Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3511/13.4TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALEXANDRE REIS
Descritores: AUTO-ESTRADA
ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL
DANOS
VIA PÚBLICA
IMPEDIMENTO
CIRCULAÇÃO AUTOMÓVEL
TEMPO
Data do Acordão: 05/27/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - VISEU - INST. LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 483º E 562º DO C.CIVIL.
Sumário: I – A concessão para executar e explorar uma auto-estrada, apesar de ser efectuada por acto jurídico com forma de lei, é um contrato administrativo.

II - Não cabe no âmbito do objecto de uma acção destinada a efectivar a responsabilidade civil por danos emergentes de acidente de viação ocorrido numa auto-estrada a questão de saber se os contribuintes em geral e os utentes das auto-estradas em particular, no seu conjunto, suportam quantias excessivas pela disponibilidade dessas vias.

III - A perda de remuneração pela disponibilidade da via que a A (concessionária) deixou de receber do Estado em razão da interrupção do trânsito na auto-estrada é adequadamente causada pelo facto ilícito que desencadeou o acidente de viação pela reparação de cujas consequências é a R (seguradora) responsável.

IV - À luz de critérios de normalidade, não se concebe esse concreto dano como advindo, adequadamente, do risco próprio da actividade da concessionária de exploração e conservação da auto-estrada quando os autos não fornecem qualquer elemento que sugira que o acidente gerador deste dano tenha tido alguma conexão com a actividade da concessionária e, designadamente, com a deficiente conservação da via.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

 A..., SA intentou a presente acção contra Companhia de Seguros A..., SA, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 11.277,48 (após ampliação do pedido inicialmente formulado), acrescida de juros, para ressarcir os prejuízos que, segundo alegou, sofreu em consequência de um acidente de viação.

A R contestou, impugnando a quantia que a A invocou ter deixado de receber do concedente a título de indisponibilidade da via e ainda a de € 110 pedida a título de despesas processuais.

Na sentença, o Sr. Juiz, julgando a acção parcialmente procedente, condenou a R a pagar à A a quantia de € 11.167,48, acrescida de juros de mora, nela incluída a de € 6.701,37, que a A deixou de receber do Estado em razão da indisponibilidade da via resultante do acidente.

Inconformada com tal decisão, apelou a R, delimitando o objecto do recurso com conclusões que colocam as seguintes questões:

- a R não é responsável pela quantia deduzida na remuneração prevista no negócio celebrado entre o Estado e a A pela indisponibilidade da via, em consequência do acidente de viação?

 - não caberia à R fazer a prova dos factos integrantes da excepção do abuso de direito, ou seja, tendentes a demonstrar que aquela quantia é manifestamente excessiva?

São os seguintes os factos (relevantes) considerados provados pela 1ª instância:

1. e 2. A A é concessionária do Estado, para a construção, conservação e exploração de auto-estradas, sendo-o da A25, nomeadamente do troço compreendido entre Albergaria (A1) e Vilar Formoso, com a extensão aproximada de 176 Km.

3. No dia 19/11/2010, pelas 16h30m, na A25, ao Km (PK) 90+400, no sentido Oeste - Este (Aveiro - Guarda), freguesia de São João de Lourosa, concelho de Viseu, ocorreu um acidente em que foi interveniente o conjunto composto pelo trator (pesado de mercadorias) de matrícula ...-XG e pelo reboque de matrícula GD-..., que seguia atrelado ao primeiro, conjunto esse da propriedade de “E..., Lda.”, conduzido por A...

4. Naquelas circunstâncias de tempo e de lugar, o dito conjunto transitava na A25, considerando o sentido Oeste - Este, ou seja, Aveiro - Guarda.

5. Cerca do PK 90+300 da A25 o motorista perdeu o controlo daquele conjunto.

6. E, em consequência, o aludido conjunto despistou-se, embatendo em primeiro lugar nas guardas de segurança do lado direito e de seguida no separador central da A25.

7. Acabando por se imobilizar ao PK 90+400, depois de o reboque integrante daquele conjunto ter tombado.

8. Em resultado do sinistro, a carga que era transportada por aquele conjunto também tombou e ficou espalhada nas vias.

9. Nas circunstâncias de tempo e de lugar em que ocorreu o relatado sinistro, o pavimento da A25 apresentava-se em bom estado de conservação e limpo, embora molhado em razão da chuva intensa que caía.

10. O motorista conduzia a velocidade tal que, considerando o facto de o pavimento se encontrar molhado naquela ocasião, não lhe permitiu controlar a marcha do dito conjunto e impedir o subsequente despiste e posterior colisão com elementos de segurança da concessão da A. e da sua propriedade.

11. O motorista conduzia aquele conjunto porque disso foi incumbido pela respetiva proprietária, “E..., Lda”, fazendo-o sob as ordens desta.

12. Como consequência direta e necessária do acidente descrito, ficaram inutilizados 20 metros lineares (ML) de guardas de segurança em perfil W (conjunto completo, i. e. incluindo, para além das guardas de segurança propriamente ditas, os respetivos prumos e amortecedores).

13. e  14. Tal substituição de guardas de segurança em perfil W importou num custo global de €998,00, à razão de €49,90 por ML, suportadas pela A, que teve igualmente que proceder à substituição de 3 perfis móveis de betão também  danificados em consequência do sinistro aqui narrado, o que importou num custo global de €2.625,96.

15. Nos termos do contrato de concessão celebrado entre o Estado e a A., esta recebe daquele, como contrapartida pela conservação e exploração da A25, uma remuneração anual pela disponibilidade das vias, designadamente no que se refere à circulação do trânsito.

16. Caso essa disponibilidade não seja ou não possa ser garantida pela aqui A., parcial ou totalmente, nomeadamente em situações de acidente imputáveis a terceiros, a mesma sofre deduções nessa remuneração anual, que não sofreria no caso de não acontecer o sinistro.

17. Em razão da indisponibilidade da via resultante deste acidente (corte do trânsito no sentido Aveiro - Guarda, das 17h04m e às 21h47m, entre o Km 84,847 e o Km 94,654), a A deixou de receber do concedente, Estado, a quantia de € 6.701,37.

18. a 21. A A. despendeu a quantia de €33 na obtenção da participação deste acidente de viação, nomeadamente para reclamar o ressarcimento dos danos da R, viu-se obrigada a aplicar desengordurante de via para limpeza do local, gastando € 137,50, e teve de solicitar lavagem de via pelos bombeiros, tendo gasto a quantia de € 271,65, e de proceder à remoção da carga que ficou espalhada nas vias, sendo que a execução de tal tarefa representou um custo de € 400.

22. A quantia de € 9.163,01 não foi paga à A. até à presente data pela R. ou por quem quer que fosse, não obstante as insistências da A. junto da R. para que esta procedesse ao pagamento da dita importância.

24. A responsabilidade civil inerente à circulação do veículo com matrícula ...-XG estava transferida para a ora R.

Importa apreciar as questões enunciadas e decidir.

1. A responsabilidade pela quantia deduzida pela indisponibilidade da via.

Em sede de responsabilidade civil extracontratual, em termos genéricos, rege o artigo 483º do CC, que aponta os seguintes pressupostos ou requisitos para que possa concluir-se pela existência da obrigação de indemnizar imposta ao lesante: a existência de um facto voluntário do agente; que esse facto seja ilícito; que exista um nexo de imputação do facto ao lesante; a verificação de um dano e ainda que haja um nexo de causalidade entre esse dano e o facto praticado pelo agente.

Neste recurso, à excepção da quantia respeitante à quantia deduzida pelo Estado por causa da indisponibilidade da via, é incontrovertida a verificação de tais pressupostos da obrigação de indemnizar incidente sobre a R em relação a todos os demais danos abarcados na reparação decidida na sentença, advindos do comportamento ilícito que desencadeou o acidente em causa.

Regista-se, no entanto, que a apelante também não contradiz que tal acidente provocou o corte do trânsito na auto-estrada das 17h04m às 21h47m e que, em razão da indisponibilidade da via daí resultante, a A (concessionária) deixou de receber do Estado (concedente) parte (€ 6.701,37) do valor previsto no acordo entre ambos celebrado como contrapartida ou remuneração da disponibilidade da via.

Ora, é inevitável reconhecer que a perda de remuneração que a A sofreu foi adequadamente causada pelo acidente pela reparação de cujas consequências é a R responsável, ou seja, que se verifica o nexo de causalidade adequada entre o facto ilícito e a lesão ou aquele dano final, enquanto um dos aludidos pressupostos da obrigação de indemnizar, à luz dos critérios de normalidade ao mesmo inerentes. Na verdade, tal facto ilícito e a interrupção de trânsito que provocou foram a conditio sine qua non daquela perda ([1]).

Contra o argumentado pela apelante, não faz qualquer sentido, à luz desses critérios de normalidade, conceber esse concreto dano como advindo, adequadamente, da actividade da A de exploração e conservação da auto-estrada porque essa actividade comportaria o risco de acidentes estradais. Realmente, os autos não fornecem qualquer elemento que sugira que o acidente gerador deste e, aliás, dos demais (incontroversos) danos tenha tido alguma conexão com a actividade da A e, designadamente, com a deficiente conservação da via.

É certo que a ocorrência de acidentes de viação nas auto-estradas, assim como nas demais vias, é, sim, um risco inerente à circulação automóvel e daí que o seguro deva ser obrigatoriamente celebrado com sociedades comerciais que exploram essa actividade com escopo lucrativo, parafraseando o discurso da apelante.

2. O ónus da prova dos factos integrantes da excepção do abuso de direito.

Em conformidade com os princípios que disciplinam a obrigação de indemnização ([2]), incumbe ao lesante a reparação integral dos danos, não podendo recair sobre o lesado qualquer encargo. Na verdade, a medida da indemnização resulta da diferença entre a situação que o património do lesado apresenta e a que apresentaria se não se tivessem verificado as consequências patrimoniais produzidas pelo facto (geralmente, ilícito) ([3]).

Nesta acção, competindo ao lesante reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (integral dos danos), cabe à A o direito a receber a diferença entre o valor efectivo do património tal como existiria se não se tivesse verificado a violação. E uma vez que o sistema atribui ao lesado o direito à recomposição da situação danosa, tudo se resume, pois, à detecção do método mais adequado à quantificação de seu equivalente pecuniário ([4]).

Na verdade, tais danos e a correspondente necessidade de repor a situação dos lesados no estado em que se encontrariam caso não tivesse existido o facto ilícito pode ser aferida, nesta acção, através da comparação entre a situação de um concessionário que manteve intacto o seu poder de explorar uma auto-estrada em normais condições e a da A que sofreu a referenciada perda de remuneração provocada por facto de terceiro.

Ora, apuraram-se factos concretos donde se pode retirar essa diferença a que a A tem, pois, direito nos termos da lei.

Não obstante, a apelante aventa a suposição de não lhe caber fazer prova de o valor em questão poder ser manifestamente excessivo, com vista a demonstrar a excepção do abuso de direito. Neste ponto, a apelante esgrimiu com a constatação que o Sr. Juiz – quiçá, escusadamente – expressou na sentença de que desconhecia se o valor reclamado é ou não manifestamente excessivo, por ignorar as variáveis em que assentou o cálculo da tarifa diária de disponibilidade da via e os números utilizados em cada uma das variáveis no contrato celebrado entre o Estado e a concessionária.

Vejamos.

Apesar de a concessão ser efectuada por acto jurídico com forma de lei, um acordo da mencionada natureza é um contrato administrativo ([5]), pelo qual a concessionária se encarrega de executar e explorar uma obra pública ([6]), cobrando aos utentes as devidas taxas de utilização, sendo assegurado pelo Estado e pela concessionária o financiamento daquela execução ([7]).

Ora, no contexto do objecto desta acção e, por consequência, também do recurso, não faz qualquer sentido colocar a questão de saber se os contribuintes em geral e os utentes das auto-estradas em particular estão, no seu conjunto, a suportar quantias excessivas, a título de disponibilidade dessas vias, em benefício dos privados que obtiveram tais concessões, ou seja, por outras palavras, se o Estado concretizou tais contratos com as concessionárias em prejuízo dos administrados. Essa é uma discussão que transborda as questões jurídicas suscitadas nestes autos.

Com efeito, o que está aqui demonstrado é que, em cumprimento dum contrato administrativo outorgado, consolidou-se na esfera jurídica da A o direito a receber uma determinada remuneração e que a mesma deixou de receber parte desta como consequência do facto ilícito, estando a R obrigada a reparar os danos por este gerados.

Por fim, vem a este propósito o lapidar ensinamento de P. Lima e A. Varela (CC Anot. 4ª ed., p. 306): «O significado essencial do ónus da prova não está tanto em saber a quem incumbe fazer a prova do facto como em determinar o sentido em que deve o tribunal decidir no caso de se não fazer essa prova».

Por conseguinte, mesmo que aquela discussão se conformasse com o objecto do recurso, a apelante estaria patentemente equivocada quanto aos termos em que suscita a questão do ónus da prova sobre o abuso de direito, ou seja, sobre os factos tendentes a evidenciar que o valor em questão é manifestamente excessivo. Nada se provando neste conspecto, não adianta falar mais no assunto.

Síntese conclusiva.

1ª - A concessão para executar e explorar uma auto-estrada, apesar de ser efectuada por acto jurídico com forma de lei, é um contrato administrativo.

2ª - Não cabe no âmbito do objecto de uma acção destinada a efectivar a responsabilidade civil por danos emergentes de acidente de viação ocorrido numa auto-estrada a questão de saber se os contribuintes em geral e os utentes das auto-estradas em particular, no seu conjunto, suportam quantias excessivas pela disponibilidade dessas vias.

3ª - A perda de remuneração pela disponibilidade da via que a A (concessionária) deixou de receber do Estado em razão da interrupção do trânsito na auto-estrada é adequadamente causada pelo facto ilícito que desencadeou o acidente de viação pela reparação de cujas consequências é a R (seguradora) responsável.

4ª - À luz de critérios de normalidade, não se concebe esse concreto dano como advindo, adequadamente, do risco próprio da actividade da concessionária de exploração e conservação da auto-estrada quando os autos não fornecem qualquer elemento que sugira que o acidente gerador deste dano tenha tido alguma conexão com a actividade da A e, designadamente, com a deficiente conservação da via.

Decisão:

Pelo exposto, julgando improcedente a apelação, decide-se confirmar a sentença.

Custas pela apelante.

Alexandre Reis (Relator)

Jaime Ferreira

Jorge Arcanjo

[1] Neste campo, é muito feliz a síntese conclusiva do Ac. do STJ de 5/2/2013 (P. 488/09.4TBESP.P1.S1-Hélder Roque): «O ordenamento jurídico nacional consagra a doutrina da causalidade adequada, ou da imputação normativa de um resultado danoso à conduta reprovável do agente, nos casos em que pela via da prognose póstuma se possa concluir que tal resultado, segundo a experiência comum, possa ser atribuído ao agente como coisa sua, produzida por ele, mas na sua formulação negativa, porquanto não pressupõe a exclusividade da condição como, só por si, determinante do dano, aceitando que na sua produção possam ter intervindo outros factos concomitantes ou posteriores».

[2] Consagrados nos arts 562º e ss do CC.

[3] Como se retira da norma plasmada no art. 566º, nº 2 do CC, em conjugação com a do art. 562º.

[4] A prova da ocorrência de danos concreta e directamente imputáveis à lesão é solução que se justifica quando o lesado pretenda obter o ressarcimento dos lucros cessantes, pelos “benefícios que deixou de obter”, nos termos do art. 564º, nº 1, do CC, que abarca, naturalmente, a possibilidade de ressarcimento também dos danos emergentes, mediante o segmento normativo referente ao “prejuízo causado”.

[5] Segundo Pedro Costa Gonçalves (“A Concessão de Serviços Públicos”, Almedina, Coimbra, 1999, pp. 90-95), estando a Administração a actuar de uma forma típica da função administrativa, estamos de facto perante uma concessão administrativa.

[6] V., no sentido de que ambas as concessões estão acopladas, o Ac. do TC nº 597/2009, de 18/11/2009, relatado pelo Cons. Cura Mariano: «Está-se, assim, na presença de um contrato administrativo, mais concre­tamente, na presença de um contrato de concessão de obras públicas que leva acesso­riamente acoplada uma concessão de exploração do domínio público».

[7] V., p. ex.,. Base X nº 1 do DL 247-C/2008 de 30/12 e Base XIX nº 4 do DL 44-B/2010, de 5/5. O Relatório de 2012 sobre as Parcerias Público Privadas e Concessões, quanto ao modelo de parceria que abarca a concessão em causa nos autos (Beiras Litoral e Alta), aponta as seguintes linhas, que aí também são concretizadamente detalhadas:

«Concessões com modelo de disponibilidade: A E.P. paga ao concessionário pela disponibilidade da via e recebe o valor cobrado nas portagens, existindo os seguintes fluxos financeiros: a. Pagamento em contrapartida pela disponibilidade da infraestrutura, ao qual poderão ser efetuadas deduções em virtude da indisponibilidade da via (acidentes, obras, etc.);»

«Matriz de Risco das concessões com modelo de Disponibilidade (…) Os contratos de concessão estabelecem que a concessionária assume expressamente “integral e exclusiva responsabilidade por todos os riscos inerentes à concessão, excepto se o contrário resultar do contrato de concessão”.».