Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
61/14.5TBPNC.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
RATIFICAÇÃO DE EMBARGO EXTRAJUDICIAL DE OBRA NOVA
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
PESSOA COLECTIVA
EMPRESA PÚBLICA
CONCESSÃO
Data do Acordão: 01/20/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO - FUNDÃO - INST. LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.212 CRP, 4 ETAF, 26 LOFTJ, 66 CPC, DL Nº 319/94 DE 24/12
Sumário: 1. O pedido de ratificação judicial de um embargo extrajudicial de obra levada a cabo por uma empresa pública concessionária de serviços públicos, no âmbito do fim típico da sua atividade, com fundamento na violação do direito de propriedade do requerente, poderá enquadrar-se num litígio que tem por objeto “a responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público”, encontrando-se abrangido pela alínea g), do nº1 do art. 4º do ETAF.

2. Tal litígio, implicando o julgamento da licitude de uma atividade de gestão pública, na satisfação de interesses públicos e coletivos, enquadrada por normas de direito público, emerge de relações jurídicas de cariz administrativo, integrando-se igualmente na cláusula geral contida no nº1 do citado art. 4º, incumbindo a sua apreciação aos tribunais administrativos.

Decisão Texto Integral:                                                                                                

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

A (…) intenta o presente procedimento cautelar de ratificação de embargo extrajudicial de obra nova contra Águas (…), S.A.,

alegando, em síntese, que, tendo constatado que a requerida andava a realizar trabalhos de escavação no meio do prédio do requerente, alegadamente numa conduta de abastecimento de água que servia para abastecer a localidade de Quintas da Torre, a mulher do requerente deu ao encarregado da obra ordem verbal de embargo extrajudicial da obra.

A requerida deduziu oposição, invocando, além do mais, a incompetência do tribunal, porquanto, sendo uma empresa pública, concessionária da exploração e gestão do sistema multimunicipal de captação relativa a vários municípios, e encontrando-se em causa a sua atuação no âmbito da realização de uma obra pública, a entidade competente para dirimir o presente litígio é o tribunal administrativo.

O requerente respondeu no sentido da improcedência de tal exceção, alegando que o art. 414º do CPC apenas afasta o procedimento de embargo de obra nova previsto nos arts. 412º e ss., quando o litígio se reportar a uma relação jurídico-administrativa.

 Pelo juiz a quo proferido despacho a julgar o tribunal incompetente em razão da matéria, absolvendo o requerido da instância.

Não se conformando com tal despacho, o requerente dele interpôs recurso de apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões:

1.ª Ao contrário do referido no despacho recorrido, não está em causa a mera responsabilidade civil da Requerida.

2.ª Já que na ação principal o que se irá peticionar, a título principal, será a condenação da Requerida a remover a obra em questão da propriedade do Requerente.

3.ª O facto de a Requerida ser uma empresa pública concessionária de um serviço público não altera esse facto, posto que tal, por si só, não é suficiente para qualificar a questão como enquadrando-se numa relação jurídico-administrativa.

4.ª Tal poderia ser assim se a atuação lesiva do direito de propriedade do Requerente estivesse respaldada num qualquer ato administrativo ou então diretamente em normas de direito administrativo que lhe permitisse esse ato ablativo da propriedade do Requerente.

5.ª Cremos, aliás, que é a essa a ratio da jurisprudência invocada no Despacho recorrido.

6.ª Porém, no caso concreto nada disso existe, mas tão só uma obra pública realizada sem procedimento válido em propriedade alheia.

7.ª De facto, não se vê como é que se pode entender que no caso em concreto a Requerida tenha atuado no âmbito de normas de direito de administrativo que permitissem a sua atuação e que criasse no Requerente uma situação de especial sujeição.

8.ª Ademais, e ao contrário do referido no despacho recorrido, não é verdade que a Requerida tenha alegado que “a atuação foi levada a cabo na sequência de concurso público de que a requerida foi entidade adjudicante que por seu turno celebrou contrato público, para a execução de obra pública, com um cumprimento de contrato público”.

9.ª De resto, a jurisprudência nacional (v. acórdãos citados nas alegações) tem entendido em casos semelhantes aos dos presentes autos, em que em que não existe substrato administrativo próprio para a realização de obra pública em terreno alheio em violação do direito de propriedade, é admissível embargo de obra nova em tribunal judicial.

10.ª Acresce que a questão material em causa diz respeito a saber se a obra pública em questão se acha inserida em caminho público, como sustenta a Requerida, ou em terreno privado, como sustenta o Requerente, o que também constitui matéria da competência dos tribunais judiciais.

11.ª O facto de se ter implantado obra pública não altera, por si só, possivelmente em decorrência da natureza da relação existente, pois que não tendo a realização da obra em questão precedida por qualquer dos actos e formalidades a seguir para a transmissão da propriedade para o domínio público ou para a constituição de servidão administrativa, estamos perante uma ocupação grosseira em que a Administração não goza de qualquer prerrogativa especial.

12.ª Assim sendo, ao considerar que os tribunais judiciais não eram competentes, em razão da matéria, para conhecer da presente providência cautelar o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 211.º, n.º1, da CRP, 64.º do CPC, 80.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, 212.º, n.º 3, da CRP e 1.º, n.º1, do ETAF.

Conclui pela revogação do Despacho recorrido, julgando-se competente o Tribunal Recorrido para conhecer da presente providência cautelar.

Foram apresentadas contra-alegações no sentido da manutenção do decidido.
Dispensados que foram os vistos legais, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, a questão a decidir é uma só:
1. (In)Competência material do tribunal.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

1. Competência material para julgar a presente ação: tribunais comuns ou tribunal administrativo.
Com o presente procedimento pretende o autor a ratificação judicial do embargo por si efetuado a uma obra que a ré levava a cabo, alegadamente em terreno propriedade do autor.
O tribunal recorrido, considerando encontrar-se em causa uma obra levada a cabo por uma concessionária de direito público e a responsabilidade civil daquela pela prática de um ato ilícito no cumprimento de contratos públicos ou da sua competência legal e em prossecução de um interesse público de abastecimento de água às populações, concluiu ser tal litígio passível de enquadramento na previsão das als. f) e g) do art. 4º do ETAF, e como tal, da competência do tribunal administrativo.
O embargante insurge-se contra tal decisão, alegando que o facto de a requerida ser uma empresa pública concessionária de um serviço público não é suficiente para enquadrar o litígio no âmbito de uma relação jurídico-administrativa: não se encontrando a atuação da requerida respaldada num qualquer ato administrativo (nomeadamente, se existisse uma declaração de utilidade pública destinada à expropriação da parcela ou à constituição de uma servidão administrativa), a defesa do direito de propriedade contra uma intrusão abusiva de terceiro é questão submetida à jurisdição dos tribunais comuns.
Apesar da reforma da justiça administrativa operada pela Lei nº 12/2002, que aprovou o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), ter pretendido clarificar o âmbito da justiça administrativa, a específica questão objeto do presente recurso não tem obtido resposta uniforme por parte da jurisprudência: enquanto ao nível dos tribunais da relação as decisões oscilam entre a atribuição de competência aos tribunais comuns e a atribuição de tal competência aos tribunais administrativos, o tribunal dos conflitos tende a atribuir tal competência à jurisdição administrativa[1].
Genericamente, a opção por uma ou outra das jurisdições é feita em conformidade com o enquadramento que fazem da situação em causa, qualificando-a, uns como uma relação jurídico-administrativa e outros como uma relação jurídica de direito privado.
Sendo residual a competência atribuída aos tribunais judiciais – tendo competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (artigo 26º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, e artigo 66º do CPC) – vejamos se existe alguma norma que atribua a competência para julgar a presente ação aos tribunais administrativos.
O Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, redefinindo os critérios de delimitação do âmbito da jurisdição administrativa, começa por definir a competência dos tribunais administrativos de um ponto de vista substancial, reportando-a aos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, aproximando-a, assim, da função jurídico-constitucional que lhe é atribuída pelo artigo 212º nº3 da Constituição.
A primeira delimitação substantiva da justiça administrativa é feita, assim, por recurso à utilização de uma cláusula geral[2].
Os Professores Gomes Canotilho e Vital Moreira, em anotação ao art. 212º, nº3 da Constituição, referem que “esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: 1 – as ações e recursos que incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente) da administração; 2 – as relações controvertidas são reguladas sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico civil”. Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal[3]”.
Na falta de clarificação por parte do legislador sobre o que se entende por “relação jurídica administrativa”, José Carlos Vieira de Andrade propõe que se parta do entendimento do conceito constitucional, enquanto “relação jurídica de direito administrativo” – relação jurídica que corresponda ao exercício da função administrativa, entendida em sentido material –, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração.
A determinação do domínio material da justiça administrativa continua, assim, a passar, segundo tal autor[4], pela distinção material entre o direito público e o direito privado: têm de se considerar relações jurídicas públicas aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, atuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido. “Excluem-se, assim, em princípio, do âmbito substancial da justiça administrativa as questões administrativas de puro direito privado, isto é, as decorrentes da atividade de direito privado da administração – quer seja a que corresponde ao mero exercício da capacidade privada (negócios auxiliares, administração do património, gestão de estabelecimentos económicos em concorrência), quer se trate de atividades funcionalmente administrativas, quando ou na medida em que se desenvolvam exclusivamente através de instrumentos jurídicos privatísticos (subvenções, fornecimento de bens e serviços, gestão privada de estabelecimentos públicos, intervenções no mercado), ainda que toda a atividade administrativa esteja sujeita aos princípios jurídicos fundamentais do direito administrativo[5].
Contudo, a reforma da justiça administrativa – reconhecendo as tendências doutrinárias que vinham admitindo generalizadamente a atribuição aos tribunais administrativos da resolução de conflitos referentes à atividade da administração, ainda que respeitassem a relações ou incluíssem aspetos de direito privado –, como sustenta José Vieira de Andrade, optou por atribuir expressamente aos tribunais administrativos a resolução de conflitos não incluídos na cláusula geral do artigo 212º, nº2 da CRP[6].
Salienta tal autor que, ao contrário do que acontecia na lei anterior, o novo ETAF deixou de excluir expressamente da justiça administrativa “as questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja uma pessoa de direito público”, mas também não optou incluir tais questões, pelo que elas estarão excluídas por natureza, sem prejuízo de haver uma atribuição expressa aos tribunais administrativos do julgamento de determinados litígios de direito privado: Esta atribuição expressa corresponde ao tal alargamento da jurisdição administrativa para além do seu âmbito substancial próprio, abrangendo fundamentalmente litígios relativos a contratos e à responsabilidade civil da administração[7].
O nº1 do artigo 4º do ETAF[8], concretizando o âmbito de jurisdição dos tribunais administrativos, procede à enumeração exemplificativa[9] dos litígios abrangidos pela mesma, e que aqui reproduzimos na integra, para melhor compreensão da questão em apreço (e não apenas as suas alíneas f) e g), ao abrigo das quais o juiz a quo considerou o encontrar-se o litigio abrangido pela jurisdição administrativa:
“1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objeto:
a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares diretamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de atos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por pessoas coletivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem como a verificação da invalidade de quaisquer contratos que diretamente resulte da invalidade do ato administrativo no qual se fundou a respetiva celebração;
c) Fiscalização da legalidade de atos materialmente administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas, ainda que não pertençam à Administração Pública;
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos;
e) Questões relativas à validade de atos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público;
f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objeto passível de ato administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspetos específicos do respetivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que atue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;
g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos;
i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público;
j) Relações jurídicas entre pessoas coletivas de direito público ou entre órgãos públicos, no âmbito dos interesses que lhes cumpre prosseguir;
l) Promover a prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas, e desde que não constituam ilícito penal ou contraordenacional;
m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas coletivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;
n) Execução das sentenças proferidas pela jurisdição administrativa e fiscal.
2 – (…)”
A generalidade das alíneas do nº1 do artigo 4º - com exceção de parte das alíneas b), e), g), e h), relativas a matéria de contratos e a responsabilidade civil – visa apenas a concretização positiva do conceito de “litígios emergentes de relações jurídicas administrativas”[10].
As dificuldades de interpretação adensam-se, contudo, em matéria de contratos e de responsabilidade civil, áreas nas quais se pretendeu proceder a um alargamento da jurisdição administrativa relativamente à cláusula geral contida no nº1 do art. 4º.
A competência do tribunal é aferida pelo quid disputam (ou quid decidendum) ou seja, é aferida em função dos termos em que a ação é proposta, quer quanto aos seus elementos objetivos (causa de pedir e pedido), quer quanto aos seus elementos subjetivos (identidade das partes)[11].
Com o presente procedimento pretende o requerente a ratificação judicial do embargo extrajudicial da obra – realização de trabalhos numa conduta de abastecimento de água com o fim de abastecer a localidade de Quintas da Torre – levada a cabo pela requerida, empresa pública e concessionária de serviços públicos, com fundamento em que tais obras violam o direito de propriedade do requerente.
Encontra-se em causa a violação danosa do direito de propriedade do requerente em virtude da execução de obras por parte da requerida, relacionadas com a rede de abastecimento de água às populações.
Os contornos deste tipo de ação refletem a prática de factos que integram um ilícito civil gerador de responsabilidade extracontratual, a ofensa do direito de propriedade privada, esta regulada por normas de direito civil.
Ao mesmo tempo, encontram-se em causa as consequências de atos materiais de execução técnica integrados numa atividade da Administração: a execução de obras para reparação de uma conduta de água insere-se no âmbito do fim típico da atividade da concessionária, com vista à prossecução de um interesse público.
No caso em apreço, não haverá, assim, dúvidas de que a situação que o requerente pretende acautelar configura litígio emergente de relações extracontratuais: a obra cuja execução alegadamente viola o direito do requerente não é levada a cabo no âmbito de qualquer contrato celebrado entre o autor e a aqui requerida.
Assim, sendo, excluída ficará, desde logo, a aplicação da citada alínea f) do nº1 do artigo 4º, que abrange, única e exclusivamente, litígios emergentes de relações contratuais, e em que a delimitação da jurisdição administrativa pela natureza administrativa do contrato, é feita em função do objeto (passível de ato administrativo), do conteúdo (submetido a normas específicas de direito público) ou do sujeito (uma das partes tem de ser entidade pública ou concessionária no âmbito da concessão)[12]”.
Quanto às alíneas g) e h), do nº1 do artigo 4º, a doutrina defende[13] que as mesmas indicam passar a competir à jurisdição administrativa a apreciação de todos os litígios que tenham por objeto a responsabilidade das pessoas coletivas de direito público, independentemente de saber se essa responsabilidade emerge de uma atuação de gestão pública ou de uma atuação de gestão privada[14].
Por força de tais alíneas, passa a competir à jurisdição administrativa a apreciação de todos os litígios que tenham por objeto a responsabilidade das pessoas coletivas de direito público, inclusivamente por dano decorrentes da sua atividade de “gestão privada”, mesmo que o regime aplicável seja o estabelecido no Código Civil[15].
 Segundo Sérvulo Correia, “independentemente da natureza jurídica pública ou privada da situação de responsabilidade, esta cabe no âmbito da jurisdição exercida pelos tribunais administrativos só porque é pública a personalidade da entidade alegadamente responsável ou da entidade em que se integram os titulares de órgãos ou servidores públicos[16]”.
Como se refere no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 07.10.2009[17], o interesse da distinção entre atos de gestão pública e atos de gestão privada, no que toca à responsabilidade civil extracontratual, passou a estar confinado ao direito material. O juiz administrativo não fica dispensado de proceder à qualificação da relação controvertida, visto que da natureza da origem da responsabilidade – ato de gestão pública ou ato de gestão privada – dependerá a determinação do regime substantivo aplicável”.
Assim sendo, e apesar de nos encontramos perante a violação de direitos privados, a consumar-se a lesão dos direitos que com a presente providência se pretende acautelar, dúvidas não haverá de que a reparação de tais danos através da atribuição da correspondente indemnização incumbirá claramente à jurisdição administrativa, ao abrigo da referida al. g), do nº1 do artigo 4º do ETAF.
A responsabilidade civil extracontratual prevista nas referidas alíneas g) e h), consiste na obrigação que recai sobre uma entidade envolvida em actividade de natureza pública que tiver causado prejuízos aos particulares, fora do contexto de uma relação contratual.
Sendo o objetivo da responsabilização do Estado e outras entidades envolvidas no exercício de atividades de natureza pública “a transferência do dano sofrido pelo cidadão para o seu causador”, com uma clara preferência pela reparação in natura, isto é, pela reconstituição hipotética que se verificaria no caso de não ocorrência do dano, a reposição da situação ao estado anterior constituirá ainda um modo de reparação do dano.
Como defende João Caupert[18], o objetivo de tal responsabilidade alcançar-se-á não só pela via do pagamento de uma quantia em dinheiro, a indemnização, mas ainda pela via da realização específica do direito, ou seja pela reparação in natura.
Ora, quando, invocando a ilicitude da atuação da requerida por violação do direito de propriedade do autor, se peticiona a paragem da obra e a reposição do prédio do requerente ao estado anterior, é ainda a responsabilidade extracontratual que se pretende acionar. Tal responsabilidade abrangerá não só as medidas ou providências destinadas a reparar o prejuízo sofrido por outrem, mas ainda a realização específica (coativa) do direito[19].
Aliás, não faria grande sentido que o cidadão que vê o seu direito de propriedade violado pela execução de uma obra pública, a apreciação da ilicitude de tal atuação tivesse de ser apreciação em duas jurisdições, obrigando-o a interpor duas ações em distintos tribunais: uma nos tribunais comuns, para obter a paragem da obra e a reposição ao estado anterior, e outra no tribunal administrativo, para a obtenção de uma indemnização com vista à reparação dos danos não inteiramente satisfeitos pela anterior via.
Insiste o apelante, não se encontrar aqui em causa uma pretensão indemnizatória, mas, sim, a defesa do direito de propriedade contra uma intrusão abusiva de terceiro. No seu entender, para que a situação se enquadrasse no âmbito de uma relação jurídico administrativa, seria necessário que a sua situação se encontrasse a coberto de qualquer acto administrativo, ou seja que, pelo menos, existisse uma declaração de utilidade pública destinada à expropriação ou à constituição de uma servidão administrativa.
Não podemos, contudo, dar razão à requerida, quer porque a intervenção dos tribunais administrativos não pressupõe que a atuação da entidade pública se encontre a coberto de qualquer ato administrativo[20], quer porque o tribunal dos conflitos tem vindo a integrar a situação em causa no âmbito de uma relação jurídica de direito administrativo.
A requerida é uma empresa pública, concessionária, em regime de exclusividade, da exploração e gestão do Sistema Municipal de Abastecimento de Água e de Saneamento do Alto Zêzere e Coa para Captação, Tratamento e Distribuição de água para consumo público e para recolha, tratamento e rejeição de efluentes de vários municípios (cujo regime jurídico se encontra aprovado pelo DL 319/94, de 24 de Dezembro, sendo-lhe atribuído o poder de constituir as servidões e requerer as expropriações necessárias à implantação e exploração das infraestruturas – nº1 da Base XVIII).
A embargada encontrava-se a proceder à construção/reparação de condutas de distribuição de água, no âmbito dos poderes que lhe são conferidos pelas Bases I e II da referida concessão de serviço público, movendo-se a sua atuação na prestação de um serviço público.
Como refere Jonatas F. Machado[21], a doutrina entende que devem ser consideradas relações jurídicas administrativas as relações interpessoais e interadministrativas em que de um dos lados da relação se encontre uma entidade pública, tendo como objeto a prossecução do interesse público, de acordo com normas de direito administrativo.
Encontrando-se em causa a realização de uma obra pública, não é o facto de terem eventualmente invadido um terreno privado, como se salienta no Acórdão de Conflitos de 04.04.2006, no qual tenham causado danos, que coloca essa atividade em paridade com a resultante de eventual invasão dessa propriedade por quaisquer simples particulares, pela decisiva razão de que estes não estavam investidos nos poderes públicos em que estavam os agentes do recorrido: “O facto da propriedade “invadida” ser privada apenas determina a ilicitude dos actos de gestão publica praticados pelos agentes em causa, não os transforma em actos de gestão privada, pois que essa invasão, mesmo que ilícita, visou a satisfação dos interesses públicos dos utentes, que à recorrida incumbia satisfazer e daí que o tenham feito, mesmo que de forma ilegal, no exercício de um poder que qualquer particular não tinha[22]”.
Assim como, não altera a natureza da sua atuação, o facto de estar a agir excedendo os limites de uma eventual servidão administrativa ou de uma declaração de expropriação, ou a circunstância de se encontrar a agir sem que tenha previamente tenha ativado qualquer um desses mecanismos relativamente ao requerente (por desconhecer que a parcela onde leva a cabo a obra em causa seja parte integrante do prédio do autor, ou por entender como sucede nos autos, que tal parcela faz parte de um caminho público).
A presente providência cautelar será sempre dependência de uma ação principal em que se peça que o tribunal reconheça o seu direito de obrigar a ré a retirar a conduta da água instalada no seu prédio, repondo o mesmo ao estado anterior, a cumular com um eventual pedido de indemnização por danos.   
Como se afirma no Acórdão do TRC de 21-10-2008[23], a apreciação de tais questões implica necessariamente o julgamento da licitude de uma atividade de gestão púbica, enquadrada por normas de direito público, na satisfação de interesses públicos e necessidades coletivas, com utilização e instrumentos de Direito Público, como sejam, regulamentos, planos urbanísticos, atos administrativos, que implicam um poder de autoridade.
Encontrando-se em causa a execução de obras relacionadas com a reparação de uma conduta que passa pelo prédio do requerente, a executar pela ré enquanto concessionária de um serviço público e no âmbito dos poderes conferidos por tal concessão, podemos afirmar que a questão em litígio emerge de relações jurídicas de cariz administrativo.
A nosso favor, invocamos ainda as alterações que têm vindo a ser projetadas quanto à revisão do CPTA e do ETAF, relevando a intenção do legislador de deixar claro que tais conflitos são de atribuir à jurisdição administrativa.
Na exposição de motivos da Proposta de Lei de Revisão do CPTA e do ETAF[24], que destaca como inovação mais significativa a relativa à “definição do âmbito da jurisdição administrativa, mas concretamente no que diz respeito ao seu artigo 4º”, refere-se que se estende o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal “às ações de condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que a legitime” (al. h) do seu art. 3º).
Ana Fernanda Neves[25], comenta, nos seguintes termos, tal aditamento: “As situações constituídas em vias de facto pela Administração são uma expressão intrusiva, ademais sem título jurídico, do agir administrativo, que contendem com a tutela dos direitos de outros sujeitos. Se a intervenção dos tribunais administrativos já poderia ser obtida no âmbito geral da “tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais”, o certo é que, tradicionalmente, a proteção jurisdicional contra tais situações estava associada à ideia dos tribunais judiciais como guardiões da propriedade e da liberdade”.

Por fim, a incompetência dos tribunais comuns decorreria ainda do disposto no artigo 399º do CPC (correspondente ao anterior artigo 414º), segundo o qual não podem ser embargadas nos termos previstos naquele código, “as obras do Estado, das demais pessoas coletivas públicas e das entidades concessionárias de obras ou serviços públicos quando, por o litígio se reportar a relação jurídico-administrativa, a defesa dos direitos ou interesses dos lesados se deva efetivar através dos meios previstos na lei de processo administrativo contencioso”.

O pedido de proibição de continuação das obras em causa, com fundamento no facto de terem sido levadas a cabo num terreno privado, pode ser formulado no tribunal administrativo que igualmente pode conhecer, a título prejudicial, como pressuposto do diferimento da pretensão do autor, se tal obra se encontra a decorrer em terreno do autor.

Como tal, concluímos que, encontrando-se em causa o embargo de uma obra pública, a relação jurídica que está subjacente à pretensão em causa, é uma relação jurídico administrativa, pelo que o conhecimento das questões decorrentes dessa relação são os tribunais da jurisdição administrativa[26].

  Impõe-se, assim, a improcedência da apelação.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a suportar pelo Apelante.                    

Coimbra, 20 de janeiro de 2015

Maria João Areias ( Relatora )

Fernando Monteiro

Inês Moura




[1] Na 2ª instância, encontrámos as seguintes decisões no sentido da atribuição da competência aos tribunais comuns: Acórdãos do TRP de 14.07.2008, relatado por Cristina Coelho, de 14.07.2008, relatado por Fernandes do Vale, de 27.09.2011, relatado por Cecília Agante, de 18.06.2013, relatado por Rodrigues Pires; no sentido da atribuição da competência aos tribunais administrativos: Ac. TRG de 07-10-2010, relatado por Raquel Rego, e Acórdãos do TRL de 26-042007, relatado por Farinha Alves, e de 04.011.2011, relatado por João Aveiro Pereira. Quanto ao tribunal dos conflitos e no sentido da atribuição de competência à jurisdição administrativa, encontrámos os seguintes acórdãos: de 04.04.2006, relatado por António Madureira, 14.03.2006, relatado por Arménio Sottomayor, de 17.06.2002, relatado por Álvaro Figueira, de 16.02.2012, relatado por Tavares de Paiva, de 07.010.2009, relatado por Jorge de Sousa. No sentido da atribuição de competência aos tribunais comuns apenas encontrámos o acórdão do tribunal de conflitos de 12.06.2007, relatado por Urbano Dias (acórdãos disponíveis in www.dgsi.pt).
[2] Neste sentido, Jonatas E. M. Machado, “Breves considerações em torno do âmbito da justiça administrativa”, in “A Reforma da Justiça Administrativa”, Boletim da F.D.U.C., Coimbra Editora 2005, pág. 86, e José Carlos Vieira de Andrade, “A Justiça Administrativa, Lições”, 13ª ed., Almedina 2014, pág. 99.
[3] “Constituição da Republica Portuguesa Anotada”, Vol. II, 4ª edição – 2010, Coimbra Editora, págs. 566 e 567.
[4] “A Justiça Administrativa (Lições)”, 13ª ed., Almedina 2014, pág. 49.
[5] “A Justiça Administrativa (Lições)”, 13ª ed., Almedina 2014, pág. 50.
[6] Obra citada, pág. 92.
[7] Obra citada, pág. 51, em particular, nota 70.
[8] Na redação da Lei 107-D/2003, de 31.12.
[9] Como refere Jonatas E. M. Machado, este preceito introduz um sistema de enumeração positiva das matérias incluídas na jurisdição administrativa, ainda que de carácter exemplificativo – artigo e local citados, pág. 102. Também José Carlos Vieira de Andrade salienta que tal enumeração é meramente exemplificativa, não só porque seria impossível uma identificação de todos os conflitos ou até a sua classificação exaustiva, seja porque não prejudicam a existência de legislação especial divergente. Segundo este autor, esta enumeração, embora concretizadora da cláusula geral que deriva da Constituição, tem de ser igualmente considerada aditiva, quando seja inequívoco que visa atribuir competências que não caberiam no âmbito definido por essa cláusula – obra citada, pág. 100.
[10] Neste sentido, Vieira de Andrade, obra citada, pág. 100.
[11] Cfr., Manuel Domingues de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora 1993, Reimpressão, pág. 91.
[12] José Carlos Viera de Andrade, obra citada, pág. 116.
[13] Em consonância com a opinião expressa pelo legislador na Exposição de Motivos da Proposta de lei que deu origem ao atual ETAF, publicada in “Reforma do Contencioso Administrativo”, Vol. III, pág. 14.
[14] Cfr., Diogo Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida, “Grandes Linhas da Reforma (…), págs. 34 a 36, Viera de Andrade, obra citada, pág. 106, e Jónatas E. M. Machado, “Breves Considerações em Torno do Âmbito da Justiça Administrativa”, local citado, pág. 117.
[15] Vieira de Andrade, obra citada, pág. 106.
[16] “Direito do Contencioso Administrativo”, Pág. 714.
[17] Acórdão relatado por Jorge de Sousa, disponível in www.dgsi.pt.
[18] “A Responsabilidade do Estado e de Outros Entes Públicos”, Notas Sobre a Responsabilidade Civil do Estado, FDUNL, in www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/jc_MA_5351.doc.
[19] O pedido de paragem das obras, a condenação a executar as obras necessárias à reposição do prédio ao estado anterior, bem como o pedido de indemnização pelos prejuízos não cobertos pela execução específica, mais não são do que meios de efetivar a responsabilidade civil, enquanto obrigação em que se constitui o autor do facto ou omissão, de restituir o lesado ao estado anterior à lesão e de satisfazer as perdas e danos que lhe tenha causado.
[20] Daí a distinção constante do atual contencioso administrativo entre a ação administrativa comum e ação administrativa especial: a primeira destina-se precisamente a dirimir litígios num contexto em que a Administração se encontra despojada de poderes públicos, não dispondo, concretamente, nem de capacidade para a prática de atos administrativos, nem de competências regulamentares, reservando-se a apreciação das pretensões dirigidas contra atos ou normas administrativas ou em que visa a prática de um ato administrativo omitido, para a ação administrativa especial – cfr., neste sentido, Pedro Gonçalves, “A Ação Administrativa Comum”, “A Reforma da Justiça Administrativa”, STUDIA IURIDICA, Boletim da FCUC, Coimbra Editora, págs. 129 e 130.
[21] Artigo e local citados, pág. 93.
[22] Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 04-04-2006, relatado por António Madureira, www.dgsi.pt.
[23] Acórdão relatado por Gregório Silva Jesus disponível in www.dgsi.pt.
[24] Disponível no Portal do Ministério da Justiça.
[25] “Âmbito de Jurisdição e outras Alterações ao ETAF”, in E-Pública Revista Eletrónica de Direito Público (http://e-publica.pt/ambitodejurisdicao.html).
[26] Cfr., neste sentido, entre outros, Acórdãos do Tribunal de Conflitos de 04.04.2006 e 07.10.2009, e do TRL de 04.11.2008.