Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2544/12.2TBVIS. C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
ENCERRAMENTO
PROCESSO
Data do Acordão: 10/28/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:
VISEU - 4º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 230, 233, 237, 239 CIRE
Sumário: No caso de ter sido proferido despacho inicial positivo sobre o pedido de exoneração do passivo, e não ter havido recurso do mesmo, não deve ser declarado encerrado o processo de insolvência ao abrigo do art. 230º, nº 1, e), do CIRE, se nessa altura ainda não tiver sido realizado o rateio final da liquidação da massa insolvente.
Decisão Texto Integral:
I – Relatório

1. V (…), residente em Viseu, apresentou-se à insolvência e requereu exoneração do passivo restante.

Foi proferida sentença que declarou o requerente insolvente.

Foi, depois, proferido despacho que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.

Posteriormente foi proferido novo despacho a fixar o montante necessário para garantir o sustento do devedor.

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Depois, foi proferida decisão que, ao abrigo do art. 230º, nº 1, e), e para os efeitos do art. 233º, ambos do CIRE declarou encerrado o processo e, consequentemente, declarou, também: - a cessação de todos os efeitos que resultaram da declaração de insolvência; - a cessação das atribuições da comissão de credores e do administrador da insolvência; (…); a extinção da instância dos processos de verificação de créditos e de restituição e separação de bens já liquidados que se encontrem pendentes.

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2. Banco (…), SA, credor reclamante graduado, recorreu, tendo formulado as seguintes conclusões:

1. O crédito reclamado pelo Banco recorrente goza parcialmente de garantia real que lhe advém da constituição e registo da hipoteca sobre um imóvel que pertencia ao insolvente e a terceiro e esta confere ao credor o direito de ser pago pelo valor do bem hipotecado ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores – cfr. artigo 686.º do Código Civil.

2. De acordo com a sentença de verificação e graduação de créditos proferida no apenso de reclamação de créditos, o referido crédito foi reconhecido como garantido e graduado em primeiro lugar pelo produto da venda da meação do imóvel apreendido.

3. Venda que ocorreu através de venda judicial por abertura de propostas em carta fechada realizada em 12.09.2013, tendo o imóvel sido adjudicado ao Banco recorrente pelo valor de € 75.100,00.

4. A sentença recorrida ao declarar encerrado o processo de insolvência nos termos do disposto no artigo 230º n.º 1 do CIRE, contribui para a produção de efeitos que deveria pretender evitar e que decorrem do disposto nas alíneas do artigo 233º n.º 1 e 2 do mesmo diploma legal.

5. Ou seja, efeitos que, face à situação presente nos autos, nomeadamente, atendendo existir ainda património de valor a ratear, ficam absolutamente comprometidos, havendo sérios riscos dos mesmos se mostrarem impossíveis de realizar, redundando num prejuízo evidente para a salvaguarda dos interesses e direitos, quer dos credores do insolvente, quer do próprio insolvente.

6. Nessa conformidade e embora se admita que a letra da lei, na atual redação conferida pela Lei n.º 16/2012, não seja perfeitamente clara quanto aos limites e ou efeitos do disposto no artigo 230º n.º 1 da alínea e) do CIRE, entende o Banco recorrente que este preceito só tem aplicação, nomeadamente, quando se verifique a insuficiência de bens da massa insolvente ou quando esses bens já tenham sido liquidados previamente ao despacho inicial de exoneração do passivo restante e feito o respetivo rateio, o que, no caso, não sucede.

7. A este propósito atente-se à contradição que resultaria da aplicação do artigo 230º n.º 1, alínea e) do CIRE, com o disposto no alínea a) do mesmo normativo, onde os limites impostos por esta alínea seriam afastados pela aplicação da outra, quando, certamente, não é esta a vontade do legislador,

8. E sobretudo quando nos afigura sensato que a alínea e) só poderá ter aplicabilidade, nomeadamente, quando os requisitos impostos pela alínea a) se mostrarem cumpridos.

9. Pois que, só dessa forma se poderá evitar a produção dos efeitos nefastos para a correta marcha dos apensos de liquidação e verificação e graduação de créditos e que resultariam da aplicação do disposto no artigo 233º n.º 1 e 2 do CIRE, particularmente, quando é certo que existe valores ainda por ratear.

10. Razão pela qual, o Banco recorrente não aceita, nem pode aceitar, a declaração de encerramento do processo de insolvência proferida na sentença recorrida, por inaplicabilidade “in casu” do disposto no artigo 230º n.º 1, al. e) do CIRE,

11. Porquanto a sentença recorrida padece de falta de fundamento legal, mostrando-se contrária ao disposto na legislação em vigor e aos fins do processo de insolvência.

12. Constando do processo meios de prova plena que, só por si, implicariam decisão diversa da proferida no que a essa parte respeita.

Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso, devendo a sentença recorrida ser substituída por outra que determine o prosseguimento da instância de insolvência e seus apensos, designadamente nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 172º e seguintes do mesmo diploma legal até que se mostre terminado o rateio do produto da venda dos bens apreendidos e liquidados, com o que se fará,

JUSTIÇA!

3. Inexistem contra-alegações.

II – Factos Provados

Os factos provados são os que dimanam do relatório supra.

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 639º, nº 1, e 635º, nº 4, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, a única questão a resolver é a seguinte.

- Encerramento do processo de insolvência.

2. Dispõe o art. 230º, nº 1, e), do CIRE, norma aplicada pelo decisor, que prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o juiz declara o seu encerramento quando este ainda não haja sido declarado, no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante referido na b) do art. 237º. Trata-se de alínea acrescentada a tal número pela Lei 16/12, de 20.4.

O referido art. 237º, b), dispõe que a concessão efectiva da exoneração do passivo restante pressupõe que o juiz profira despacho inicial declarando que a exoneração será concedida uma vez observadas as condições previstas no art. 239º durante os 5 anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência, preceito este que se conjuga com o nº 2 do mencionado art. 239º onde se estabelece que o apontado despacho inicial determina que, durante os 5 anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, designado por período de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido ao fiduciário. Quer dizer, relacionando os citados 230º, nº 1, e), 237º, b), e 239º, nº 2, resulta que, em princípio, o despacho de encerramento do processo de insolvência deva ser proferido com tal despacho inicial de exoneração do passivo. Se tal não tiver ocorrido no aludido momento então há lugar à aplicação directa do apontado 230º, nº 1, e), declarando-se, posteriormente, o encerramento do processo.

Contudo, tais preceitos têm de ser articulados com outros para uma correcta e harmoniosa interpretação e aplicação da lei.

Assim, no referido 230º, nº 1, a lei indica outras causas susceptíveis de gerar o encerramento do processo, nas a) a d). As b) – trânsito em julgado da decisão de homologação do plano de insolvência -, c) – pedido do devedor quando deixe de se encontrar em insolvência -, e d) – insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente -, não nos interessam agora, por inaplicáveis no caso concreto.

Mas já nos interessa a disposição da a), onde se estatui que haverá encerramento do processo após a realização do rateio final, sem prejuízo do disposto no nº 6 do art. 239º.

Cabendo chamar à colação o art. 182, nº 1, do CIRE, que preceitua que só há lugar a rateio final e distribuição do respectivo produto após a liquidação da massa insolvente. Ou seja, só depois de liquidado o activo se procede a rateio final entre os credores ainda não totalmente pagos, o que é perfeitamente lógico e compreensível, pois apenas depois de apurado o produto da liquidação se pode efectivar tais pagamentos e reembolsos aos credores.

De outro lado, o indicado 239º, nº 6, estabelece que sendo interposto recurso do despacho inicial de exoneração do passivo, a realização do rateio final só determina o encerramento do processo depois de transitada em julgado a apontada decisão de exoneração.

Neste momento, podemos extrair duas conclusões, que decorrem de tais normativos legais.

A primeira é a de que interposto recurso do despacho inicial de exoneração do passivo não impede a realização do rateio final, quando a ele se deva proceder, segundo a tramitação normal do processo de insolvência. Mas neste caso o encerramento do processo não se verifica por efeito desse rateio, mas apenas com o trânsito em julgado da decisão proferida sobre o recurso (vide neste sentido L. Carvalho Fernandes e J. Labareda, CIRE Anotado, 2ª Ed., 2008, nota 9. ao artigo 239º, pág. 790).

A segunda é a de que interposto o mencionado recurso o encerramento do processo de insolvência não deve verificar-se antes de o recurso estar decidido e transitado em julgado, mesmo que, entretanto tenha sido realizado o rateio final (cfr. autores e ob. cit., nota 5. ao artigo 230º, pág.760).

O regime legal referido, todo conjugado e concatenado, permite, assim, a seguinte harmoniosa e racional interpretação.

Em regra, a realização do rateio final determina o encerramento do processo de insolvência por força do citado art. 230º, nº 1, a), pois nas situações previstas nas b) a c) do mesmo dispositivo não há lugar a rateio final.

Quando no processo de insolvência se suscita o incidente de exoneração do passivo então o que decorre do seu regime tem de ser articulado com a realização do rateio final. Nos seguintes termos.

Se for proferido despacho de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo a realização do rateio final determina o encerramento do processo de insolvência (art. 230º, nº 1, a), do CIRE).

Se for proferido despacho inicial positivo sobre tal pedido não há lugar, desde logo, a tal encerramento, pois pode haver ou não recurso de tal decisão.

Se houver recurso de tal decisão ou já está feito o rateio final nessa altura ou não está. Se não estiver faz-se.

Se o rateio final já estiver feito nessa altura há que aguardar a decisão do recurso. Transitada em julgado a decisão encerra-se o processo, a coberto então, sim, do referido art. 230º, nº 1, e), do CIRE.

Se o rateio final não estiver feito nessa altura faz-se. Se for feito antes da decisão do recurso, segue-se o regime acabado de descrever. Decidido o recurso encerra-se o processo, ao abrigo do art. 230º, nº 1, e). Se o rateio final só ocorrer depois da decisão de recurso encerra-se o processo de insolvência apenas depois deste rateio, à sombra do aludido art. 230º, nº 1, a).

Se por acaso não houver recurso do despacho inicial positivo, aplicam-se as mesmas regras. Ou já há rateio final nessa altura, e, então, há que encerrar o processo de insolvência por força do comando do art. 230º, nº 1, e), ou não há, impondo-se, então, realizar o rateio final e só depois encerrar o processo de insolvência desta vez por força do aludido art. 230º, nº 1, a).

Ora, no caso em apreço, foi proferido despacho inicial positivo quanto à exoneração do passivo e dele não houve recurso. E nesta altura já foi liquidado o activo (vide fls. 101), mas ainda não se mostra ter havido rateio final.

Não podia, por isso, ser proferido despacho de encerramento do processo de insolvência a coberto do indicado art. 230º, nº 1, e), como o fez a decisão recorrida. Assiste, por conseguinte ao recorrente, não podendo a decisão recorrida manter-se.       

3. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) No caso de ter sido proferido despacho inicial positivo sobre o pedido de exoneração do passivo, e não ter havido recurso do mesmo, não deve ser declarado encerrado o processo de insolvência ao abrigo do art. 230º, nº 1, e), do CIRE, se nessa altura ainda não tiver sido realizado o rateio final da liquidação da massa insolvente.  

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida, e em consequência determina-se o prosseguimento do processo até que se realize o rateio final.

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Sem custas.

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  Coimbra, 28.10.2014

Moreira do Carmo ( Relator )

Fonte Ramos

Maria João Areias