Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1627/08.8TBAVR.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: INCIDENTE DE LIQUIDAÇÃO
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
EQUIDADE
Data do Acordão: 12/18/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA – GRANDE INSTÂNCIA DE AVEIRO – JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 4.º/A), E 883.º DO C. CIVIL, EX VI ART. 1211.º DO C. CIVIL
Sumário: 1 - Quando uma sentença condena no que se vier a apurar em incidente de liquidação fica certa a condenação duma parte a favor da outra, permanecendo apenas incerta a “quantidade” da condenação; ou seja, está à partida afastada a possibilidade processual de, no consequente incidente de liquidação, se concluir que não há qualquer “quantidade” a pagar.
2 - Caso não se apure exacta e precisamente o que se relegou para liquidação, impõe-se efectuar um julgamento “ex aequo et bono” e julgar/fixar equitativamente, dentro dos limites provados na acção (e que conduziram à condenação genérica), a “quantidade” a pagar.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

Tendo, na presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, sido proferido Acórdão, em 02/11/2010, por este T. R de Coimbra – em que se julgou parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pela A., relegando “para liquidação em execução de sentença o apuramento do diferencial entre o custo real dos objectos/mobiliário indicados no ponto 18 de matéria de facto e o custo dos objectos/mobiliário que a decoradora/apelante pretendia usar na decoração, fixando-se o limite em 20.000,00 €” – integralmente confirmado, em 12/07/2011, pelo STJ, na revista interposta, veio a A. A... , Lda., com os sinais dos autos, deduzir incidente de liquidação, nos termos do art.º 378.º/2 do CPC, contra os RR. B... e C... e , também devidamente identificados; alegando factos tendentes a demonstrar que o “diferencial” (entre o custo dos objectos e mobiliário discriminados no ponto 18 e o custo dos objectos/mobiliário que pretendia usar no projecto de decoração) ascende a montante não inferior a € 20.000,00, quantia em que liquida o que ainda lhe é devida.

Os RR/requeridos contestaram, impugnando o montante liquidado, pugnando pela total improcedência da liquidação.

Declarada a regularidade da instância – estado que a mesmo se mantém – e dispensadas a selecção dos factos assentes e a fixação da base instrutória (nos termos dos art. 787º/1 e 2 do CPC), foi designado dia para a realização da audiência, após o que a Exmo. Juiz proferiu sentença em que “julgou a presente liquidação improcedente e, em consequência, absolveu os réus do pedido”.

Inconformada com tal decisão, interpôs a A/requerente recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por decisão que julgue totalmente procedente o incidente e que liquide o “diferencial” em causa em € 20.000,00.

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

A -Por Acórdão confirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça, foi determinado relegar-se para liquidação ulterior o apuramento do diferencial entre o custo real dos objectos/mobiliário indicados no ponto 18 de matéria de facto, e o custo dos objectos/mobiliário que a decoradora/apelante pretendia usar na decoração, fixando-se o limite em €20.000,00, na medida em que, por intervenção directa da R., verificou-se a substituição de artigos e mobiliários de preços mais elevados, o que aconteceu com o aparador, sofá da sala, quarto de casal, sofá da sala de música e com o quarto de um dos filhos.

B -Devendo esse aumento corresponder à diferença entre o valor do aparador, do sofá da sala, do quarto de casal, do sofá da sala de música e do quarto de um dos filhos, que havia proposto aos RR., e o valor das peças entretanto escolhidas pela R., tendo sido pois este, o propósito do presente incidente.

C -Considerou a Apelante, em obediência ao ditado pelo Acórdão citado que o valor real dos bens efectivamente colocados a final em casa dos RR. se encontrava já devidamente assente.

D -O valor dos bens fornecidos aos RR. é um valor que não carece de prova, por se encontrar já assente, em sede de instância declarativa, tendo sido objecto de emissão das respectivas facturas por parte da apelante. Assim sendo,

E - E para se alcançar o desiderato do incidente vertente – reitera-se em obediência ao determinado por esta Relação – ter-se-ia que demonstrar qual o valor dos bens que inicialmente se propunha a Apelante fornecer aos RR. para mobilar e decorar as divisões em apreço.

F - A A. procedeu à junção mediante requerimento explicativo, das facturas de aquisição a fornecedores de todos os bens que inicialmente colocara nas divisões de casa dos RR. que aos autos importava.

G - Não procedeu a apelante à junção das facturas de fornecimento dos bens que, a final, foram colocados em casa dos RR. pela razão evidente de não ser essa a matéria que importava discutir nos autos, posto que o custo dos objectos colocados a final se encontra já assente e provado documentalmente por facturas que a apelante emitiu.

H -A junção por parte da apelante de facturas referentes ao fornecimento dos bens que inicialmente colocou em casa dos RR. destinava-se a demonstrar que o valor que lhes imputou como valor de venda ao público que colocou no quadro do diferencial entre os bens que inseriu na petição do incidente, se respaldava em fornecimentos de bens aos quais a apelante fizera acrescer a sua margem de lucro.

I -cA apelante, por indicação do tribunal a quo, trouxe aos autos prova documental suficiente e demonstrativa de que os bens que inicialmente colocara, e que avaliara para estabelecer o diferencial com os bens finais, eram bens que efectivamente adquirira junto de fornecedores, por valores inferiores e sobre os quais acrescera a sua margem de lucro.

J - A prova documental junta não tinha que se reportar ao mobiliário que foi colocado a final. Esse mobiliário está assente na fase declarativa dos autos qual é, e qual o seu valor.

K - No que toca ao mobiliário substituído, a única prova possível quanto ao valor decorre da apresentação, conforme se fez, das facturas da sua aquisição junto de fornecedores – o que demonstra que o material existe -a alegação e prova da sua colocação e posterior retirada em casa dos RR. – matéria que está já provada em sede de fase declarativa e que foi reiterada pela prova testemunhal apresentada em sede de incidente – e a alegação e prova do valor da sua aquisição – o que ficou também documentalmente demonstrado.

L - Não pode, por ser absolutamente impossível, a aqui apelante demonstrar documentalmente o valor de venda ao público do material inicialmente colocado pela simples e evidente razão de que tal material não chegou a ser facturado porque acabou por ser substituído por outro, esse sim facturado.

M - A prova que a requerente se propunha realizar logrou alcançar: sabia-se o valor final dos bens colocados em casa dos RR.; pretendia saber-se o valor dos bens inicialmente colocados. E aqui, demonstrando a boa-fé da A., esta indica valores de venda ao público dos bens com margens de lucro muitas vezes de 100%, comparando com o valor de custo no fornecedor. E quanto maior a margem de lucro, neste caso, menor o diferencial do valor dos bens, e maior o prejuízo da A.

N -Não sendo possível à A. demonstrar documentalmente o valor de venda ao público dos bens iniciais, por nunca terem sido facturados, logrou, por via da prova testemunhal, provar que os bens iniciais indicados correspondiam aos que estiveram em casa dos RR. – conforme a própria decisão da matéria de facto admite na nota de rodapé 1.

O - A A. logra demonstrar quais os bens iniciais, qual o seu valor de custo no fornecedor e o qual o seu valor de venda ao público e estabelecer o diferencial relativamente à venda ao público dos bens que, a final, foram colocados em casa dos RR., matéria já assente.

P - Os valores que a A. reclama assentam em preços de venda ao público e não preços de custo. Sendo a A. comerciante de mobiliário, o critério de valor é o de venda e não o de compra. Além do mais nem todos os bens adquiridos pela A. são objecto da aplicação da mesma margem de lucro. A A. é livre de, considerando o mercado e as suas conveniências comerciais, estabelecer os preços que aprouver, contanto que não pratique preços que violem as regras da concorrência.

Q - Documentalmente demonstrado ficou que o preço que a A. alega ser o preço de venda ao público dos bens inicialmente colocados é de valor superior ao preço pelo qual os adquiriu.

R – O critério nunca poderia ser o do custo dos bens no fornecedor mas sim o custo deles para os RR., visto que toda a empreitada, todo o negócio, assentou em valores de venda ao público, em valores de venda dos bens aos RR. por parte da A.

S - Impõe-se assim uma decisão que revogue a sentença ora recorrida e considere provada a matéria de facto carreada para o incidente, proferindo-se decisão de total procedência do mesmo.

T – Com a presente decisão, o tribunal a quo violou as disposições do art. 659º/3 do CPC.

Os RR./requeridos responderam, terminando a sua contra-alegação sustentando, em síntese, que a sentença recorrida não violou qualquer norma, designadamente, as referidas pela A/recorrente, pelo que deve ser mantida nos seus precisos termos.

A. Por douta Decisão proferida em sede de recurso de Revista por este Tribunal da Relação de Coimbra, foi determinado “/…/ relega-se para liquidação em execução de sentença o apuramento do diferencial entre o custo real dos objetos e mobiliário indicados no ponto 18 da matéria de facto e o custo dos objetos/mobiliário que a decoradora/apelante pretendia usar na decoração, fixando-se o limite em €. 20.000,00 /…/”

B. O conhecimento de tal diferença apenas poderia ser alcançado através da disponibilização de documentos comprovativos dos seus respetivos preços de aquisição pela autora.

C. Não está em causa a diferença de preço de venda ao público pela autora, sob pena de ser desvirtuado o equilíbrio contratual.

D. Inexistem nos autos, por absoluta recusa voluntária imputável à própria recorrente, os elementos de prova que permitissem conhecer daquela diferença de custo dos objetos fornecidos.

E. Mas a recorrente não juntou qualquer documento, ao longo de todo o processo e, nomeadamente nessa ocasião, comprovativo da aquisição dos bens que tenha fornecido aos réus em substituição dos iniciais, nem comprovativos sequer da sua entrega, nem comprovativos dos preços pelos quais os tenha adquirido.

F. Foi a própria recorrente quem inviabilizou o conhecimento de tais factos essenciais, ao não fazer qualquer prova a seu respeito, não juntando qualquer documento comprovativo daquele custo de aquisição dos bens fornecidos a final em substituição dos iniciais, e ao não dar cumprimento ao determinado pelo Tribunal a quo naquele acima mencionado douto Despacho de 20.02.2013.

G. Ainda que se atendesse à inviezada tese argumentativa da recorrente, que adultera o sentido da Decisão exarada no douto Acordão proferido por este Tribunal da Relação de Coimbra nos autos declarativos iniciais, de que o que importaria seria o conhecimento do valor de venda dos bens por parte da autora, sempre faleceria razão à recorrente, pois que não muniu os autos do conhecimento dos valores de venda dos artigos que inicialmente colocou em casa dos réus, pelo que, também por esta via, faltaria um dos elementos informativos essenciais a qualquer ponderação de diferença de valores.

H. Mesmo os documentos que veio juntar após notificada, constituem faturas muito diversas de inúmeros artigos sem qualquer reporte aos presentes autos, nas quais a autora pretendeu defender estarem inseridos os artigos fornecidos inicialmente, mas cuja correspondência não logrou assegurar, como bem resulta da douta Decisão da matéria de facto.

I. A douta Sentença proferida apresenta-se exemplar na fundamentação e na Decisão, o mesmo sucedendo com a Decisão da Matéria de Facto, desmerecedora de qualquer censura ou reparo.

J. De referir, que a própria recorrente não aponta especificamente os meios de prova em que alegadamente se basearia para defender uma diferente Decisão.


*

II – Fundamentação de Facto

São os seguintes os factos relevantes:

A – A aqui requerente instaurou acção declarativa de condenação em processo comum e forma ordinária contra os aqui requeridos, peticionando a condenação destes no pagamento da quantia de 47.667, 57 € acrescida de juros vincendos.

B – A referida acção veio, em 1.ª Instância, a ser julgada parcialmente procedente, e em consequência condenados os réus a pagar à autora a quantia de 10.000,00 €, acrescida de juros à taxa legal de 4% desde a citação até integral pagamento, com fundamento nos seguintes factos:

1 -A autora é uma sociedade comercial que se dedica à comercialização de mobiliário e artigos de decoração (al. A.).

2 -No exercício da sua actividade contratou, pelo menos com o réu, a decoração da casa de habitação deste e vendeu-lhe artigos de decoração tendo, pelo menos, o réu pago 70.000 € (al. B).

3 -Os réus vivem em união de facto, sendo o imóvel decorado pela autora propriedade de ambos (al. C).

4 -Na sequência do acordo para decoração da casa de habitação, referido em 2, a A. colocou em casa dos RR. os artigos mencionados nas facturas de fls. 10 a 16 (que aqui se dão por reproduzidas), sendo a primeira, datada de 30.11.05, no valor de € 38.695, 54; a segunda, datada de 23.12.05, no valor de € 11.679, 46; a terceira, datada de 30.12.05, no valor de € 49.625,00 (resposta ao 1º da BI).

5 –A A. efectuou os descontos mencionados nas facturas referidas em 4 e ofereceu artigos de decoração, o que veio a facturar posteriormente (resposta ao 3º da BI).

6 -A A. emitiu a factura de fls. 17, datada de 30.1.08, no valor de € 15.397, 69, aqui incluindo cinco quadros, dedução de descontos e acerto de trocas de material + oferta de escultura, no valor global de € 15.397, 69 (resposta ao 4º da BI).

7 – A A. e o R. acordaram um valor máximo global de € 80.000, 00 (resposta ao 5º da BI).

8 -Ficou acordado entre A. e R. que aquele “plafond” compreenderia a totalidade dos serviços de decoração prestados pela A. e bens necessários para o efeito fornecidos por esta (resposta ao 6º da BI).

9 -O R. pagou à A. € 30.000, 00, em Junho de 2005, € 25.000, 00, em 11.11.05 e € 15.000, 00, em 11.5.06 (resposta aos 7º e 41º da BI).

10 -Algumas vezes, durante a execução do serviço de decoração, o R. solicitou à A. que lhe apresentasse uma listagem discriminada dos bens já colocados no imóvel e respectivos preços parcelares (resposta ao 8º da BI).

11 -A A. nunca o fez, com excepção do exposto infra em 23 (resposta ao 9º da BI).

12 -Quando a A. considerou concluído o trabalho de decoração, o R. solicitou-lhe de novo uma listagem detalhada dos artigos fornecidos e respectivos preços (resposta ao 23º da BI).

13 – O R., com os serviços de decoração da A., pretendia tornar a sua casa confortável, harmoniosa, com estética interior coerente e cativante (resposta ao 25º da BI).

14 -A Ré auxiliou na escolha de alguns artigos e definição de ambientes a criar pela A. (resposta ao 32º da BI).

15 -À medida que a A. colocava na casa dos RR. mobiliário e outros artigos relativos à decoração, a Ré, por diversas vezes, requereu a substituição de alguns artigos e mobiliário (resposta ao 33º da BI).

16 -Que era, normalmente, por preços mais elevados (resposta ao 34º da BI).

17 -Por vezes, a legal representante da A. disse à Ré que as novas escolhas incidiam sobre artigos mais dispendiosos (resposta ao 35º da BI).

18 – Isto aconteceu com o aparador e sofá de sala, com o quarto de casal, com o sofá da sala de música e com o quarto de um dos filhos (resposta ao 37º da BI).

19 -A legal representante da A., desgastada com as substituições referidas em 15, quis pôr termo à decoração (resposta ao 38º da BI).

20 – Tendo os RR. solicitado que continuasse (resposta ao 39º da BI).

21 -A A. deu por terminado o serviço de decoração em finais de Novembro de 2005 e as facturas têm as datas que constam supra mencionadas (resposta ao 42º da BI).

22 -Aquando da apresentação da lista referida em 23, os RR. requereram algum tempo à A. para acertarem as contas (resposta ao 43º da BI).

23 -Quando deu por terminado o serviço de decoração, a A., a pedido dos RR., entregou-lhes a lista de fls. 70 a 72 correspondente ao mobiliário e demais artigos de decoração que colocou na casa dos RR (resposta ao 51º da BI).

C – A autora, inconformada com tal decisão, recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra, que julgando parcialmente procedente por provado o recurso de apelação, relegou para liquidação em execução de sentença o apuramento do diferencial entre o custo real dos objectos/mobiliário indicados no ponto 18 de matéria de facto, e o custo dos objectos/mobiliário que a decoradora/apelante pretendia usar na decoração, fixando-se o limite em 20.000,00 €; mantendo-se no mais – isto é, na condenação em € 10.000,00 fixada na sentença recorrida – a sentença recorrida.

D – Os réus inconformados com a decisão recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça, que negou a revista, confirmando o acórdão recorrido.

*

III – Fundamentação de Direito

Como consta do relatório, os autos – uma acção declarativa de condenação, com processo ordinário – correm, neste momento, apenas e só para os termos do incidente de liquidação previsto no art. 378.º/2 do CPC.

Tendo sido anteriormente proferida sentença a relegar “para liquidação em execução de sentença o apuramento do diferencial entre o custo real dos objectos/mobiliário indicados no ponto 18 de matéria de facto e o custo dos objectos/mobiliário que a decoradora/apelante pretendia usar na decoração, fixando-se o limite em 20.000,00 €”, deu a A. início ao presente incidente, tendo em vista o apuramento /liquidação de tal diferencial.

Incidente de cuja sentença a A. recorre.

Repisa-se o relato sobre o contexto do meio processual em que nos movemos para começar por dizer uma evidência: o incidente de liquidação deduzido nos termos do art. 378.º/2 do CPC pressupõe, como do mesmo consta, uma sentença de “condenação” (naturalmente, “genérica”), o que significa que o direito (do caso concreto) está já definido e concretizado na própria “condenação genérica” que se liquida; o que significa que na sentença, de “condenação genérica”, já é certa – já está, “sem apelo nem agravo”, fora de discussão – a condenação duma parte a favor da outra (normalmente a título de indemnização por danos causados, mas de que se desconhece o valor exacto destes), permanecendo apenas incerta a “quantidade” da condenação.

É verdade que o Acórdão desta Relação (confirmado no STJ) não utiliza expressa e explicitamente o verbo “condenar”, mas é este o único sentido possível e plausível quando no dispositivo final duma sentença se manda liquidar um “diferencial” entre custos em “execução de sentença”[1].

Vale aliás a pena – para compreender a “oportunidade” de certos argumentos e, ao mesmo tempo, apreender o que efectivamente está em causa no presente incidente de liquidação – reconstituir e chamar à colação os fundamentos da decisão que lhe dá causa (ao incidente de liquidação); fundamentos que, não sendo a decisão (e não fazendo via de regra, é sabido, “caso julgado”), não deixam de moldar o seu sentido, não deixam de ser – no seu percurso e nos seus passos interlocutórios – decisivos para a compreensão, interpretação e, é o caso, liquidação da decisão.

Escreveu-se, no que aqui releva, na Acórdão da Relação de 02/11/2010:

“ (…)

Uma leitura crítica da matéria de facto reconduz-nos à pretensão manifestada pelo réu e consubstanciada na decoração da sua casa, competindo à autora/empreiteira a colocação em casa dos réus de todos os artigos de decoração necessários à obtenção do resultado pretendido, que mais não era do que tornar a sua casa confortável, harmoniosa, com estética interior coerente e cativante - facto 13 - o que acordaram pelo valor de € 80.000,00 - factos 7 e 8. (…)

Quando se contratam serviços de decoração, deixa-se, em regra, ao gosto e conhecimentos do empreiteiro/decorador a escolha das peças, no que pode ser, como foi, auxiliado na escolha de alguns artigos por parte da ré/dona da obra, tal como esta, durante a execução do contrato requereu, por diversas vezes, a substituição de alguns artigos e mobiliário, por outros de preços mais elevados - factos 14 a 18 - o que não terá sido do agrado da decoradora que pretendeu pôr termo à decoração/obra, tendo sido os réus quem a convenceu a continuar - factos 19 e 20.

Como evidencia a matéria de facto, a única realidade claramente demarcada era o preço da obra/decoração, inexistindo um qualquer estudo prévio que identificasse materiais e preços, o que de resto integrava o núcleo de preocupações do réu que, por diversas vezes e sem êxito, solicitou à decoradora uma listagem discriminada dos objectos já colocados no imóvel e preços parcelares - facto 10 - o que nunca foi cumprido pela autora - facto 11 - a não ser na data da entrega da obra e ainda por solicitação do réu marido - facto 12 - o que veio a suceder com a entrega da listagem de folhas 70/72 que descreve objectos e preços dos artigos de decoração colocados em casa dos réus e que totaliza a quantia de € 115.397,69, correspondendo os € 100.000,00 ao custo da empreitada e € 15.3297,69 a uma «penalização» por os réus não terem pago a pronto pagamento— cf. folhas 17. (…)

Na relação decoradora/dono da obra e por razões que os autos não evidenciam, o réu conhecedor do preço combinado manifestou, por diversas vezes junto da decoradora, a preocupação quer quanto aos objectos aplicados na decoração, quer quanto ao respectivo preço.

A verdade, é que a empreiteira nunca respondeu afirmativamente às preocupações manifestadas e já com a obra/decoração concluída apresenta um custo que ultrapassa em € 20.000,00 o preço acordado para além de lhe somar o custo de cerca de € 15.000,00 relacionados com o não pagamento a pronto, quantia esta que não lhe é devida já que não se fez prova da existência de qualquer acordo em matéria de pronto pagamento, emergindo, de resto, da matéria de facto realidade que coloca em crise a exigência de tal pagamento - facto 9.

Como refere o artigo 762° do CC o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado, devendo quer no seu cumprimento quer no exercício dos seus direitos proceder de boa fé.

O eventual desnorte da empreiteira/decoradora não pode ser imputável aos réus na medida em que o réu marido, de modo sensato, lhe foi pedindo a listagem das peças e seu custo, porque tinha acordado um montante máximo de € 80.000,00 e seguramente não estava disponível para ultrapassar, pelo menos nada nos autos indicia essa vontade, o valor acordado.

A ré, por diversas vezes, requereu a substituição de alguns artigos e mobiliários de preços mais elevados, o que aconteceu com o aparador, sofá de sala, quarto de casal, sofá de sala de música e com o quarto de um dos filhos - facto 15 a 18.

Tratando-se de alterações introduzidas pela ré que apesar de alertada para o facto de se tratarem de artigos mais dispendiosos insistiu na sua aquisição, é de considerar que a autora/decoradora/empreiteira tem direito a ver o custo da empreitada aumentado - artigo 1216° do CC - aumento que deve corresponder à diferença entre o valor - do aparador, do sofá de sala, do quarto de casal, do sofá de sala de música e do quarto de um dos filhos - que havia proposto aos réus e o valor das peças, entretanto, escolhidas pela ré - facto 18.

Desconhecendo-se o valor das peças propostas e o valor das peças exigidas pela ré, não nos é possível calcular a diferença e condenar os réus no seu pagamento. No entanto, conhecedores dos preços constantes da lista de folhas 70/72 - facto 23 - parece-nos justo e razoável que se relegue para liquidação em execução de sentença o apuramento do diferencial fixando-se como limite máximo - n.° 2 do artigo 661.º do CPC - € 30.000,00, já que desconhecemos por referência ao quarto de casal e ao quarto de um dos filhos se a ré escolheu todas as peças de mobiliário ou só parte delas e por isso não podemos deixar de fixar um valor limite que abranja todo esse mobiliário e respeite o diferencial entre o montante facturado e o pago. (…)”

Ao que se acrescentou, ainda no que aqui releva, na Acórdão do STJ de 02/11/2010:

 (…) no caso dos autos, a A. e os RR. ficaram vinculados através de um contrato de empreitada (…) . Ou seja, a A. obrigou-se perante os RR. — no caso, com intervenção directa e pessoal apenas do R. — a realizar a decoração da casa de morada e propriedade de ambos, nos termos acordados e contra o pagamento de um preço por estes àquela. Tendo, pois, de entender-se — como se fez no acórdão impugnado — que, assim, nos confrontamos com um contrato de empreitada e não com um contrato misto de prestação de serviços de decoração e venda de artigos para levar a cabo tal desiderato, como foi sentenciado na ia instância.

(…) insistem os recorrentes em que o preço estipulado e que não poderia ser ultrapassado se cifrou em € 80 000,00.

Aqui, assiste razão tão só parcial aos recorrentes, uma vez que, efectivamente, o preço, originariamente, acordado foi de € 80 000,00.

No entanto, não atentam os mesmos recorrentes em que, como decorre da factualidade acolhida de 14 a 20, aquele preço acabou por ser inflacionado devido à actuação da R. que, interferindo na aplicação dos artigos e mobiliário pela A. destinados à acordada decoração, fez com que viessem a ser aplicados artigos e mobiliário, em regra, mais dispendiosos, não curando, então, a R. de questionar e objectar que tal processo determinaria fatalmente a ultrapassagem do “plafond”, originariamente, estabelecido...

Bem ao contrário, querendo a legal representante da A., por desgastada com tais substituições, pôr termo à decoração, os RR. solicitaram-lhe que continuasse (19 e 20). Ou seja, quer por força do preceituado no art. 1216 n°2, quer na decorrência do estatuído no art. 406°, n°1, ambos do CC, passaram os RR. a arcar com o pagamento do preço que de tais substituições resultasse, limites em que se contém o peticionado pela A., nos moldes que acabaram por ser acolhidos no acórdão impugnado.

Aliás, não pode deixar de causar estranheza o facto de os RR. não terem posto termo, nos termos acordados, às substituições, em regra mais dispendiosas, operadas pela legal representante da A., antes com isso tendo contemporizado e opondo-se, mesmo, a que tal atitude fosse assumida por aquela representante. Seria o cúmulo da má fé, envolvendo frontal violação do disposto no art. 762°, n.° 2 do CC, que os RR. recorrentes aceitassem, placidamente, e estimulassem, mesmo, as sobreditas substituições, almofadados no preço, originariamente, estipulado, e indiferentes ao inevitável e comunicado aumento do preço final que daí resultaria.. .Tal configuraria um modo original de conseguir o bom e inalcançável a verdadeiro preço de saldo, o que o mais elementar sentido de justiça não pode consentir!

Ou seja – é onde se quer chegar – está à partida afastada, em face do que se expendeu em tais acórdãos e do que consta do dispositivo sob liquidação, a possibilidade processual da presente liquidação poder “dar em nada”; isto é, a não fixação/liquidação de qualquer “quantidade” a pagar pelos RR. à A. é uma hipótese que não faz parte, no caso, do leque de alternativas processualmente admissíveis.

Efectivamente, em síntese, está estabilizado o seguinte:

1 - A qualificação da relação contratual, havida, como empreitada; sendo de € 80.000,00 o preço acordado.

2 - O cumprimento da prestação/obrigação da empreiteira/A. (razão porque os RR. foram condenados a pagar a totalidade da sua contraprestação, isto é, os € 10.000,00 ainda em falta).

3 – Ter a A. colocado na casa dos RR. mobiliário e artigos relativos à decoração com um custo/preço global de € 100.000,00.

4. O que terá resultado – pelo menos, em parte – de a R. mulher ter pedido a substituição de alguns artigos e mobiliários por outros de preços/custos mais elevados, o que se deu como provado ter acontecido com o aparador, sofá de sala, quarto de casal, sofá de sala de música e com o quarto de um dos filhos (factos 15 a 20).

Foi pois justamente com referência a estes artigos e mobiliário – aparador, sofá de sala, quarto de casal, sofá de sala de música e quarto de um dos filhos – que se reconheceu à A. o direito ao aumento do preço da empreitada; tendo-se, na falta de elementos factuais, relegado a concretização de tal aumento para o presente incidente de liquidação.

Enfim, sintetizando, ficou assente que tais artigos e mobiliário eram de custos mais elevados e que a diferença de preço tinha que ser paga pelos RR.[2]; a decisão sob liquidação fixou em definitivo o direito a um aumento de preço a favor da A., apenas não fixando o seu montante, uma vez que considerou não ter elementos suficientes – disse-se mesmo que se desconhecia por referência ao quarto de casal e ao quarto de um dos filhos se a R. escolheu todas as peças de mobiliário ou só parte delas – para o seu cálculo.

É pois para isto – para apurar o quantum do acréscimo (já decidido), do preço da empreitada causado pelas alterações (referidas no facto 18) exigidas pelo dono da obra – que estamos na presente liquidação.

O que também significa – e se extrai da decisão sob liquidação (maxime, da “energia” da fundamentação do Acórdão do STJ) – que, ainda que não se apure exacta e precisamente a diferença de preços, o desfecho não é a não fixação/liquidação de qualquer “quantidade” e a improcedência da liquidação; é sim o de julgar/fixar a diferença de preços equitativamente, dentro dos limites provados.

Em conclusão, uma condenação que, pelas razões aduzidas, manda liquidar um aumento/diferencial de preço duma empreitada (em virtude de alterações exigidas pelo dono da obra) em incidente posterior[3], pode constituir como que uma espécie de “compasso de espera” no uso da equidade; parte da suposição de que há elementos factuais adicionais que podem ser obtidos e concede uma última possibilidade para os mesmos serem reunidos, tendo em vista, assim, com mais e melhores elementos factuais, poder ser fixado com exactidão o montante do aumento/diferencial de preço (ou poder ser feito um mais prudente e judicioso juízo equitativo).

Aqui chegados, efectuado o indispensável contexto do meio processual em que nos movemos, debrucemo-nos mais directamente sobre o objecto da apelação.

Verdadeiramente, encurtando explicações, a maior parte da argumentação subjacente à divergência recursiva da A/apelante centra-se sobre a (impugnação da) decisão de facto.

Sintetizando, a A/apelante diz basicamente que fez a prova da diferença de custos/preços dos artigos e mobiliário referidos no facto 18 – para o que argumenta que os custos/preços dos fornecidos já ficaram assentes na acção e que provou documentalmente os custos/preços dos que, não fora o pedido de substituição da R., se propunha inicialmente fornecer – e que, por isso, não se podiam dar como não provados (mas antes como provados) todos os valores referidos no seu requerimento inicial.

Que dizer?

Desde logo e em 1.º lugar que a divergência com a decisão de facto – a impugnação da decisão de facto – não está bem/suficientemente feita.

Efectivamente, para impugnar uma decisão da matéria de facto – tomada também com base em depoimentos prestados – é absolutamente indispensável, sob pena de rejeição da impugnação (cfr. 685.º-B do CPC), que se enumerem e identifiquem os concretos meios probatórios, constantes de registo ou gravação realizada – por referência às passagens da gravação em que se funda, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 522.º.C – que impõem decisão diversa sobre os pontos de facto em causa.

Foi justamente isto que a A/apelante não fez; como o corpo da sua peça recursiva e as respectivas conclusões – que demarcam o objecto do recurso – supra transcritas o espelham, a A/apelante limitou-se a esgrimir argumentos que poderão/deverão ser incorporados no momento “único e concentrado” da análise crítica de todas as provas, mas que não podem ser introduzidos e tomados em conta, para alterar a decisão de facto, fora de tal momento “único e concentrado” e, principalmente, quando não se analisam – não se chamam à colação – todas as provas produzidas.

O referido art. 685.º-B e o 712.º, ambos do CPC, impõem ao recorrente que pretenda a reapreciação da prova por parte da Relação que, na fundamentação da sua discordância em relação ao decidido na 1.ª Instância, indique com exactidão (as passagens da gravação) os concretos meios probatórios que devem conduzir a decisão diversa da proferida na 1.ª Instância.

Assim – admitindo que a A/apelante pretende mesmo a reapreciação da prova[4] – foi justamente tal ónus de alegação/fundamentação que não curou de cumprir, razão pelo qual, a haver recurso quanto à matéria de facto, é formalmente de rejeitar.

O que, evidentemente, em face de tudo o que supra referimos sobre o que está em causa num incidente de liquidação subsequente a uma sentença de “condenação genérica”, não é o “fim” da liquidação; significa apenas e quando muito que a “suposição” que levou à condenação no que se apurar em liquidação de sentença não foi correspondida, isto é, que no incidente de liquidação acabaram por não ser reunidos/provados elementos factuais adicionais para poder ser fixado com toda a exactidão o montante do aumento/diferencial de preço da empreitada.

Aliás, é justo referi-lo, a exacta prova do montante do aumento/diferencial de preço da empreitada não era tarefa fácil (nem para a A. nem para os RR.); embora a A./apelante, com a alegação do requerimento inicial, não tenha “ajudado” tudo o que podia/devia.

Expliquemo-nos:

Não era tarefa fácil, uma vez que a fluidez do objecto mediato do acordo contratual (da empreitada, sem as alterações exigidas pela R.) – em que, lembra-se, inexistia “um qualquer estudo prévio que identificasse materiais e preços” – não dava qualquer pista sobre os custos/preços que os artigos e mobiliário substituídos tinham na “economia” de tal acordo contratual.

Como é evidente, para se demonstrar ao tribunal os custos/preços dos artigos e mobiliário substituídos, era preciso começar por convencer/provar quis eram, na economia do acordo contratual, os concretos – e não outros ou uns quaisquer – artigos e mobiliário a fornecer[5].

Quanto aos custos/preços dos artigos e mobiliário referidos no facto 18, havia que aceitar – tem a A/apelante razão – os custos/preços já assentes na acção; porém, nem foram estes os que, em rigor, a A/apelante invocou, uma vez que se “esqueceu” que na acção se decidiu que os custos/preços “devidos” são os que conduzem ao valor global de € 100.000,00 e não ao valor global de 115.397,67, que é a soma da lista de fls. 70 e 72, o que significa, naturalmente, que não podia invocar, como preços/custos dos artigos e mobiliário referidos no facto 18, os preços constantes de fls. 70 e 72; e foi isto o que fez, embora – pior ainda – não haja respeitado sempre os preços constantes de fls. 70 e 72 (v. g., na lista de fls. 71, o sofá da sala tem o custo/preço de € 1.850,00 e, agora, no requerimento inicial, aparece com o custo/preço de € 3.640,00).

A fluidez do objecto mediato do acordo contratual concedia uma grande “engenharia” de preços/custos à A/apelante, tendo em vista exponenciar a diferença de preços/custos dos artigos e mobiliário, porém, obrigava-a, em tal “engenharia”, a uma alegação/invocação que não estivesse ao arrepio do que já estava adquirido nos autos.

Ora, como sempre referimos, quando uma parte tergiversa sobre um concreto facto[6] – v. g. sobre o custo/preço do sofá da sala, que quase duplicou de valor entre uma e outra versão da A. – não é só tal facto que verdadeiramente fica em crise; é a fé/confiança de toda a sua alegação que fica abalada.

Ademais, há outros aspectos em que a alegação da A. (do requerimento inicial) não contribuiu para o apuramento do diferencial de preços.

Como acima se fez notar, o Acórdão da Relação (que é no fundo a decisão fundadora da liquidação) acentuou que se desconhecia “por referência ao quarto de casal e ao quarto de um dos filhos se a R. escolheu todas as peças de mobiliário ou só parte delas”, pelo que, a tal propósito, devia haver uma alegação e prova específica sobre quais as peças efectivamente escolhidas pela R.; aliás, falando-se em “quarto dum dos filhos”, também convinha que se alegasse e provasse porque é que esse filho era/é o Pedro e não o André[7]; mais, aqui bem relevantemente, o já recorrente facto 18, ao falar em “quarto dum dos filhos”, não autoriza a A. a incluir artigos que, na lista de fls. 70 a 72, são dados como fazendo parte do “escritório do Pedro” (e estão neste caso os artigos referidos em 7.º, 8.º, 11.º,12.º, 13.º e 14.º, quando, a fls. 409, a A. fala em “Quarto do Pedro”).

Concluindo, neste ponto, eram diversas as antinomias que a presente liquidação, logo no momento alegatório inicial, suscitava e colocava.

O que – a sua enunciação – além de constituir uma resposta substantiva à divergência recursiva da A/apelante (para além da resposta formal – processualmente incontornável e suficiente – consistente em a impugnação da decisão de facto ter sido mal feita), auxilia o percurso da fundamentação do juízo equitativo com que, naturalmente, vamos terminar a apreciação da presente apelação/liquidação.

Como supra referimos, a “condenação genérica” sob liquidação partiu da suposição de que havia elementos factuais adicionais que podiam ser obtidos e concedeu uma última possibilidade para os mesmos serem reunidos, tendo em vista, assim, com mais e melhores elementos factuais, poder ser fixado com exactidão o montante do aumento/diferencial de preço; suposição que, também já o referimos, não foi correspondida.

Por conseguinte, na falta de “mais e melhores elementos factuais”, o julgamento “ex aequo et bono” – em que se tomam em conta “todas as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas, da criteriosa ponderação das realidades da vida[8] – tem que ter como ponto de partida o que ficou provado na acção e tem que ponderar e incorporar as observações acabadas de fazer sobre a alegação da A/apelante, tudo, naturalmente, “joeirado” à luz duma lógica de respeito pelo princípio de proibição do excesso.

O que, concretizando, dá a seguinte “equação verbal”:

Somam, segundo a alegação da liquidação da A/apelante, os artigos e mobiliário colocados (referidos no facto 18), descontando-se quer a diferença de valor do sofá da sala quer os artigos na acção incluídos no escritório do Pedro, cerca de € 30.000,00; o que, efectuando a este montante o desconto de 15% (que vai dos € 115.397,67 para os € 100.000,00), dá € 25.500,00.

Nos quais (nestes € 25.500,00), no confronto entre um acordo inicial de € 80.000,00 e uma colocação de artigos com o custo/preço global de € 100.000,00, se pode dizer que está compreendido, linearmente, um aumento/diferencial de custos/preços de cerca de € 5.000,00.

Assim, tendo presente que para este aumento/diferencial também contribuem artigos respeitantes “ao quarto de casal e ao quarto de um dos filhos” (sem ter sido feita a prova de quais as concretas e exactas peças ali substituídas), consideramos como inteiramente justo e equilibrado, como a melhor justiça do caso concreto, numa lógica de estrito respeito pelo princípio de proibição do excesso, fixar a liquidação – o diferencial de preços, o acréscimo do preço da empreitada causado pelas alterações exigidas pelo dono da obra – em montante correspondente a metade de tal valor, isto é, em € 2.500,00.

É este o resultado final do uso da equidade.

A que se recorre no mais estrito respeito pelo disposto no art. 4.º/a) do C. Civil; uma vez que é a equidade, segundo a lei (cfr. art. 883.ºdo C. Civil, ex vi art. 1211.º do C. Civil), o ultimo critério da determinação do preço no contrato de empreitada[9].

Procede pois parcialmente – embora por razões bem diferentes das invocadas, embora compreendidas no âmbito da apelação – nos estritos termos acabados de traçar, o que a A./apelante invocou e concluiu na sua alegação recursiva, o que determina a consequente revogação parcial do decidido na 1ª instância.


*

IV – Decisão

Pelo exposto, decide-se julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida, que se substitui pela liquidação/fixação do diferencial (entre o custo real dos objectos/mobiliário indicados no ponto 18 de matéria de facto e o custo dos objectos/mobiliário que a decoradora/apelante pretendia usar na decoração), em que os RR. foram condenados, no montante de € 2.500,00.

Custas, deste incidente, em ambas as instâncias, por A. e RR. na proporção de 7/8 e 1/8, respectivamente.


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Coimbra, 18/12/2013

 (Barateiro Martins - Relator)

 (Arlindo Oliveira)

 (Emídio Santos)



[1] Mais exactamente, em “incidente de liquidação”.

[2] Na parte final da fundamentação do Acórdão da Relação escreveu-se:

“Havendo interferência com pedidos de alteração para objectos mais dispendiosos e desconhecendo-se a medida em que tais valores fizeram ou não ultrapassar o montante acordado de 80.000,00, então, torna-se necessário descortinar e apurar se o diferencial, entre o valor dos objectos exigidos pela ré e usados na decoração e o valor daqueles objectos/mobiliário que a apelante pretendia usar na decoração, ultrapassa ou não o valor acordado de € 80.000,00. Se ultrapassa devem os réus pagar a diferença - artigo 1216° do CC - entre o pago e o que está em dívida até ao limite de € 100.000,00, se não vier a ultrapassar compete aos réus pagar o valor acordado de € 80.000,00. Se o somatório dos restantes objectos/mobiliário usados na decoração com o valor apurado em liquidação de sentença não ultrapassar o valor acordado de € 80.000,00, nada mais têm os réus a pagar; se o valor apurado em liquidação de sentença quando somado ao valor dos restantes objectos/mobiliário usados na decoração ultrapassar os € 80.000,00 devem os réus, à luz do disposto no n.° 2 do artigo 1216° do CC, pagar a diferença. Não ultrapassando tal valor - o encontrado na liquidação em execução de sentença + o já pago - os € 80.000,00 acordados nada mais os réus têm a pagar; se ultrapassar aquele valor até ao limite dos 100.000,00 devem os réus/apelados, por via do disposto no n.° 2 do artigo 1216° do CC, pagar o valor liquidado que repete-se terá que corresponder à diferença entre os objectos/mobiliário a usar pela decoradora por referência ao facto 18 e o custos dos objectos/mobiliário exigido pela ré em substituição daqueles.”

Com o devido respeito, não compreendemos a totalidade de tal argumentação.

Se a A. colocou na casa dos RR. mobiliário e artigos relativos à decoração com um custo/preço global de € 100.000,00, não se vê como o valor de € 80.000,00 possa deixar de ser alguma vez ultrapassado; o que pode ter uma “geometria variável” é a parte que, em tal “ultrapassagem”, diz respeito ao mobiliário e artigos referidos no facto 18. É que, importa ter presente, não existia, como se refere no Acórdão da Relação, “um qualquer estudo prévio que identificasse materiais e preços”.

[3] Não é este o ponto de vista que temos vindo a sustentar.

A nosso ver, a condenação no que se vier a liquidar, a proferir nos termos do art. 661.º/2 do CPC, está conexionada com o que se prescreve, quer no artigo 47.º/5 do CPC, quer, especialmente, no art. 471.º do CPC; resultando dos 3 preceitos que a condenação “no que vier a ser liquidado” (de que fala o art. 661.º/2 do CPC) se articula com o conceito/expressão “pedido genérico” contida no art. 471.º do CPC, isto é, a expressão pedido genérico é utilizada, a nosso ver, no sentido de pretensão respeitante a um direito indemnizatório de quantitativo não apurado ou a um direito real ou de crédito a uma universalidade de facto ou de direito; sendo nestes casos – apenas nestes taxativos casos – que o tribunal pode/deve fazer uso do art. 661.º/2 do CPC e proferir uma sentença que, ao contrário da “boa regra”, não condenará de modo certo, concreto e determinado.

Seja como for, não releva minimamente para o caso; uma vez que, neste momento, apenas nos compete cumprir/obedecer ao que já está em definitivo decidido.
[4] E parece ser o caso, em face da norma que na última conclusão a A/apelante diz ter sido violada.

[5] Ou seja, voltando um pouco atrás, respondendo à substância da impugnação/argumentação da A/apelante, a prova dos custos/preços dos artigos e mobiliário substituído não era algo que se pudesse fazer recorrendo tão só a facturas e documentos; em 1.º lugar, era sempre preciso explicar/demonstrar que eram aqueles e não outros quaisquer os artigos e mobiliário que estava previsto fornecer (e que foram substituídos a pedido/exigência da R.).
[6] Sem que se trate de lapso ou sem que seja dada uma explicação plausível para a tergiversação.

[7] Até porque os valores dos artigos da lista de fls. 70 a 72 não são, para os quartos dos dois filhos, exactamente os mesmos.
[8] Pires de lima e Antunes Varela, C. C. Anotado, 4ª ed., Vol. 1º, p. 501.

[9] E é disto – do acréscimo do preço da empreitada causado por alterações exigidas pelo dono da obra – que, como já explicámos, a presente liquidação trata.