Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
47/08.9TAAVZ.C3
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: LICENÇA DE USO E PORTE DE ARMA
IDONEIDADE
Data do Acordão: 03/21/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ALVAIÁZERE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 14º A 17º, DA LEI N.º 5/2006, DE 23 DE FEVEREIRO
Sumário: A “idoneidade”, a que aludem os artigos 14º a 17º, da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, traduzirá a capacidade ou qualidade de alguém para ser titular de licença de uso e porte de arma e de quem se espera que, em caso de concessão, dela faça um uso correspondente aos fins legais.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:
No âmbito dos autos de Pedido de Reconhecimento de Idoneidade registados sob o n.º 47/08.9TAAVZ, apensos ao Processo Comum (Tribunal colectivo) n.º 32/92.0TBAVZ, do Tribunal Judicial de Alvaiázere, Secção Única, foi exarado despacho judicial, em 8/9/2011, nos termos do disposto no artigo 14.º, n.ºs 2, 3 e 4, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro (regime jurídico das armas e suas munições), na redacção introduzida pela Lei n.º 17/2009, de 6 de Maio, secundando o parecer do Ministério Público, de 12/7/2011, no sentido de não ser reconhecida idoneidade ao requerente A..., para efeitos de obtenção de licença de uso e porte de arma de caça (classe D). ****
O requerente, não se conformando com o citado Despacho, veio, em 3/10/2011, interpor recurso, defendendo a sua revogação , extraindo da respectiva motivação do recurso as seguintes Conclusões: 1. Nos presentes autos não assiste fundamento para recusar ao recorrente a reabilitação Judicial para efeitos de renovação da licença de uso e porte de arma – classe D.
2. A condenação do ora recorrente pela prática do crime de homicídio apenas é susceptível de indiciar falta de idoneidade, pelo que a sua aplicação não pode ser de modo imediato, tendo que se apurar de modo concreto a falta de idoneidade daquele, o que a sentença sob recurso não fez.
3. O Tribunal a quo apreciou o pedido de idoneidade do recorrente tomando apenas como referência a condenação deste pelo crime de homicídio, apesar de concluir pela reinserção social do mesmo.
4. O crime de homicídio pelo qual o recorrente foi condenado foi praticado em 23/2/1992, há mais de dezanove anos. Em seu abono resulta que:
a) por decisão de 7/5/1997, foi concedida ao recorrente a liberdade condicional sob cláusulas;
b) em 13/7/1997, foram-lhe passados mandados de soltura;
c) foi concedida a liberdade definitiva ao recorrente, por decisão do TEP de Coimbra, de 20/5/2002, reportada a 7/5/2002, por isso há mais de nove anos;
d) ao recorrente foi renovada, sucessivamente, a licença de uso e porte de arma de caça: quando cumpria pena de prisão, já em liberdade condicional e após lhe ser concedida liberdade definitiva, por isso de 1994 a 2008.
e) não constam do CRC do recorrente outras condenações, desde 23/2/1992;
f) está integrado profissional, familiar e socialmente.
5. O juízo de prognose favorável ao ora recorrente quando, então, lhe foi concedida liberdade condicional, bem como quando, então, lhe foi sucessivamente renovada a licença de uso e porte de arma – classe D -, (sempre considerando o lapso de tempo decorrido até ao presente bem como a conduta irrepreensível do arguido), tem que ser tido em conta e considerado para efeitos de avaliar da sua idoneidade para ser possuidor da referida licença.
6. Pois nem os autos principais nem os presentes contêm elementos que permitam concluir que o referido juízo de prognose favorável ao ora recorrente se alterou.
7. O recorrente reúne condições de idoneidade para que lhe seja renovada a licença de uso e porte de arma de caça.
A decisão de que se recorre violou, assim, o disposto nos artigos 28.º, n.º 1, 15.º, n.ºs 1 e 2, 14.º, n.ºs 2 e 3, Da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, alterada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, Lei n.º 17/2009, de 6 de Maio, e Lei n.º 26/2010, de 30 de Agosto.
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Na sequência, o Ministério Público, em 4/11/2011, respondeu ao recurso, defendendo a sua improcedência, apresentando as seguintes Conclusões:
1. O recorrente foi condenado pela prática do crime de homicídio na pena de 12 anos de prisão.
2. A conduta que levou a tal condenação revela que o recorrente manifestou desprezo ou indiferença pela vida de outra pessoa e desrespeitou a regra básica da vivência em sociedade de não matar outro ser humano.
3. O facto de o recorrente ter sido condenado na pena de 12 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio constitui um indício da falta de idoneidade para a concessão de licença de uso e porte de arma.
4. Não obstante o crime de homicídio ter sido praticado pelo recorrente em 23/2/1992, há mais de 19 anos, de lhe ter sido concedida liberdade condicional em 7/5/1997, e liberdade definitiva por decisão de 20/5/2002, não pode olvidar-se o cometimento daquele crime pelo recorrente.
5. Tendo por base tal indício, deve considerar-se que, de facto, o recorrente não reúne condições de idoneidade para que lhe seja renovada a licença de uso e porte de arma da classe D.
6. Não foram violadas quaisquer normas legais, mormente as indicadas pelo recorrente.
7. Razão pela qual o recurso deve ser julgado sem provimento, mantendo-se, na íntegra, a decisão recorrida.
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O recurso, em 30/11/2011, foi admitido.
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 17/1/2012, emitiu douto parecer, no qual concordou com a resposta do Ministério Público em 1ª instância, entendendo que o recurso não merece provimento.
Dado cumprimento ao disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não foi exercido o respectivo direito de resposta.
Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, teve lugar conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II. Despacho Recorrido:

A..., condenado na pena de 12 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio, nos autos a que os presentes correm por apenso, veio requerer que lhe seja reconhecida idoneidade para efeitos de obtenção de licença de uso e porte de arma de caça, classe D, alegando, em síntese, estar integrado familiar, profissional e socialmente.
Foi ouvido o requerente.
Foi solicitado e junto certificado de registo criminal actualizado do arguido (fls. 196 a 200)
A Exma. Magistrada do Ministério Público emitiu parecer, nos termos do artigo 14.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, ex vi do artigo 15.º, n.º 2, da mesma lei, pugnando pelo não reconhecimento de idoneidade ao requerente para os fins pretendidos (fls. 201 e 202).
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Com base no certificado de registo criminal do requerente junto aos autos, nas declarações do requerente e nos depoimentos das testemunhas inquiridas, o Tribunal considera provados os seguintes factos, com relevo para a decisão:
1. A... foi condenado pelos seguintes crimes:
- ofensas corporais com dolo de perigo, praticado em 27 de Maio de 1990, condenado por sentença de 27/5/1990, na pena de 8 meses de prisão;
- receptação, condenado por acórdão de 12/11/1990, na pena de 12 meses de prisão e multa de 5.000$00, ou, em alternativa, 16 dias de prisão;
- homicídio, praticado em 23/2/1992, condenado por acórdão de 16/7/1992, na pena de 12 anos de prisão;
2. O requerente reside com uma companheira e com um filho comum de 13 anos.
3. O requerente exerce a profissão de pedreiro.
4. O requerente é tido como pessoa trabalhadora, não conflituosa, respeitada e respeitadora da comunidade onde se insere.
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O requerente pretende que o Tribunal lhe reconheça idoneidade para obter licença de uso e porte de arma da Classe D.
A licença de uso e porte de arma de tal classe está prevista no artigo 15.º, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, que, em matéria de idoneidade, remete para o artigo 14.º, n.ºs 2 e 3, da mesma lei.
O artigo 14.º, n.ºs 2 e 4, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro (na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 17/2009, de 6 de Maio, e pela Lei n.º 12/2011, de 27 de Abril), veio criar uma reabilitação judicial específica para a obtenção de licença de uso e porte de arma e dispõe o seguinte:
2 – Sem prejuízo do disposto no artigo 30.º da Constituição e do número seguinte, para efeito de apreciação do requisito constante na alínea c) do número anterior, é susceptível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão de licença o facto de, entre outros, ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou ter sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão.
3 – No decurso do período anterior à verificação do cancelamento definitivo da inscrição no registo criminal das decisões judiciais em que o requerente foi condenado, pode este requerer que lhe seja reconhecida a idoneidade para os fins pretendidos, pelo tribunal da última condenação.
4 – O incidente corre por apenso ao processo principal, sendo instruído com requerimento fundamentado do requerente, que é obrigatoriamente ouvido pelo juiz do processo, que decide, produzida a necessária prova e após parecer do Ministério Público.” Assim, antes de mais, importa concretizar o conceito de idoneidade. Desde logo, de acordo com o artigo 14.º, n.º 2, da mencionada Lei, indicia não ter idoneidade aquele a quem tenha sido aplicada medida de segurança ou aquele que tenha sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão.
“O interessado será idóneo quando apresente um comportamento social denotador de ser merecedor da especial confiança que o Estado vai depositar em si. Na negativa: quando o interessado, através do crime por si praticado e pelo qual foi condenado, demonstrou profundo menosprezo pelas regras da sociedade em que se encontra inserido, deverá ser considerado inidóneo para ser detentor de uma arma. Se a violação de tais regras demonstrar que o agente não está preparado para assumir a responsabilidade de deter uma arma, não lhe deve ser reconhecida (ainda que temporariamente) tal faculdade.
O legislador parte, assim, da presunção que a prática de qualquer crime é susceptível de implicar uma diminuição da idoneidade do interessado (…).” (Patrícia Naré Agostinho, “O artigo 14.º do novo regime das armas e munições”, Revista do Ministério Público, n.º 116, Ano 29, Outubro-Dezembro de 2008, páginas 184 e 185).
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O requerente praticou vários crimes dolosos, sendo a última condenação pela prática de um crime de homicídio.
Este crime protege um bem jurídico supremo para qualquer sociedade: a Vida de outra pessoa.
Ao praticá-lo, o agente está, não só a demonstrar desprezo ou indiferença pela vida de outra pessoa, mas também a desrespeitar a mais básica das regras sociais, a que impõe que não se mate outro ser humano.
O legislador erigiu a condenação pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão, como indício de falta de idoneidade para a concessão de licença de uso e porte de arma.
O requerente foi, além do mais, condenado na pena de 12 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio, o que, por si só, é suficientemente indiciador de falta de idoneidade para a concessão de licença de uso e porte de arma.
O facto de o requerente estar familiar, profissional e socialmente inserido é insuficiente para ultrapassar o indício de falta de idoneidade para ter uma arma que decorre, directamente, da prática de um dos mais graves crimes do catálogo: o crime de homicídio.
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Face ao exposto e ao abrigo das disposições legais citadas, decido não reconhecer idoneidade a A... para a concessão de licença de uso e porte de arma da classe D.”
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III. Apreciação do Recurso:
De harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. – Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação (artigos 403.º, n.º 1 e 412º, nº 1 do Código de Processo Penal), as questões a conhecer são as seguintes:
- Saber se o recorrente reúne condições de idoneidade para que lhe seja renovada a licença de uso e porte de arma de caça.
**** Não foi reconhecida ao recorrente a necessária idoneidade para uso e porte de arma de caça, em virtude de ter sofrido condenação pela prática de um crime de homicídio, pelo qual foi condenado na pena de doze anos de prisão. Sustenta-se na decisão recorrida, no seu essencial, queo requerente foi, além do mais, condenado na pena de 12 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio, o que, por si só, é suficientemente indiciador de falta de idoneidade para a concessão de licença de uso e porte de arma.
O facto de o requerente estar familiar, profissional e socialmente inserido é insuficiente para ultrapassar o indício de falta de idoneidade para ter uma arma que decorre, directamente, da prática de um dos mais graves crimes do catálogo: o crime de homicídio.
Entendemos, porém, que a questão não pode ser apreciada tomando apenas como referência determinante a condenação pela prática de um crime, não obstante se atente também à natureza dos elementos objectivos do tipo de ilícito em causa, ainda que se trate de um homicídio.
Se assim fosse, a falta de idoneidade para uso e porte de arma constituiria uma decorrência automática da condenação criminal, o que seria manifestamente inconstitucional.
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O que está em causa nestes autos é saber se o recorrente é pessoa idónea para ter e utilizar uma arma de caça.
Ora, registemos uma evidência: a lei não consagra que o cidadão que cometa um homicídio fique, para sempre, inibido de caçar.
Vejamos: O novo regime das armas e suas munições, aprovado pela Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, estabelece no seu artigo 14.º, n.º 1, que a licença B1 [que habilita o seu portador ao uso e porte das armas da classe B1 e E, e que são, no primeiro caso: a) as pistolas semiautomáticas com os calibres denominados 6,35 mm Browing (.25 ACP ou .25 Auto); b) os revólveres com calibre denominado.32 S & W Long - artigo 6.º, e no caso das armas de classe E: a) os aerossóis de defesa com gás cujo princípio seja a capsaina ou oleoresina de capisicum; b) as armas eléctricas até 200 000 v, com mecanismo de segurança; e, c) as armas de fogo e suas munições, de produção industrial, unicamente aptas a disparar balas não metálicas, concebidas de origem para eliminar qualquer possibilidade de agressão letal e que tenham merecido homologação por parte da Direcção Nacional da PSP - artigo 12º, alínea b), e 3º, nºs 4, alíneas a) e b), e 7, alíneas a), b) e c), todos da mesma Lei], estabelece - dizíamos - que a licença B1 só pode ser concedida a quem seja maior de 18 anos e preencha ainda, cumulativamente, os seguintes requisitos: a) Se encontre em pleno uso de todos os direitos civis; b) Demonstre carecer da licença por razões profissionais ou por circunstâncias de defesa pessoal ou de propriedade; c) Seja idóneo; d) Seja portador de certificado médico; e) Seja portador de certificado de aprovação para uso e porte de armas de fogo. Para efeitos de apreciação do requisito idoneidade estabelecido naquela alínea c), refere o artigo 14º, nº 2, da mesma Lei que, "(...) é susceptível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão de licença o facto de ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou condenação judicial pela prática de crime"; Apreciação que é efectuada, refere-se o mesmo normativo em questão “Sem prejuízo do disposto no artigo 30.º, da Constituição da República Portuguesa e do número seguinte ..."; Este regime agora analisado para os requerentes de Licença B1 é correspondentemente aplicável aos requerentes das Licenças C e D [artigo 15º, nº 1, alínea c), e 2], E [artigo16º, nº 1, alínea c), e 2] e F [artigo 17º, nº 1, alínea c), e 2]; E aquela remissão para o artigo 30.º, da CRP, está relacionada com os «chamados efeitos da condenação», enquanto efeitos legalmente determinados derivados de uma condenação e que se traduz na proibição de que à condenação em certas penas se acrescente, de forma automática, mecânica, e independentemente de decisão judicial, apenas por força da lei, a perda de quaisquer direitos civis, profissionais e políticos (artigo 30.º, nº 4, da CRP).
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A referida proibição decorre do princípio jurídico-constitucional subjacente à ideia político-criminal de retirar às penas qualquer efeito infamante ou estigmatizante, e do dever do Estado de favorecer a socialização do condenado. Contudo, como se decidiu no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 243/2007, “estamos em presença de uma actividade cujo exercício está genericamente dependente de licença, o que significa (…) que não existe um direito constitucional ao uso e porte de armas, incluindo as de defesa, independentemente dos condicionamentos ditados designadamente pelo interesse público em evitar os inerentes perigos, interesse que é acautelado através de autorizações de carácter administrativo condicionadas por ilações extraídas da verificação jurisdicional de comportamentos que a lei qualifica como censuráveis. Com efeito, a lei rodeia com frequência a prática de certas actividades de precauções, traduzidas em licenciamentos, em razão da perigosidade que encerram, e da necessidade de conhecimentos técnicos específicos não comuns à generalidade dos cidadãos, como é o uso de armas de fogo, ou o exercício da condução de veículos automóveis. Nesses casos, é legítimo afirmar que a licença visa excluir a ilicitude de um acto que é genericamente proibido. Na verdade, a necessidade do licenciamento pressupõe mesmo uma proibição geral do exercício destas actividades, como é indiscutivelmente o caso do uso e porte de armas. Nada há, portanto, de ilegítimo no estabelecimento de restrições e condicionamentos diversos à posse de armas por particulares”. Do confronto entre as disposições da Lei nº 5/2006 e da anterior lei das armas aprovada pela Lei n.º 22/97, de 27 de Junho, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 93-A/97, de 22 de Agosto, conclui-se que, se por um lado se alargou o âmbito da não concessão de licença de uso e porte de arma às situações em que o requerente foi condenado judicialmente pela prática de crime (e não apenas pelos crimes elencados no artigo 1º, nºs 2, alínea c) e 3, da anterior Lei das Armas), por outro lado, a condenação pela prática de crime, actualmente, apenas é susceptível de indiciar falta de idoneidade, pelo que a sua aplicação não é assim automática. A susceptibilidade de se mostrar indiciada a falta de idoneidade pela condenação do requerente pela prática de um crime terá, assim, de ser apreciada casuisticamente. Antes de mais importa referir que a expressão “idoneidade” significa aptidão, capacidade, competência; qualidade de quem é idóneo, que significa ser conveniente, adequado, próprio para alguma coisa; que tem condições para desempenhar certos cargos, certas funções ou realizar certas obras; que tem qualidades para desempenhar determinada actividade ou de quem se pode supor honestidade. Assim, na situação que ora nos ocupa, a “idoneidade”, a que aludem os artigos 14º a 17º da Lei nº 5/2006, traduzirá a capacidade ou qualidade de alguém para ser titular de licença de uso e porte de arma e de quem se espera que, em caso de concessão, dela faça um uso correspondente aos fins legais.
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Há assim que apurar, nas circunstâncias concretas do caso presente, se a mera condenação judicial do recorrente pela prática de um crime de homicídio, p. e p. no artigo 131.º, do Código Penal, é susceptível de revelar falta de idoneidade para os fins pretendidos.
Em primeiro lugar, ninguém nega que o arguido cometeu um crime que é o mais grave do nosso ordenamento jurídico, ao retirar a vida a um ser humano.
É escusado tecer mais considerações a esse respeito, pois tal é um dado adquirido.
Em segundo lugar, a pena aplicada ao arguido (ora recorrente) por acórdão proferido em 16/7/1992 respeita a factos ocorridos em 23/2/1992, ou seja, há mais de vinte anos, numa altura em que já era detentor de arma de caça.
Em terceiro lugar, em 7/5/1997, decorridos que foram pouco mais de cinco anos sobre a prática dos factos, foi concedida ao recorrente a liberdade condicional sob cláusulas, tendo sido passados, em 13/7/1997, mandados de soltura.
Em quarto lugar, foi concedida, em 20/5/2002, ao recorrente a liberdade definitiva.
Em quinto lugar, os factos que levaram à prisão do recorrente, ocorridos na sequência de uma discussão em que a honra da sua irmã estava a ser posta em causa por frases proferidas por um seu amigo (a vítima mortal), com quem convivia regularmente, tiveram como causa directa o manuseamento de uma navalha, com o comprimento total de 22,5 cm, trazida habitualmente pelo arguido para a utilizar em refeições, sendo certo que ambos se encontravam, na altura, em estado de euforia, provocado pelo álcool, sem esquecer que o recorrente ficou pesaroso pelo sucedido, assim como foi considerado como pessoa com bom comportamento no trabalho, educado e pacífico (factos provados do acórdão proferido nos autos principais – fls. 128 a 132).
Em sexto lugar, a licença de uso e porte de arma de caça do recorrente foi renovada sucessivamente, entre 1994 e 2008, ou seja, quando cumpria pena de prisão, já em liberdade condicional e após lhe ser concedida liberdade definitiva.
Em sétimo lugar, não constam do CRC do recorrente condenações, desde 23/2/1992.
Em oitavo lugar, o recorrente está integrado profissional, familiar e socialmente.
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Aqui chegados, importa retirar as devidas conclusões.
Pois bem, pese embora a gravidade dos factos que levaram à prisão do ora recorrente e que motivaram uma pena de 12 anos de prisão, o que é certo é que lhe foi concedida a liberdade condicional na data acima referida, o que só pode significar que o arguido beneficiou, não muito tempo após a prática dos factos, de um juízo de prognose favorável.
Se, então, se entendeu ser possível formular um juízo de prognose favorável quanto ao comportamento futuro do arguido, o qual acabou por se justificar, face aos dados constantes dos autos, não existem elementos que permitam concluir que aquele juízo de prognose favorável se alterou e que o recorrente não reúne actualmente condições de idoneidade para que lhe possa ser concedida a pretendida licença de uso e porte de arma de caça. Aliás, a razão de a reabilitação judicial a que alude o artigo 14.º, n.º 3, da Lei nº 5/2006, dever ser apreciada pelo tribunal da última condenação, prende-se, em nossa opinião, precisamente com o facto de este tribunal estar mais habilitado para averiguar da reinserção social do ex-condenado. O recorrente praticou, há mais de vinte anos, um crime muito grave (em circunstâncias bem delimitadas), cumpriu parte da pena na prisão, beneficiou de liberdade condicional, aproveitou-a, interiorizou o desvalor da sua conduta, é um homem bem inserido na sociedade.
Já em 1992, era considerado pessoa pacífica e de bom comportamento e, actualmente, revela ser respeitador das instituições. O seu comportamento, nos presentes autos, é, aliás, demonstração disso.
Na verdade, o recorrente apresentou, em 8/7/2008, requerimento a fim de lhe ser reconhecida idoneidade para os efeitos mencionados, o que veio a ser negado.
Tal deu origem a um primeiro Acórdão deste TRC, datado de 9/9/2009 (fls. 94 a 109), relatado pelo Exmo. Desembargador Barreto do Carmo, o qual considerou nulo o parecer do Ministério Público e, consequentemente, a decisão homologatória que para ele remeteu, o que deu origem a que os autos baixassem à 1ª instância.
Proferida que foi nova decisão, de novo a negar o pretendido pelo ora recorrente, veio a ser proferido um segundo Acórdão deste TRC, datado de 2/3/2011 (fls. 165 a 167), relatado pelo Exmo. Desembargador Belmiro Andrade, o qual declarou nula a audição do requerente realizada pelo Ministério Público, com a consequente anulação de todos os termos posteriores do processo, tendo sido ordenada a sua repetição.
Em resumo, quase quatro anos depois de dar entrada ao seu requerimento, o ora recorrente continua a pretender, com estoicismo e sem acrimónia, como se exige a um cidadão cumpridor das leis, que o Tribunal se pronuncie, em termos definitivos, sobre a sua pretensão, avançando com argumentos válidos.
Salvo o devido respeito, não faz sentido que não se reconheça, agora (ano de 2012), idoneidade ao recorrente, tanto mais que o mesmo sempre viu renovada, ao longo dos anos, a respectiva licença, sendo certo que nada em seu desabono existe nos autos após 1992.
Nestes termos e pelas razões expostas, entende-se que não há fundamento para se recusar ao recorrente a reabilitação judicial para os fins pretendidos.
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D – Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar procedente o presente recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida, reconhecendo-se ao recorrente condições de idoneidade para os efeitos previstos no artigo 15.º, da Lei nº 5/2006 de 23.2. Sem tributação.
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José Eduardo Martins (Relator)
Maria José Nogueira