Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2771/18.9T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO CARVALHO MARTINS
Descritores: RESPONSABILIDADE DO ESTADO
EXERCÍCIO DA FUNÇÃO JURISDICIONAL
ERRO JUDICIÁRIO
ERRO DE DIREITO
ERRO DE FACTO
Data do Acordão: 05/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JC CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.22 CRP, LEI Nº 67/2007 DE 31/12
Sumário: 1.- O regime aprovado pela Lei n.º 62/2007, de 31/12, concretiza o princípio consagrado no art. 22.º CRP sobre a responsabilidade do Estado e demais entidades públicas, considerando as suas diferentes funções: administrativa, jurisdicional e político-legislativa.

2.- No que concerne à função jurisdicional, o referido regime distingue os danos ilicitamente causados pela administração da justiça (com destaque para a violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável – art. 12.º) e os danos decorrentes de “erro judiciário”, que pode consistir num erro de direito ou num erro de facto (art. 13.º, n.º 1).

3.- O erro de direito deve ser manifestamente inconstitucional ou ilegal: não basta a mera existência de inconstitucionalidade ou ilegalidade, devendo tratar-se de erro evidente, crasso e indesculpável de qualificação, subsunção ou aplicação de uma norma jurídica; o erro de facto deve ser clamoroso e grosseiro, no que toca à admissão e valoração dos meios de prova e à fixação dos factos materiais da causa.

4.- Todavia, o erro de julgamento deve ser demonstrado no próprio processo judicial em que foi cometido e através dos meios de impugnação que forem aí admissíveis; não na acção de responsabilidade em que se pretenda efectivar o direito de indemnização.

5.- A necessidade de prévia revogação da decisão danosa – prevista agora no art. 13.º da Lei n.º 67/2007 – só se compadece com a via processual adequada para o efeito: o recurso.

6.- Não integra o objecto da acção indemnizatória, emergente de responsabilidade extracontratual do Estado, a apreciação e eventual alteração do já decidido com trânsito em julgado no processo em que, a decisão posta em causa, foi proferida.

7- Seja à luz do art. 13.º, n.º 2, da Lei n.º 67/2007, seja por aplicação directa do art. 22.º da CRP, a revogação da decisão danosa, pela via do recurso, constitui um pressuposto indispensável à procedência da acção.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - A Causa:

C (…) Lda, com sede em Porto de Abrigo, Nazaré, intentou a presente acção declarativa e condenação com processo comum contra o Estado Português, pedindo a condenação do réu no pagamento da quantia de € 54.512,83, a título de “indemnização por dano decorrente no exercício da função jurisdicional”. Alega – e muito resumidamente – que, detentora de letra subscrita por uma sua cliente e avalizada pelo respectivo gerente, intentou execução, tendo logrado efectuar penhora, na qual o avalista se defendeu – vindo a obter ganho de causa – tendo a aqui autora logrado obter a reversão da decisão, por via de recurso.

 Considera a autora que foi vítima de “erros grosseiros”, nos termos do disposto no art.º 13º da Lei 67/2007 de 31 de Dezembro, tendo o processo executivo, no entretanto, sido extinto por ausência de bens a penhorar, assim tendo ficado impedida de ser ressarcida.

Contestou o réu, através do Magistrado do Ministério Público, invocando – e também em muito breve síntese – que a decisão em causa foi devidamente fundamentada, à face da lei, baseada numa das interpretações possíveis do direito aplicável, pelo que se tratou de um uso adequado do poder jurisdicional, à face do disposto nos art.ºs 203º e 205º da Constituição da República Portuguesa, decisão, portanto, nem ilegal nem inconstitucional, sequer determinada por erro grosseiro ou por qualquer acção ou omissão ilícita por parte da juíza do processo. Mais avança que sempre lhe teria sido possível recorrer do despacho que determinou o cancelamento da penhora, e que não ficou demonstrado que, no eventual prosseguimento da execução, a autora obtivesse o pagamento da dívida que reclamara. Finaliza invocando erro na determinação da quantia peticionada, por incorrecto cálculo de juros, e conclui pedindo a absolvição do Estado.

*

Nada impede a decisão do mérito da causa, considerando os factos já assentes por acordo de ambos os sujeitos processuais e pela força probatória dos documentos juntos. A questão a decidir é a da verificação ou não dos pressupostos da responsabilidade civil do Estado por erro judiciário, com base nas decisões proferidas em primeira instância e na Relação no âmbito do processo executivo 360/08.5TbNzr e respectivo apenso de oposição.

*

Oportunamente, foi proferida decisão onde se consagrou que:

«Julgo a presente acção não provada e improcedente, pelo que absolvo o Estado, réu, do pedido.

Custas pela autora; valor: € 54.512,83».

*

C (…), Ldª, A. nos autos à margem referenciados, em que R. Estado Português, e já melhor identificados de fls., tendo decaído na sua pretensão, com os sinais dos autos, notificado da sentença proferida, e com ela não se conformando, veio interpor RECURSO DE APELAÇÃO, alegando e concluindo que:

(…)

O Ministério Público, em representação do R. ESTADO PORTUGUÊS, nos termos dos artigos 219.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, dos artigos 1.º, 3.º, n.º 1, alínea a) e 5.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro (Estatuto do Ministério Público), do artigo 24.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e do art. 3.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2003, de 26 de Agosto (Lei de Organização do Sistema Judiciário), tendo sido notificado do recurso interposto pela A., C (…) LDA., da decisão que julgou a acção declarativa de condenação, de responsabilidade civil por erro judiciário, não provada e improcedente, absolvendo o réu Estado do pedido, veio, em resposta, apresentar as suas CONTRA-ALEGAÇÕES, por sua vez concluindo que:

(…)

*

II. Os Fundamentos:

Colhidos os Vistos legais, cumpre decidir:

Matéria de Facto assente na 1ª Instância e que consta da sentença recorrida:

São os seguintes os factos que, por provados, suportam a presente decisão:

1

Tendo como título uma letra subscrita por P (…) Lda e avalizada por C (…), a aqui autora instaurou execução contra ambos, que mereceu o nº (…)

2

O executado e avalista C (…) deduziu oposição à execução, cujos termos correram pelo apenso “A” àquele processo.

3

O opoente C (…) veio a obter vencimento de causa, nos termos que melhor constam do documento cujo teor – que aqui dou por integralmente reproduzido, nos seus precisos termos – é o que consta das folhas 8 verso a 13 verso da versão impressa do processo.

4

A Sr.ª juíza do Tribunal de Pinhel fundamentou a decisão, além do mais, ao referir que a autora “não logrou ilidir a presunção de que o aval prestado pelo opoente foi dado à sacadora”.

5

Mais referiu, na mesma sentença, e além do mais, que “aqui chegados, resta concluir que o opoente deu o seu aval ao sacador”.

6

Inconformada com tal decisão, a aqui autora interpôs recuso para o Tribunal da Relação de Coimbra.

7

O Tribunal da Relação de Coimbra revogou a decisão do Tribunal de Pinhel, nos termos que melhor constam do documento cujo teor – que aqui dou por integralmente reproduzido, nos seus precisos termos – é o que consta das folhas 14 verso a 25 da versão impressa do processo.

8

Referiram, no acórdão, os Desembargadores da Relação de Coimbra, e além do mais, que “na letra dada à execução não estamos perante a falha de indicação do avalizado uma vez que o avalista declarou que dava o aval a favor da firma subscritora configurando, antes, uma vez que esta expressão não identifica inequivocamente qual dos intervenientes nestes títulos beneficiava do aval, de uma indicação pouco clara que necessitava de ser interpretada”.

9

Reproduzindo o art.º 236º do código civil, prosseguem os Desembargadores, e além do mais, que:

“Este artigo consagrou a teoria segundo a qual as declarações de vontade em princípio valem com o sentido que as partes lhes quiseram conferir (vontade real das partes). Mas se não for conhecida essa vontade ou declarante e declaratário entenderão a declaração em sentidos diversos, vale o sentido que o declaratário normal podia julgar conforme reais intenções do declarante, excepto se este não tinha o dever de considera-lo acessível à compreensão da outra parte.

Da matéria de facto apurada resulta clara a vontade real do opoente quando apôs a sua assinatura de seguida à expressão dou o meu aval à firma subscritora, pois consta da resposta dada ao quesito 7º que com a utilização daquela expressão o executado quis garantir a obrigação da aceitante P (…) Lda, que é precisamente o entendimento que dela faz a sacadora da letra.

A determinação do sentido decisivo das referidas declarações negociais não põe em causa o formalismo que é próprio dos títulos cambiários, designadamente o princípio da liberdade, sobretudo quando os sujeitos da relação jurídica cartular sejam sujeitos da concernente relação jurídica subjacente”.

10

Na execução (…) a aqui autora havia penhorado bens pertencentes ao executado C (…), nos termos que melhor constam dos documentos cujo teor – que aqui dou por integralmente reproduzido, nos seus precisos termos – é o que consta das folhas 25 verso a 28 da versão impressa do processo.

11

Na mesma data em que a aqui autora foi notificada da sentença proferida no processo de oposição à execução, 16 de Fevereiro de 2011, a Sr.ª juiz do Tribunal de Pinhel notificou a agente de execução para o cancelamento do registo de penhora efectuado em bens do co executado C (…), nos termos que melhor constam do documento cujo teor – que aqui dou por integralmente reproduzido, nos seus precisos termos – é o que consta da folha 29 da versão impressa do processo.

12

Deste despacho deu conhecimento ao mandatário da aqui autora no mesmo dia 16 de Fevereiro de 2011.

13

No recurso que a aqui autora veio a interpor não foi requerido o efeito suspensivo porque naquela data o executado C (…)já não era proprietário dos imóveis mais valiosos e suficientes para garantir o pagamento da quantia exequenda.

14

A execução 360/08.5TbNzr foi extinta por ausência de bens a penhorar, nos termos que melhor constam do documento cujo teor – que aqui dou por integralmente reproduzido, nos seus precisos termos – é o que consta da folha 31 verso da versão impressa do processo.

15

A aqui autora intentou junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria acção tendo em vista a responsabilização do Estado, que mereceu o nº 1398/14.9BELra, cuja petição é a que melhor consta do documento cujo teor – que aqui dou por integralmente reproduzido, nos seus precisos termos – faz as folhas 32 verso a 35 da versão impressa do processo.

16

Acção que foi decidida em desfavor da aqui e aí autora, nos termos que melhor constam da sentença cujo teor – que aqui dou por integralmente reproduzido, nos seus precisos termos – é o que consta das folhas 38 a 39 da versão impressa do processo.

*

Mais factos não se provaram, nem houve factos importantes para a decisão da causa que não tivessem resultado provados.

*

Como já dito, os factos atrás fixados foram-no por virtude do acordo de ambos os sujeitos processuais e pela força probatória dos documentos juntos ao processo e oportunamente referenciados.

*

Nos termos do art. 635º do NCPC, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas alegações do recorrente, sem prejuízo do disposto no art. 608º do mesmo Código.

*

Das conclusões de Recurso - ressaltam as seguintes questões elencadas, na sua formulação originária, de parte, a considerar na sua própria matriz holística:

1.

II. Não só a sentença que decretou a procedência dos Embargos, e improcedência da Acção Executiva, no que ao Executado e Avalista C (…) é em si mesma, grosseiramente ilegal, atenta a circunstância de considerar, na esteira da Jurisprudência dominante, que o Aceitante nas Letras de Cambio, é equiparado ao subscritor das Livrança, e que o Aval dado a subscritor nestas últimas, equivale ao Aceitante, considera, erradamente, que esta expressão configura um aval ao sacador, nos termos do art. 31º da LULL, decisão que veio a ser revogada em sede de Acórdão da Relação de Coimbra, que considerou ter tal aval sido dado ao aceitante, considerando improcedentes os embargos.

Apreciando, em termos prodrómicos, diga-se, tal como no Ac. STJ, de 23-10-2014, Proc. nº 1668/12.0TVLSB.L1.S1, Relatora: FERNANDA ISABEL PEREIRA, que:

«a responsabilidade civil do Estado por danos causados no exercício da sua actividade no âmbito da gestão privada teve consagração legal expressa no Código Civil de 1966 (artigo 501º).

No tocante à responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas no domínio dos actos de gestão pública, foi o Decreto-Lei nº 48051, de 21 de Novembro de 1967, que veio estabelecer o seu regime geral.

Este diploma não previa a responsabilidade do Estado pelo exercício da função jurisdicional e a responsabilidade político-legislativa, limitando-se à responsabilidade derivada do exercício da função administrativa.

Só a Constituição de 1976 consagrou um princípio geral de responsabilidade do Estado e demais entidades públicas no artigo 22º ao dispor que “o Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária, com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício, de que resulte a violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem”.

De forma inovatória a Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, veio consagrar, pela primeira vez, ao nível infra-constitucional o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, contemplando a responsabilidade civil do Estado por facto resultante da função legislativa e jurisdicional, posto que o DL nº 48 051, de 21 de Dezembro de 1969 - que aquela Lei veio revogar e substituir -, apenas se dirigia à Administração Pública.

A Lei nº 67/2007, que passou a contemplar, de uma forma global e unitária, a responsabilidade civil extracontratual do Estado decorrente do exercício das suas diversas funções, incluindo, como se disse, a função jurisdicional, prevê, concretamente, no artigo 13º a responsabilidade por erro judiciário, responsabilizando civilmente o Estado pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro.

(…)

Nesse artigo 13º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas são consagradas, como se vê, duas situações distintas no âmbito do erro judiciário. A decisão jurisdicional manifestamente inconstitucional ou ilegal, por um lado, e a decisão jurisdicional manifestamente injustificada por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto, por outro (Cons. Guilherme da Fonseca, «A Responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional», Julgar, 5, Maio-Agosto 2008, pág. 55, e Prof. Maria José Rangel de Mesquita, «Âmbito e pressupostos da responsabilidade civil do Estado pelo exercício da função jurisdicional», Revista do CEJ, 1º semestre 2009, nº 11, pág. 279).

Em qualquer dos casos, só nas situações de erro grave ou, porventura, muito grave do ponto de vista da percepção do direito ou dos factos exigível ao decisor jurisdicional pode ocorrer responsabilidade por erro judiciário, desde que a decisão produza um qualquer dano ao interessado, uma vez que só quando tal percepção contrarie, manifestamente, o sentido normativo autêntico da Constituição ou da lei, ou se traduza numa análise grosseiramente errada dos factos poderá ter lugar aquela responsabilidade (Conselheiro Cardoso da Costa, «Sobre o novo regime da responsabilidade do Estado por actos da função judicial, in Estudos em Homenagem ao Prof. Manuel Henriques Mesquita, 2009, Coimbra Editora, pág. 509).

(…)

A formulação ampla do artigo 22º da Constituição gerou corrente interpretativa maioritária ao nível doutrinário no sentido de nele estar também contida a responsabilidade emergente das funções política, legislativa e jurisdicional. A referência aos «titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes» conjugada com a previsão de outros normativos constitucionais, como o relativo à responsabilidade civil dos titulares de cargos políticos pelas acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções (artigo 117º nº 1) e à responsabilidade dos juízes, embora circunscrita aos casos excepcionais consignados na lei (artigo 216º nº 2), aponta no sentido de que o segmento da expressão «titulares dos seus órgãos» abarca a função jurisdicional exercida pelos juízes, titulares dos órgãos de soberania Tribunais (artigo 202º nº 1 da Constituição).

Na doutrina desenhou-se também o entendimento de que o direito fundamental à reparação dos danos causados ilícita e culposamente pelo Estado e demais entidades públicas a que alude aquele preceito constitucional se apresenta como um direito fundamental de natureza análoga aos direitos liberdades e garantias, um direito-garantia com conteúdo constitucionalmente determinado que beneficia do princípio da aplicabilidade directa contido no nº 1 do artigo 18º, ex vi, do artigo 17º da Lei Fundamental, sendo, por isso, admissível a sua directa invocação pelos particulares numa situação de inércia do legislador ordinário (cfr. neste sentido Profs. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra Editora, 2005, pág. 213, Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, vol. I, 4ª ed., pág. 425, e Profs. Manuel Afonso Vaz e Catarina Santos Botelho, Loc. cit, págs. 39 a 41).

A circunstância de se tratar de uma norma constitucional directamente aplicável, não afastava, contudo, a intervenção do legislador ordinário na densificação dos pressupostos da obrigação de indemnizar e do regime da responsabilidade, nomeadamente nos campos da ilicitude e da culpa, como veio a suceder com a Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, (Profs. Jorge Miranda e Rui Medeiros, loc cit.).

Na jurisprudência, havia quem entendesse que as normas constitucionais, prevendo indemnização no âmbito da jurisdição penal significavam, a contrario, que não existiam outras situações de responsabilidade por factos decorrentes da função jurisdicional; que o artigo 22º da Constituição não se aplica aos tribunais, mas mesmo que se aplicasse, faltava-lhe a necessária norma concretizadora para tornar exequível a sua aplicação, dada a restrição do DL nº 48 051 a actos da Administração Pública (neste sentido os Acórdãos deste Supremo Tribunal de 19.06.2006 e de 03.12.2006, proferidos nas Revistas nº 1091/08 e no Proc. 9180/07.3TBBRG.G1.S1, respectivamente, e, bem assim, a declaração de voto do Conselheiro Salvador da Costa no Acórdão de 20.10.2005, proferido no Proc. 05B2490 (acessíveis em www.dgsi.pt/jstj).

A jurisprudência maioritária vem seguindo a doutrina da aplicabilidade directa do artigo 22º da Constituição à função jurisdicional, na medida em que consagra um direito fundamental à reparação dos danos causados ilícita e culposamente pelo Estado-Juiz, que abarca, para além dos casos previstos nos artigos 27º nº 5 e 29º nº 6 daquele diploma, casos de grave violação da lei por dolo ou negligência grosseira (neste sentido os Acórdãos, também deste Supremo Tribunal, de 12.06.2003, 29.06.2005, 08.09.2009, 03.12.2009, proferidos nos Processos: 03B4170, 05A1064, 368/09.3YFLSB E 9180/07.3TBBRG.G1.S1, respectivamente, todos disponíveis em www.dgsi.pt/jstj), doutrina que se acolhe, tendo-se por bem seguir o já citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.09.2009 na consideração de que deveremos socorrer-nos dos novos conceitos da Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, na densificação e aplicação directa do artigo 22º da Constituição, tendo presente que este normativo constitucional carece de ser complementado com os princípios gerais inerentes à responsabilidade civil. Sem perder de vista a especificidade envolvidas nas questões da ilicitude e da culpa no domínio da responsabilidade por actos do exercício da função jurisdicional, na qual convergem, como garantia da imparcialidade dos juízes, os princípios da não responsabilização dos juízes pelas decisões que proferem e da independência dos tribunais (artigos 216 nº 2 e 203º da Constituição).

-

O actual Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei nº 67/2007, de 21 de Dezembro, consagra no nº 2 do seu artigo 13º a necessidade de prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente como requisito ou pressuposto específico da acção de indemnização.

E a questão que de imediato se coloca é a de saber se a revogação tem de operar pela via processualmente adequada para o efeito, isto é, o recurso ou se pode ser objecto de acção autónoma.

    Abordando esta questão em artigo publicado já na vigência do actual Regime, o Prof. Cardoso da Costa («Sobre o novo regime da responsabilidade do Estado por actos da função judicial», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel Henrique Mesquita, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, vol. I, 2009, pág.512), escreveu que o instrumento para superar e corrigir a incorrecção das decisões judiciais – vale por dizer, «o erro judiciário» - há-de ser primacialmente o do «recurso» (e «reclamação), não o instituto da responsabilidade civil do Estado. É uma razão dogmático-institucional, ligada à própria natureza da função judicial, que impõe a condição estabelecida pelo nº 2 do artigo 13º - e exclui que a ocorrência e o eventual relevo do erro judiciário possam ser aferidos directamente, e sem mais, em sede de responsabilidade e pelo tribunal competente para o apuramento desta.  

A decisão revogatória há-de ser definitiva e provir de um tribunal hierarquicamente superior, pois, como afirma a Prof. Paula Costa e Silva, seria anómalo que a acção de indemnização fosse um meio de tal modo autónomo de impugnação que uma decisão, eventualmente proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça, viesse a ser controlada pela primeira instância (A ideia de Estado de direito e a responsabilidade do Estado por erro judiciário, in O Direito 142º (2010), I, pág. 71).

Já no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 90/84, de 30.07.1984, proferido no Proc. nº 82/83, se questionou se a apreciação da legalidade material (ou constitucionalidade) de uma decisão judicial para meros efeitos indemnizatórios não deveria fazer-se noutra sede, que não a do recurso ou recursos de que a mesma decisão poderia ser objecto, considerando-se que uma  tal solução seria um ilogismo institucional, traduzindo-se na subversão do princípio da divisão dos poderes, enquanto também aplicável à organização judiciária, pois permitiria a ulterior desautorização de uma decisão consolidada na ordem jurídica - por não ter sido impugnada ou, como quer que seja, apreciada pela competente instância de recurso -, doutrina que outros acórdãos do mesmo Tribunal perfilharam. 

E, a propósito do possível paralelismo com a situação prevista no artigo 7º do DL nº 48 051, escreveu-se no mesmo Acórdão que diferentemente de um órgão ou agente administrativo que faz aplicação de uma norma legal, um órgão judicial «diz o direito» - “o direito do caso” -, e a sua declaração é plenamente válida se e enquanto não for revogada, em sede de recurso, por um tribunal superior.

De harmonia com este entendimento (sufragado pelo Desembargador João Aveiro Pereira, A Responsabilidade Civil por Actos Jurisdicionais, Coimbra Editora, 2001, págs. 208 e ss.), já anteriormente à Lei nº 67/2007 se defendia ser exigível a prévia revogação da decisão judicial imbuída de erro para que o acto judicial se considerasse ilícito e susceptível de fundar a acção indemnizatória.

E tal entendimento, que se tem por certo, é, efectivamente, o que se compagina com a natureza da função judicial, com a organização hierárquica dos tribunais constitucionalmente consagrada (artigo 210º da Constituição) e, bem assim, com o instituto do caso julgado, o qual, por razões de segurança e certeza jurídica, confere força definitiva à decisão transitada em julgado, tornando-a vinculativa na ordem jurídica.

Não se integra no objecto da acção indemnizatória apreciar e, eventualmente, alterar o já decidido, com trânsito em julgado, no processo em que a decisão posta em causa foi proferida.

Seja à luz do artigo 13º nº 2 da Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, seja do regime legal anterior decorrente da aplicação directa do artigo 22º da Constituição, a revogação definitiva da decisão danosa pela via do recurso constitui um pré-requisito, um pressuposto indispensável à procedência da acção indemnizatória.

Não se fundando o pedido indemnizatório na anterior revogação da decisão a que se imputa erro judiciário em geral, faltará (mais do que de um pressuposto processual específico) uma condição da acção de indemnização, pois que sem a prova da prévia revogação da decisão danosa não pode ter-se por verificada a ilicitude, o que determinará a improcedência da acção.

Tal ocorrerá, igualmente, ainda que a decisão danosa não seja passível de recurso ou, consentindo-o, não venha a ser revogada por um tribunal superior. Nestes casos, em que a decisão se mantém porque é irrecorrível ou o tribunal, em via de recurso, a confirma definitivamente, não pode ter-se por verificado o «erro judiciário». Nas palavras do Prof. Cardoso da Costa “Onde não caiba ou não seja viável qualquer destes instrumentos processuais (recurso, reclamação ou reforma), ficará também precludida a possibilidade da acção de responsabilidade – mas essa é uma consequência que não haverá de estranhar-se, pois que necessariamente derivada de uma condição a que a mesma acção não pode deixar de estar sujeita” (Loc. cit. Pág. 514)».

(…)

No caso dos autos, imputa-se o erro judiciário à decisão nos termos em perfil nas questões formuladas.

O eventual erro cometido seria, vem configurado, como um erro de direito.

Ora - com o mesmo destaque do e no referido Aresto -, «atenta a natureza e dificuldade inerente à actividade judicial, a generalidade dos ordenamentos jurídicos aceitam a responsabilidade por erro de direito, mas exigem, concomitantemente, uma natural qualificação (erro grosseiro ou manifesto) e intensidade (claro e indiscutível, ou causador de graves e especiais prejuízos) do mesmo, subjectivado como mínimo com negligência grosseira.

Na expressão do Prof. Manuel de Andrade o erro terá de ser «escandaloso, crasso, supino, que procede de culpa grave do errante» (in Teoria Geral da Relação Jurídica, 1974, 2.º, 239).

Só o erro que conduza a uma decisão arbitrária ou aberrante, assente em premissas que contradigam ou deturpem a verdade fáctica ou que na subsunção ao direito revelem desconhecimento manifesto ou crassa incompreensão do regime legal aplicável, revelador de uma actuação dolosa ou gravemente negligente que se reflecte na decisão de mérito, é relevante e susceptível de qualificar-se como grosseiro e integrar essa vertente do erro judiciário (cfr. neste sentido os Acórdãos deste Supremo Tribunal de 31.03.2004, Revista nº 51/04, 29.06.2005, Revista nº 1064/05, 15.02.2007, Revista nº 4565/06, e 22.03.2011, Revista nº 5715/04.1TVLSB.L1.S1)».

Isto dito, com relevo para esta questão do eventual erro judiciário importa considerar os factos assentes em probatório e que, função da dinâmica processual evidenciada nos Autos, leva a que permaneçam inalteráveis.

Demais, como se evidencia, antecipando (e o próprio discurso circunstancial de contraditório não deixou de esgrimir), com sufrágio:

«A decisão revogatória do Tribunal da Relação de Coimbra, assim como a doutrina e a jurisprudência conhecidas, não prefiguram os fundamentos da decisão do Tribunal Judicial de Pinhel como erro grosseiro ou de manifesta ilegalidade.

A decisão do Tribunal Judicial de Pinhel sobre o mérito da oposição à penhora, não sendo ilícita, não preenche os pressupostos do artigo 13.º, n.º 1, da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro.

O despacho de cancelamento do registo das penhoras, proferido na sequência daquela decisão, sem que esta tivesse transitado em julgado, para que pudesse determinar a responsabilidade civil do Estado por erro judiciário, teria que ter sido previamente revogado, nos termos do artigo 13.º, n.º 2, da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro».

Do mesmo modo, sem que haja sido objecto de actuação processual reactiva adrede, de parte, pois - inequivocamente -, de despacho recorrível se tratava (tendo em conta que se não cuidava de “despacho de mero expediente” e, também, a pretexto do disposto no art. 644º, nº2, al. f), do NCPC (apelações autónomas).

Mantendo-se válida, mesmo no circunstancialismo observado, configuração alternativa, igualmente reactiva (v.g., impugnação pauliana), do credor “perante o dissipar (fraudulento) do património do devedor”.

Do mesmo modo, se não podendo afastar «não se encontrar alegado nem demonstrado que os bens penhorados ao executado avalista ressarciriam a totalidade da quantia exequenda e que esta prevaleceria sobre todos os demais créditos, inclusivamente sobre os créditos privilegiados da Fazenda Nacional».

O que, também, encontra respaldo na circunstância de a  jurisprudência constitucional, reiteradamente, sustentar que o legislador ordinário goza, no processo civil, de uma ampla margem de liberdade na conformação e na regulação do acesso em matéria de recursos, podendo restringir a sua admissibilidade de forma não arbitrária (neste sentido Prof. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol 3º, 2ª ed., 2008, págs. 13 e 14).

Assim, permitindo suspender como elementos obsidiantes, de adequada vinculação decisória, que:

«A necessidade de prévia revogação da decisão danosa – prevista agora no art. 13.º da Lei n.º 67/2007 – só se compadece com a via processual adequada para o efeito: o recurso.

Tal entendimento é o único que se compagina com a natureza da função judicial, com a organização hierárquica dos tribunais e com o instituto do caso julgado.

Não integra o objecto da acção indemnizatória, emergente de responsabilidade extracontratual do Estado, a apreciação e eventual alteração do já decidido com trânsito em julgado no processo em que, a decisão posta em causa, foi proferida.

Seja à luz do art. 13.º, n.º 2, da Lei n.º 67/2007, seja por aplicação directa do art. 22.º da CRP, a revogação da decisão danosa, pela via do recurso, constitui um pressuposto indispensável à procedência da acção.

O erro de direito, para fundamentar a obrigação de indemnizar, terá de ser «escandaloso, crasso, supino, procedente de culpa grave do errante», sendo que só o erro que conduza a uma decisão aberrante e reveladora de uma actuação dolosa ou gravemente negligente é susceptível de ser qualificada como inquinada de erro grosseiro» (Ac. STJ, de 23-10-2014, Proc. nº 1668/12.0TVLSB.L1.S1, Relatora: FERNANDA ISABEL PEREIRA).

O que, pelas razões, no caso, supra indicadas, não sai demonstrado.

Deste modo, determinando atribuir resposta negativa às questões em 1. configuradas.

*

2.

III. Dois dias após notificação da Sentença do Tribunal de Pinhel às partes, e não obstante não poder desconhecer que o ora Recorrente dispunha de 30 dias para Recurso (acrescido de 3 dias de multa) e que a sentença por si proferida se não encontrava transitada, não revestido por tal facto carácter definitivo e executório (e por tal, ainda não existente de iuris), não deixou de proferir dois dias depois da notificação da sentença, despacho a ordenar a notificação da sentença ao Agente de Execução, com o cancelamento do registo da penhora realizada sobre os bens do Executado, e o prosseguimento da execução, apenas contra a empresa de que era avalista, sendo que tal despacho, porque de mero expediente face ao nº 2, do art. 156º do CPC, então vigente, era insuscetível de recurso e, consequentemente, da sua reavaliação e eventual substituição.

IV. Revestindo tal despacho, porque proferido com base numa inexistente, (enquanto definitiva, executória e revestida da indispensável certeza jurídica) consubstanciador de um notório e grosseiro erro de direito, que não poderia deixar de conhecer e, só possível, por manifesta incúria, perceptivel ao cidadão médio, e cuja consequência foi a alienação, dos bens em que a penhora foi cancelada, por tribunal, em processos executivos, por força de penhoras sobre os mesmos bens penhorados em momento subsequente, e dois anos depois da concretizada pelo ora Recorrente.

Neste específico segmento - aqui se projectando o que, na resposta anterior já foi consignado -, se configura como determinante, desde logo, referir que «o dever de administrar justiça é um imperativo constitucional (art. 202 CRP). Ao juiz, como órgão do tribunal, cabe, quer a composição do conflito de interesses que está na base de todo o processo jurisdicional (LEBRE DE FREITAS, Introdução cit., n.º 1.4.4), quer a solução das questões (materiais e processuais) que se apresentem como prejudiciais à composição desse conflito (ver art. 92). Cabe-lhe também acatar e cumprir as decisões proferidas em instância de recurso. Fá-lo mediante sentenças e despachos.

Na sentença, "o ato jurisdicional por excelência" (ANSELMO DE CASTRO, Direito processual civil cit., III, p. 92), o juiz decide de mérito, conhecendo do pedido que as partes lhe formularam ou absolvendo o réu da instância por não se verificar algum pressuposto processual (art. 278). Também tem lugar a emissão de sentença quando se trata de decidir um incidente legalmente estruturado como uma causa. Em todos os outros casos, as decisões judiciais tomam a designação de despachos. (Cf. José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, 3ª Edição, 2014, p. 300).

Com este enquadramento, por sua vez, os despachos de mero expediente são aqueles que não decidem de qualquer questão de forma ou de fundo, que se destinam a regular, em harmonia com a lei, os termos do processo, a prover ao seu andamento regular, e que o juiz ordena sem interferir no conflito de interesses entre as partes, não sendo susceptíveis de ofender direitos processuais destas ou de terceiros. Ou seja, trata-se de despachos, puramente, formulários, através dos quais o juiz não decide, mas se limita a ordenar um expediente que o habilite a decidir (Cf. (Ac. STJ, de 25.1.2011: Proc. 34/03.3TBSTS.D.P1.S1-1.ª: Sumários, Jan./201, p. 39).

Com este alcance, pois, despachos de mero expediente são "aqueles que se destinam a regular, de harmonia com a lei, os termos do processo, e que assim não são susceptíveis de ofender direitos processuais das partes ou de terceiros." São os que "dizem respeito apenas à tramitação do processo, sem tocarem nos direitos ou deveres das partes."

Ora, aquele que foi produzido, não se limita a regular o andamento normal do processado, possui o alcance implícito que lhe é inerente - e que, aqui vem invocado, como sua consequência -, não se podendo subsumir, por essa razão, a tal nomenclatura e conceito. Consequentemente, assim se tornava passível de impugnação pelas partes (Cf. Ac. RL, de 27.5.2009: Proc. 48-B/98-1.dgsi.Net).

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Tendo-se, igualmente, por inarredável que a recorribilidade do despacho que ordena o cancelamento do registo (de penhoras), se encontra - mesmo -, expressamente prevista no art. 644º, nº2, al. f), do NCPC (“da decisão que ordene o cancelamento de qualquer registo”).

Com efeito, apenas admitem recurso de apelação autónoma as decisões finais ou interlocutórias previstas no art. 644º, nºs 1 e 2 do CPC (644ºNCPC) (Cf. Ac. RG. de 21.04.2016:Proc. 1239/13.4TBPTL - B.G1.dgsi.Net). Uma vez que as razões que justificam a admissibilidade de apelação autónoma e imediata destas decisões prendem-se com a conveniência de atenuar os riscos de uma futura inutilização do processado (Cf. Ac. RL. de 28.4.2015, Proc. 465/14:dgsi.Net).

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As decisões do Tribunal de 1ª Instância previstas no nº 2 do art. 691º do CPC (644º NCPC), de que também pode apelar-se, são, pois, decisões intercalares. O recurso destas decisões intercalares tem de ser interposto no prazo de 15 dias, sobe em separado e com efeito suspensivo da decisão (als. c), d) e e), ao contrário da apelação regra que tem efeito meramente devolutivo) (Cf. Ac. RE, de 13.2.2012:Proc. 2292/09.OTBSTR.E1.dgsi.Net).

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Deste modo, pois que o novo regime dos recursos, aprovado pelo DL n.º 303/2007, de 24-8, apenas admite, como regra, a impugnação diferida e concentrada das decisões interlocutórias, com o recurso interposto da decisão final ou em recurso único, interposto depois do trânsito daquela decisão final. Casos há (691º CPC - 644º NCPC), porém, em que se continua a admitir o recurso autónomo dessas decisões, como acontece com o recurso das decisões cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil (…). O requisito da absoluta inutilidade deve continuar a significar que a falta de autonomia do recurso interlocutório deverá traduzir-se num resultado irreversível quanto a esse recurso, não bastando uma mera inutilização de actos processuais, ainda que contrária ao princípio da economia processual (Ac. RL. de 16.10.2009:Proc. 224298/08.4Y1PRT-B.L1-8.dgsi.Net).

Revelando-se consonante com o sistema actual de recorribilidade não autónoma diferida, o que pode ser impugnado no recurso que seja interposto da decisão final é uma decisão anterior, não podendo a parte aproveitar esse recurso para suscitar ex-novo uma qualquer questão que deveria ter colocado em momento anterior (art. 691.° n.º 3 do CPC - 644º NCPC) (Cf. Ac. RL, de 9.12.2010:CJ, 2010, 5º-127).

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Em tais termos de configuração, sem nenhuma dúvida sobrante, pois que - vale por insistir -, o despacho de mero expediente é um despacho ordenador através do qual o juiz provê o andamento do processo, sem interferir no conflito de interesses e sem ofender direitos processuais das partes ou de terceiros e daí que, pela sua natureza, não seja susceptível de recurso.

Nisso se insiste, o despacho em causa - nos termos em que foi produzido, e na singularidade sistemática que lhe foi atribuída -, consigna, manifestamente, uma ordem clara de prossecução, recte, de procedimento sequente, com consequências específicas decorrentes, não sendo, portanto, um despacho de mero expediente.

Perante tal realidade processual, não tendo a parte reagido a tal despacho - que era susceptível de impugnação por via de reclamação ou recurso -, o mesmo transitou em julgado, formando caso julgado formal, o que obsta a que o juiz possa, na mesma acção, alterar essa decisão em sentido diverso do apreciado.

Havendo de se precisar, de resto, que os despachos não são inconstitucionais; a inconstitucionalidade só pode residir na norma ou na interpretação que, eventualmente, dela se possa fazer (Cf. Ac. STJ, de 17.3.2016, Proc. 85/14: Sumários. Mar./2016, p. 64).

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Sendo que, em termos de radiografia judiciária, se impõe configurar, do mesmo modo - nesta dimensão -, como incontroverso e incontrovertível, não se revelando tal despacho “consubstanciador de um notório e grosseiro erro de direito”, como vem, recursivamente,apodado.

Com efeito, não pode deixar de se conceder, no caso, que:

«A revogação da decisão do Tribunal Judicial de Pinhel sobre o mérito da oposição à penhora pelo Tribunal da Relação de Coimbra (…), não significa que aquela seja ilícita ou sequer errada, mas apenas que um Tribunal hierarquicamente superior decidiu de modo diverso de um inferior, encontrando-se as divergências na interpretação da lei compreendidas na independência dos juízes, na liberdade de julgar e no exercício legítimo da função jurisdicional.

A delimitação da questão a solucionar, mediante a exposição de diversas soluções plausíveis mas incompatíveis entre si, para de seguida, fundamentadamente, se optar por uma delas, não torna a decisão do Tribunal Judicial de Pinhel incongruente nos seus termos.

A decisão revogatória do Tribunal da Relação de Coimbra, assim como a doutrina e a jurisprudência conhecidas, não prefiguram os fundamentos da decisão do Tribunal Judicial de Pinhel como erro grosseiro ou de manifesta ilegalidade.

A decisão do Tribunal Judicial de Pinhel sobre o mérito da oposição à penhora, não sendo ilícita, não preenche os pressupostos do artigo 13.º, n.º 1, da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro.

O despacho de cancelamento do registo das penhoras, proferido na sequência daquela decisão, sem que esta tivesse transitado em julgado, para que pudesse determinar a responsabilidade civil do Estado por erro judiciário, teria que ter sido previamente revogado, nos termos do artigo 13.º, n.º 2, da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro».

Sendo, também, inarredável, no presente circunstancialismo, «tratar-se de apurar o sentido relevante da vontade do sujeito cambiário em causa, segundo o critério normativo da impressão do declaratário normal colocado na posição do real declaratário, com um mínimo de correspondência no texto do documento, ainda que imperfeitamente expresso (artigos 236º, n.º 1 e 238º, n.º 1, do Código Civil).

Este Tribunal, excepcionalmente, pode aferir sobre se a Relação, ao fixar a matéria de facto, respeitou ou não o critério interpretativo a que se reportam os artigos 236º, nº 1 e 238º, nº 1, do Código Civil (artigo 722º, n.º 2, do Código de Processo Civil – 674º NCPC).

A criação dos títulos de crédito envolvidos pelos princípios da literalidade e da abstracção tem por origem ou fonte uma declaração unilateral de vontade negocial constitutiva de um negócio jurídico unilateral e rigorosamente formal, pelo que podem surgir dúvidas na interpretação da vontade das partes ao produzirem as declarações, a solucionar à luz dos artigos 236º a 238º do Código Civil.

O sentido decisivo da declaração negocial é o que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, por alguém medianamente instruído e diligente, informado do sector da actividade em causa e capaz de procurar esclarecer-se acerca das circunstâncias em que ela foi produzida.

A determinação do sentido decisivo das referidas declarações negociais não põe em causa o formalismo é próprio dos títulos cambiários, designadamente o princípio da literalidade, sobretudo quando os sujeitos da relação jurídica cartular sejam os sujeitos da concernente relação jurídica subjacente» (Cf. Ac. STJ de 21-04-2005, Proc. nº 05B969, Relator: SALVADOR DA COSTA).

Tanto assim que, para o efeito, "(…) não basta a discordância da parte que se diz lesada, nem sequer a convicção que, em alguns processos, sempre será possível formar, de que não foi justa ou a melhor a solução encontrada: impõe-se que haja certeza de que um juiz normal e, por exigência imperativa, preparado e cuidadoso, não teria julgado pela forma a que se chegou, sendo esta inadmissível e fora dos cânones minimamente aceitáveis".

Assim, "os pressupostos da ilicitude e da culpa, no exercício da função jurisdicional susceptível de importar responsabilidade civil do Estado, conforme o art. 22º da Constituição, só podem dar-se como verificados nos casos de mais gritante denegação da justiça, tais como a demora na sua administração, a manifesta falta de razoabilidade da decisão, o dolo do juiz, o erro grosseiro em grave violação da lei, a afirmação ou negação de factos incontestavelmente não provados ou assentes nos autos, por culpa grave indesculpável do julgador".

Sublinhava-se, ainda, que "a autonomia na interpretação do direito e a sujeição exclusiva às fontes de direito jurídico-constitucionais são manifestações essenciais do princípio da independência dos juízes, pelo que os actos jurisdicionais de interpretação de normas de direito e de valoração jurídica dos factos e das provas, núcleo da função jurisdicional são insindicáveis.

Em consequência, o erro de direito praticado pelo juiz só poderá constituir fundamento de responsabilidade civil quando, salvaguardada a essência daquela função jurisdicional, seja grosseiro, evidente, palmar, indiscutível, e de tal modo grave que torne a decisão judicial uma decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas".

Importa ainda notar que o instrumento normal para corrigir o erro judiciário seria sempre, primacialmente, o recurso ordinário, assim se evitando que a respectiva decisão se tornasse irrecorrível e consolidada.

Esgotado esse meio, ou não sendo ele possível, a admissibilidade da responsabilidade do Estado teria como limite o princípio constitucional (implícito) do caso julgado: "a faute não pode ser demonstrada contra uma decisão que beneficia da indiscutibilidade, por força da lei".

Se a sentença não é recorrível ou se é desconforme com a verdade dos factos ou com as regras de direito aplicáveis, mesmo após o último recurso admissível, não haveria, em princípio, meio de reacção, ressalvado o caso do recurso extraordinário de revisão [o princípio da tutela judicial e da responsabilidade do Estado (arts. 20º e 22º da CRP) postula a declaração do erro através de recurso de revisão, ou outro procedimento que apenas altere o efeito lesivo da decisão errada"; mas, só através de "nova decisão, provinda de órgão da mesma natureza e com igual autoridade].

Neste sentido, afirma-se no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 90/84, de 30/07/84:

"Diferentemente de um órgão ou agente administrativo que faz aplicação de uma norma legal, um órgão judicial «diz o direito» - o «direito do caso» –, e a sua declaração é plenamente válida se e enquanto não for revogada, em sede de recurso, por um tribunal superior. Por isso mesmo, se se compreende que um acto «definitivo» da Administração possa ser posto em causa por uma instância judiciária só para efeitos indemnizatórios, não obstante para a generalidade dos efeitos haver entretanto constituído «caso resolvido», compreende-se do mesmo modo que coisa idêntica não possa suceder com um acto jurisdicional «consolidado». Quer dizer: compreende-se que este último – não havendo sido impugnado, ou, como quer que seja, apreciado pela competente instância de recurso – não possa vir a ser ulteriormente «desautorizado» por outro tribunal (porventura até de diferente espécie, ou pertencente a uma diversa ordem de jurisdição, ou inclusivamente da mesma espécie, mas de grau inferior) mesmo só para aqueles limitados efeitos"» (Cf. Ac. STJ de 24-02-2015, Proc. nº 2210/12.9TVLSB.L1.S1, Relator:             PINTO DE ALMEIDA).

Complementando tal interpretação. O Aresto em referência mais  destaca, que:

«a situação anteriormente descrita sofreu profunda alteração com a publicação da Lei 62/2007, de 31/12, que aprovou o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, diploma que, de forma global e sistemática, passou a contemplar o exercício das diferentes funções estaduais: administrativa, jurisdicional e político-legislativa.

No que concerne à responsabilidade por actos da função jurisdicional, o legislador avançou no sentido do alargamento da responsabilidade civil do Estado, numa opção que qualificou de "arrojada": "a de estender ao domínio do funcionamento da administração da justiça o regime da responsabilidade da Administração, com as ressalvas que decorrem do regime próprio do erro judiciário (…). No que se refere ao regime do erro judiciário, para além da delimitação genérica do instituto, assente num critério de evidência do erro de direito ou na apreciação dos pressupostos de facto, entendeu-se dever limitar a possibilidade de os tribunais administrativos, numa acção de responsabilidade, se pronunciarem sobre a bondade intrínseca das decisões jurisdicionais, exigindo que o pedido de indemnização seja fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente" [Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado – Trabalhos preparatórios da reforma, 14 e 15.].

São estas, no essencial, as inovações introduzidas neste domínio.

Distingue assim o novo diploma entre:

- "os danos ilicitamente causados pela administração da justiça" (com destaque para a "violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável"), com o regime previsto no art. 12º, aos quais é aplicável o "regime da responsabilidade por factos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa" - arts. 7º a 10º; e

- os danos decorrentes de "erro judiciário", com o regime previsto no art. 13º.

D

1. Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto.

2. O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.

Prevê o nº 1 os pressupostos materiais da responsabilidade por erro judiciário (fora dos casos de condenação penal injusta e de privação ilegal da liberdade) e deles decorre, como refere Cardoso da Costa, que a responsabilidade é aqui, "limitada às situações de erro grave, ou porventura muito grave, do ponto de vista da percepção do direito ou dos factos exigível ao decisor jurisdicional, já que apenas poderá caber nos casos em que tal percepção contrarie, de modo manifesto, o sentido normativo da Constituição ou da lei, ou se traduza numa análise grosseiramente errada dos factos" [Sobre o novo regime da responsabilidade do Estado por actos da função judicial, RLJ 138-162.].

O erro judiciário pode, assim, consistir num erro de direito ou num erro de facto.

O erro de direito, como sublinha Carlos Cadilha, "deverá revestir-se de um suficiente grau de intensidade, no sentido de que deverá resultar de uma decisão que, de modo evidente, seja contrária à Constituição ou à lei, e por isso desconforme ao direito, e que não possa aceitar-se como uma das soluções plausíveis da questão de direito. Deverá tratar-se, nestes termos, de uma decisão proferida contra lei expressa e que, em si, represente um comportamento anti-jurídico susceptível de gerar, nos termos gerais, um dever de indemnizar".

Pode consistir num erro de qualificação, de subsunção ou de estatuição jurídicas ou ainda na aplicação de uma norma que devesse ser tida como inconstitucional; mas "não se basta com a mera constatação, em sede de recurso, por um tribunal superior, de uma errada interpretação e aplicação do direito, tornando-se ainda exigível que se trate de um erro evidente que, por ser evitável segundo a normalidade das coisas, tenha desnecessariamente gerado prejuízos a uma das partes" [Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas Anotado, 210, 212 e 213.].

O erro na apreciação dos pressupostos de facto releva se for um erro grosseiro, circunscrevendo-se "aos casos em que houve um clamoroso erro de avaliação dos meios de prova"; erro que "tanto poderá respeitar a um erro na apreciação das provas, isto é, um erro sobre a admissibilidade e valoração dos meios de provas, como a um erro sobre a fixação dos factos materiais da causa" [Carlos Cadilha, Ob. Cit., 211 e 214. No sentido indicado, cfr. ainda Ana C. Carvalho, Responsabilidade Civil por Erro Judiciário, 48 e segs; Guilherme da Fonseca e Bettencourt da Câmara, A Responsabilidade Civil dos Poderes Públicos, 50 e segs. Também o citado Acórdão deste Tribunal de 23.10.2014.].

A caracterização do erro relevante, que decorre do novo diploma, como lei concretizadora do princípio consagrado no art. 22º da CRP, não se distancia, assim, substancialmente, do entendimento que anteriormente era seguido com base neste.

O erro de direito terá de ser manifestamente inconstitucional ou ilegal: não basta a mera existência de inconstitucionalidade ou ilegalidade, devendo tratar-se de erro evidente, crasso, indesculpável, que o magistrado tem a obrigação de não cometer.

O erro na apreciação da matéria de facto deve ser grosseiro e, por isso, também indesculpável, inadmissível e sem justificação, que só por desatenção ou desleixo foi cometido.

Exige-se no nº 2 do citado art. 13º que o pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.

Trata-se de opção do legislador derivada da necessidade, já acima aflorada, de compatibilizar o instituto da responsabilidade civil com a segurança e certeza jurídica do caso julgado.

Assim, o erro de julgamento deve ser demonstrado no próprio processo judicial em que foi cometido e através dos meios de impugnação que forem aí admissíveis; não na acção de responsabilidade em que se pretenda efectivar o direito de indemnização.

Não pode, pois, "atribuir-se qualquer relevo a um alegado erro judiciário sem que ele seja reconhecido como tal pela competente instância jurisdicional de revisão. Sem tal reconhecimento, o «erro» (o puro «erro») só o será do ponto de vista ou no plano da análise crítico-doutrinária da decisão, não num plano jurídico-normativo: neste outro plano, o que subsiste é a definição do direito do caso, emitida por quem detém justamente o múnus e a legitimidade para tanto"[Cardoso da Costa, Ob. Cit., 163.].

Constituiria, na verdade, evidente ilogismo institucional, como acima se referiu, que uma decisão jurisdicional consolidada, por não ter sido impugnada, pudesse vir a ser posteriormente "desautorizada" por outro tribunal, porventura de diferente espécie ou da mesma espécie mas de grau inferior.

Acompanhando Cardoso da Costa, pode acrescentar-se que a revogação da decisão danosa há-de constar de uma decisão definitiva, isto é transitada em julgado, e é aí que terá de ser reconhecido o pressuposto substantivo da responsabilidade – "o carácter manifesto do erro de direito ou o carácter grosseiro do erro na apreciação dos factos". Por outro lado, a revogação deve emanar de um tribunal superior em via de recurso ou do próprio tribunal que proferiu a decisão questionada, quando tal seja admissível (através de reclamação ou pedido de reforma – cfr. art. 616º do CPC).

[Consequentemente,] "onde não caiba ou não seja viável qualquer destes instrumentos processuais, ficará também precludida a possibilidade da acção de responsabilidade" [Ob. Cit., 165. No mesmo sentido Carlos Cadilha, Ob. Cit., 217 e 218.].

O que, assim, também, impõe responder de forma negativa às questões em 2.

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3.

VII. Não podendo proceder, pois, as teses, cuja revogação se requer desde já, da sentença revidenda, que propugnam pela não certeza de o dano se verificar, por não ter havido lugar ao recurso à (inaplicável) impugnação pauliana / e, ainda, da existência de eventuais penhoras, com putativos privilégios, que precedessem a prioridade do registo, de que gozava o Recorrente, até à prolação do despacho do seu cancelamento, que prevaleciam sobre todas as subsequentes penhoras, que apenas poderiam garantir o pagamento, após a liquidação dos bens, para satisfação do crédito do Recorrente, e para tanto haver capital remanescente.

É princípio geral da responsabilidade ilimitada do devedor (art. 601º Código Civil): a circunstância de o cumprimento da obrigação ser assegurado por todos os bens penhoráveis existentes no seu património ao tempo da execução, mesmo os que tenham sido adquiridos depois da constituição da obrigação (Sem olvidar, não obstante, que esta regra, da responsabilidade ilimitada, comporta excepção: há casos de responsabilidade limitada, derivados da lei, de convenção das partes ou de determinação de terceiro) (Almeida Costa, Obrigações, 3.ª ed., 588).

Ainda assim, nesta conformidade, a regra consagrada neste art. 601.°, n.º 1, do Cód. Civil é de que constituem garantia comum dos credores todos os bens do devedor que sejam exequíveis. Tal garantia só em casos excepcionais é que poderá ser afastada, havendo, por isso, que equacionar ponderadamente, em concreto, se devem prevalecer as motivações de ordem pública que determinaram a previsão da impreensibilidade relativa, ou antes o princípio da confiança e da boa fé, postulado no princípio geral de que o património penhorável é a garantia do cumprimento da obrigação (Cf. Ac. RC., 5-3-1996: BMJ, 455.°-577).

É que um dos requisitos da impugnação pauliana está expresso na alínea b) do art. 610.º do Código Civil: «resultar do acto a «impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade». Ora, há que ter presente que o art. 611.º do Código Civil abre uma excepção à regra geral do ónus da prova estabelecido no art. 342.° do mesmo Código (como o permite o n.º 1 do art. 344º): o credor apenas tem de provar o montante das dívidas, enquanto o devedor terá de fazer «a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor». É assim de concluir que, uma vez provada a dívida, a lei desde logo como que faz presumir a referida impossibilidade ou o seu agravamento, fazendo incidir sobre o devedor a obrigação de a ilidir.

A obrigação contraída pelo avalista de “letra” é solidária, pelo que o seu portador pode exigir o respectivo cumprimento integral de qualquer dos obrigados cambiários, pois quando nasceu a obrigação o credor ficou a poder contar com a garantia constituída pelo património dos vários devedores solidários, a qual tem de acompanhar sempre aquela obrigação. O portador inicial da “letra” pode só a ter admitido porque contava com a garantia desse avalista, pelo que, desfazendo-se ele dos seus bens, ficava o credor defraudado nas suas legítimas expectativas.

Consequentemente, não basta, para se excluir a impugnação pauliana, que os outros devedores solidários ainda mantenham no seu património bens suficientes para garantir o pagamento da dívida; pelo contrário, essa suficiência de bens tem de dizer respeito ao próprio demandado, sendo, portanto, irrelevante a eventual suficiência dos patrimónios dos restantes devedores solidários (Cf. Ac. STJ, 11-5-1995: BMJ, 447.º-508).

Em tais termos, pois que a acção pauliana deixou de ter, com o Código Civil de 1966, a aparência de uma verdadeira acção anulatória, sendo-lhe atribuído um carácter pessoal, aproveitando apenas ao credor que a tenha requerido, a quem são conferidos três direitos: o direito à restituição na medida do interesse do credor, o direito de praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei e o direito de execução no património do obrigado à restituição.

Converteu-se assim a antiga anulação em verdadeira ineficácia do acto em relação ao credor impugnante, pelo que a atitude correcta do credor que faz uso da impugnação pauliana é deduzir o pedido da declaração de ineficácia do acto que impugna e não o pedido de anulação ou de declaração da sua nulidade (Cf. Ac. STJ, 28-3-1996: BMJ, 455º - 498).

Nada obstaria, pois, face à sequência que os Autos assumiram, que a recorrente - ainda assim -, lançasse mão de tal estratégia obstativa.

-

Desta arte, também, putativamente, se aceita - tal como expresso em decisório -, esse “mecanismo”, que:

«estaria disponível à exequente, do qual ela não lançou mão – nem explicou porque o não fez, não se vislumbrando motivo óbvio – e que, consequentemente, veio assim a ocorrer a extinção da execução por, como aqui se provou, inexistência de bens penhoráveis. Logo, e ressalvado o devido respeito por opinião contrária, sempre seria possível afirmar que a aqui autora não esgotou todos os meios de que dispunha para se ver ressarcida do seu crédito.

Num segundo momento, importa atender ao argumento invocado pelo Magistrado do Ministério Público na sua contestação, a saber, que a manutenção da penhora não asseguraria, necessária e definitivamente, o pagamento da dívida, pois que sempre poderiam surgir, no seio do processo executivo, credores privilegiados que se fariam pagar antes da exequente. Argumento que nem sequer se pode dizer que seja apenas teórico, atento o que consta, por exemplo, do teor das certidões juntas nas folhas 29 verso a 31 do processo apenso, nas quais pululam penhoras efectuadas por outros tribunais, a favor de diversas entidades bancárias, e de um credor que é sempre privilegiado, a saber, a Direcção Geral dos Impostos.

Não olvido que a este argumento é sempre possível dizer que, levantada a penhora e cancelado o correspondente registo, a aqui autora ficou impedida de fazer valer a sua candidatura ao concurso de credores, logo, de disputar o seu crédito com os demais concorrentes, o que sempre permitiria sustentar a teoria da perda de chance, não inviabilizando totalmente a imputação objectiva do resultado danoso às decisões judiciais aqui em análise. Porém, creio que é inultrapassável a argumentação atrás expandida relativamente ao não uso dos mecanismos de impugnação dos actos jurídicos que permitiram que os bens inicialmente penhorados tivessem saído do património do executado. Não estaria, assim, em meu entender – e sempre ressalvando o respeito devido por distinta opinião – o necessário requisito da causalidade entre o acto (pretensamente) ilícito e o prejuízo verificado».

Tal conferindo inteira pertinência à outra circunstância - esgrimida, mais uma vez, em expressão de contraditório (sem deixar de sublinhar que os nossos recursos são meios de impugnação de decisões judiciais e não meios de julgamento de questões novas, vigorando um “modelo do recurso de reponderação” em que o âmbito do recurso se encontra objetivamente limitado pelas questões colocadas no tribunal recorrido - Cf. RUI PINTO, O recurso civil – uma teoria geral, págs. 69 e seguintes) -, de que:

«Tais factos não devem ser considerados porque não têm influência sobre a existência ou o conteúdo da relação controvertida, uma vez que não sendo a sentença do Tribunal Judicial de Pinhel ilícita, nem se encontrando o despacho de cancelamento do registo das penhoras previamente revogado, sempre o estado Português terá de ser absolvido do pedido, de acordo com o artigo 611.°, n.º 2, ex vi do artigo 663.°, n.º 2, do Código de Processo Civil.

Ainda que venham a ser considerados continua a não ser possível concluir pela verificação do nexo de causalidade entre o despacho de cancelamento das penhoras e a impossibilidade de satisfação do crédito da recorrente.

Com efeito, não se encontra alegado nem demonstrado que os bens penhorados ao executado avalista ressarciriam a totalidade da quantia exequenda e que esta prevaleceria sobre todos os demais créditos, inclusivamente sobre os créditos privilegiados da Fazenda Nacional.

         O crédito privilegiado da Fazenda Nacional concede-lhe, independentemente de registo, a faculdade de ser paga, com preferência a outros credores, pelo produto da venda dos bens penhorados, pelo que a anterioridade do registo da penhora a favor da recorrente não tem como consequência inevitável, como esta pretende, que o seu crédito seja graduado, antes daquele da Fazenda Nacional».

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Aqui - haverá, assim, de se insistir como no referenciado Ac. STJ de 24-02-2015, Proc. nº 2210/12.9TVLSB.L1.S1Relator: PINTO DE ALMEIDA) -, que: «Apesar da falta de regulamentação própria, desde há muito se vinha afirmando a responsabilidade civil do Estado por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional (fora dos casos específicos da jurisdição penal), com fundamento no art. 22.º da CRP, que se considerava de aplicação directa, sem carecer de mediação normativa para poder ser invocado.

O regime aprovado pela Lei n.º 62/2007, de 31-12, concretiza o princípio consagrado no citado art. 22.º sobre a responsabilidade do Estado e demais entidades públicas, considerando as suas diferentes funções: administrativa, jurisdicional e político-legislativa.

No que concerne à função jurisdicional, o referido regime distingue os danos ilicitamente causados pela administração da justiça (com destaque para a violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável – art. 12.º) e os danos decorrentes de "erro judiciário", que pode consistir num erro de direito ou num erro de facto (art. 13.º, n.º 1).

O erro de direito deve ser manifestamente inconstitucional ou ilegal: não basta a mera existência de inconstitucionalidade ou ilegalidade, devendo tratar-se de erro evidente, crasso e indesculpável de qualificação, subsunção ou aplicação de uma norma jurídica; o erro de facto deve ser clamoroso e grosseiro, no que toca à admissão e valoração dos meios de prova e à fixação dos factos materiais da causa.

Todavia, o erro de julgamento deve ser demonstrado no próprio processo judicial em que foi cometido e através dos meios de impugnação que forem aí admissíveis; não na acção de responsabilidade em que se pretenda efectivar o direito de indemnização».

Exactamente porque - e a decisão proferida deu-lhe a necessária ênfase -, se deixou explícito que

«Neste quadro, a circunstância de dois juízes decidirem em sentidos opostos a mesma questão de direito não significa, necessariamente, face à problemática da responsabilidade extracontratual do Estado, que um deles terá agido com culpa, embora se não saiba qual; as mais das vezes, tal disparidade significará apenas que, em ambos os casos, funcionou, de modo correcto, a independência dos tribunais e dos juízes, contribuindo para o progresso do Direito através da dialéctica estabelecida entre opiniões e modos de ver que se confrontam e influenciam reciprocamente, a exemplo do que se dá na doutrina. Poderemos, a esta luz, considerar que, no caso presente, ocorreu tamanha ilegalidade ou erro grosseiro? Claramente não. Primeiro, não há qualquer elemento que permita reconduzir nenhuma das decisões judiciais proferidas, em primeira instância, no processo executivo 360/08.5TbNzr, a uma inconstitucionalidade, qualquer que ela seja. Poderá falar-se de uma ilegalidade? Em certo sentido, sim, pois que, não fosse sustentável a ocorrência de menosprezo por determinados preceitos legais, e jamais a mesma decisão seria alterada pelo Tribunal da Relação, por via de recurso. Porém, a decisão em questão – a admitir-se que ocorreu violação de lei – poderá ser tida por “manifestamente ilegal”? Nem o acórdão que a revogou assim se exprime, nem se me afigura que semelhante conclusão possa ser retirada de nenhum dos pontos do mesmo pronunciamento da segunda instância. Igualmente entendo que não será viável sustentar que a decisão incorreu em grosseiro erro de facto, nem o acórdão que a revogou assim se exprime ou o permite.

Acresce que, agora por via do nº 2 do citado art.º 13º da Lei nº 67/2007 de 31 de Dezembro, “o pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente”. Qual o sentido e alcance deste preceito? Afigura-se-me que ele pretendeu impor que fossem os tribunais, na sequência da normal tramitação do processo, a emitir pronunciamento no sentido de que determinada decisão judicial fosse revertida por manifesta inconstitucionalidade ou ilegalidade, ou por erro grosseiro no julgamento de facto».

Incontroverso e incontrovertível - daí que se persista em tal destaque -, é, pois, que:

«o erro de julgamento deve ser demonstrado no próprio processo judicial em que foi cometido e através dos meios de impugnação que forem aí admissíveis; não na acção de responsabilidade em que se pretenda efectivar o direito de indemnização. Se não se fizer essa prova da revogação da decisão que tenha incorrido em erro judiciário (art.º 13.º, n.º 2, do citado Regime), não será possível considerar verificada a ilicitude, pelo que a acção deve necessariamente improceder. Apesar do seu carácter restritivo, o erro de julgamento deve ser demonstrado no próprio processo judicial em que foi cometido e através dos meios de impugnação que forem aí admissíveis; não na acção de responsabilidade em que se pretenda efectivar o direito de indemnização. Se não se fizer essa prova da revogação da decisão que tenha incorrido em erro judiciário (art.º 13.º, n.º 2, do citado Regime), não será possível considerar verificada a ilicitude, pelo que a acção deve necessariamente improceder. Apesar do seu carácter restritivo, o referido regime não cerceia arbitrária e desproporcionadamente o princípio da responsabilidade do Estado nem o princípio da igualdade consagrados na Constituição (arts. 22.º e 13.º, respectivamente)” (Cf. Ac. STJ de 24-02-2015, Proc. nº 2210/12.9TVLSB.L1.S1, Relator: PINTO DE ALMEIDA).

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Em termos efluentes e convergentes, ao que vem de se apreciar, muito embora, reconhecendo, sempre, que «a questão colocada neste ponto das alegações recursivas, tem sido, entre nós, objeto de longa e intensa controvérsia no sentido de se encontrar um sistema operativo que permita a densificação e articulação dos diversos pressupostos materiais da responsabilidade por erro judiciário prevista no art. 13º da Lei nº 67/2007, de 31.12.

De acordo com o nº 1 desse normativo, a responsabilidade civil (extracontratual) nele prevista é limitada às situações de erro grave do ponto de vista da perceção do direito ou dos factos exigível ao decisor jurisdicional, já que somente poderá caber nos casos em que tal perceção contrarie, de modo manifesto, o sentido normativo da Constituição ou da lei, ou se traduza numa análise grosseiramente errada dos factos.

O erro judiciário pode, assim, consistir num erro de direito ou num erro de facto.

O erro de direito, como refere CARLOS CADILHA [Cfr., por todos, na doutrina, FERNANDES CADILHA, Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais entidades públicas Anotado, pág. 276 e LUÍS FÁBRICA, Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais entidades públicas, pág. 357; na jurisprudência, inter alia, acórdãos do STJ de 24.02.2015 (processo nº 2210/12.9TVLSB.L1.S1) e de 10.05.2016 (processo nº 136/14.0TBNZR.C1.S1), acessíveis em www.dgsi.pt.], “deverá revestir-se de um suficiente grau de intensidade, no sentido de que deverá resultar de uma decisão que, de modo evidente, seja contrária à Constituição ou à lei, e por isso desconforme ao direito, e que não possa aceitar-se como uma das soluções plausíveis da questão de direito. Deverá tratar-se, nestes termos, de uma decisão proferida contra lei expressa e que, em si, represente um comportamento antijurídico suscetível de gerar, nos termos gerais, um dever de indemnizar”.

Pode consistir num erro de qualificação, de subsunção ou de estatuição jurídicas ou ainda na aplicação de uma norma que devesse ser tida como inconstitucional; mas, como sublinha o mesmo autor, “não se basta com a mera constatação, em sede de recurso, por um tribunal superior, de uma errada interpretação e aplicação do direito, tornando-se ainda exigível que se trate de um erro evidente que, por ser evitável segundo a normalidade das coisas, tenha desnecessariamente gerado prejuízos a uma das partes”.

o erro na apreciação dos pressupostos de facto releva se for um erro grosseiro, circunscrevendo-se, como tem sido entendimento da jurisprudência pátria [Cfr., por todos, acórdãos do STJ de 24.02.2015 (processo nº 2210/12.9TVLSB.L1.S1) e de 10.05.2016 (processo nº 136/14.0TBNZR.C1.S1), acessíveis em www.dgsi.pt.], aos casos em que houve um clamoroso erro de avaliação dos meios de prova, erro esse que tanto poderá respeitar a um erro na apreciação das provas, isto é, um erro sobre a admissibilidade e valoração dos meios de provas, como a um erro sobre a fixação dos factos materiais da causa.

Para além dos enunciados pressupostos materiais, o citado normativo, no seu nº 2, exige, como se notou, que o pedido de indemnização se funde na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.

Trata-se de uma opção do legislador ordinário derivada da necessidade de compatibilizar o instituto da responsabilidade civil com a segurança e certeza jurídica do caso julgado.

Assim, ao invés da argumentação expendida pela apelante, o erro de julgamento deve ser demonstrado no próprio processo judicial em que foi cometido e através dos meios de impugnação que forem aí admissíveis; não na ação de responsabilidade em que se pretenda efetivar o direito de indemnização ou em recurso extraordinário de revisão.

Isso mesmo é posto em evidência por CARDOSO DA COSTA [Sobre o novo regime da responsabilidade do Estado por atos da função judicial, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 138º, pág. 163.], quando enfatiza não poder “atribuir-se qualquer relevo a um alegado erro judiciário sem que ele seja reconhecido como tal pela competente instância jurisdicional de revisão. Sem tal reconhecimento, o «erro» (o puro «erro») só o será do ponto de vista ou no plano da análise crítico-doutrinária da decisão, não num plano jurídico-normativo: neste outro plano, o que subsiste é a definição do direito do caso, emitida por quem detém justamente o múnus e a legitimidade para tanto”.

Por isso, acrescenta o mesmo autor, a revogação da decisão danosa há-de constar de uma decisão definitiva, isto é transitada em julgado, e é aí que terá de ser reconhecido o pressuposto substantivo da responsabilidade – “o carácter manifesto do erro de direito ou o carácter grosseiro do erro na apreciação dos factos”. Por outro lado, a revogação deve emanar de um tribunal superior em via de recurso ou do próprio tribunal que proferiu a decisão questionada, quando tal seja admissível (através de reclamação ou pedido de reforma – cfr. art. 616º do CPC).

Igual visão das coisas tem sido acolhida na casuística, mormente do STJ [Cfr., inter alia, acórdãos do STJ de 24.02.2015 (processo nº 2210/12.9TVLSB.L1.S1) e de 10.05.2016 (processo nº 136/14.0TBNZR.C1.S1), acessíveis em www.dgsi.pt.] e do Tribunal Constitucional [Cfr., neste sentido, acórdão n.º 363/2015, publicado no DR 2.ª Série, n.º 186, de 23.09.2015.], que tem defendido constituir evidente ilogismo institucional que uma decisão jurisdicional consolidada, por não ter sido impugnada, pudesse vir a ser posteriormente “desautorizada” por outro tribunal, porventura de diferente espécie ou da mesma espécie mas de grau inferior.

Consequentemente, na esteira desse posicionamento, se não se fizer a prova (como foi o caso), no processo destinado a efetivar a responsabilidade civil, da revogação da decisão que tenha incorrido em erro judiciário, não será possível considerar verificada a ilicitude, pelo que, como bem sentenciou a decisão recorrida, a presente ação teria necessariamente de improceder» (Cf. Ac. RP, de 16-10-2017, Proc. nº 379/16.2T8PVZ.P1, Relator: BALDAIA DE MORAIS).

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Reforçando este dizer, aí, no mesmo Aresto se faz, igualmente, ressumar que:

«A questão da conformidade constitucional da aludida dimensão normativa (art. 13º, nº 2 da Lei nº 67/2007, de 31.12), já foi alvo de apreciação pelo Tribunal Constitucional, mormente no citado acórdão n.º 363/2015, que decidiu “[N]ão julgar inconstitucional a norma do artigo 13.º, n.º 2 do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31/12, segundo o qual o pedido de indemnização fundado em responsabilidade por erro judiciário deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente”.

Sintetizando a argumentação expendida no citado aresto, aí se afirma, em moldes que merecem, também, a nossa concordância, que:

«o artigo 22.º da Constituição da República Portuguesa reconhece aos cidadãos o direito à reparação dos danos que lhes forem causados por ações ou omissões praticadas por titulares de órgãos do Estado e das demais entidades públicas, ou por seus funcionários ou agentes, no exercício das respetivas funções, reparação essa que deve ser integral e assumida solidariamente pela Administração, mas o mesmo artigo 22.º não estabelece os concretos mecanismos processuais através dos quais se há-de exercitar esse direito;

. reconhece-se uma larga margem de conformação ao legislador ordinário, quanto à definição dos pressupostos da responsabilidade do Estado, cabendo-lhe densificar os pressupostos da obrigação de indemnizar, não podendo, porém, restringir arbitrária ou desproporcionadamente o direito fundamental à reparação dos danos consagrado no artigo 22.º da Lei Fundamental;

. sabendo que a efetivação da responsabilidade por erro judiciário implica o reexercício da função jurisdicional relativamente à mesma questão de direito ou de facto, constituirá sempre condição necessária da procedência de uma eventual ação de indemnização, a verificação de que a pretensa decisão danosa incorreu num erro de direito ou de facto, verificação essa que obriga a uma nova apreciação da questão de direito ou de facto;

. o instrumento para superar e corrigir a incorreção de decisões judiciais, tem de ser o recurso (e reclamação);

. é na própria natureza da função jurisdicional e no modo como o respetivo exercício se encontra estruturado – o sistema de recursos e a hierarquia dos tribunais – que se pode encontrar justificação para uma limitação como a estatuída no n.º 2 do artigo 13.º da Lei 67/2007;

. o que está em causa é a racionalidade sistémica e a coerência institucional: uma decisão judicial definitiva sobre uma dada questão, não deve poder ser desconsiderada por outra decisão judicial, uma vez que inexiste qualquer critério jurídico-positivo para fazer prevalecer a segunda sobre a primeira; menos ainda se poderá admitir que a decisão judicial definitiva sobre uma determinada questão adotada por um tribunal superior possa vir a ser desconsiderada pela decisão de um tribunal hierarquicamente inferior;

. a segurança jurídica, associada às decisões judiciais transitadas em julgado, e a autoridade das decisões dos tribunais superiores, inerente à estrutura hierarquizada do sistema judiciário, constituem bens constitucionalmente reconhecidos.

Tendo em conta as enunciadas ideias-força, resulta assim claro que a solução legal que se mostra vertida em letra de forma no citado nº 2 do art. 13º da Lei nº 67/2007 “limita-se a estabelecer que o reexercício da função jurisdicional coenvolvido na reapreciação da decisão judicial danosa se faça com respeito pelas competências e hierarquia próprias do sistema judiciário e de acordo com o seu específico modo de funcionamento: o reconhecimento do erro judiciário implica uma revogação da decisão danosa pelo órgão jurisdicional competente no quadro de um recurso ou de uma reclamação. Ao fazê-lo, o artigo 13.º, n.º 2 do RCEEP não está a interferir com qualquer âmbito de proteção constitucionalmente pré-definido”».

Pelo que, do mesmo modo, com o que se deixa apreciado, quanto a esta questão tutelar da constitucionalidade, terá que ser julgada improcedente a apelação em análise e, em conclusão, confirmada a decisão recorrida.

Consequentemente, nesta dimensão explanada, recebem, do mesmo modo, resposta negativa as questões em 3. consideradas.

*

Podendo, deste modo, concluir-se, sumariando (art. 663º, nº 7, NCPC) - convocando sinopse do anteriormente expresso -, que:

1.

O regime aprovado pela Lei n.º 62/2007, de 31-12, concretiza o princípio consagrado no art. 22.º CRP sobre a responsabilidade do Estado e demais entidades públicas, considerando as suas diferentes funções: administrativa, jurisdicional e político-legislativa.

2.

No que concerne à função jurisdicional, o referido regime distingue os danos ilicitamente causados pela administração da justiça (com destaque para a violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável – art. 12.º) e os danos decorrentes de "erro judiciário", que pode consistir num erro de direito ou num erro de facto (art. 13.º, n.º 1).

3.

O erro de direito deve ser manifestamente inconstitucional ou ilegal: não basta a mera existência de inconstitucionalidade ou ilegalidade, devendo tratar-se de erro evidente, crasso e indesculpável de qualificação, subsunção ou aplicação de uma norma jurídica; o erro de facto deve ser clamoroso e grosseiro, no que toca à admissão e valoração dos meios de prova e à fixação dos factos materiais da causa.

4.

Todavia, o erro de julgamento deve ser demonstrado no próprio processo judicial em que foi cometido e através dos meios de impugnação que forem aí admissíveis; não na acção de responsabilidade em que se pretenda efectivar o direito de indemnização.

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5.

A necessidade de prévia revogação da decisão danosa – prevista agora no art. 13.º da Lei n.º 67/2007 – só se compadece com a via processual adequada para o efeito: o recurso. Tal entendimento é o único que se compagina com a natureza da função judicial, com a organização hierárquica dos tribunais e com o instituto do caso julgado.

6.

Não integra o objecto da acção indemnizatória, emergente de responsabilidade extracontratual do Estado, a apreciação e eventual alteração do já decidido com trânsito em julgado no processo em que, a decisão posta em causa, foi proferida.

7.

Seja à luz do art. 13.º, n.º 2, da Lei n.º 67/2007, seja por aplicação directa do art. 22.º da CRP, a revogação da decisão danosa, pela via do recurso, constitui um pressuposto indispensável à procedência da acção.

8.

O erro de direito, para fundamentar a obrigação de indemnizar, terá de ser «escandaloso, crasso, supino, procedente de culpa grave do errante», sendo que só o erro que conduza a uma decisão aberrante e reveladora de uma actuação dolosa ou gravemente negligente é susceptível de ser qualificada como inquinada de erro grosseiro.

*

III. A Decisão:

Pelas razões expostas, nega-se provimento ao recurso interposto, confirmando-se a decisão proferida.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

*

Coimbra,  28 de Maio de 2019.

António Carvalho Martins ( Relator)

Carlos Moreira

Moreira do Carmo