Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
719/16.4TXPRT-F.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: PERDÃO DE PENA
Data do Acordão: 10/07/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DAS PENAS DE COIMBRA - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 2.º DA LEI N.º 9/2020, DE 10 DE ABRIL
Sumário: I. O perdão de pena previsto no artigo 2º da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, só pode ser concedido a reclusos, condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à da sua entrada em vigor, excluindo os condenados que não tenham ainda ingressado fisicamente no estabelecimento prisional.

II. Todavia, o perdão do artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, verificados que sejam os demais requisitos substantivos legais, pode ser igualmente aplicado a condenados que, no decurso da vigência daquela Lei, venham a estar na situação de reclusão.

Decisão Texto Integral:





Acordam em conferência, na 4ª Secção (competência criminal) do Tribunal da Relação de Coimbra.
I
1. Nos autos de processo supra identificados, por despacho judicial de 30 de Abril de 2020, foi declarada perdoada a pena aplicada ao arguido LC no âmbito do processo nº ..., perdoada nos termos dos mencionados preceitos, mas sob condição resolutiva do beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, caso em que, a pena aplicada a tal infração, acrescerá à agora perdoada.

2. Não se conformando com a decisão, dela recorre o Ministério Público formulando as seguintes conclusões:
1ª - O perdão previsto no artigo 2º da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, só pode ser aplicado a reclusos, condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à da sua entrada em vigor, excluindo os condenados que não tenham ainda ingressado fisicamente no estabelecimento prisional;
2ª - O artigo 7º, n.º 1, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, de 6 de Abril, suspendeu todos os prazos para a prática de actos processuais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19;
3ª - Pelo que, enquanto durar a situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, está suspensa toda a tramitação processual tendente à emissão e execução de mandados de captura na sequência de condenação transitada em julgado;
4ª - Desta forma se evitará que, durante esse mesmo período, ingressem no estabelecimento prisional novos reclusos, e assim se logrará garantir que não seja ocupado o espaço prisional deixado livre pela libertação dos reclusos abrangidos pelo perdão;
5ª - Restringir a aplicação do perdão previsto na Lei n.º 9/2020 aos condenados que se encontram já recluídos à data da entrada em vigor daquela mesma lei, excluindo os condenados ainda não recluídos, não viola o princípio da igualdade plasmado no art. 13.º da Constituição da República Portuguesa;
6ª – Ao perdoar a pena de prisão aplicada ao arguido LC no âmbito do Processo nº ..., não estando este preso à data da entrada em vigor da Lei n. º 9/2020, o tribunal proferiu decisão ilegal, por violação no disposto no art. 2º, n.º, desse mesmo diploma legal.
Nestes termos, e pelos mais que V. Ex.as, por certo e com sabedoria, não deixarão de suprir, concedendo-se provimento ao presente recurso e, consequentemente, revogando-se a decisão recorrida, far-se-á JUSTIÇA.

(…)

5. Colhidos os vistos, teve lugar a conferência.

II
O despacho recorrido tem o seguinte teor:
“LC foi condenado, por decisão proferida em 06/03/2018, no âmbito do processo nº ..., já transitada em julgado, na pena 12 meses de prisão, substituída por 360 horas de trabalho a favor da comunidade, pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal.
Por decisão proferida em 08/10/2019, transitada em julgado em 14/11/2019, foi a dita pena de substituição revogada e determinado o cumprimento de 9 meses e 29 dias de prisão efectiva.
O condenado ainda não iniciou o cumprimento da aludida pena na medida em que se encontra em execução a pena de 14 meses de prisão, em regime de permanência na habitação com vigilância electrónica, aplicada no âmbito do processo nº (...), pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, cujo termo ocorrerá em 14/07/2020.

Em 11 de Abril de 2020, entrou em vigor a L 9/2020, de 10 de Abril, que no art. 2º estatui que “1 - São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos./ 2 – São também perdoados os períodos remanescentes das penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração superior à referida no número anterior, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos, e o recluso tiver cumprido, pelo menos, metade da pena./3 – O perdão referido nos números anteriores abrange a prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa e a execução da pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição e, em caso de cúmulo jurídico, incide sobre a pena única./4 - Em caso de condenação do mesmo recluso em penas sucessivas sem que haja cúmulo jurídico, o perdão incide apenas sobre o remanescente do somatório dessas penas, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos./5 - Relativamente a condenações em penas de substituição, o perdão a que se refere este artigo só deve ser aplicado se houver lugar à revogação ou suspensão./6 - Ainda que também tenham sido condenados pela prática de outros crimes, não podem ser beneficiários do perdão referido nos nºs 1 e 2 os condenados pela prática: a) Do crime de homicídio previsto nos artigos 131.º, 132.º e 133.º do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, na sua redação atual; b) Do crime de violência doméstica e de maus tratos previstos, respetivamente, nos artigos 152.º e 152.º-A do Código Penal; c) De crimes contra a liberdade pessoal, previstos no capítulo IV do título I do livro II do Código Penal; d) De crimes contra a liberdade sexual e autodeterminação sexual, previstos no capítulo V do título I do livro II do Código Penal; e) Dos crimes previstos na alínea a) do n.º 2 e no n.º 3 do artigo 210.º do Código Penal, ou previstos nessa alínea e nesse número em conjugação com o artigo 211.º do mesmo Código; f) De crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, previstos no título III do livro II do Código Penal; g) Dos crimes previstos nos artigos 272.º, 273.º e 274.º do Código Penal, quando tenham sido cometidos com dolo; h) Do crime previsto no artigo 299.º do Código Penal; i) Pelo crime previsto no artigo 368.º-A do Código Penal; j) Dos crimes previstos nos artigos 372.º, 373.º e 374.º do Código Penal; k) Dos crimes previstos nos artigos 21.º, 22.º e 28.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na sua redação atual; l) De crime enquanto membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas ou funcionários e guardas dos serviços prisionais, no exercício das suas funções, envolvendo violação de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos, independentemente da pena; m) De crime enquanto titular de cargo político ou de alto cargo público, magistrado judicial ou do Ministério Público, no exercício de funções ou por causa delas; n) Dos crimes previstos nos artigos 144.º, 145.º, n.º 1, alínea c), e 147.º do Código Penal. /7 – O perdão a que se referem os nºs 1 e 2 é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei e sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce a pena perdoada. /8 - Compete aos tribunais de execução de penas territorialmente competentes proceder à aplicação do perdão estabelecido na presente lei e emitir os respetivos mandados com caráter urgente. /9 - O perdão a que se referem os nºs 1 e 2 só pode ser aplicado uma vez por cada condenado.”
Questão que se coloca, assim, é a de se saber se o predito perdão concedido pela citada Lei é, ou não, aplicável no caso dos autos.
Com efeito, o crime por que o arguido foi condenado no processo nº... não é um daqueles excluído do referido perdão nos termos do citado art. 2º, nº 6 e, por outro lado, a pena que lhe foi aplicada e que terá de cumprir é inferior a dois anos de prisão.
No entanto, o mesmo, neste momento, não se encontra recluído em estabelecimento prisional, dado que cumpre pena em regime de permanência na habitação; ora, há quem entenda que a mencionada Lei 9/2020 apenas abrange pessoas efectivamente confinadas em estabelecimento prisional à data da sua entrada em vigor face à redacção conferida aos números 1, 2 e 4, do mencionado artigo 2º, que refere sempre “reclusos” – daí se retirando, por isso, que a lei só se aplica a quem esteja na aludida situação de reclusão em estabelecimento prisional.
Salvo o devido respeito, na esteira do que defende o Sr. Desembargador José Quaresma – em artigo publicado em e-book do CEJ, em edição actualizada em 22 de Abril de 2020, disponível na página do CEJ – tal orientação não é constitucionalmente aceitável.
Com efeito, a mesma potencia diferenças de tratamento entre pessoas situadas em posições materialmente idênticas, como tal lesando drasticamente o princípio constitucional da igualdade decorrente do artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.
De facto, o uso legal da expressão recluso nos preceitos constantes da Lei 9/2020 mais não poderá do que reportar-se à situação daquelas pessoas cuja decisão condenatória já transitou em julgado e a quem foi aplicada pena susceptível de ser executada em estabelecimento prisional e, assim, passíveis de serem objecto de mandados de detenção para cumprimento da referida pena.
Na verdade, a defender-se a interpretação da norma que apenas integre no seu âmbito de destinatários efectivos aqueles já em cumprimento de pena, estaria criada a possibilidade de se estar a devolver à liberdade pessoas com tempo de prisão para cumprir inferior ou igual a dois anos para, depois, ocupar o espaço prisional assim deixado livre com a reclusão de pessoas autores de factos idênticos aos libertados e punidos com penas iguais – ou até inferiores. Além de a solução ser manifestamente indefensável de um ponto de vista material e constitucional, faria gorar a intenção do legislador de criar condições de salubridade no meio prisional, dado que impediria a criação do espaço suficiente para permitir uma gestão sanitariamente adequada da prisão.
Assim sendo, a única leitura admitida pela norma em causa - sobre o ponto de vista constitucional, mas também pragmático – é a do perdão ser aplicável a todos os cidadãos punidos com penas e crimes abrangidos pelo âmbito da norma com decisões transitadas em julgado à data da entrada em vigor do examinado instrumento legal.
Dir-se-á, todavia, que as objecções supra referidas serão ultrapassadas desde que a emissão dos mandados e a detenção assim ordenada sejam suspensas, ficando a aguardar a cessação da vigência da mencionada L 9/2020, de 10 de Abril. Dessa forma, de facto, a actual situação – legalmente impeditiva da entrada de condenados nos estabelecimentos prisionais – deixará de existir, permitindo a prisão posterior dos arguidos em tais condições.
Considera-se, no entanto, que tal hipotética actuação não se coaduna com os ditames do estado de direito, bem como desatende as razões que motivaram a existência do perdão constante da Lei 9/2020.
Começando pela última das afirmações efectuadas, deve assinalar-se que o perdão de penas que se considera não se legitimou pela declaração do estado de emergência, mas sim pela condição sanitária que determinou tal declaração. Ou seja, uma eventual cessação da vigência daquela Lei 9/2010 – em momento hoje ainda desconhecido – não representará, infelizmente, o afastamento da pandemia e a restauração de uma situação de inexistência da possibilidade de propagação do vírus que a causa.
Assim sendo, a delicada situação de saúde do país e do mundo, bem como o condicionalismo específico dos estabelecimentos prisionais continuarão a justificar a adopção de especiais cautelas contrárias a uma qualquer espécie de gestão temporal de mandados de detenção. Com efeito, o estado de saúde pública do país – e particularmente o de espaços públicos como as prisões – imporá a necessidade
de se observar prudência nos contactos e cautela com a segurança de todos, desaconselhando a normal densidade de ocupação dos estabelecimentos prisionais.
Por outro lado, a sustação e adiamento, da emissão dos mandados de detenção são práticas passiveis de, também elas, colidirem frontalmente com as implicações do princípio da igualdade. Equivalem, até, a uma manobra feita propositadamente para impedir que um eventual condenado com decisão transitada em julgado, cuja pena ainda não tenha começado a respectiva execução, seja tratado de forma diferente de outro, eventualmente condenado até em pena mais grave, com emissão de mandados de detenção mais lesta e, por isso, já recluso.
Ora tal prática não homenageia, de forma alguma, a legalidade e um tratamento justo dos cidadãos nessas condições.
Finalmente, acrescenta-se, nos termos da L 9/2020 cabe ao TEP a declaração do perdão previsto na lei citada.
Assim, face ao exposto, julga-se a pena aplicada no âmbito do processo nº ... perdoada nos termos dos mencionados preceitos, mas sob condição resolutiva do beneficiário não praticar infracção dolosa no ano subsequente, caso em que, a pena aplicada a tal infracção, acrescerá à agora perdoada”.

III

Cumpre apreciar:
Questão suscitada:
Saber se deve ou não ser julgada perdoada a pena ao condenado LC ao abrigo da Lei nº 9/2020, de 10 de Abril.
O mesmo é dizer se o perdão de pena da lei nº 9/2020 de 10 de Abril deve ser aplicado tão só a condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à da sua entrada em vigor que sejam reclusos (ou seja, em cumprimento de pena efetiva no estabelecimento prisional) excluindo os condenados igualmente com sentença transitada em julgado mas que não tenham essa qualidade, ou seja, ainda não tenham ingressado fisicamente no estabelecimento prisional ou se deve abranger ambos, quer os já reclusos quer os ainda não reclusos mas que o podem vir a ser para cumprimento da respetiva pena (em ambas as situações, desde que o crime não caiba nas exceções dos crimes referidos no número 6 do respetivo artigo 2º da mesma lei).

1. Os fundamentos do recurso do Ministério Público apoiam-se na interpretação da Lei nº 9/2020 com o sentido de que o perdão “só pode ser aplicado a reclusos condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à da sua entrada em vigor, excluindo os condenados que não tenham ainda ingressado fisicamente no estabelecimento prisional”.
Começamos por anotar que esta foi a posição já sufragada pelo ac. deste Tribunal da Relação de Coimbra de 9.9.2020, proferido no proc. nº 178/20.7TXCBR-B.C1, relatora Rosa Pinto, sumariado nos seguintes termos:
“O perdão previsto no artigo 2º da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, só pode ser aplicado a reclusos, condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à da sua entrada em vigor, excluindo os condenados que não tenham ainda ingressado fisicamente no estabelecimento prisional”.

De entre os fundamentos do recurso adiantados pelo recorrente Ministério Público (mais desenvolvidos na motivação) contam-se, desde logo, a exposição de motivos da Proposta de Lei 23/XIV (que deu origem à Lei n.º 9/2020); a posição de Nuno Brandão, em estudo publicado na Revista Julgar - A libertação de reclusos em tempos de COVID-19, Um primeiro olhar sobre a Lei n.º 9/2020, de10/4», Julgar online, abril 2020, p. 6-7; a posição de Vítor Pereira Pinto, em estudo publicado no SIMP - O perdão previsto no art.º 2.º da Lei n.º 9/2020 – SIMP – Actualidade - de 13/04/2020 e a interpretação desta lei do perdão à luz do disposto no artigo 9º do Código Civil, no sentido de que “na interpretação da norma jurídica, não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. E na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.

A que acrescem outros fundamentos, remetendo-se, para o efeito, para o teor da motivação de recurso.

2. Importa, em primeiro lugar, compreender o porquê da publicação desta Lei nº 9/2020 de 10 de abril e, consequentemente, a sua natureza jurídica:
E a resposta surge logo com a referenciada exposição de motivos da Proposta de Lei 23/XIV (que deu origem à Lei n.º 9/2020), onde se refere:
“a Organização Mundial de Saúde qualificou, no dia 11 de março de 2020, a emergência de saúde pública ocasionada pela doença COVID-19 como uma pandemia internacional, e como calamidade pública. Face a essa qualificação e ordenado pelo fundamento final de conter a expansão da doença, o Presidente da República decretou, no dia 18 de março o estado de emergência. Portugal tem atualmente uma população prisional de 12 729 reclusos, 800 dos quais com mais de 60 anos de idade, alojados em 49 estabelecimentos prisionais dispersos por todo o território nacional”.

Mais consta desta exposição de motivos que “As especificidades do meio prisional, quer no plano estrutural, quer considerando a elevada prevalência de problemas de saúde e o envelhecimento da população que acolhe, aconselham que se acautele, ativa e estrategicamente, o surgimento de focos de infeção nos estabelecimentos prisionais e se previna o risco do seu alastramento. … Neste contexto de emergência, o Governo propõe a adoção de medidas excecionais de redução e de flexibilização da execução da pena de prisão e do seu indulto que, pautadas por critérios de equidade e proporcionalidade, permitem, do mesmo passo, minimizar o risco decorrente da concentração de pessoas no interior dos equipamentos prisionais, assegurar o afastamento social e promover a reinserção social dos reclusos condenados, sem quebra da ordem social e do sentimento de segurança da comunidade.
Estas medidas extraordinárias constituem a concretização de um dever de ajuda e de solidariedade para com as pessoas condenadas, ínsito no princípio da socialidade ou da solidariedade que inequivocamente decorre da cláusula do Estado de Direito”.

4. A primeira nota que se nos oferece dizer vai para o facto de que a preocupação visível e imediata do legislador é a de conter a expansão da doença no meio prisional. E com os elementos técnico/científicos então conhecidos no momento, que ainda se mantêm, esse objetivo consegue-se, de entre outras medidas, com o designado distanciamento físico entre as pessoas. Distanciamento que simplesmente inexistia nos estabelecimentos prisionais, devido à concentração de reclusos. Pelo que a única forma de criar as condições mínimas do reconhecido e exigido distanciamento físico para evitar o possível contágio e essencialmente a sua propagação/expansão (tendo em conta a realidade que já se vivia na comunidade em geral), era libertar reclusos em cumprimento de pena ou seja, que efetivamente estavam em meio prisional.
E deste modo se dava cumprimento ao dever de ajuda e de solidariedade para com as pessoas condenadas, ínsito no princípio da socialidade ou da solidariedade que inequivocamente decorre da cláusula do Estado de Direito.
Libertação a que, todavia, o legislador pretendeu impor um limite: “sem quebra da ordem social e do sentimento de segurança da comunidade”. Daí as opções legislativas no que respeita quer às concretas penas a que deveria ser aplicado o perdão, nomeadamente no que respeita à efetiva medida da pena bem como aos demais requisitos substantivos enumerados na lei de exclusão dos crimes não abrangidos pelo perdão.

5. Uma segunda nota vai para a efetiva natureza jurídica da Lei nº 9/2020, de 10 de abril.
Ora, as normas que estabelecem perdão de penas (bem como amnistia de crimes), são por natureza, excecionais. A que, in casu, acresce, na sua génese, a situação também excecional e única de pandemia até então vivida não só a nível nacional mas mundial.
Como lei excecional que é, deve ser interpretada nesta perspetiva segundo esta natureza.
A este respeito preceitua o artigo 9º do Código Civil, com a epígrafe Interpretação da Lei:
1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

Ora, quanto à interpretação das normas excecionais mostra-se elucidativo o Acórdão de Fixação de Jurisprudência de 25/10/2001, Processo n.º P00P3209, in www.dgsi.pt:
“É assim que a Constituição dispõe hoje que «compete à Assembleia da República [...] conceder amnistias e perdões genéricos» - artigo 161.º, alínea f) -, competindo ao Presidente da República «na prática de atos próprios [...] indultar e comutar penas, ouvido o Governo» - artigo 134.º, alínea f).
Em ambos os casos fica derrogado o sistema legal punitivo; daí o intitular-se, por vezes, o regime das medidas de graça como um jus non puniendi. O direito de graça é, no seu sentido global e abrangente, «a contra face do direito de punir estadual» (Figueiredo Dias, Direito Penal ..., parte geral II, 1993, p. 685).
Sucede ainda que o direito de graça subverte princípios estabelecidos num moderno Estado de direito sobre a divisão e interdependência dos poderes estaduais, porquanto permite a intromissão de outros poderes na administração da justiça, tarefa para a qual só o poder judicial se encontra vocacionado, sendo por muitos consideradas tais medidas como instituições espúrias que neutralizam e até contradizem as finalidades que o direito criminal se propõe.
Razão pela qual aquele direito é necessariamente considerado um direito de «exceção», revestindo-se de «excecionais» todas as normas que o enformam.
É pela natureza excecional de tais normas que elas «não comportam aplicação analógica» - artigo 11.º do Código Civil -, sendo pacífico e uniforme o entendimento da doutrina e da jurisprudência de que, pela mesma razão, não admitem as leis de amnistia interpretação extensiva ou restritiva, «devendo ser interpretadas nos exatos termos em que estão redigidas» (v. a título exemplificativo, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Dezembro de 1977, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 272, p. 111 - «a amnistia, na medida em que constitui providência de exceção, não pode deixar de ser interpretada e aplicada nos estritos limites do diploma que a concede, não comportando restrições ou ampliações que nele não venham consignadas» -, de 6 de Maio de 1987, Tribuna da Justiça, Julho de 1987, p. 30 - «O STJ sempre tem entendido que as leis de amnistia, como providências de exceção, devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas» -, de 30 de Junho de 1976, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 258, p. 138 - «A aplicação da amnistia deve fazer-se sempre nos estritos limites da lei que a concede, de modo a evitar que vá atingir, na sua incidência como facto penal extintivo, outra ou outras condutas suscetíveis de procedimento criminal» -, de 26 de Junho de 1997, processo n.º 284/97, 3.ª Secção - «As leis de amnistia como leis de clemência devem ser interpretadas nos termos em que estão redigidas, não consentindo interpretações extensivas e muito menos analógicas» -, de 15 de Maio de 1997, processo n.º 36/97, 3.ª Secção - «A amnistia e o perdão devem ser aplicados nos precisos limites dos diplomas que os concedem, sem ampliação nem restrições» -, de 13 de Outubro de 1999, processo n.º 984/99, 3.ª Secção, de 29 de Junho de 2000, processo n.º 121/2000, 5.ª Secção, e de 7 de Dezembro de 2000, processo n.º 2748/2000, 5.ª Secção, para mencionar apenas os mais recentes).

A que acrescentamos a jurisprudência citada a este propósito pelo recorrente Ministério Público:
“As leis de amnistia são leis de excepção cuja interpretação, embora obedecendo aos princípios gerais de hermenêutica jurídica, não consente ampliações, nem restrições que não constem expressamente do texto legal.” Ac STJ de 7/12/1977, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 272, p. 111.

“Como providência de excepção, a lei da amnistia deve interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, observando-se um critério de interpretação estrita, que exclua a interpretação extensiva, restritiva ou analógica, ainda que dai resultem situações de injustiça relativa” – Ac. do STJ de 21/07/1987, https://jurisprudencia.csm.org.pt/.

“O STJ sempre tem entendido que as leis de amnistia, como providências de excepção, devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas” – Ac STJ de 6/05/1987, in Tribuna da Justiça, Julho de 1987, p. 30.

6. Assim sendo, face ao teor do n.º 1, do artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril segundo o qual “São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos”, tendo sempre subjacente a mens legis da referida exposição de motivos e essencialmente o nº 2 do artigo 9º do Código Civil (Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso), não se vislumbra em que termos esta norma possa suportar a integração da situação dos arguidos condenados por decisão transitada em julgado mas que não se encontrem na situação de reclusão.

É certo que o Desembargador José Quaresma, no estudo publicado no e-book do CEJ (1), entende que “o uso legal da expressão recluso nos preceitos constantes da Lei 9/2020 mais não poderá significar do que reportar-se à situação daquelas pessoas cuja decisão condenatória já transitou em julgado e a quem foi aplicada pena susceptível de ser executada em estabelecimento prisional e, assim, passíveis de serem objecto de mandados de detenção para cumprimento da referida pena”.

O que poderia levar a afirmar, por um lado, que num dia se libertassem (como efetivamente foram libertados) os reclusos por efeito do perdão de pena e nos dias imediatos entrassem no estabelecimento prisional outros condenados por efeito do cumprimento de mandados, passando estes a ocupar o espaço dos reclusos entretanto libertados.

Na verdade, reconhece-se que concomitantemente com a libertação de reclusos por efeito do perdão de perda, o legislador, para além de “criação” de mais espaço no interior dos estabelecimentos prisionais (v. os indultos (artigo 3º), as licenças de saída administrativa extraordinária e adaptação à liberdade condicional (artigos 4º e 5º), teve a preocupação de evitar a entrada de novos reclusos em algumas situações. Esta intenção manifesta-se, desde logo, no artigo 7º, nº 2, da Lei nº 9/2020, que dispõe o seguinte:
Prisão preventiva e reclusos especialmente vulneráveis
1 - O juiz deve proceder ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva independentemente do decurso dos três meses referidos no artigo 213.º do Código de Processo Penal, sobretudo quando os arguidos estiverem em alguma das situações descritas no n.º 1 do artigo 3.º, de modo a reponderar a necessidade da medida, avaliando, nomeadamente, a efetiva subsistência dos requisitos gerais previstos no artigo 204.º daquele Código.
2 - Nos termos do artigo 193.º do Código de Processo Penal, a prisão preventiva só pode ser aplicada quando se revelarem manifestamente inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coação.

Face ao teor desta disposição legal constata-se que o legislador não só pretendeu a saída imediata de reclusos com o perdão de pena, indultos e saídas administrativas como pretendeu ainda, com o reexame dos pressupostos da prisão preventiva, que arguidos ainda não condenados, saíssem do estabelecimento prisional sujeitos a outra medida de coação (nº 1, do artigo 7º).
E, por sua vez, a exigência de que na apreciação dos pressupostos do artigo 193.º do Código de Processo Penal para aplicação de uma medida de coação, a prisão preventiva só poderá/deverá ser aplicada quando se revelarem manifestamente inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coação, vem reforçar esta intenção legislativa.

Mas trata-se de situações de natureza diferente, pois a prisão preventiva é uma mera medida cautelar e não uma pena de condenação em prisão efetiva, em cumprimento ou ainda a cumprir. Pelo que o artigo 7º desta lei deve ser interpretado com este sentido e perspetiva.

7. Já quanto ao facto/argumento de que ao defender-se a interpretação da norma de que apenas integra no seu âmbito de destinatários efetivos os que já se encontram em cumprimento de pena, “se faria gorar a intenção do legislador de criar condições de salubridade no meio prisional, dado que impediria a criação do espaço suficiente para permitir uma gestão sanitariamente adequada da prisão”, pode dizer-se que num primeiro e imediato momento, tal situação ficou acautelada com a suspensão dos prazos ao abrigo do artigo 7º, n.º 1, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, ao dispor que:
“Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, todos os prazos para a prática de atos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal ficam suspensos até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”.

Ora, estando suspensos todos os prazos para a prática de atos processuais e procedimentais até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, ficou por esta via assegurada a não entrada de novos arguidos nos estabelecimentos prisionais, de entre os que se encontravam em potencial situação de iniciar cumprimento de pena (aqueles com a respetiva condenação transitada em julgado).
7.1. Sobre este argumento pode neste momento dizer-se (contrapor-se) que a Lei n.º 16/2020 de 29 de maio terminou com a suspensão dos prazos judiciais previstos no referido artigo 7º, n.º 1, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, passando a reger-se pelo disposto no artigo 6º-A, entretanto aditado à Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março, pelo artigo 2º daquela Lei n.º 16/2020 de 29 de maio.
O que significa, mais uma vez, que a partir daquela data passaram a praticar-se todos os atos judiciais incluindo a emissão e cumprimento de mandados de detenção para cumprimento de pena em Estabelecimento Prisional referentes aos sujeitos/arguidos com sentença de condenação transitada em julgado. E, logo que cumpridos, o condenado entrará no EP e adquire a condição de recluso.

E a questão que se coloca é se, estando ainda em vigor, como está, a Lei nº 9/2020 de 10 de abril e respetivos efeitos, o condenado que adquire a condição de recluso pode e deve ser libertado.

É que a Lei n.º 16/2020 de 29 de maio, no artigo 3º veio dar nova redação ao artigo 10º da Lei nº 9/2020, de 10 de abril, sobre a data da sua vigência, dispondo o seguinte:
“O artigo 10.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, passa a ter a seguinte redação:
«Artigo 10.º
[...]
A presente lei cessa a sua vigência na data a fixar em lei que declare o final do regime excecional de medidas de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça no âmbito da prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.»
Esta manutenção e, diga-se mesmo, prorrogação da vigência da Lei nº 9/2020, tem com certeza uma justificação/intenção legislativa, à qual não será alheia o estado de permanência da pandemia. O que nos leva a uma interpretação atualista (pois a Proposta do Governo parecia inicialmente apontar em tomada de medidas com um determinado limite temporal mais curto, mais imediato e bem delimitado no tempo) no sentido de que a mesma não só se aplicou e produziu efeitos imediatos quanto aos reclusos no momento da sua entrada em vigor, como será igualmente de aplicar a qualquer condenado com decisão transitada em julgado que adquira o estatuto de recluso durante a sua vigência, ou porque se apresentou (o condenado) voluntariamente no EP para cumprimento da pena de prisão ou porque foi detido e conduzido ao EP em consequência do cumprimento dos mandados de detenção para execução da pena (desde que se verifiquem os necessários requisitos substantivos exigidos).
Neste sentido se pronuncia o recente ac. deste Tribunal da Relação de Coimbra de 30-09-2020, proferido no proc. nº 744/13.73TXCBR-P.C1 (relator José Eduardo Martins), assim sumariado: “O perdão previsto no artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, verificados que sejam os demais requisitos legais, pode ser aplicado tanto a condenados que sejam reclusos à data da entrada em vigor daquele diploma (11-04-2020), como a condenados que, no decurso da vigência da mesma Lei, venham a estar na situação de reclusão”.

8. Outro aspeto apreciado na decisão recorrida respeita a que uma interpretação da Lei nº 9/2020 no sentido de que o perdão de pena só é de aplicar a reclusos à data da sua entrada em vigor “potencia diferenças de tratamento entre pessoas situadas em posições materialmente idênticas, como tal lesando drasticamente o principio constitucional da igualdade decorrente do artigo 13º da Constituição da República Portuguesa”.
A este propósito, como se afirma na motivação de recurso, “…o perdão, como qualquer outra lei de amnistia, pode colocar problemas do ponto de vista do princípio constitucional da igualdade, na medida em que se aplica apenas a reclusos, ficando outros condenados excluídos da sua aplicação.
No entanto, tanto a doutrina como a jurisprudência têm vindo, de forma consistente, designadamente em matéria de amnistia ou perdão a considerar constitucionalmente conformes, as eventuais diferenças de tratamento, desde que as mesmas surjam materialmente fundadas e baseadas em critérios de valor objectivo”
Assim, decidiu-se em termos jurisprudenciais:
“O princípio da igualdade não proíbe (…) que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objetivo, constitucionalmente relevantes” - Ac. do Tribunal Constitucional n.º 149/93, de 28/01/1993.

“A igualdade em sentido material (e é esta a igualdade que o artigo 13º. expressa), pressupõe tratamento igual do que é igual e tratamento diferente do que é diferente, de acordo com a medida da diferença. Daí que, seguindo uma linha jurisprudencial constante que já remonta à Comissão Constitucional, este Tribunal afirme (…) que uma diferenciação de tratamento fundada em motivações objectivas, razoáveis e justificadas, não é atentatória do princípio da igualdade. Por outras palavras, utilizando uma formulação do Tribunal Constitucional Federal Alemão (BVerf GE 1,14 (52), citada por Alexy, Theorie der Grundrecht, Suhrkamp-Verlag, 1986, pág. 370) tratamentos legais diferentes, traduzem uma diferenciação arbitrária quando (...) não é possível encontrar um motivo razoável decorrente da natureza das coisas, ou que, de alguma forma, seja concretamente compreensível, para essa diferenciação” - Ac. do Tribunal Constitucional n.º 152/95, de 15/03/1995.

“O princípio da igualdade, enquanto parâmetro constitucional capaz de limitar as ações do legislador, comporta reconhecidamente várias dimensões: proibição do arbítrio legislativo; proibição de discriminações negativas, não fundadas, entre os sujeitos; assim como eventual imposição de discriminações positivas, com projeções distintas tendo em conta as especificidades do âmbito material em causa. Da extensa jurisprudência constitucional sobre a temática resulta que o princípio não proíbe em absoluto toda e qualquer diferenciação de tratamento, mas apenas as diferenciações (e a sua medida) materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objetiva e racional” – Ac. do Tribunal Constitucional n.º 273/2016, de 4/05/2016.

Ou, como se decide no também recente ac. deste Tribunal da Relação de Coimbra de 30-09-2020, proferido no proc. nº 47/20.0TXCBR-B.C1 (relatora Maria José Nogueira) “De resto, tal como vem concebida, uma suposta violação do princípio da igualdade dificilmente conviveria com qualquer “marco temporal” invariavelmente presente nas sucessivas leis de amnistia, o qual sempre permitiria questionar a justeza de tão díspares soluções, em substância equivalentes, apenas separadas por escassas horas”.

Posto isto, esta aparente diferença de tratamento entre condenados por sentença transitada em julgado conforme sejam reclusos ou não reclusos, tem a sua explicação e/ou aceitação, conforme motivação do recorrente, que se corrobora:
“As razões para a discriminação são evidentes e têm um fundamento material bastante.
Eliminar os riscos de contágio, que só existem relativamente aos reclusos detidos, uma vez que, relativamente aos já condenados por sentença transitada em julgado, o regime da suspensão dos prazos processuais logra o mesmo resultado.
E, nessa medida, segundo o sedimentado critério do Tribunal Constitucional, a norma do art. 2º, da Lei n.º 9/2020, na sua interpretação literal de só abranger os indivíduos que, à data da sua entrada em vigor, estivessem já presos em cumprimento de pena, é constitucionalmente conforme”.
9. Passando destes fundamentos de índole geral e mais abstrata da interpretação da lei nº 9/2020 para o concreto caso, cumpre ainda dizer:
Conforme resulta dos autos, o crime por que o recorrido foi condenado no processo nº... não é efetivamente um dos crimes que exclui o referido perdão nos termos do art. 2º, nº 6 e, por outro lado, a pena que lhe foi aplicada e que terá de cumprir é inferior a dois anos de prisão.
Todavia, não se encontrava este condenado na situação de reclusão em estabelecimento prisional à data da entrada em vigor da Lei do perdão covid-19, pelo que não seria de lhe aplicar, como o foi, de imediato, o respetivo perdão de pena.
Acontece que, segundo a interpretação supra referida, o perdão de pena desta lei será, todavia, de aplicar igualmente a condenado que, durante o período da sua vigência, adquirir o estatuto de recluso.
E este estatuto de recluso poderá ocorrer sob duas diferentes formas:
- Com a apresentação voluntaria do condenado no EP para cumprimento da pena de prisão;
- Ou com a sua detenção e condução ao EP na sequência da execução dos mandados de detenção emitidos para o cumprimento da pena, uma vez que cessou a suspensão dos prazos para a prática dos atos e procedimentos judiciais.

É certo que, enquanto cumpriu pena em regime de permanência na habitação, o recorrido condenado nos presentes autos, não podia apresentar-se voluntariamente no EP.
E, por sua vez, perante o despacho judicial de perdão de pena, não podiam (podem) ser emitidos mandados para cumprimento da pena, enquanto essa decisão não for revogada. O que só poderá ocorrer com a apreciação do objeto deste recurso.
Mas, segundo os elementos dos autos, o cumprimento de pena em regime de permanência na habitação terminou no passado dia 14.7.2020.
Pelo que, logo que revogada a decisão recorrida, o que ocorrerá com a prolação deste acórdão e respetivo trânsito, nada impedirá o início do cumprimento imediato pelo condenado LC da respetiva pena, por qualquer das formas apontadas. E, consequentemente, segundo o entendimento que se deixou exposto e que se perfilha (pelos fundamentos aduzidos) de beneficiar do perdão de pena com a aquisição da situação de recluso durante o período em que se mantiver em vigor esta lei nº 9/2020.

IV
Decisão
Por todo o exposto, decide-se julgar procedente o recurso do recorrente Ministério Público e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida que declarou perdoada a pena ao condenado LC no âmbito do processo nº....

Sem tributação.

Coimbra, 7 de Outubro de 2020
Texto processado em computador e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos signatários

Luís Teixeira – Relator

Vasques Osório – Adjunto

(1) Posição referenciada na decisão recorrida.