado, exige a imputação de factos ou a formulação de juízos de valor sobre uma pessoa ofensivos da sua honra e consideração.

Distingue-se do tipo legal da difamação pela imputação directa ou indirecta dos factos ou juízos desonrosos, i. e., e no seguimento de Faria Costa, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, vol. I, p. 608, enquanto que a difamação pressupõe uma relação tipicamente triangular - sendo feita perante uma terceira pessoa que é instrumentalizada para servir os intentos do agente – a injúria importa uma conexão bipolar, sendo levada a cabo perante a vítima.

Escrevem Leal - Henriques e Simas Santos, “O Código Penal de 1982”, Vol. II, 1986, pag. 196 “... a difamação compreende comportamentos lesivos da honra e consideração de alguém..”, constituindo a honra “a essência da personalidade humana” o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui, como sejam o carácter, a lealdade, a probidade, a rectidão, isto é, a dignidade subjectiva, o património pessoal e interno de cada um; e a consideração “o património de bom nome, de crédito, de confiança que cada um pode ter adquirido ao longo da sua vida, sendo como que o aspecto exterior da honra, já que provém do juízo em que somos tidos pelos outros.

“A consideração será o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, a reputação, a boa fama, a estima, a dignidade objectiva, que é o mesmo que dizer, a forma como a sociedade vê cada cidadão - a opinião pública (...) a honra «objectivamente», é a opinião dos outros sobre o nosso mérito; subjectivamente...o nosso receio diante dessa opinião..”.

A defesa destes bens reveste dignidade penal não só porque são valores fundamentais porque normalmente, como bem se salienta no Ac. do STJ - CJ, Tomo III, pag. 149, “...o ataque a esses valores, por meio de difamação ou injúrias, despoleta uma expressão de ódios, aversões e ressentimentos causadora de perturbação e mau estar social”. O crime de difamação exige para além do elemento objectivo referenciado, a verificação de uma conduta dolosa do agente.

Mas relativamente ao elemento subjectivo do crime de difamação, a jurisprudência e doutrina têm sido unânimes no sentido de referir que basta o dolo genérico em qualquer uma das suas formas (arts. 13º e 14º do Cod. Penal), “bastando, portanto, que o agente, ao realizar voluntariamente a acção, se tenha dado conta da capacidade ofensiva das palavras públicas, isto é, que tenha conhecimento que a imputação do facto, mesmo sob a forma de suspeita, é objectivamente ofensiva da integridade moral da pessoa visada, não se exigindo qualquer finalidade ou motivação especial”. - vide, a título de exemplo, Ac. Rel. Porto de 25 de Janeiro de 1995, CJ, Ano XX, Tomo I, pág. 245.

Como é sabido, existe em cada comunidade um sentimento comum, por todos ou por uma maioria aceite, do que razoavelmente se deverá ter por consentido ou do que será susceptível de ultrapassar limites mínimos de convivência social normal, numa perspectiva de respeito cívico, social e moral

Por outro lado, conforme refere o Cons. O. Mendes, in O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, pág. 37 e seguintes, difamar ou injuriar mais não é basicamente que imputar a outra pessoa facto ou factos ofensivos da sua honra e consideração, dependendo a tutela penal da intensidade da ofensa ou perigo de ofensa, porque “nem todo o facto que perturba ou humilha cabe na previsão das normas dos arts. 180 e 181”, devendo excluir-se dessa tutela os comportamentos que fiquem aquém da antijuricidade. Mas também conclui que a “gravidade” da ofensa ou do perigo de ofensa não é elemento constitutivo dos crimes de difamação e de injúrias.

Devendo haver normas de conduta com regras que estabelecem a obrigação e o dever de cada um se comportar perante os demais com um mínimo de respeito moral, cívico e social, “esse mínimo de respeito não se confunde com educação e cortesia. Assim, os comportamentos indelicados, e mesmo boçais, não fazem parte daquele mínimo de respeito”. Concluindo que, o direito penal, “neste particular, não deve, nem pode proteger as pessoas face a meras impertinências”.

Refere ainda Augusto Dias Silva (Cfr. Alguns aspectos do regime jurídico dos crimes de difamação e injúrias, AAFDL, 1989, pág. 17), o conteúdo deste direito «é constituído basicamente por uma pretensão de cada um ao reconhecimento da sua dignidade por parte dos outros», sendo certo que «sem a observância social desta condição não é possível a pessoa realizar os seus planos de Vida e os seus ideais de excelência na multiplicidade de contextos e relações socais em que intervém».

Tal crime pode ser concretizado por ofensas a duas ordens de interesses humanos, que se traduzem pelas expressões honra e consideração.

Como referem SIMAS SANTOS e LEAL HENRIQUES, a honra pode ser entendida como «a essência da personalidade humana, referindo-se, propriamente, à probidade, à rectidão, à lealdade, ao carácter...» (Ministério Público - Coimbra - MANUEL LEAL HENRIQUES e MANUEL SIMAS-SANTOS, Código Penal Anotado, 3.ª Edição, p. 469), enquanto que a consideração é o «património de bom nome, de crédito, de confiança que cada um pode ter adquirido ao longo da sua vida, sendo como que o aspecto exterior da honra, já que provém do juízo em que somos tidos pelos outros» (Ministério Público - Coimbra - MANUEL LEAL HENRIQUES e MANUEL SIMAS-SANTOS, Código Penal Anotado, 3.ª Edição, p. 469).

Por seu lado, como dizia BELEZA DOS SANTOS, «a honra é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale. A consideração é aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa à falta de consideração e ao desprezo público» - RLJ, ano 92°, págs. 161 e 168.

Por último, prescreve o artigo 180.º, n.º 2, alínea b), do CP que:

2 - A conduta não é punível quando: a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.


*

E) Indícios recolhidos em sede de inquérito.

Em sede de inquérito, e como se trata unicamente de prova documental (mails), dão-se aqui os mesmos por reproduzidos.

Contudo, como já supra se referiu, não poderemos olvidar que nos encontramos perante uma acusação particular e que a mesma deverá revestir a forma de uma acusação.

Nos termos das alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal a acusação contém, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada e ainda a indicação das disposições legais aplicáveis.

Assim, na sua acusação particular, começa, desde logo, a assistente por referir que os denunciados afirmaram, entre outras coisas que:

- a assistente não é afiliada na Universidade do (...) ,

- que estaria a usar falsas afiliações nas suas publicações,

- que a mesma iria a conferências sem autorização do Instituto da (...) apresentando para o efeito atestados médicos,

- e que a assistente teria um grave problema mental.

Para fundamentar, factualmente, as suas conclusões, transcreve e sublinha os mails trocados, servindo estes de acusação.

Assim, refere, a páginas 241, o mail, datado de 22 de junho de 2017, da autoria de M., onde este refere que “…o caso de alguém que se fez passar por membro da ERSA….”, “…Ela tem uma perturbação mental muito grave…”, “…Ela está a usar falsos vínculos para as publicações…”

Depois a folhas 242, nos pontos 5 e 7, transcreve parte de um mail, referindo que o mesmo é do “segundo arguido” (A.), e ainda na mesma página, transcreve parte de um mail (ponto 6), referindo que o mesmo é da autoria do primeiro arguido (M.).

Nesses mails, e com destaque, a mesma sublinha as expressões “vou tentar bloquear o seu mail da Universidade do (...) ….Eles não vão deixa-la entrar na ERSA…O D.é um amigo próximo e eu contei-lhe a situação….com o líder do grupo geotécnico da universidade dela….Ele pensa que ela entregou uma justificação médica para explicar a sua ausência o que, mais uma vez, é de loucos”

Ora a acusação, ou seja, a imputação de factos, que preencham um tipo de crime, são os que supra se transcreveram, e desde logo, inexiste qualquer facto imputado ao arguido C.

F) Subsunção dos factos aos referidos elementos do tipo legal do crime em causa

Analisando as expressões supra referidas, as quais são a acusação deduzida pela assistente, teremos que referir que só duas delas são idóneas a provocar a ofensa da honra da assistente e a sua consideração, uma vez que o arguido M., sobre a mesma, formulou um juízo de valor negativo escrevendo que

…Ela está a usar falsos vínculos para as publicações

Ela tem uma perturbação mental muito grave.

Contudo, nesta parte, não poderemos deixar de referir, que a assistente, imputa a expressão muito grave, quando o mail só refere grave (vd. fls. 258).

Quanto às restantes afirmações:

…o caso de alguém que se fez passar por membro da ERSA….

vou tentar bloquear o seu mail da Universidade do (...) ….

Eles não vão deixa-la entrar na ERSA…

O D.é um amigo próximo e eu contei-lhe a situação….

com o líder do grupo geotécnico da universidade dela….

Ele pensa que ela entregou uma justificação médica para explicar a sua ausência o que, mais uma vez, é de loucos”

Não se descortina onde se encontra alguma expressão ofensiva da honra e consideração da assistente, pois elas surgem dentro do contexto dos mails, não se referem à honra e consideração da assistente, nem formula um juízo negativo sobre a mesma e muito menos é afirmado, como diz a assistente - que a mesma iria a conferências sem autorização do Instituto da (...) apresentando para o efeito atestados médicos, o que se refere é que Ele pensa que ela entregou uma justificação médica.

Perante todo este quadro factual e probatório é manifesto que a prova até este momento recolhida, e sendo unicamente prova documental, torna muito mais provável que os arguidos A. e C. – diga-se de passagem que quanto a este a assistente nem sequer imputa qualquer facto -, em sede de julgamento, venham a ser absolvidos do crime que lhes é imputado.

Assim, consideram “suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança” (artigo 283º, n.º2, do Código de Processo Penal).

O Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 16 de Outubro de 2012, do Relator ANTÓNIO JOÃO LATAS estabelece que: “1. A existência de indícios suficientes significa que os indícios, com o sentido de conjunto da prova recolhida nas fases preliminares, são suficientes para submeter o arguido a julgamento, o que se verifica quando deles resultar uma possibilidade razoável de o arguido vir a ser condenado. 2. O juízo ou convicção a estabelecer na fase de instrução, como no termo da fase de inquérito, há-de ser equivalente ao de julgamento, designadamente no que respeita à apreciação do material probatório e ao grau de convicção, que não se compadece com a ideia de verosimilhança ou de admissão da margem “razoável” de dúvida. A prova suficiente há-de corresponder à que “… em julgamento levaria à condenação, se aquele ocorresse com o quadro probatório, no tempo e nas circunstâncias que determinam o libelo acusatório” ou o despacho de pronúncia. (…)” (sublinhado nosso) (disponível em www.dgsi.pt).

Por outro lado, prevê o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, do Relator ARTUR OLIVEIRA, de 20 de Janeiro de 2010, que “Os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, do Estado de Direito democrático e da presunção da inocência impõem que a expressão indícios suficientes (308º/1CPP) seja interpretada no sentido de exigir uma probabilidade particularmente qualificada de futura condenação, fruto de uma avaliação dos indícios tão exigente quanto a contida na sentença final.” (disponível em www.dgsi.pt).

Ora, conforme já se referiu anteriormente, nos termos do artigo 308.°, n.º 1 do Código de Processo Penal, o juiz de instrução profere despacho de pronúncia sempre que se tenham recolhido indícios suficientes de que se praticou um crime e de quem foram os seus autores.

Atento o supra exposto, os indícios apurados não se mostram idóneos e suficientes para garantir, com qualquer probabilidade, que aos arguidos A. e C., venha a ser aplicada uma pena a final, devendo, em consequência, ser proferido despacho de não pronúncia quanto à prática, pelos arguidos, do crime que lhes é imputado na acusação particular.

Relativamente ao arguido M., e dado as duas expressões, por si usadas e supra referidas, as quais consideramos serem ofensivas da honra e consideração da assistente, e havendo indícios suficientes da sua prática, a final, o mesmo será pronunciado pela prática do crime pelo qual vem acusado.


**

IV. Decisão:

Nestes termos, não pronuncio A. e C., pela prática de um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180.º n.º 1, do Código Penal, e

Pronuncio, para ser julgado em processo comum e com intervenção do tribunal singular:

M., melhor identificado nos autos,

porquanto indiciam suficientemente os autos que o arguido praticou os factos constes da acusação particular de folhas 240 a 247 (pontos 1, 2, 4,10, 11, 15, 16, 17, 18, 24 e 25), contudo, sempre no singular, ou seja, quando se referem aos arguidos, será de referir ao arguido, os quais aqui dou por integralmente reproduzidos, por uma economia processual.

Desta forma, cometeu o arguido um crime de difamação, p.e p. pelo art. 180.º, n.º 1, do C.Penal.

(…).


***

APRECIANDO

Tendo em conta as conclusões da motivação do recurso e que estas limitam o seu objecto, as questões suscitadas e a decidir consistem em saber:

a. Se a decisão instrutória ao rejeitar o requerimento de abertura de instrução [apresentado pela Assistente], quando o Mmº JIC já havia proferido um primeiro despacho a admitir o RAI da assistente (e a declarar aberta a instrução) ofendeu o caso julgado formal que se formou com a prolação da primeira decisão;

 b. Se nos autos existem indícios suficientes que justifiquem a pronúncia do arguido A. pela prática do crime de difamação p. e p. pelo artigo 180º, n.º 1, do Código Penal, que lhe fora imputado pela assistente.


*

A-

Por discordar do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, a folhas 190 a 194, quanto à prática, pelos arguidos C., A. e M., de um crime de abuso de poder p. e p. pelo artigo 382.º, do CP, veio a assistente S. requerer a abertura de instrução, com os fundamentos contidos no seu RAI de folhas 318 a 322, pugnando pela pronúncia dos arguidos quanto à prática do referido crime.

Por despacho de fls. 533/535, o Mmº JIC admitiu o RAI apresentado pela assistente, declarou aberta a instrução de harmonia com o disposto no artigo 287º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPP e, determinou a notificação a que alude o n.º 5 deste precito; ainda, ordenou a autuação como instrução e, deferiu parcialmente as diligências probatórias requeridas pela assistente, tendo designado data para a audição da assistente e inquirição de duas testemunhas, seguida de debate instrutório.

Após, foi proferida a decisão instrutória, ora sob recurso, que, para além do mais, decidiu rejeitar o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente, por inadmissibilidade legal da instrução, por considerar que há uma omissão relativamente ao elemento subjectivo referente ao crime e a cada conduta que é imputada aos denunciados.

Insurge-se a assistente/recorrente com o, assim, decidido, tendo alegado:

“A 05.06.2019 foi, pelo Tribunal a quo, proferido Despacho nos termos do artigo 287.º, n.ºs 1, 2 e 3, do CPP, tendo o mesmo Tribunal expressamente julgado tempestivo e legalmente admissível o requerimento apresentado e a instrução requerida pela Assistente Recorrente.

Deste despacho não foi interposto qualquer recurso ou impugnada a respetiva validade ou eficácia, pelo que o mesmo se considera legalmente transitado em julgado.

Por via da Decisão recorrida – primeiro segmento –, foi violado o caso julgado formado pela decisão de 05.06.2019.

Depois de receber o requerimento de abertura de instrução, julgá-lo legalmente admissível e declarar aberta a instrução, o juiz de instrução está impedido de, posteriormente, em sede de decisão instrutória, reverter a sua anterior decisão e declarar a inadmissibilidade legal do requerimento de abertura de instrução já julgado legalmente admissível por decisão anterior, transitada em julgado, sob pena de violação do princípio da segurança jurídica e da tutela da confiança, ínsito ao princípio do Estado de Direito democrático.

Por já ter decidido julgar legalmente admissível a instrução requerida pela Assistente Recorrente, cabia apenas ao Tribunal a quo decidir sobre a reunião, ou não, de indícios suficientes dos factos e crime imputados pela Assistente no requerimento de abertura de instrução que apresentou.

Tal questão deve ser apreciada em primeiro lugar pelo Tribunal a quo, assim se preservando o duplo grau de jurisdição que, quanto a essa questão, é expressa e legalmente previsto.

O mesmo é imposto, como se conclui, em face do caso julgado formado pela decisão que julgou legalmente admissível a instrução requerida pela Assistente Recorrente.

Nestes termos, (...) deverá se revogada a Decisão instrutória recorrida, na parte em que decide “rejeitar o requerimento de abertura de instrução [apresentado pela Assistente] por inadmissibilidade legal da instrução”, determinando ao Tribunal a quo que, nos termos dos artigos 307.º e 308.º do Código de Processo Penal, profira decisão instrutória que, apreciando os indícios reunidos contra os Arguidos contra quem foi apresentado requerimento de abertura de instrução, imputando-lhes um crime de abuso de poder, decida pela sua pronúncia, ou não, em face do julgamento que realizar. ”.

Portanto, importa saber se a decisão instrutória ao rejeitar o requerimento de abertura de instrução [apresentado pela Assistente], quando o Mmº JIC já havia proferido um primeiro despacho a admitir o RAI da assistente (e a declarar aberta a instrução) ofendeu o caso julgado formal que se formou com a prolação da primeira decisão.

E, a resposta deverá ser afirmativa, pelo que,

Desde já avançamos que, neste particular, concordamos com a recorrente.

Vejamos,

A instrução, sendo facultativa, visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art. 286º do CPP).

Ao lançar mão da instrução, quando o MP se abstém de acusar, o assistente promove uma verdadeira fiscalização da legalidade da actuação do MP, atribuindo-lhe o legislador legitimidade para submeter aquela apreciação à jurisdição ([1]).

De harmonia com o disposto no n.º 2 do artigo 287º do CPP o requerimento para a abertura da instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que for caso disso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar. E, tratando-se de requerimento do assistente, deve o mesmo conter a narração ainda que sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e a indicação das disposições legais aplicáveis (art. 283º, n.º 3, alíneas b) e c) do CPP).

Tal significa que, tendo o MP arquivado o inquérito, o requerimento do assistente para a abertura da instrução vai funcionar como uma acusação, no sentido de que vai delimitar o objecto do processo, traçando os limites dentro dos quais se vai desenvolver a actividade investigatória e cognitiva do juiz de instrução. Daí, as citadas exigências das alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283º, sob pena de nulidade.

Este é, aliás, o entendimento que resulta do disposto nos artigos 303º, n.º 3 e 309º do CPP, onde se proíbe a pronúncia do arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos no requerimento do assistente para a abertura da instrução.

Com efeito, o processo criminal tem estrutura acusatória (artigo 32º, n.º 5 da CRP), o que significa que o objecto do processo é fixado pela acusação, a qual delimita o poder cognitivo do juiz, de forma a assegurar todas as garantias de defesa do arguido (n.º 1 do artigo 32º).

Logo, não sendo deduzida acusação, o requerimento para abertura da instrução formulado pelo assistente irá delimitar o thema decidendum.

Acresce que, como estabelece o n.º 3 do citado artigo 287º, tal requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.

Portanto, o assistente não pode requerer a instrução sem a mínima delimitação do campo factual sobre que aquela deve versar, sob pena de se tornar inexequível, ficando o juiz sem saber sobre que factos aquele deseja que se produza prova ([2]).

Como refere Maia Gonçalves ([3]) terá o assistente de enumerar e descrever os factos concretos que pretende imputar ao arguido, e que serão necessários para possibilitar a realização da instrução particularmente no tocante ao princípio do contraditório e a elaboração da decisão instrutória.

Por outro lado, a instrução é de considerar legalmente inadmissível quando, pela simples análise do RAI, sem recurso a qualquer outro elemento externo, se concluir que os factos narrados pelo assistente jamais podem levar à aplicação de uma pena ao arguido.

Na situação em apreço, a decisão instrutória decidiu rejeitar o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente, por inadmissibilidade legal da instrução, por considerar que há uma omissão relativamente ao elemento subjectivo referente ao crime e a cada conduta que é imputada aos denunciados.

Contudo, como já mencionado, o RAI havia sido admitido, a fase instrutória foi declarada aberta (tendo sido realizadas as diligências probatórias requeridas pela assistente e realizado o debate instrutório) e, foi encerrada por via da prolacção da decisão instrutória.

Ora, o despacho que admitiu o RAI e declarou aberta a instrução foi notificado ao Ministério Público, à assistente, aos arguidos e aos seus defensores, de acordo com o disposto no n.º 5 do artigo 287º do CPP, pelo que transitou em julgado.

Assim, a decisão recorrida na parte em que rejeitou o requerimento de abertura de instrução, que antes havia admitido, desconsiderou princípios basilares do direito, como os da segurança e confiança jurídicas e da protecção das expectativas que haviam sido criados por decisão judicial anterior que não foi objecto de recurso ou de qualquer impugnação pelos sujeitos processuais.

Defende o Ministério Público, junto do tribunal a quo e nesta instância, que “Só a decisão que conheça de questões concretas produz o efeito de caso julgado formal e já não aquela que se limita a declarar, genericamente, a fórmula vaga e abstracta «por legais e tempestivos, admito os requerimentos de abertura de instrução apresentados (…)».

No caso concreto, o despacho de admissão da abertura de instrução é meramente tabelar, limitando-se a declarar a tempestividade e legalidade do requerimento de abertura de instrução, pressupondo-a em termos genéricos, razão pela qual não deverá ter a virtualidade de conduzir à formação de caso julgado formal sobre essa questão.”

Ora,

Como sublinha Damião da Cunha ([4]) “qualquer decisão, mesmo que não esteja em causa uma decisão de mérito, contém um efeito de vinculação processual” ………… “os conceitos de «efeito de vinculação intraprocessual» e de «preclusão» - referidos ao âmbito intrínseco da actividade jurisdicional – querem significar que toda e qualquer decisão (incontestável ou tornada incontestável) tomada por um juiz, implica necessariamente tanto um efeito negativo, de precludir uma «reapreciação» (portanto uma proibição de «regressão»), como um efeito positivo de vincular o juiz a que, no futuro (isto é, no decurso do processo), se conforme com a decisão anteriormente tomada (sob pena de, também aqui, «regredir» no procedimento).

Nos termos do artigo 613º, n.ºs 1 e 3 do CPC (aplicável ex vi do artigo 4º do CPP), proferida a sentença (ou o despacho), fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa. A sentença ou o despacho em causa, passam a ter força de caso julgado dentro do processo e fora dele (artigos 619º a 621º do CPC).

E, dispõe o artigo 620º (sob a epígrafe Caso julgado formal) do CPC que as sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo, excluindo-se os despachos que não admitem recurso: os de mero expediente e os proferidos no uso legal de um poder discricionário.

Assim,

O caso julgado formal apenas tem força dentro do processo, obstando a que o juiz possa, na mesma acção, alterar a decisão proferida, mas não impede que, noutra acção, a mesma questão processual concreta seja decidida em termos diferentes, pelo mesmo tribunal ou por outro, entretanto chamado a apreciar a causa.

O caso julgado formal respeita a decisões proferidas no processo, no sentido de determinação da estabilidade instrumental do processo em relação à finalidade a que está adstrito – Ac. do STJ de 18-9-2013, proc. n.º 438/08.5SGLSB.L1-B.S1.

Aqui chegados deveremos concluir que, o despacho do Mmº JIC que admitiu o requerimento da abertura de instrução apresentado pela assistente e declarou aberta a instrução está coberto pelo caso julgado formal.

Em consequência,

Deve a decisão instrutória ser revogada na parte em que rejeitou o requerimento de abertura de instrução, e ser substituída por outra que aprecie a suficiência ou insuficiência dos indícios da prática, pelos arguidos, do crime de abuso de poder p. e p. pelo artigo 382.º, do CP, que lhes foi imputado pela assistente.


***

B-

Recorre também a assistente da decisão instrutória, na parte em que não pronunciou o arguido A. pela prática de um crime de difamação p. e p. pelo artigo 180º, n.º 1, do CP, que lhe havia imputado.

Para tanto alega:

“Os mesmos fundamentos que conduziram o Tribunal a quo a pronunciar o Arguido M., impunham, igualmente, a pronúncia do Arguido A., por via das expressões por este empregues e, pelo facto de o mesmo as concretizar numa lógica sequencial de mensagens de correio eletrónico, que se sucedem umas às outras, aquele renova a intenção criminosa do Arguido M..

O Arguido A. não só concorda como reforça as considerações ofensivas da iniciativa do Arguido M., merecendo, por isso, o mesmo juízo de censurabilidade criminal que se firmou quanto àquele.

Ademais, a alusão à decisão de pretender eliminar o endereço de correio eletrónico utilizado pela Recorrente em associação à Faculdade de (...) da Universidade do (...) e de transmitir ao superior hierárquico da Assistente aquilo que o Arguido M. lhe transmitiu, evidencia, igualmente, da parte do Arguido A., uma intenção clara de exponenciar a ofensa das expressões transmitidas por aquele.”

A assistente S. deduziu acusação particular, a qual não foi acompanhada pelo Ministério Público, contra os arguidos C., A. e M., imputando-lhes a prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de difamação p. e p. pelo artigo 180.º, n.º 1, do CP.

Não concordando com a acusação particular contra si proferida, os arguidos requereram a abertura de instrução com os fundamentos constantes dos seus requerimentos de fls. 386 a 388, 389 a 390 e 470 a 471, respectivamente, negando a prática dos factos pelas quais se encontram acusados.

Quanto ao imputado crime, a decisão instrutória não pronunciou A. e C.; tendo apenas pronunciado o arguido M..

Como já foi dito, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art. 286º do CPP).

E, tal como resulta dos artigos 277º, n.º 2 e 308º, n.º 1, ambos do CPP, um dos fundamentos do arquivamento do inquérito pelo MP e do despacho de não pronúncia proferido pelo Juiz de Instrução é a insuficiência dos indícios da verificação do crime ou de quem foram os seus agentes.

Com efeito, estabelece este último preceito que “Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.

Contrariamente ao que acontecia na vigência do CPP de 1929, fornece-nos agora a lei o conceito de indícios suficientes.

Assim, preceitua o artigo 283º, n.º 2 do CPP ([5]) que “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.

Aliás, este era também o sentido dado por Luís Osório ([6]) quando afirmava que “devem considerar-se indícios suficientes aqueles que fazem nascer em quem os aprecia a convicção de que o réu poderá vir a ser condenado”. 

Por sua vez, refere o Prof. Figueiredo Dias ([7]) que “os indícios só serão suficientes, e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição”. Mais acrescenta que “tem razão Castanheira Neves quando ensina que na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final, só que a instrução preparatória (e até a contraditória) não mobiliza os mesmos elementos probatórios e de esclarecimento e, portanto, de convicção, que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença, pode ser bastante ou suficiente para a acusação”.

Com este grau de exigência, ou seja, “ao exigir-se a possibilidade razoável de condenação e não uma possibilidade remota, visa-se, por um lado, não sujeitar o arguido a vexames e incómodos inúteis e, por outro lado, não sobrecarregar a máquina judiciária com tramitações inúteis, em obediência, aliás, ao traçado nas alíneas 1 e 2 da Lei n.º 43/86, de 30 de Setembro (a Lei de autorização legislativa ao abrigo da qual foi publicado o DL n.º 78/87, de 17 de Fevereiro, que aprovou o Código de Processo Penal)”([8]). 

Também a jurisprudência tem entendido que “nas fases preliminares do processo, não se visa alcançar a demonstração da realidade dos factos, antes tão só indícios, sinais, de que um crime foi cometido por determinado arguido, constituindo as provas reunidas nessa fase pressuposto, não da decisão de mérito, mas da decisão processual da prossecução dos autos para julgamento” – entre outros o Ac. da RP de 20-10-93, proc. 679/93-3ª.

Pretende a recorrente a pronúncia do arguido A. relativamente ao crime de difamação.

Na origem do imputado crime está um e-mail do arguido A. recebido no endereço electrónico da assistente, o qual também foi remetido para o arguido M.. Através desse e-mail a assistente teve acesso a uma troca de e-mails entre os referidos arguidos, nos quais, segundo a assistente, estes lhe imputam factos que ofendem a sua honra e consideração.

Como refere a decisão instrutória “Em sede de inquérito, e como se trata unicamente de prova documental (mails), dão-se aqui os mesmos por reproduzidos.”

E, tendo em conta os elementos do tipo legal do crime em causa, o Mmº Juiz de Instrução analisando as expressões constantes nos referidos e-mails concluiu que só duas das expressões são idóneas a provocar a ofensa da honra da assistente e a sua consideração, uma vez que o arguido M., sobre a mesma, formulou um juízo de valor negativo escrevendo que:

… Ela está a usar falsos vínculos para as publicações

Ela tem uma perturbação mental grave (cfr. fls. 258 e não “muito grave” como refere a assistente).

Quanto às restantes afirmações:

…o caso de alguém que se fez passar por membro da ERSA….

vou tentar bloquear o seu mail da Universidade do (...) ….

Eles não vão deixa-la entrar na ERSA…

O D.é um amigo próximo e eu contei-lhe a situação….

com o líder do grupo geotécnico da universidade dela….

Ele pensa que ela entregou uma justificação médica para explicar a sua ausência o que, mais uma vez, é de loucos”  ----------------

------------ considerou a decisão recorrida que não se descortina onde se encontra alguma expressão ofensiva da honra e consideração da assistente, pois elas surgem dentro do contexto dos mails, não se referem à honra e consideração da assistente, nem formula um juízo negativo sobre a mesma e muito menos é afirmado, como diz a assistente - que a mesma iria a conferências sem autorização do Instituto da (...) apresentando para o efeito atestados médicos, o que se refere é que Ele pensa que ela entregou uma justificação médica.

Tendo concluído que: Perante todo este quadro factual e probatório é manifesto que a prova até este momento recolhida, e sendo unicamente prova documental, torna muito mais provável que os arguidos A. e C. – diga-se de passagem que quanto a este a assistente nem sequer imputa qualquer facto -, em sede de julgamento, venham a ser absolvidos do crime que lhes é imputado.

Atento o supra exposto, os indícios apurados não se mostram idóneos e suficientes para garantir, com qualquer probabilidade, que aos arguidos A. e C., venha a ser aplicada uma pena a final, devendo, em consequência, ser proferido despacho de não pronúncia quanto à prática, pelos arguidos, do crime que lhes é imputado na acusação particular.

Ora, como bem observa a Magistrada do Ministério Público na resposta ao recurso: “Não resulta da transcrição dos e-mails, feita pela própria assistente nas suas alegações de recurso, qualquer expressão ofensiva da honra e consideração da assistente. O facto de o arguido A. declarar em tais e-mail’s que ia tentar bloquear o e-mail da assistente, que lhe foi transmitido pelo líder do grupo geotécnico do IPG que este pensa que a mesma não pediu na universidade para assistir às conferências e que entregou uma justificação médica para explicar a sua ausência bem como as expressões “o que, mais uma vez, é de loucos”, “o problema agora é ela achar que não há limites” não atingem o núcleo essencial das qualidades morais da assistente, sendo atípicas.”

Acrescendo que, e contrariamente ao defendido pela recorrente, o facto de o arguido A. responder aos e-mail’s do arguido M. não pode, obviamente, servir para o responsabilizar pelas expressões proferidas por este, sob pena de ser responsabilizado por facto de outrem no qual não teve qualquer participação e ao qual se limita a responder sem utilizar quaisquer expressões difamatórias.

Deste modo, face aos elementos de prova existentes no processo, não se descortinando dos e-mails transcritos quaisquer expressões escritas pelo arguido A. ofensivas da honra e consideração da assistente, ou seja, susceptíveis de lançarem descrédito sobre a mesma, não se advinha como possível a formulação de um juízo de probabilidade razoável de condenação, como determina o n.º 2 do artigo 283º do CPP.

Termos em que, nesta parte, não merece censura a decisão recorrida.


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III - DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:

- Conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência;

   a) revogar a decisão instrutória na parte em que rejeitou o requerimento de abertura de instrução, a qual deverá ser substituída por outra que aprecie a suficiência ou insuficiência dos indícios da prática, pelos arguidos, do crime de abuso de poder p. e p. pelo artigo 382.º, do CP, que lhes foi imputado pela assistente;

    b) manter, no mais, a decisão recorrida.

Sem custas (artigo 513º, n.º 1 do CPP, na redacção dada pelo DL n.º 34/2008, de 26.02).


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Coimbra, 14-10-2020

Texto processado em computador e integralmente revisto pela relatora e assinado electronicamente - artigo 94º, n.º 2 do CPP

Elisa Sales – relatora

Jorge Jacob - adjunto


[1] - Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pág. 140.
[2] - Souto Moura, Jornadas de Direito Processual Penal, págs. 120 e 121.
[3] - in CPP anotado, pág. 360.
[4] - O Caso Julgado Parcial, Questão da Culpabilidade e Questão da Sanção num Processo de Estrutura Acusatória, 2002, págs. 143/144.
[5] - Alteração da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto.
[6] - Comentário ao Código de Processo Penal Português, Vol. IV, pág. 411.
[7] - Direito Processual Penal, Vol. I, págs. 133 e 155.
[8] - António Tolda Pinto, Tramitação Processual Penal, 2ª edição, pág. 701.