Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
443/08.1TAILH.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: ABERTURA DE INSTRUÇÃO
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 03/30/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL (JUIZ 2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 287º, DO C. PROC. PENAL
Sumário: O requerimento para abertura de instrução consubstancia, materialmente, uma acusação, na medida em que, por via dele, é pretendida a sujeição do arguido a julgamento, por factos geradores de responsabilidade criminal.

A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura de instrução. Existe uma semelhança substancial entre o requerimento de abertura de instrução e a acusação. Daí que o art.º 287º, n.º 2, do C. Proc. Penal, remeta para o art.º 283º, n.º 3, als. b) e c), do mesmo diploma legal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento de abertura de instrução.
Em síntese, podemos afirmar que o requerimento para abertura da instrução formulado na sequência do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público deve fixar e delimitar o objecto do processo (como se tratasse de uma acusação deduzida pelo Ministério Público), limitando e condicionando os poderes de cognição do tribunal.
Decisão Texto Integral: I. Relatório

 

No âmbito do processo nº 443/08.1TAILH que corre termos na Comarca do Baixo Vouga, Aveiro – Juízo de Instrução Criminal – Juiz 2, findo o inquérito, o Ministério Público, em 26/5/2010, proferiu despacho ordenando o seu arquivamento, nos termos do artigo 277.º, n.º 2, do CPP, sem prejuízo de posterior reabertura, ao abrigo do artigo 279.º, n.º 1, do mesmo diploma.

SP..., ofendida nos autos, não se conformando com tal despacho de arquivamento, requereu, em 22/6/2010, a sua constituição como assistente e, consequentemente, nos termos do artigo 287.º, do CPP, a abertura de instrução, imputando ao denunciado JP... a autoria de um crime de burla, p. e p. pelo artigo 217º, n.º 1, do Código Penal.

A requerente, em 4/10/2010, foi admitida a intervir nos autos na qualidade de assistente.

A Meritíssima Juiz de Instrução, em 27/10/2010, proferiu despacho em que declarou nulo o requerimento para abertura de instrução apresentado pela assistente e, em consequência, liminarmente, ordenou a sua rejeição.                                                Tal despacho tem o seguinte teor:

A assistente SP..., melhor id. nos autos, requereu a abertura de instrução, ao abrigo do disposto no artigo 287.º, n.º 1, al. b), do CPP, visando obter a pronúncia de JP... pela comissão de um crime de burla.

Como é consabido e decorre, aliás, do artigo 287.º, n.º 2, do CPP, o requerimento para abertura de instrução, apresentado pelo assistente em caso de arquivamento pelo Ministério Público, deve equivaler, em tudo, a uma acusação, condicionando e delimitando a actividade de investigação do juiz de instrução e, consequentemente, o objecto da decisão instrutória – Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Tomo III, págs. 125 e seguintes e 139 e segs. -, nos exactos termos em que a acusação formal, seja pública, seja particular, o faz.

E assim é de tal modo que na instrução apenas poderão ser considerados os factos descritos no requerimento para a sua abertura (ressalvada a hipótese a que se refere o artigo 303.º, do CPP, de alteração não substancial dos factos descritos nesse requerimento), sob pena de nulidade da decisão instrutória, como resulta claramente do disposto no artigo 309.º, n.º 1, do CPP.

Daí que, não constando do mesmo uma descrição clara e ordenada de todos os factos necessários à integração de todos os pressupostos legais de algum crime se torne inviável a realização desta fase processual por falta de delimitação do seu objecto, sendo manifesto que ninguém poderá vir a ser pronunciado com base apenas em alegações genéricas, inconclusivas ou omissas de factos susceptíveis de fazer integrar, na totalidade, os elementos objectivos e subjectivos do crime pelo qual se pretende essa pronúncia.

E, devendo o despacho de pronúncia quedar-se pela apreciação do conteúdo do requerimento de abertura de instrução, torna-se óbvio que as omissões deste podem comprometer irremediavelmente a pronúncia dos arguidos, não fazendo qualquer “sentido proceder-se a uma instrução visando levar o arguido a julgamento sabendo-se, antecipadamente, que a decisão instrutória não poderá ser proferida nesse sentido” – cfr. Ac. do STJ, de 22/10/2003, que pode ler-se na íntegra em www.dgsi.pt.

Esta estrita vinculação temática do Tribunal de Instrução aos factos alegados no requerimento para abertura de instrução, enquanto limitação da actividade instrutória, relaciona-se, assim, com a natureza judicial desta fase processual, sendo uma consequência do princípio da estrutura acusatória do processo penal e constituindo uma garantia de defesa consagrada no artigo 32.º, n.º 5, da CRP.

Acresce a isto, por outro lado, que as eventuais deficiências do requerimento não podem ser supridas por iniciativa do Tribunal, designadamente mediante decisão que convidasse o assistente para o efeito.

A admitir-se entendimento diverso, “(…) estar-se-ia a transferir para o juiz o exercício da acção penal, contra todos os princípios constitucionais e legais em vigor e a transformar a natureza da instrução que passaria de contraditória a inquisitória” – cfr. Ac. da Relação de Lisboa, de 25/6/2002, CJ, III, 143.

Em boa verdade, uma decisão nesse sentido – consubstanciando o exercício, pelo juiz de instrução, de uma faculdade inquisitória e de exercício de acção penal que, no actual quadro legal, não lhe assiste – contrariaria o princípio da estrutura acusatória do processo penal consagrada no referido artigo 32.º, n.º 5, da CRP.

Quanto a este ponto em particular, é pertinente chamar à colação o que expendêramos Professores Gomes Canotilho e Vital Moreira, na CRP Anotada, 3ª ed., pág. 206: a estrutura acusatória do processo penal implica, além do mais, a proibição de acumulações orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também o órgão de acusação. De onde resulta que o juiz de instrução não pode intrometer-se na delimitação do objecto do processo – fixado pela acusação ou pelo RAI do assistente – no sentido de alterar ou completar, directamente ou por convite ao aperfeiçoamento feito ao assistente requerente da abertura da instrução.

Anote-se, ainda neste âmbito, que a inadmissibilidade de renovação do requerimento para abertura de instrução não implica uma limitação desproporcionada do direito do assistente a deduzir acusação através desse requerimento – como referido no Acórdão do TC de 30/1/2001 – Publicado no DR-IIS, de 23/3/2001 (acerca da não equiparação do estatuto de assistente ao do arguido, cfr., também, Acórdão do mesmo Tribunal, de 31/10/2003, publicado no DR-IIS, de 17/12/2003, a pág. 18.455) -, “(…) na medida em que tal facto lhe é exclusivamente imputável, para além de constituir – na sua possível concretização – uma considerável afectação das garantias de defesa do arguido”.

Ainda segundo este aresto. “(…) do ponto de vista da relevância constitucional merece maior tutela a garantia de efectivação do direito de defesa (na medida em que protege o indivíduo contra possíveis abusos do poder de punir), do que garantias decorrentes da posição processual do assistente em casos de não pronúncia do arguido, isto é, em que o Ministério Público não descobriu indícios suficientes para fundar uma acusação e, por isso, decidiu arquivar o inquérito”.

Esclarecendo, definitivamente, as divergências jurisprudenciais que se vinham verificando a este respeito – No sentido de que a apontada deficiência do requerimento para abertura de instrução consubstanciaria mera irregularidade processual cuja reparação poderia ser oficiosamente ordenada, nos termos do artigo 123.º, n.º 2, do CPP, cfr., i.a., Acórdãos da Relação de Lisboa, de 12/7/1995, CJ, IV, 140, e de 20/6/2000, CJ, III, 153; da Relação de Coimbra, de 17/11/1993, CJ, V, 59; da Relação do Porto, de 5/5/1993, CJ, III, 243, de 28/2/2001 e de 7/2/2001 – podendo ler-se os sumários dos dois últimos em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf; da Relação do Porto, de 21/11/2001, CL, V, 225; da Relação de Lisboa, de 21/3/2001, CJ, II, 131; da Relação de Coimbra, de 13/11/2002 – podendo ler-se o respectivo sumário em www.trc.pt. No sentido de que não é admissível o convite ao aperfeiçoamento do requerimento do assistente, cfr., i.a., Acórdãos do STJ, de 13/11/2002 e de 22/10/2003 (neste último se referindo “(…) uma tendência na jurisprudência deste Supremo Tribunal no sentido de não haver lugar, nos casos de requerimento do assistente para abertura de instrução, a convite para suprir as deficiências do requerimento”), ambos podendo ler-se na íntegra em www.dgsi.pt; Acórdão da Relação de Coimbra, de 23/2/2005, CJ, I, 48; Acórdão da Relação de Guimarães, de 14/2/2005, CJ, I, 229; Acórdão da Relação de Coimbra, de 31/10/2001, podendo ver-se o respectivo sumário em www.trc.pt/index1.htlm; Acórdãos da Relação de Lisboa, de 3/2/2005, CJ, I, 139, de 9/2/2000, CJ, I, 153, de 3/10/2001 e de 31/1/2001, cujos sumários podem ler-se em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf; cfr., também, Acórdãos da Relação do Porto, de 23/5/2001, CJ, III, 239; da Relação de Lisboa, de 11/10/2001, CJ, IV, 141, de 11/4/2002, CJ, II, 147, e de 14/1/2003, CJ, I, 124; também da relação de Lisboa, de 15/5/2003, 19/3/2003, 11/12/2002, 17/12/2002, 19/12/2002 e de 13/3/2003, cujos sumários podem ler-se em http://www.pgdlisboa.pt (jurisprudência sumários – área criminal), o último também publicado in CJ, II, 124 a 126, - veio o STJ fixar jurisprudência, por Acórdão de 12/5/2005 /Acórdão do STJ n.º 7/2005, publicado no DR – I S – A, de 4/11/2005) nos termos seguintes:

“Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento para abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do CPP, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”.

Já no que concerne às consequências da inobservância do preceituado no artigo 287.º, n.º 2, do CPP, importa desde logo atender que este mesmo normativo remete para a aplicação do disposto no artigo 283.º, n.º 3, als. b) e c), do mesmo diploma legal.

Pelo que, além de inviabilizar, objectivamente, a possibilidade de realização da instrução (artigo 309.º, do CPP), a deficiência de conteúdo (e não de mera forma) do requerimento – por não conter a narração de factos que fundamentem a aplicação a um concreto arguido de uma pena ou medida de segurança, como o impõe o citado artigo 283.º, n.º 3, als. a) e b), do CPP -, implica a sua nulidade, tornando assim legalmente inadmissível a abertura da instrução e obrigando, consequentemente, à rejeição daquele nos termos do artigo 287.º, n.º 3, do CPP, onde se dispõe que “o requerimento (para abertura de instrução) só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução”.

Dito isto e tendo em mente o teor do RAI deduzido pela ora assistente, logo se vislumbra que o mesmo terá de ser totalmente rejeitado.

Tudo porque, como bem se vê, não obedece ao que se estatui no artigo 287.º, n.º 2, do CPP, sendo manifesto que, contrariamente ao exigido no artigo 283.º, n.º 3, als. b) e c), do mesmo diploma legal, não contém a descrição clara, ordenada e cabal – à semelhança do que é exigido para a acusação, seja pública, seja particular – dos factos necessários a dar como preenchidos todos os elementos típicos objectivos e subjectivos do ilícito penal em causa e, como tal, a dar como integrada a sua prática, pelo arguido.

Entendemos, por isso, que tal requerimento é nulo (cf. Artigo 283.º, n.º 3, als. b) e c), aplicável ex vi artigo 287.º, n.º 2, ambos do CPP), sendo que a falta de objecto adveniente dessa nulidade implica, como vimos, a inexequibilidade da instrução relativamente à aferição da prática do crime em causa.

Deve, pois, ser rejeitado, nos termos do artigo 287.º, n.º 3, do CPP, por inadmissibilidade legal da instrução.

Face ao exposto, decido declarar nulo o requerimento para abertura de instrução apresentado pela assistente e, em consequência, rejeito-o liminarmente.

Sem custas.

Notifique.”

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Inconformada com a decisão transcrita, dela recorreu a Assistente, em 22/11/2010, defendendo a sua revogação e substituição por outra que declare aberta a instrução, com as legais consequências, extraindo da respectiva motivação do recurso as seguintes conclusões:

1. O Tribunal a quo fez uma deficiente interpretação do estipulado no artigo 287.º, n.º 3 e artigo 283.º, n.º 3, als. b) e c), do CPP:

2. O requerimento de instrução elaborado pela recorrente cumpre todas as exigências legais.

3. O requerimento de abertura de instrução não obedece a formalidades especiais.

4. O requerimento de instrução, contém, por força do artigo 287.º, n.º 2, do CPP:

- as razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação;

- a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo;

- a indicação dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito;

- a indicação dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar;

5. Visa a recorrente a comprovação judicial da decisão de arquivar o inquérito (artigo 286.º, n.º 1, do CPP), através de uma investigação autónoma do caso submetido a instrução e da indicação aí constante (artigo 288.º, n.º 4, do CPP).

6. Para isso, a recorrente, no seu requerimento de abertura de instrução, narrou os factos que, no seu entender, permitem imputar ao arguido o ilícito penal aí indicado.

7. Apesar de tal não ser legalmente exigível, o referido requerimento apresentou uma descrição clara, ordenada e cabal dos factos imputados ao arguido.

8. Refere-se, também, o enquadramento legal dos referidos factos.

9. Apresenta provas e requer a realização de actos instrutórios de forma a comprovar-se os factos narrados.”

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O Ministério Público, em 20/10/2010, respondeu, defendendo a improcedência do recurso, extraindo do alegado as seguintes conclusões:

1. O requerimento para abertura de instrução, apresentado pelo assistente em caso de arquivamento pelo Ministério Público, deve equivaler, em tudo, a uma acusação, condicionando e delimitando a actividade de investigação do juiz de instrução e, consequentemente, o objecto da decisão instrutória.

2. Não contendo a descrição clara, ordenada e cabal – á semelhança do que é exigido para a acusação, seja pública, seja particular – dos factos necessários a dar como preenchidos todos os elementos típicos objectivos e subjectivos do ilícito penal imputado, tal requerimento é nulo.

3. O despacho recorrido fez, assim, correcta apreciação dos factos e interpretação do direito.

4. Pelo que deve ser mantido.

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O recurso foi, em 5/1/2011, admitido.

Remetidos os autos a esta Relação, o Exmo. Procurador – Geral Adjunto emitiu, em 17/1/2011, parecer em que defendeu a improcedência do recurso, salientando que “(…) a fase de instrução não é um segundo inquérito e, para que haja abertura de instrução, é indispensável que um crime esteja descrito numa acusação ou no requerimento de abertura de instrução (como no caso dos autos), não bastando a mera notícia ou imputação de crimes em abstracto, sendo essencial a data da prática dos factos, a identificação do arguido, o elemento subjectivo da infracção e uma correcta articulação dos factos imputados

Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não tendo sido exercido o direito de resposta.

Procedeu-se a exame preliminar e foram cumpridos os demais trâmites legais.

Colhidos os vistos legais e realizada conferência, cumpre apreciar e decidir.


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         II. Cumpre apreciar e decidir:

         De harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. –  Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).

         São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».

         A questão a apreciar é a seguinte:

- Saber se o requerimento para abertura de instrução satisfaz as exigências processuais, isto é se apresenta todos os elementos de uma verdadeira acusação.

                                                        ****

         Enquanto fase jurisdicional, como refere Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 1994, p. 128, citando Figueiredo Dias, “Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, in Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, 1988, p. 16: «A actividade processual desenvolvida na instrução é, por isso, materialmente judicial e não materialmente policial ou de averiguações”.                                                                                Por isso, é comum afirmar-se que a instrução não é um complemento da investigação feita em inquérito, antes contempla a prática dos actos necessários que permitam ao juiz de instrução proferir a decisão final (decisão instrutória) de submeter ou não a causa a julgamento.

Em boa verdade, o juiz investiga autonomamente o caso submetido a instrução, sempre tendo em conta a indicação constante do requerimento da abertura de instrução, a que se refere o n.º 2 do artigo 287.º, do C.P.P. (ver artigo 288.º, n.º 4, do mesmo código).

O artigo 286.º, n.º1, do C.P.P., indica expressamente como objectivo da instrução a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

A instrução culmina com o debate instrutório o qual visa permitir uma discussão perante o juiz, por forma oral e contraditória, sobre se, do decurso do inquérito e da instrução, resultam indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento. De acordo com o artigo 298.º, do C.P.P.

Após o debate instrutório será proferido despacho de pronúncia ou de não pronúncia consoante existam ou não indícios suficientes que justifiquem a submissão ou não do arguido a julgamento.

Um dos fundamentos do arquivamento do inquérito pelo Ministério Público e do despacho de não pronúncia pelo juiz de instrução é a insuficiência dos indícios da verificação de crime ou de quem foram os seus agentes (artigos 277.º, n.º 2 e 308.º, n.º 1, ambos do C.P.P.).

Em resumo, a instrução visa a comprovação judicial de acusar ou não acusar, isto é, pretende-se que se afira da existência ou não de indícios dos quais resulte a possibilidade razoável de em julgamento vir a ser aplicada ao arguido uma pena, pelos factos e ilícito que lhe são imputados, in casu, pela assistente no requerimento de abertura de instrução.

Dispõe o artigo 308.º, n.º 1, do C.P.P., que, se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos respectivos factos; caso contrário profere despacho de não pronúncia.

Resulta, por sua vez, do artigo 283.º, n.º 2, do C.P.P., para onde remete o artigo 308.º, n.º 2, do mesmo diploma legal, que se consideram suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento uma pena ou uma medida de segurança.

O despacho de não pronúncia deverá ser proferido sempre que, perante o material probatório constante dos autos, não se indicie que o arguido, se vier a ser julgado, venha provavelmente a ser condenado, sendo tal probabilidade um pressuposto indispensável da submissão do feito a julgamento.

Por indiciação suficiente, entende-se “a possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, em razão dos meios de prova já existentes, uma pena ou medida de segurança”. Trata-se da “…probabilidade, fundada em elementos de prova que, conjugados, convençam da possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicável uma pena ou medida de segurança criminal…” (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2ª edição, Verbo 1999, páginas 99 e 100).

Como ensina Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1.º volume, 1974, pág. 133, “…os indícios só serão suficientes, e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição.”, acrescentando que “tem pois razão Castanheira Neves quando ensina que na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final, só que a instrução preparatória (e até a contraditória) não mobiliza os mesmos elementos probatórios que estarão ao dispor do juiz na fase do julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação.”

Podemos, então, concluir que constitui indiciação suficiente o conjunto de elementos que, devidamente relacionados e conjugados entre si, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo vingar a convicção de que este virá a ser condenado pelo crime que lhe é imputado. - Sobre este conceito, ver, ainda, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 388/99 (DR, II, 8-11-1999, páginas 16.764 e ss.) e n.º 583/99 (DR, II, 22-2-2000, páginas 3.599 e ss.); e o Acórdão do TRE, de 1-3-2005, in www.dgsi.pt.

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         Só da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito, bem como na instrução, há-de resultar uma verdadeira convicção de probabilidade de uma futura condenação ou não, não bastando um mero juízo de carácter subjectivo, antes se exigindo um juízo objectivo fundamentado nas provas recolhidas.

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         Na sequência do que acabou de ser explanado, reveste-se de especial importância o requerimento de abertura de instrução que constitui uma peça essencial no desenvolvimento processual.                                                          Perante o arquivamento do inquérito, o assistente pode requerer a abertura da instrução (art. 287.º n.º 1-b), CPP) mas, neste caso, terá de observar os requisitos ou pressupostos legais.                                                                        Dispõe o art. 287.º n.º 2, do CPP, na parte que ora interessa, que “o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito, de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283 nº 3, alíneas b) e c).”                         O requerimento de abertura de instrução consubstancia, materialmente, uma acusação, na medida em que por via dele é pretendida a sujeição do arguido a julgamento, por factos geradores de responsabilidade criminal.           A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura de instrução.                                        Existe uma semelhança substancial entre o requerimento de abertura de instrução e a acusação. Daí que o art. 287.º, n.º 2, do CPP, remeta para o art. 283.º, nº 3-b) e c), do mesmo diploma legal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento de abertura de instrução.                                                   Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento de abertura de instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do n.º 3, do art. 283.º, do CPP, (cfr., a este propósito, Ac. do TC n.º 358/2004, onde a Relatora acrescenta que essa exigência (refere-se ao requerimento para abertura de instrução) “decorre (…) de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legítima”.                       Também, no Ac. do TC nº 674/99, DR II, de 25/2/2000, se realça que “a necessidade de uma narração de factos penalmente censuráveis pode ser vista como uma decorrência lógica do princípio da vinculação temática, já que, só deste modo a acusação pode conter os limites fácticos a que fica adstrito o tribunal no decurso do processo (cfr. António Barreiros, Manual de Processo Penal, Universidade Lusíada, 1989, pág. 424). Ou seja, a narração dos factos, que constituem elementos do crime, deve ser suficientemente clara e perceptível não apenas, por um lado, para que o arguido possa saber, com precisão, do que vem acusado, mas igualmente, por outro lado, para que o objecto do processo fique claramente definido e fixado. É, assim, imperativo que a acusação e a pronúncia contenham a descrição, de forma clara e inequívoca, de todos os factos de que o arguido é acusado, sem imprecisões ou referências vagas”).                                   Em síntese, podemos afirmar que o requerimento para abertura da instrução formulado na sequência do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público deve fixar e delimitar o objecto do processo (como se tratasse de uma acusação deduzida pelo Ministério Público), limitando e condicionando os poderes de cognição do tribunal.

         Com a devida vénia, e antes de avançarmos para o caso concreto dos autos, passamos a citar o Ac. do STJ, de 7/5/2008, Processo 07P4551, no qual se sintetiza, com clareza, a posição a seguir em casos como o ora em análise, (ver www.dgsi.pt.jstj):

O artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal indica expressamente como objectivo da instrução a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.                                                                                                                                                                              A abertura da instrução, como decorre do artigo 287.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, pode ser requerida pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.                                                                               Dispõe o n.º 2 do supra citado artigo 287.º que o requerimento para abertura da instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), do CPP.                                                                                    Reportando-se à acusação pelo Ministério Público, estabelece este último preceito que a mesma contém, além do mais, sob pena de nulidade: b) «a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada»; c) «a indicação das disposições legais aplicáveis».                         No que respeita à direcção e natureza da instrução, o artigo 288.º, n.º 4, do CPP, dispõe que o juiz de instrução – a quem compete a direcção da instrução – investiga autonomamente o caso submetido a instrução, tendo em conta a indicação, constante do requerimento da abertura de instrução, a que se refere o n.º 2 do artigo anterior.                                                                                                                                                                             Por outro lado, determina o artigo 307.º, n.º 1, do CPP que, encerrado o debate instrutório, o juiz profere despacho de pronúncia ou de não pronúncia, podendo fundamentar por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura de instrução; acrescenta o artigo 309.º, n.º 1, do mesmo diploma que a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução.                                                                                                                                                                Da análise deste regime extrai-se que, no caso de ter sido proferido despacho de arquivamento, o requerimento de abertura de instrução determinará o objecto da instrução, definindo o âmbito e os limites da investigação a cargo do juiz de instrução, bem como da decisão instrutória de pronúncia.
A este propósito, Germano Marques da Silva, (Curso de Processo Penal, III, Editorial Verbo, 1994, págs. 140 e ss.) afirma: «O requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente, devendo indicar desde logo as razões de facto e de direito da sua discordância relativamente à decisão de abstenção do MP, constitui uma verdadeira acusação, a que o assistente entende que devia ser deduzida pelo MP, e, se aceita pelo tribunal, não há razão de fundo que justifique a necessidade de ser repetida nos seus precisos termos pelo MP (...). O requerimento para abertura da instrução formulado pelo assistente constitui, substancialmente, uma acusação alternativa que, dada a divergência com a posição assumida pelo MP, vai necessariamente ser sujeita a comprovação judicial».                                                                                                                                              Anteriormente na dissertação de doutoramento em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade Católica, Do Processo Penal Preliminar, Editorial Minerva, Lisboa, 1990, p. 258/9, afirmara: “A decisão de arquivar o inquérito é um pressuposto do requerimento do assistente para abertura de instrução. Neste, o assistente deve indicar as razões de facto e de direito da sua discordância relativamente à não acusação do MP; formalmente o assistente não acusa, indica como entende que deveria ter procedido o MP: que não deveria arquivar, mas acusar e em que termos o deveria fazer. É esta “acusação” que o assistente entende que o MP deveria ter deduzido que vai delimitar substancialmente os poderes de cognição do juiz, o caso objecto da instrução”.                                                                                                                                                                                        Atento o paralelismo que se estabelece entre a acusação e o requerimento para abertura de instrução deduzido pelo assistente na sequência de um despacho de arquivamento, sendo que tal requerimento contém substancialmente uma acusação, deverá o mesmo conter a narração dos factos e indicar as provas a produzir ou a requerer, tal como para a acusação o impõe o artigo 283º, nº 3, alíneas b) e d), do CPP.                                               Sendo o requerimento para abertura da instrução a causa de pedir da actividade instrutória, o mesmo só fará sentido se contiver a descrição de substrato fáctico e a indicação dos elementos probatórios, com base nos quais será proferido o despacho de pronúncia ou de não pronúncia.                                                                  Substanciando o requerimento de abertura de instrução uma manifestação de discordância em relação a um despacho de arquivamento e sendo o essencial da fase de instrução o controlo da acusação, quer tenha sido deduzida pelo Mº Pº ou pelo assistente, a submissão à comprovação judicial só faz sentido com a apresentação de uma narrativa de factos cuja prática é imputada ao arguido, pois que a comprovação, a confirmação, o reconhecer-se como bom o requerimento (ou a acusação) terá de passar necessariamente pela aferição de factos concretos da vida real.                                                                                                                                                                                      A divergência tem de ser substanciada, indicando uma causa petendi, que delimite o objecto do processo, enforme o campo da vinculação temática e modele o thema probandum, expondo-se os factos que fundamentam a iniciativa processual com vista à “renovação” da instância noutros moldes.
No Acórdão do STJ de 07-03-2007, proferido no processo n.º 4688/06 - 3.ª, refere-se:
«A estrutura acusatória do processo determina que o thema da decisão seja apresentado ao juiz, e que a decisão deste se deva situar dentro da formulação que lhe é proposta no requerimento para abertura de instrução.                               O requerimento para abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais – artigo 287.º, n.º 2, do CPP – mas há-de definir o thema a submeter à comprovação judicial sobre a decisão de acusação ou de não acusação.                                                                                                                                                                                O objecto da instrução deve ser suficientemente delimitado, com a indicação («mesmo em súmula», diz a lei – artigo 287.º, n.º 2, do CPP) das razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação ou arquivamento, bem como a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros se espera provar.                                                                                                                                                                (…) O requerimento para abertura da instrução constitui, pois, o elemento fundamental de definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz na instrução: investigação autónoma, mas delimitada pelo tema factual que lhe é proposto através do requerimento de abertura da instrução.                                       No caso de instrução requerida pelo assistente, o limite tem de ser definido pelos termos em que, segundo o assistente, deveria ter sido deduzida acusação, e consequentemente, não deveria ter sido proferido despacho de arquivamento – no rigor, por um modelo de requerimento que deve ter o conteúdo de uma acusação alternativa, ou, materialmente, da acusação que o assistente entende que deveria ter sido deduzida com base nos elementos de prova recolhidos no inquérito (…)».                                                                                                                     O Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 358/2004 (Processo n.º 807/2003 - 2.ª), de 19 de Maio de 2004, publicado no DR n.º 150, Série II, de 28-06-2004 e em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 59º volume, p. 441 e ss., não julgou inconstitucional a norma do artigo 283º, nº3, alíneas b) e c) do CPP, interpretada no sentido de ser exigível, sob pena de rejeição, que constem expressamente do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente os elementos mencionados nessas alíneas.                                                                              Aí se considerou o seguinte:                                                                                                                                         «(…) A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução.                                                                                                                                                                 Sendo a instrução uma fase facultativa, por via da qual se pretende a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito, o seu objecto tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa.                                                                                                                                                            Essa definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.
Dada a posição do requerimento para abertura da instrução pelo assistente, existe (…) uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Daí que o artigo 287.º, n.º 2, remeta para o artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução.                                                                                                                   Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre, como se deixou demonstrado, de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legitimada».                               «(…) a exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente não constitui uma limitação efectiva do acesso ao direito e aos tribunais. Com efeito, o rigor na explicitação da fundamentação da pretensão exigido aos sujeitos processuais (que são assistidos por advogados) é condição do bom funcionamento dos próprios tribunais e, nessa medida, condição de um eficaz acesso ao direito».                                                                                                                                A exigência de rigor na delimitação do objecto do processo – note-se que a exigência feita ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa - sendo uma concretização das garantias de defesa, esclarece-se no citado acórdão, não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo.”

                                                        ****

         Como aplicar o que acaba de ser referido ao caso dos autos?

         É chegada, pois, a altura de introduzirmos, na análise da questão, o teor do requerimento para abertura de instrução formulado, em 22/6/2010, pela assistente:

1. Em 17 de Dezembro de 2008, apresentou a ofendida SP... uma participação criminal contra JP....

2. Nessa participação, afirmava-se que, em Setembro de 2008, a participante contactou uma instituição financeira com vista à concessão de um empréstimo bancário.

3. Tal pedido foi recusado porque, segundo essa instituição, a participante constava da lista do Banco de Portugal no que concerne a pessoas incumpridoras do pagamento de crédito contraído junto de instituições financeiras.

4. Porque a participante não havia contratado qualquer mútuo com instituições financeiras, desconhecia a mesma a existência de tal dívida e a razão pela qual o seu nome constaria dessa lista.

5. Assim, em 11 de Setembro de 2008, dirigiu-se a participante à Agência do Banco de Portugal, sita em ..., tendo solicitado informação acerca da existência de dívidas a instituições de crédito (doc. 1).

6. Nesse mesmo dia, foi a participante informada pelo Banco de Portugal que existia uma dívida para com o Banco ..., no valor de 9818 euros, referente à concessão de um crédito individual (documento 1 junto na participação criminal).

7. Obteve, ainda, a participante a informação de que o referido crédito havia sido concedido na Agência do ...de ....

8. Contactado o Balcão do ..., foi a participante informada que o montante da dívida, afinal, atingiria os 16.700,00 euros.

9. Foi, também, a participante informada pela Sr.ª AR…, do serviço de Recuperação de crédito do ..., que a referida conta era movimentada pelo Sr. JP... que dizia ser avô da titular da conta.

10. Foi, ainda, informada pela Sr.ª AR... que o referido senhor, que é padrasto da participante, contraiu crédito na referida conta e solicitou um cartão de crédito, apesar de não ser titular da conta.

11. Ora, a participante nunca se deslocou a esta Agência do ..., por esse facto desconhecia ser titular de uma conta bancária a que foi atribuído o n.º ....

12. Por esse facto, nunca a participante contratou com o referido Banco a concessão de qualquer crédito ou solicitou a emissão de cartão de crédito.

13. No entanto, a assinatura que consta dos dois contratos para a concessão de crédito pertencem à participante, apesar de a mesma não se lembrar de ter assinado os referidos contratos (doc.2 e doc.3 juntos com a participação criminal).

14. Acresce que, algumas vezes, o seu padrasto lhe solicitava a assinatura de alguns documentos, a fim de tratar de assuntos relacionados com a participante, mas nunca mencionou que pretenderia contrair empréstimos bancários em nome da participante.

15. Apesar dos extractos bancários lhe serem endereçados, nunca a participante teve contacto com os mesmos, sendo que os que apresenta foram obtidos após contacto com a instituição bancária (documentos 4, 5 e 6 juntos com a participação criminal).

16. Desconhece a participante quais os meios utilizados pelo seu padrasto para poder movimentar a referida conta e contrair os empréstimos, dado que nunca assinou qualquer documento que pudesse legitimar a actuação do seu padrasto.

17. Realizado o Inquérito, concluiu a Digníssima Magistrada do Ministério Público que os indícios existentes não permitem concluir, com suficiente grau de certeza, que a queixosa tenha celebrado com o ...os contratos de crédito ao consumo acima referidos sob erro ou engano.

18. Esse grau de incerteza resulta, segundo a posição assumida no despacho de arquivamento, de não se perceber como é que a queixosa só teve conhecimento dos factos em Setembro de 2008,quando lhe foi enviada, desde 1999, toda a correspondência relativa a extractos bancários e pedidos de emissão/renovação de cartões, bem como do facto de a mesma, em data anterior a 2008, ter sido contactada pelo banco por causa deste assunto.

19. Ora, desde já se afirma que nunca a ofendida foi contactada pelo ...por causa deste assunto, sendo, por isso, falso o testemunho de que anteriores colegas de AR... a contactaram, sendo que tal testemunho não refere quem contactou e quando foi esse contacto efectuado.

20. Sabia a participante que constava na lista de incumpridores do Banco de Portugal devido à assinatura de cheques sem provisão emitidos pelo Banco ... e não por causa de uma suposta dívida por incumprimento contratual junto do ...(doc.1).

21. Por outro lado, sendo o seu padrasto quem controlava e movimentava a conta bancária da ofendida, que foi aberta por força da existência do estabelecimento designado “SS...”, era necessariamente este quem recebia toda a correspondência referente a essa conta.

22. É preciso não esquecer que a ofendida, nessa dat, tinha 24 anos e vivia sob a alçada da sua mãe e do seu padrasto, sendo estes que a sustentavam e geriam a sua vida, tendo por isso acesso facilitado à documentação pessoal da ofendida.

23. É preciso, também, não esquecer que a ofendida era gerente formal da empresa “SS...”, propriedade do seu padrasto e mãe, em virtude de o mesmo não ter “crédito” no mercado e que, por esse facto, lhe era pedido para assinar inúmeros documentos que a ofendida não questionava dado presumir que os mesmos estariam relacionados com a actividade comercial exercida pelos seus pais.

24. O facto de a ofendida saber que o padrasto tinha algumas dificuldades de crédito, ao contrário do referido no despacho de arquivamento, não levava a que a participante tivesse de adoptar um comportamento mais cuidadoso na relação com o padrasto, dado que esta nunca esperou que este pudesse, em algum momento, prejudicá-la, dado que o que se perspectiva de um pai é uma conduta protectora e não o contrário.

25. Além do mais, conforme decorre dos elementos constantes dos autos, parece que a referida conta era movimentada através de cartão automático e nunca através de cheque, sendo o participado quem costumava utilizar o referido cartão (fls. 317,).

26. Aliás, numa análise mais cuidada do documento 4 junto com a participação criminal, vislumbramos que o empréstimo concedido com o n.º ..., no montante de 1.590.742$00, depositado na conta da participante em 21/12/1999, foi utilizado, entre os dias 21 e 28 de Dezembro de 1999, da seguinte forma:

- pagamento de imposto de selo------14.400$00;

- transferência para uma outra conta do ...-----255.649$00;

- pagamento ao balcão de cartão de crédito----73.073$00;

- pagamento/liquidação do contrato n.º ...---1.196.499$00;

- pagamento liquidação antecipada-----24.888$00.

27. Ora, face a estes elementos, era importante saber quem era o titular da conta para onde foi efectuada a transferência e quem era o titular do contrato n.º ... que foi antecipadamente liquidado com este empréstimo.

28. Existem, também, elementos nos autos que contrariam a versão apresentada pelo Sr. JS... de que era prática no banco a assinatura presencial dos contratos.

29. Aliás, declaração diferente do funcionário do ...levaria necessariamente à instauração de um procedimento disciplinar por violação de procedimentos e ordens internas impostas pela administração.

30. No entanto, decorre da experiência comum que, de facto, tal procedimento tem muitas excepções.

31. Resulta da declaração da ofendida e das testemunhas CF... e MF... que tal contrato não foi assinado no banco.

32. Referem as testemunhas CF... e MF... que a documentação relativa ao crédito foi assinada pelas mesmas em sua casa.

33. Isto é, referem estas testemunhas que a documentação relativa ao empréstimo se encontrava fora do banco, na posse do participado, sendo natural que, nesse período, também os tenha levado à ofendida para os assinar.

34. Sempre justificou o participado a assinatura da diversa documentação como actos de gestão da empresa “SS...” e, em momento algum, deu a entender que tais documentos se destinavam a contrair empréstimos bancários em nome da participante para benefício desta.

35. Quis o participado fazer crer à ofendida que a assinatura dos referidos documentos estava relacionada com o exercício da actividade da empresa “SS...”, limitando-se esta a assinar os mesmos nos locais indicados pelo participado sem sequer ler o seu conteúdo.

36. Era intenção do participado apropriar-se dos créditos concedidos, o que conseguiu, tendo utilizado os referidos montantes em proveito próprio.

37. Com este comportamento, pretendeu o Sr. JP... obter para si um enriquecimento ilegítimo, o que veio a concretizar, por meio de engano que astuciosamente provocou, tendo causado à participante um prejuízo patrimonial de 16.007,00 euros.

38. Actuou o Sr. JP... com o propósito de se apoderar da referida quantia que sabia não lhe pertencer.

39. Ao actuar como actuou, quis o Sr. JP... convencer o ...de que tinha legitimidade para movimentar a conta n.º … da Agência do ...de ..., dando a ideia que agia em nome e interesse da participante.

40. Agiu o participado de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que tal conduta era proibida por lei.

41. Do modo descrito, incorreu o participado na prática, em autoria material, de um crime de burla, p, e p. no artigo 217.º, n.º 1, do C. Penal.

Neste termos, requer-se a abertura de instrução e, consequentemente, demonstrado que fica a prática, pelo arguido, de factos integradores do crime de burla, p. e p. pelo artigo 217.º, n.º 1, do C. Penal, deverá decidir-se pronunciar o arguido por esse crime.

Para tanto, requer-se a efectivação, para além do mais, das diligências a seguir referidas:

- diligenciar junto do ...no sentido de saber quem era o titular do contrato n.º  … que foi antecipadamente liquidado com o empréstimo n.º  …;

- saber se o Sr. JP... foi titular de alguma conta bancária no ...

                                                        ****

Perante este requerimento, não podemos concluir que a assistente tenha elaborado uma narração precisa, cronológica e conclusiva dos factos que interessam aos autos.

Elucidativo disso mesmo é o artigo 16.º do requerimento de abertura da instrução, onde pode ser lido que “Desconhece a participante quais os meios utilizados pelo seu padrasto para poder movimentar a referida conta e contrair os empréstimos, dado que nunca assinou qualquer documento que pudesse legitimar a actuação do seu padrasto.”

O despacho de arquivamento do inquérito fundamentou-se, essencialmente, em não terem sido “recolhidos elementos de prova que permitam concluir, com suficiente grau de certeza, que a queixosa SP... tenha celebrado com o ...os contratos de crédito ao consumo em questão, sob erro ou engano.

Ora, a própria assistente, no aludido artigo 16.º, afirma desconhecer o modo de execução levado a cabo pelo denunciado, pelo que não é, à partida, possível, imputar factos concretos a JP..., no sentido de ele ter praticado um crime de burla, sem esquecer que o seu paradeiro é desconhecido (reside no Brasil, em morada desconhecida – fls. 318), o que inviabiliza, por ora, a sua inquirição.

Na realidade, face ao arquivamento ordenado nos autos, deveria a assistente indicar no seu RAI o expediente concreto utilizado pelo denunciado e que a conduziu à assinatura dos documentos relativos ao empréstimo (sua versão), pois só, desse modo, poderia ficar plasmado nos autos o modo astucioso de actuação de JP..., mediante erro ou engano, de modo a que ficassem, na peça processual em causa, preenchidos os elementos do tipo de crime em causa.

Não basta dar a entender que alguns papéis foram assinados, sem terem sido lidos, em termos gerais, conforme artigo 14.º do RAI.

Haveria que concretizar as situações, através da narração de factos.

E não se argumente com o artigo 33.º do RAI, pois o mesmo contém em si uma mera suposição (“sendo natural que”) e não um facto.

Mais deveria indicar, também, e em concreto, o destino que foi dado ao montante creditado pelo banco, com o intuito de ficar demonstrado o prejuízo patrimonial.

Não basta, a tal propósito, fazer uma afirmação vaga e genérica como a que consta do artigo 36.º do RAI.

Assim sendo, a decisão ora em crise não merece censura.

                                                        ****

III. Decisão

Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso interposto, mantendo a decisão recorrida.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 5 UC.


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José Eduardo Martins (Relator)
Isabel Valongo