Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1288/11.7TBVIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: CONTRATO DE CRÉDITO AO CONSUMO
FIADOR
AVALISTA
ENTREGA DE EXEMPLAR DO CONTRATO
NULIDADE
ABUSO DE DIREITO
LIVRANÇA
PREENCHIMENTO
EMBARGOS DE EXECUTADO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 02/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - VISEU - JUÍZO EXECUÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: DL Nº 359/91 DE 21/9, DL Nº 133/2009 DE 2/6, ARTS.334, 342 CC
Sumário: 1.Nos contratos de crédito ao consumo deve ser entregue um exemplar do contrato a todos os contraentes, abrangendo os garantes, porque a entrega é essencial para se conhecer o alcance e os termos da responsabilidade assumida.

2. A inobservância da entrega de um exemplar do contrato ao fiador gera a nulidade da fiança.

3. Para que a financiadora possa invocar o abuso de direito decorrente da invocação da falta de entrega de um exemplar do contrato, será necessário, para além do mais, a boa-fé por parte da financiadora.

4. No âmbito das relações imediatas, ao executado é dada toda a liberdade para discutir a relação subjacente.

5.Nos embargos de executado (tal como nas ações de simples apreciação negativa), as regras que presidem à distribuição do ónus da prova, e que se baseia em normas de direito substantivo, não se alteram (não se modificando pela diferente posição ocupada pelo credor e devedor nos autos - como autor ou réu, ou pelo executado/embargante e pelo exequente/embargado): o titular do direito continua sempre a ter de provar os factos que o constituem, enquanto o titular do dever correspondente tem o de provar os factos que impedem, modificam ou extinguem os feitos dos primeiros.

6. Se os embargantes impugnam o montante aposto na letra por excessivo, ao exequente incumbe a alegação de como chegou a tal valor, enquanto ao executado incumbe a prova do teor do pacto de preenchimento bem como de que o preenchimento foi efetuado em contrário do acordado.

Decisão Texto Integral:

 

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I - RELATÓRIO

MV (…) e MC (…) vêm, por apenso à execução que contra si é deduzida por S (…) – Instituição Financeira de Crédito, S.A., deduzir oposição à execução mediante embargos de executado,

Alegando em síntese,

1. Quanto à executada MC (…):

desconhece o conteúdo e condições do contrato subjacente à emissão da livrança exequenda, as quais nunca lhe foram comunicadas, impugnando a própria livrança por ter sido apresentada apenas uma fotocópia;

nunca lhe foi prestada qualquer informação acerca do contrato, designadamente esclarecendo-a quanto às suas características e eventuais obrigações decorrentes do seu incumprimento, desconhecendo, aliás, o que é uma livrança e quais os seus efeitos jurídicos;

não lhe foi entregue qualquer cópia do contrato, sendo, assim, este nulo e, por maioria de razão, a própria livrança porque emitida na sua sequência;

2. Quanto ao executado MV (…):

cumpriu todas as obrigações para si emergentes daquele contrato até junho de 2010, no valor global de 4.249,63€, tendo procedido à entrega do veículo à exequente no dia 1 de julho de 2010, com um valor comercial de 9 mil euros;

na sequência de pressões do exequente, o executado veio ainda a proceder ao pagamento de mais 22 prestações no valor de 150€, num total de 3.300,00€.

Ante este quadro, entendem os embargantes que a exequente age em abuso de direito, pois que tendo em conta o valor do veículo (9 mil euros), as prestações pagas na vigência do contrato (4.249,63€) e as prestações entretanto pagas pela mãe/aqui embargante (3.300,00€) consideram nada dever à exequente, sendo o preenchimento da livrança abusivo e, portanto, a quantia nela aposta inexigível.

Concluem que, na procedência dos embargos, deve a execução ser extinta.

O exequente apresenta contestação alegando, em síntese:

 a embargante interveio no referido contrato na qualidade de avalista do mutuário, declarando que aceitava ser avalista e ter sido informada do montante da dívida bem como das cláusulas do contrato, que declarou conhecer e aceitar, autorizando, desde logo, que, em caso de incumprimento, a exequente poderia proceder à cobrança dos valores em dívida e à execução cambiária, preenchendo a livrança em conformidade;

o mutuário aceitou estabelecer a favor da exequente reserva de propriedade sobre o veículo transmitido;

dado que o mutuário não cumpriu com as suas obrigações, incumprindo o pagamento integral da 13.ª prestação, vencida em 28.01.2010, nem as subsequentes, em 08.06.2010 interpelou os executados para procederem ao pagamento das quantias em dívida, concedendo-lhes um prazo de 8 dias para a regularização das importâncias devidas, findos os quais consideraria a mora convertida em incumprimento definitivo;

o veículo entregue no dia 01.07.2010 foi vendido pelo melhor preço conseguido de 4.800,00€, o qual foi deduzido à quantia em dívida;

porque o valor da referida venda, depois de deduzidas as despesas com a mesma, não foi suficiente para liquidar o montante devido, procedeu ao preenchimento da livrança pelo valor em dívida de 15.561,59€, correspondente à soma e subtração dos seguintes valores: 1.510,81€ referente a prestações vencidas e não pagas, 17.224,65€ de prestações vencidas em virtude da resolução do contrato e respetivos juros moratórios e imposto de selo; 1.100€ a título de despesas de contencioso e 74,21€ referente a imposto de selo com o preenchimento da livrança; a estes valores foi subtraído 4.800€ do valor da venda do veículo e 250€ pagamento efetuado a 28.06.2010;

já a presente ação se encontrava pendente quando foi contactada pela embargante a solicitar o pagamento da dívida em prestações mensais, o que foi aceite e no âmbito do qual foram pagas 24 prestações no valor global de 3.600,00€, do que já foi dado conhecimento nos autos principais a 11.06.2014;

relativamente à violação do dever de comunicação, refere que nunca a embargante revelou qualquer dúvida e ou solicitou qualquer esclarecimento sobre o contrato, sendo certo que o contrato lhe foi facultado para leitura e análise;

a embargante, enquanto avalista, não podia invocar quaisquer vícios de vontade perante a exequente, porque fora do âmbito das relações imediatas, na medida em que não é parte na relação subjacente;

caso assim não se entenda, sempre considera que a embargante atua em abuso de direito pois que depois do incumprimento contactou a exequente no sentido de obter um acordo de pagamento em prestações ao abrigo do qual liquidou 24 prestações de 150€ cada.

Conclui pela improcedência dos embargos.

Realizada audiência final, foi proferida sentença a julgar os embargos improcedentes, determinando o prosseguimento da execução.


*

Não se conformando com tal decisão, os embargantes dela interpõem recurso de apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões:

(…)


*

A embargada apresentou contra-alegações no sentido da improcedência do recurso.

Cumpridos que foram os vistos legais ao abrigo do nº2 do artigo 657º CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.  


*
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo –, as questões a decidir são as seguintes
1. Impugnação da matéria de facto.
2. Nulidade por falta de entrega de um exemplar do contrato e falta de comunicação das cláusulas
3. Se a invocação da nulidade por parte da fiadora constitui um abuso de direito
4.  Preenchimento abusivo.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
1. Impugnação da matéria de facto

(…)


*

A. Matéria de facto.

São os seguintes os factos dados como provados na sentença recorrida, com as alterações aqui introduzidas na sequência da decisão proferida quanto à impugnação dos apelantes:

1) A exequente S (…)– Instituição Financeira de Crédito, SA deu à execução a livrança constante a fls. 58, no valor de 15.561,69€, com data de emissão em 2010.12.03, em Lisboa, com data de vencimento em 2010.12.24, onde figura como sacadora a exequente e subscritor o executado MV (…)

2) No verso da referida livrança e sob os dizeres: “bom por aval ao subscritor”, consta a assinatura da aqui embargante MC (…) – fls. 58/verso.

3) Mostra-se junto aos autos a fls. 31 um documento intitulado de contrato de crédito n.º642889, onde figuram como contraentes a exequente, como mutuante, o executado MV (…) como mutuário e a executada MC (…) e J (…) como avalistas.

4) Decorre de tal documento, além do mais que aqui se dá por integralmente reproduzido, o seguinte: “(…) Condições Particulares (…) Fornecedor do Bem: Stand V (...) de (…) (…) Descrição do Bem: Viatura ligeira, marca Seat, modelo Ibiza, 1.9 TDI FR, matrícula (...) XJ; Valor do Bem: 13.500,00 EUR (…) Taxa Nominal: 11,9998% (…) TAEG: 13.92%; Número de Prestações: 84; Periodicidade e Vencimento: Mensal postecipadas, com vencimento da 1.ª prestação em 28.01.2009; Montante das Prestações: 84 prestações fixas de 243,30 EUR (…) Total do Financiamento e Encargos: 20.658,20EUR; Garantias: livrança em branco subscrita por cliente, avalista e reserva de propriedade (…) Avalistas. Declaro (amos) que aceito (amos) ser avalista (s) do cliente (s) deste empréstimo e de ter sido informado (s) por este do montante da dívida a contrair, bem como das cláusulas deste contrato, que declaro (amos) conhecer e aceitar, avalizando, para o efeito, a Livrança de Caução em branco anexa ao contrato, podendo a S (…) – Instituição Financeira de Crédito, SA em caso de incumprimento do cliente, proceder à cobrança dos montantes em dívida e à execução cambiária no caso de incumprimento, para o que expressamente dou/damos o meu/nosso acordo que a S(…) a preencha, designadamente no que se refere à data de vencimento, local de pagamento e aos valores, até ao limite das responsabilidades assumidas pelo cliente perante a S (…), por força do presente contrato, e em dívida na data de vencimento, acrescidos de todos e quaisquer encargos com a selagem dos títulos (…) Lisboa, 4 de Dezembro de 2008” – fls. 31.

5) Esse documento mostra-se assinado por ambos os executados, o executado MV (…) na qualidade de cliente e pela executada MC (…), na qualidade de avalista, a par de J (…) que também o subscreveu na mesma qualidade de avalista – fls. 31.

6) Por conta do referido contrato, foi pago à exequente a quantia de 4.249,63€ entre fevereiro de 2009 e junho de 2010 e a quantia 3.600€, por conta do acordo celebrado posteriormente à resolução do contrato, num total de 24 prestações, entre março de 2012 e fevereiro de 2013.

7) Por cartas datadas de 08.06.2010, a exequente interpelou os embargantes para procederem ao pagamento do valor global de 1.615,03€ no prazo de 8 dias, sob pena de considerar o contrato n.º642889 resolvido – fls. 32 a 34.

8) O embargante entregou à exequente o veículo de marca Seat, modelo Ibiza, 1.9 TDI FR, matrícula (...) XJ, no dia 01.07.2010 – fls. 14/verso.

9) A exequente vendeu o veículo de marca Seat, modelo Ibiza, 1.9 TDI FR, matrícula (...) XJ, pelo preço de 4.800,00€ - fls. 34.

10) Por cartas datadas de 03.12.2010, a exequente interpelou os embargantes para procederem ao pagamento do valor global de 15.561,59€, aposto na livrança, até ao dia 24.12.2010, sob pena de imediata execução judicial – fls. 35/verso e 36.

11) Mostra-se junta aos autos a fls. 15/verso carta da exequente à embargante, datada de 15.02.2012, além do mais que se dá por reproduzido, com o seguinte teor: “Assunto – Acordo de Pagamento – Contrato de Crédito n.º642889. Exma. Senhora, Na sequência do que nos solicitou, cumpre-nos informar que a S (…) a título excecional aceita um acordo judicial de 60 prestações, nas seguintes condições: - 24 prestações mensais e sucessivas de 150,00€. Mais – 36 prestações mensais e sucessivas de 350,00€; - Início dos pagamentos: Imediato (…)”.

12) Mostra-se junta aos autos a fls. 35/verso fotocópia de um outro contrato de crédito celebrado entre a exequente e os embargantes, datado de 24.01.2008, onde o embargante MV (…)figura como mutuário e a embargante MC (…) como avalista e mediante o qual a exequente mutuou a quantia de 4.522,50€ para aquisição da viatura de marca Opel, modelo Corsa B Diesel, com a matrícula (...) IX.

13) A embargante não se deslocou às instalações da exequente para assinar o contrato e a livrança.

14) Na data em que foi entregue à exequente, o veículo encontrava-se em bom estado de conservação.

15) O valor comercial do veículo era de, pelo menos, 8 mil euros à data da sua entrega à exequente.


*

B. O Direito

1. Nulidade por falta de entrega de um exemplar.

Tendo em atenção que o contrato foi celebrado a 4 de dezembro de 2008, que o regime estatuído no DL 133/2009, de 2 de junho apenas entrou em vigor no dia 1 de junho de 2009, e que o regime anterior não consagrava a obrigatoriedade de entrega de uma cópia do contrato ao avalista, o juiz a quo considerou que a embargada não se encontrava obrigada a entregar uma cópia do contrato à embargante/avalista, sendo que, ainda que assim não fosse, sempre a nulidade daí decorrente teria de ser desatendida por força do disposto no artigo 334º do Código Civil.

Insurgem-se os embargantes contra o decidido, sustentando que:

1. a obrigatoriedade de entrega de uma cópia já se impunha à data da celebração do contrato de financiamento em causa, uma vez que o DL 133/2009 veio transpor a Diretiva Comunitária nº 2008/48 CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2008;

2. o abuso de direito só deve funcionar em situações de emergência, para evitar violações chocantes do Direito o que não seria o caso.

Cumpre apreciar.

Quanto à alegada data da entrada em vigor da Diretiva Comunitária nº 2008/48 CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2008, é a mesma irrelevante, porquanto as Diretivas da União Europeia, sendo vinculativas para os seus Estados Membros, não são de aplicação direta (ao contrário dos Regulamentos), encontrando-se a sua aplicação dependente de transposição para o direito interno de cada um dos Estados Membros (art. 288º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia).

Temos, assim que, o direito aplicável à celebração do contrato de financiamento em apreço é o constante do DL nº 359/91, de 21 de Setembro (o DL 133/2009, apenas entrou em vigor no dia 1 de julho de 2009, nos termos do seu artigo 37º), dispondo-se então, no seu artigo 6º, nº1, que “o contrato de crédito deve ser reduzido a escrito e assinado pelos contraentes, sendo obrigatoriamente entregue um exemplar ao consumidor no momento da respetiva assinatura”.

A falta de cumprimento desta obrigação de entrega de um exemplar do contrato ao consumidor no momento da respetiva assinatura acarreta a nulidade do contrato, invocável pelo consumidor, presumindo-se que o incumprimento de tal obrigação é imputável ao credor (artigo 7º, nºs. 1 e 4). 

Discutindo-se, na vigência do regime anterior ao DL 133/2009, a questão de saber se a obrigatoriedade de entrega de uma cópia do contrato se estendia também aos fiadores, já então era doutrina dominante, no que era acompanhada por alguma jurisprudência[1], que a entrega do exemplar ao tempo da assinatura devia abranger os garantes.

Como então sustentava Fernando Gravato Morais[2], apesar de a fiança não configurar no quadro legal vigente um contrato de crédito ao consumo, a entrega de um exemplar é fundamental para quem assume a posição de garante, pois só assim fica a conhecer o alcance e os termos da sua responsabilidade, sendo tal orientação ainda o reflexo da caraterística da acessoriedade da fiança.

Daí que a doutrina[3] tem vindo a considerar que a redação o nº2 do art. 12º do DL 133/99, de 2 de junho, veio precisamente esclarecer que deve ser entregue um exemplar do contrato a todos os contraentes, abrangendo os garantes, e ainda que não sejam parte no contrato, precisamente porque tal entrega se mostra essencial para se conhecer o alcance e os termos da responsabilidade assumida.

A inobservância da entrega de um exemplar ao fiador gera a nulidade da fiança (artigo 7º, nº1, do DL 359/91), inobservância que se presume imputável ao credor (artigo 6º, nº4).

No caso em apreço, não se provou (nem sequer foi alegado) que aquando da subscrição do contrato de crédito e fiança tenha sido entregue um exemplar do contrato de financiamento à fiadora MC (…), prova que competia à exequente/financiadora[4].

2. Invocação da nulidade por parte da fiadora – abuso de direito

Vejamos agora se a invocação de tal nulidade por parte da fiadora, no caso em apreço, constituirá um abuso de direito como é reconhecido pela sentença recorrida.

A embargada defende existir abuso de direito por parte da embargante/fiadora MC (…) ao invocar a nulidade decorrente da não entrega à mesma de um exemplar do contrato, com base na seguinte factualidade: a atuação da executada perante a exequente, na medida em que, tendo pago 12 prestações previstas no contrato, contatou com a exequente no sentido de obter um acordo de pagamento em prestações, ao abrigo do qual liquidou mais 24 prestações de 150,00 € cada, no montante global de 3.600,00 €, atitude essa que fez confiar a exequente em que a mesma jamais pugnaria pela invocação de quaisquer nulidades.

 É certo que, tendo encetado negociações com a financiadora no sentido de chegar a um acordo de pagamento, negociações que terão já ocorrido em 2012 na pendência da execução apensa, a executada/fiadora veio a proceder ao pagamento de 24 prestações mensais, no valor de 3.600,00 € (até ter sido alertada pela mandatária que o valor que lhe estavam a cobrar não estaria correto e que nele não teria sido deduzido o valor do veículo já entregue).

Contudo, esta matéria é claramente insuficiente para preencher o invocado abuso de direito por parte da fiadora/avalista na invocação da nulidade decorrente da falta de entrega de um exemplar do contrato aquando da sua subscrição[5].

Tem-se entendido que, se apesar da nulidade do contrato, o montante do crédito vier a ser concedido ao consumidor e este reagir posteriormente em conformidade com uma celebração válida do contrato, se admite que o financiador possa recorrer à figura do abuso do direito, se se verificarem os pressupostos do artigo 334º do CC.

Nos termos do artigo 334º do CC, considera-se “ilegítimo o exercício de um direito se o titular exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bens costumes ou pelo fim social e económico”.

Entendendo-se a boa-fé como norma de conduta, significa que as pessoas se devem comportar, no exercício dos seus direitos e deveres, com honestidade, correção e lealdade, de modo a não defraudar a legítima confiança ou expectativa dos outros.

Um dos comportamentos que tem vindo a ser considerado como uma das variantes do abuso de direito, por violação manifestamente excessiva dos limites impostos pelo princípio da boa-fé, é o denominado venire contra factum proprium.

A locução venire contra factum proprium exprime a reprovação social e moral que recai sobre aquele que assuma comportamentos contraditórios.

 “Trata-se aqui da proibição da conduta contraditória, isto é, de impedir uma pretensão incompatível ou contraditória com a conduta anterior do pretendente. Parte-se de uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é de molde a criar noutrem uma situação objectiva de confiança, ou seja, a convicção de que aquele sujeito jurídico se comportará, no futuro, coerentemente com aquela conduta. É necessário que, com base na situação de confiança criada, a contraparte tenha tomado disposições ou organizado planos de vida de que lhe resultarão danos se a sua confiança legítima vier a sair frustrada[6]

Segundo Baptista Machado, os efeitos do abuso do direito nesta especial modalidade exigem a verificação dos seguintes pressupostos:

1 – Uma situação objetiva de confiança: uma conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura;

2 – Investimento na confiança: o conflito de interesses e a necessidade de tutela jurídica surgem quando uma contraparte, com base na situação de confiança criada, toma disposições ou organiza planos de vida de que lhe surgirão danos se a confiança legítima vier a ser frustrada;

3 – Boa-fé da contraparte que confiou: a confiança do terceiro ou contraparte só merecerá proteção jurídica quando de boa-fé e tenha agido com cuidado e precaução usuais no tráfico jurídico[7].

Como refere Menezes Cordeiro[8], o abuso de direito na modalidade de “venire contra factum proprium”, postula duas condutas da mesma pessoa, lícitas em si mas diferidas no tempo. O primeiro – o factum proprium – é, porém, contrariado pelo segundo – o venire. Só se considera como “venire contra factum proprium” a contradição direta entre a situação jurídica originada pelo factum proprium e o segundo comportamento do autor.

Contudo, o venire contra factum proprium só é proibido em circunstâncias especiais – como afirma Paulo Mota Pinto, no plano dogmático não se poderá afirmar um princípio geral de proibição do comportamento contraditório: “fora dos casos em que assumiu compromissos negociais, o indivíduo é livre de mudar de opinião e de conduta[9]”.

E, em igual sentido, de inexistência, na Ciência do Direito e nas ordens jurídicas por ele informadas, de uma proibição genérica de contradição, se pronuncia Menezes Cordeiro[10].

O venire aparece assim ligado fundamentalmente à proteção da confiança: um comportamento não pode ser contraditado quando tenha suscitado a confiança dos sujeitos envolvidos.

“A confiança digna de tutela tem de radicar em algo objetivo: numa conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura[11]”.

Segundo Menezes Cordeiro, são quatro os pressupostos da proteção da confiança, ao abrigo da figura do “venire contra factum proprium”:

1. Uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium);

2. Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis;

3. Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma atividade na base do, factum proprium, de tal modo que a destruição dessa atividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara;

4. Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela proteção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível.[12]

A concretização do abuso de direito não se basta com a conduta omissiva do titular do direito que não o exerceu durante muito tempo. É necessário que se verifiquem ainda os demais requisitos já assinalados.

No caso em apreço, falta notoriamente um dos requisitos essenciais para a verificação do abuso de direito nesta modalidade: o investimento na confiança. Ou seja, ainda que se considere que a ausência de alegação de tal nulidade por parte da fiadora pode ter criado na financiadora exequente a expetativa que já não o iria fazer, não é alegado por parte do exequente que, com base nessa confiança de que a executada jamais iria invocar tal nulidade, tenha a exequente desenvolvido alguma atividade ou omitido algum ato.

Trata-se de matéria de facto que teria de ser alegada por quem invoca o abuso de direito como meio de paralisar o seu exercício pela contraparte.

Como se afirma no TRP de 21-04-2016, “sendo a nulidade um vício cognoscível a todo o tempo, em que a passagem do tempo não interfere com a operatividade da omissão ocorrida, e emergindo a nulidade da atuação imputável ao financiador, cujo investimento no negócio é, afinal, contemporâneo da nulidade, dificilmente se poderá encontrar, da parte do financiador, um «investimento da confiança», decorrente da inércia da contraparte na arguição da nulidade, que justifique a proteção do financiador, em detrimento do consumidor, derrogando-se os mecanismos de proteção do consumidor à luz do padrão da boa-fé[13]”.

Por outro lado, como salienta Jorge Morais Carvalho, será necessário que a parte que confia esteja de boa-fé:

“Esta faculdade apenas deve ser conferida ao financiador em situações extremas e em que a sua conduta aquando da celebração do contrato e da inobservância da forma e das formalidades legalmente prescritas não tenha sido, por sua vez, atentatória da boa-fé. Isto porque a nulidade do contrato também constituiu uma sanção para o financiador, não podendo depois vir a ser beneficiado pela circunstância de o consumidor ter agido como se o contrato fosse válido, em especial nos casos em que desconhece essa invalidade no momento da celebração do contrato[14]”.

A invocação da tutela da confiança implica que quem confie esteja numa situação de respeito pelos valores decorrentes da boa-fé, para que, precisamente, possa invocar o incumprimento desses mesmos deveres, pela parte contrária em seu benefício[15].

No caso em apreço, não só a financiadora não alega, sequer, que tenha sido entregue um exemplar do contrato à fiadora aquando da sua assinatura (limitando-se a afirmar que “se a fiadora assinou o contrato, como reconhece, é porque evidentemente, o mesmo contrato lhe foi entregue para assinar. Se assim é, não podia a embargante deixar de tomar conhecimento do seu conteúdo”), como, tendo o mutuário deixado de pagar as prestações mensais em janeiro de 2010, nas cartas que envia ao mutuário e à fiadora, datadas de 03.12.2010, se limita a comunicar-lhes que vai preencher a livrança pelo valor de 15.561,59 € e que “o seu vencimento ocorrerá aos 24-12-2010, a qual deverá ser paga, sob pena de imediata execução judicial”. Refere ainda em tal carta que “caso V.Excia ainda se encontre na posse do veículo, admite recebê-lo, sem ónus ou encargos com exceção da reserva de propriedade que sobre ele incide, desde que se encontre em normal estado de conservação e abater o valor que for apurado na venda, ao valor que se encontra inscrito na livrança”.

Ou seja, não só, em tais missivas, a exequente não explicita como chegou ao valor de 15.561,59 € que apôs na livrança como correspondendo ao valor em dívida, como dá a entender que o valor do veículo (que à data havia já sido entregue à demandada) não teria sido ainda deduzido.

E, ao instaurar a presente execução contra o mutuário e a fiadora, também não esclarece como chegou a tal valor, limitando-se a escrever, na parte do formulário destinado à descrição dos factos, “Os factos constam exclusivamente do título executivo (artigo 810º, nº2, alínea b), do CPC)”, numa atitude de total desrespeito pelo direito à informação por parte do mutuário e da fiadora.

É certo que a financiadora tem o direito de a preencher em conformidade com o acordo de preenchimento, mas o mutuário e a fiadora têm igualmente o direito de aceder aos cálculos efetuados pela financiadora através dos quais chega ao valor que apõe na livrança como correspondendo aos valores em dívida.

Daí que, perante a ausência de tais informações e à circunstancia de, tendo já pago cerca de 4.200,00 € e tendo já entregado a viatura à S (…) ainda lhe estarem a cobrar cerca de 15.500,00 €, quando lhes havia sido concedido um empréstimo de 13.500,00 €, não restava aos embargantes outra via senão defenderem-se invocando, por parte da fiadora, a nulidade derivada da falta de entrega de um exemplar e a falta de comunicação de cada uma das clausulas do mesmo e, por parte do mutuário, impugnando o montante aposto na livrança, desde logo por nele não ter sido deduzido o valor da viatura.

Ou seja, para além de não se encontrar alegada qualquer factualidade subsumível a um eventual investimento da confiança por parte da financiadora, o circunstancialismo que rodeia quer a celebração do negócio quer a sua resolução e o preenchimento da livrança, não nos permite afirmar que a aquela esteja de boa-fé, face à falta de transparência da sua parte e à omissão de informação relevante quer perante o mutuário, quer perante a fiadora.

Não se reconhecem, assim, preenchidos os requisitos necessários para ter por verificado um abuso de direito por parte da fiadora na invocação da nulidade do contrato.

Assim sendo, na falta alegação e prova da entrega de um exemplar à fiadora aquando da subscrição do contrato, considera-se nula a fiança, o que acarreta a nulidade da obrigação cartular relativamente a si, e a consequente extinção da instância executiva.

3. Preenchimento abusivo da livrança

Nas conclusões 39º a 53º das suas alegações de recurso, os embargantes/apelantes alegam que a livrança não foi preenchida de acordo com o pacto de preenchimento, porquanto o vencimento imediato das prestações não abrange o valor nelas incluído a título de juros remuneratórios, valor ao qual haveria ainda de deduzir o valor do veículo, no montante de 9.000,00 €.

Relativamente a tais questões, responde a apelada sustentando que, não tendo os embargantes impugnado a questão da inclusão dos juros remuneratórios em sede de embargos, tal direito encontrar-se-ia vedado em sede de recurso, devendo as alegações ter-se por não escritas relativamente a tal matéria.

Antes de mais, vejamos se a este tribunal se encontra (ou não) vedada a apreciação da justeza do montante aposto na livrança pela financiadora, nomeadamente na parte em que nela incluiu a totalidade das prestações vincendas acordadas e outras despesas que enumera na liquidação a que procede na sua contestação aos embargos.

Tendo o mutuário deixado de pagar as prestações que se foram vencendo posteriormente a janeiro de 2010, por cartas datadas de 08 de junho de 2010 a financeira interpelou o mutuário e a fiadora para procederem ao pagamento das prestações em dívida no prazo de 8 dias sob pena de resolução do contrato; mais lhes comunicou que “na falta do pagamento do valor reclamado ou da entrega da viatura, irão comunicar à Ferrol Serviços, Lda., os vossos dados pessoais existentes nos nossos ficheiros (…), na estrita medida do necessário para aquela empresa poder assegurar o levantamento do incumprimento financiado ou cobrar o incumprimento contratual em aberto nos nossos livros” (fls. 32).

A 01 de julho de 2010, os embargantes procederam à entrega da viatura à financiadora/embargada.

Por cartas datadas de 03 de dezembro de 2010, a financeira informou os aqui embargantes de que em tal data haviam completado o preenchimento da livrança, no valor de 15.561,59 € e que o seu vencimento ocorreria a 24.12.2010, data até à qual deveria ser paga, sob pena de imediata execução judicial.

Tendo sido concedido ao embargante um empréstimo para aquisição de um veículo no valor de 13.500,00 €, e tendo este procedido ao pagamento de 12 prestações num total de 4.249,63 €, a exequente/embargada recebeu ainda o veículo que revendeu por 4.800,00 €; ou seja, tendo à data do preenchimento da livrança recebido já, por conta deste mútuo (segundo os cálculos efetuados pela financiadora), a quantia global de 9.049,63 €, a exequente veio ainda a preenche-la pelo valor de 15.561,59 €, valor muito superior ao mutuado.

E, como já por nós foi salientado no ponto anterior, a financiadora comunica tal preenchimento ao mutuário e aos fiadores, bem como o valor por si aposto na letra, sendo completamente omissa quanto ao modo como chegou a tal valor. Por outro lado, a informação que faz constar de tal carta (de que “caso V. Excia ainda se encontre na posse do veículo, admite recebê-lo, sem ónus ou encargos com exceção da reserva de propriedade que sobre ele incide, desde que se encontre em normal estado de conservação e abater o valor que for apurado na venda, ao valor que se encontra inscrito na livrança”), dá a entender que o valor do veículo, que em tal data já tinha sido entregue pelos embargantes à financiadora, não teria sido por si deduzido ao valor aposto na livrança.

E a financiadora vem a instaurar execução contra os aqui embargantes com base em tal livrança, sem que, mais uma vez, tivesse o cuidado de explicitar o valor por si aposto na letra, limitando-se a remeter para o título executivo (cfr., requerimento executivo cuja cópia se encontra junta a fls. 182).

Face a esta indefinição e aos escassos elementos de que dispunha, para impugnar o título ou para discutir o montante em dívida, o mutuário e os avalistas pouco mais poderiam invocar em sua defesa para além da invocação da falta de entrega de um exemplar do contrato à avalista e falta de informação quanto às cláusulas nele inseridas, quanto ao avalista, e o abuso de preenchimento por ao montante peticionado não ter sido deduzido o valor do automóvel, quanto ao mutuário.

Com efeito, apenas na contestação aos presentes embargos, a financiadora/exequente vem explicitar como chegou ao valor de 15.561,59 € que apôs na letra, fazendo os seguintes cálculos, que enuncia no seu art. 68º:

- 1.510, 81 € referente às prestações vencidas e não pagas, acrescidas dos respetivos juros moratórios e respetivo imposto de sê-lo;

- 17.224,65 € correspondente às prestações vencidas em virtude da resolução do contrato, acrescida dos respetivos juros moratórios;

- 1.100,00 € relativo a despesas de contencioso;

- 74,21 €, referente ao imposto de selo.

- a tal valor abateu somente o valor de venda do veículo (4.800,00 €), ao qual descontou a quantia de 698,32 € de encargos suportados pela exequente com a venda.

Os referidos cálculos, desde logo, nos espantam pelo facto de, tendo o embargante procedido ao pagamento de 12 prestações, no valor de 243,30 € cada uma, e tendo-se ainda vencido outras tantas prestações até à data da resolução do contrato, que a embargada situa em junho de 2010, a embargada tenha atribuído às prestações “vencidas em virtude da resolução do contrato”, acrescidas dos respetivos juros moratórios o valor de 17.224,65.

Como é que S (…) chega a este valor de 17.224,65?

Embora não o afirme expressamente, deduz-se que a embargada parte do número de prestações com vencimento posterior à data da resolução e multiplica-as pelo montante previsto para cada uma, ao qual faz acrescer os juros de mora desde a data da resolução do contrato.

Contudo, se resolve o contrato não pode pretender o pagamento integral de cada uma das prestações, uma vez que tal cálculo havia sido efetuado na previsibilidade de o contrato se manter em vigor até à data acordada pelas partes, incorporando cada uma das prestações o valor das comissões, seguros e juros remuneratórios, devidos tendo por referencial a data prevista pelas partes para o termo do contrato.

Ao optar pela resolução do contrato, as contas a efetuar relativamente aos montantes a cobrar aos mutuários têm de ser refeitas: apenas as prestações já vencidas e não pagas manterão essa natureza, devendo enquanto tal ser cobradas por inteiro aos mutuários e garantes; quanto ao capital ainda em dívida – uma vez que a resolução do contrato implica a perda de benefício do prazo de pagamento e o vencimento do capital incorporado ainda não pago e incorporados nas prestações futuras –, a embargada terá de calcular qual o valor do capital ainda em dívida à data da resolução. E é este que é devido, e não as prestações que se venceriam caso o contrato se mantivesse em vigor.

Como já referimos, o embargado/apelado sustenta que, tendo a questão dos juros remuneratórios sido suscitada somente em sede de alegações de recurso, encontra-se vedado o conhecimento de tal matéria a este tribunal.

É certo que no requerimento inicial, os embargantes, impugnando embora o valor aposto na livrança, por excessivo, não questionam concretamente a parcela respeitante ao valor dos juros remuneratórios nele incluídos. Mas não o fazem, porque, desde logo, não dispunham de elementos para o fazer (pensavam então que o elevado valor nela aposto tinha a sua causa na falta de dedução do valor do veículo).

De qualquer modo, da defesa deduzida pelos embargantes no requerimento inicial dos embargos sobressai clara e inequivocamente a intenção de impugnar o montante aposto na letra, por excessivo (fundamento este que a embargada reconhece no artigo 4º da sua contestação, referindo-se “à impugnação da liquidação da obrigação efetuada pela exequente”)[16]: os embargantes defendem inclusivamente que nada devem, face aos valores por si já pagos e ao valor do veículo automóvel recebido pelo exequente (arts. 52º a 63º).

A livrança foi assinada em branco, o que é admitido pelo artigo 70º, havendo de ser preenchida de acordo com os acordos realizados (pacto de preenchimento).

Encontrando-nos no domínio das relações imediatas, ao executado/subscritor da livrança é dada toda a liberdade para discutir a relação subjacente (artigo 17º da Lei Uniforme).

Assim sendo, embora no caso de se socorrer de um título cambiário o exequente nada tenha que alegar no requerimento executivo para obter a satisfação do seu direito, a partir do momento em que o executado, em sede de embargos à execução, invoca a relação subjacente e o preenchimento abusivo da livrança, o exequente tem o ónus de justificar o montante nela por si aposto, alegando discriminadamente os valores que a compõem, de modo a poder ser questionado pela contraparte e aferido pelo tribunal. 

Não sendo o título executivo uma sentença, o executado está perante o requerimento executivo na mesma posição em que estaria perante a petição inicial da correspondente ação declarativa. Consequentemente, pode alegar em oposição à execução tudo o que poderia alegar na contestação àquela ação – pode alegar nos embargos matéria de impugnação e matéria de exceção[17].

Assim, no caso em apreço, os executados podiam deduzir embargos de executado, invocando a inexistência de título executivo ou da obrigação exequenda, ou a sua extinção por qualquer meio, por via de impugnação ou de exceção perentória.

Uma vez assente que os embargantes poderiam aqui discutir a existência da obrigação reconhecida pelo título executivo e o montante que através dela se pretende cobrar – livrança subscrita pelo mutuário e avalizada pela fiadora no contrato de consumo –, questão diferente passará por determinar, uma vez impugnada eficazmente a existência ou o montante da obrigação exequenda, como se distribuiu pelas partes o ónus da prova: é sobre o executado que impende a demonstração de que a obrigação não existe, ou mantem-se de pé a regra geral de que é sobre o credor que recai a prova dos factos constitutivos do seu direito?

O título cambiário, tal como qualquer outro título executivo, faz presumir a existência da obrigação exequenda.

A obrigação exequenda tem de constar do título e a sua existência é por ele presumida, presunção que pode ser ilidida mediante embargos de executado, movidos com essa finalidade[18].

Assim, a afirmação de que o título é condição necessária e suficiente da ação executiva tem o sentido de que, não só, não há execução sem título, como a sua existência dispensa “qualquer indagação prévia sobre a real existência ou subsistência do direito a que se refere[19]”.

Como defende Lebre de Freitas, para além da eficácia própria do documento que o consubstancia, o título executivo constituiu base da presunção da existência (e titularidade) da obrigação exequenda e não apenas da existência do facto que a constituiu.

Assim sendo, sobre o executado/embargante impende a elisão da presunção de existência da obrigação estabelecida a partir do título executivo.

Os embargos de executado, assumindo o carater de uma contra ação, tendente a obstar à produção dos efeitos do título executivo ou da ação em que nele se baseia, quando veicula uma oposição de mérito à execução, visa um acertamento negativo da situação substantiva (obrigação exequenda), de sentido contrário ao acertamento positivo consubstanciado no título executivo, cujo escopo é obstar ao prosseguimento da ação executiva mediante a eliminação, por via indireta, da eficácia do título executivo enquanto tal[20].

No caso de oposição de mérito à ação executiva, o pedido deduzido nos embargos de executado é de verificação da inexistência, total ou parcial, do título exequendo, configurando-se como uma ação de simples apreciação negativa[21].

Nos embargos de executado (tal como nas ações de simples apreciação negativa), as regras que presidem à distribuição do ónus da prova, e que se baseia em normas de direito substantivo, não se alteram (não se modificando pela diferente posição ocupada pelo credor e devedor nos autos - como autor ou réu, ou pelo executado/embargante e pelo exequente/embargado): o titular do direito continua sempre a ter de provar os factos que o constituem, enquanto o titular do dever correspondente tem o de provar os factos que impedem, modificam ou extinguem os feitos dos primeiros (artigo 342º CC)[22].

Havendo que distinguir entre os factos constitutivos e os factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito exequendo, e só os primeiros constituindo ónus da prova do executado (artigo 342º CC), haverá, igualmente, que jogar com a natureza e a força probatória do documento que constitui o título exequendo[23]:

- se o executado impugnar a autoria do documento particular que lhe é imputado, é o exequente que, na oposição à execução, terá o encargo de a provar (artigo 374º, nº2, CC);

- se o documento particular ou autentico contém uma declaração confessória da dívida, e tendo esta força probatória plena contra o confitente (nº2 do artigo 358º CC), o executado só poderá ilidir a presunção derivada de tal reconhecimento, pelos meios em que lhe é possibilitada a impugnação da confissão (artigo 359º CC);

- o ónus da prova da violação do pacto de preenchimento de um título cambiário, recairá, enquanto facto extintivo, sobre o executado/embargante (artigo 342º, nº2, CC.

No caso em apreço, sendo o título executivo uma livrança, o ónus da prova do conteúdo do pacto de preenchimento e da sua violação, cabe ao executado embargante.

Face à posição aqui assumida quanto à amplitude dos meios de defesa na execução baseada em título executivo diferente de sentença e quanto à distribuição do ónus da prova em embargos de executado, a dedução de embargos por parte deste, à execução que com base na livrança lhe é movida, coloca o executado, nesta sede[24], na exata posição em que estaria para se defender em sede de ação declarativa.

Ou seja, impugnando os embargantes o montante aposto na livrança por excessivo – pelas contas por si efetuadas, nada deveriam ao exequente (artigos 58º a 62 da p.i. dos embargos) –, é ao embargado/exequente que, em primeiro lugar, incumbe a alegação do modo como chegou a tal valor.

Ora, dos valores parcelares indicados pelo exequente resulta, desde logo a existência de duas parcelas que não se mostram minimamente justificadas:

- a de 1.100,00 €, relativa a “despesas de contencioso”, despesas estas que não se mostram minimamente discriminadas ou documentadas (despesas estas que acresceriam ao valor de 698,32  €, que corresponderiam a despesas com a venda do veículo);

- a de 17.224, 65 €, referente às “prestações vencidas e não pagas” em virtude da resolução do contrato, acrescida dos respetivos juros moratórios  e respetivo imposto de selo.

Quanto ao capital em dívida, após acesa discussão sobre a questão, o Acórdão nº 7/2009, publicado no DR 1ª Série nº 86, de 5 de maio de 2009, veio a fixar jurisprudência no sentido de que “no contrato de mútuo oneroso liquidável em prestações, o vencimento imediato destas ao abrigo de clausula de redação conforme ao artigo 781º do Código Civil não implica a obrigação de pagamento dos juros remuneratório nelas incorporados.”

Assim sendo, e não dispondo os autos os elementos necessários para o cálculo do capital em dívida à data do preenchimento da livrança, haverá que relegar a sua liquidação para momento posterior.

Concluindo, reconhece-se serem devidos ao exequente unicamente os seguintes valores, reportados à data do preenchimento da livrança:

- 1.510,81 €, respeitantes às prestações vencidas e não pagas, acrescida dos respetivos juros moratórios e respetivo imposto de selo;

- 698, 32 €, suportados com a venda do veículo;

- o valor do capital em dívida à data da resolução do contrato e respetivos juros moratórios, bem como o valor do imposto de selo pelo preenchimento da livrança, correspondente ao valor que nela deveria ter sido aposto, a liquidar pelo exequente na execução[25];

À soma dos valores daí resultante, deverá deduzir-se a quantia de 8.000,00 €, correspondente ao valor que efetivamente tinha o veículo entregue à exequente.

A Apelação é de proceder parcialmente.

IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente e, revogando-se a decisão recorrida:

1. decreta-se a extinção da execução relativamente à executada MC (…);

2. determina-se o prosseguimento da execução relativamente ao executado MV (…), pelo valor que resultar das seguintes operações:

- 1.510,81 €, respeitantes às prestações vencidas e não pagas, acrescida dos respetivos juros moratórios e respetivo imposto de selo;

- 698, 32 €, suportados com a venda do veículo;

- imposto de selo a liquidar pela exequente em virtude do preenchimento da livrança;

- o valor do capital em dívida à data da resolução do contrato e respetivos juros moratórios, a liquidar pelo exequente na execução;

- à soma dos valores daí resultante, deverá deduzir-se a quantia de 8.000,00 €, correspondente ao valor do veículo entregue à exequente.

As custas dos embargos, bem como os da Apelação serão suportadas pelo Apelante/embargante MV (…) e pela Apelada/embargada, na proporção de ½ para cada um.

Coimbra, 07 de fevereiro de 2017

Maria João Areias ( Relatora )

Vítor Amaral

Luís Cravo

V – Sumário elaborado nos termos do artigo 663º, nº7 do CPC.

1. Para que a financiadora possa invocar o abuso de direito decorrente da invocação da falta de entrega de um exemplar do contrato, será necessário, para além do mais, a boa-fé por parte da financiadora.

2. No âmbito das relações imediatas, ao executado é dada toda a liberdade para discutir a relação subjacente.

3. Se os embargantes impugnam o montante aposto na letra por excessivo, ao exequente incumbe a alegação de como chegou a tal valor, enquanto ao executado incumbe a prova do teor do pacto de preenchimento bem como de que o preenchimento foi efetuado em contrário do acordado.


[1] Neste sentido, entre outros, Acórdão do TRP de 26-06-2012, relatado por Ramos Lopes, disponível in www.dgsi.pt.
[2] Contratos de Crédito ao Consumo, Almedina 2007, pág. 103. Na jurisprudência, no sentido da exigibilidade de entrega de um exemplar do contrato ao fiador, cfr., Acórdão do TRP de 26-06-2012, relatado por Ramos Lopes; em sentido contrário, cfr., Ac. TRL de 29-11-2012, Ac. TRP de 18.03.2014, relatado por João Proença e Ac. TRC de 25-11-2008, relatado por Falcão de Magalhães, disponíveis in www.dgsi.pt.
[3] Fernando Gravato Morais, Crédito aos Consumidores, Anotação ao Decreto-Lei nº 133/2009, Almedina 2009, pág. 62.
[4] Neste sentido, entre outros, Jorge Morais de Carvalho e Micael Teixeira, “Crédito ao consumo – ónus da prova da entrega de exemplar do contrato e abuso do direito de invocar a nulidade”, Cadernos de Direito Privado, nº 42, Abril/junho 2013, págs. 47-49.
[5] Em igual sentido, Acórdão do TRC de 04-05-2010, relatado por Gonçalves Ferreira, disponível in www.dgsi.pt.
[6] Cfr. Acórdão do TRL de 23.04.98, in Bases de Dados Jurídicas, Acórdãos da Relação de Lisboa – disponível em http://WWW.dgsi.pt/jtrl. (nº convencional JTRL00021291).
[7] Cfr., “Tutela da confiança e venire contra factum proprium”, Obra Dispersa, Vol. I, pág. 415-418.
[8] “Da Boa Fé no Direito Civil”, Colecção Teses, Almedina 2007, pág. 745.
[9] “Sobre a Proibição do Comportamento Contraditório (Venire Contra Factum Proprium) no Direito Civil”, in Boletim da FDUC, Vol. Comemorativo 2003, pags. 275 e 276.
[10] Cfr., “Da Boa Fé no Direito Civil”, Colecção Teses, Almedina 2007, pag. 750
[11] João Baptista Machado, “Obra Dispersa”, estudo citado, pág. 416.
[12] Cfr., António Menezes Cordeiro, “Contrato Promessa – art. 410º, nº3, do CC – Abuso de Direito – Inalegabilidade Formal”, in ROA, nº 58, Vol. II, Julho 1998, pág. 964.
[13] Acórdão relatado por Jorge Leal, in www.dgsi.pt.
[14] Manual de Direito do Consumo, 2ª ed., Almedina 2014, pág. 301, e ainda Jorge Morais Carvalho e Micael Teixeira, “Crédito ao Consumo – ónus da prova da entrega de exemplar do contrato e abuso do direito de invocar a nulidade, local citado, págs. 50-52.
[15] Neste sentido, Carlos Ferreira de Almeida, Contratos, Vol. I, 4ª ed., Almedina 2008, pág. 219. Como se afirma no acórdão do STJ de 30.10.2007, na ponderação sobre se houve abuso de direito, o tribunal deve atuar com prudência quando se está perante uma relação de financiamento a bens de consumo, onde é patente a desigualdade de meios entre o fornecedor e o consumidor, sendo de equacionar se, ao atuar como atuou, o financiador prevalecendo-se da superioridade negocial em relação a quem recorreu ao seu crédito, não infringiu, ele mesmo, em termos censuráveis, os deveres de cooperação, de lealdade e de informação, em suma, os princípios da boa-fé – Acórdão relatado por Fonseca Ramos, disponível in www.dgsi-pt.
[16] Virgínio da Costa Ribeiro, referindo-se às dificuldades criadas aos mutuários e fiadores pela cobrança dos valores em dívida através da utilização de títulos cambiários e da correspondente ação executiva, sustenta que a utilização de tais títulos cambiários, face às suas características, dificulta a defesa do mutuário e dos seus fiadores/avalistas, impedindo-os de articular uma defesa com possibilidades de sucesso: dispensando o credor mutuante de alegar a relação subjacente (o contrato de crédito ao consumo), limitando-se a invocar a relação cartular e a esperar pela oposição à execução, que contestará invocando o mínimo estritamente indispensável à satisfação dos seus interesses. Daí que, em muitos casos, como sustenta tal autor, as oposições apresentadas tenham por fundamento o preenchimento abusivo da livrança (em regra subscrita em branco), com fundamento na falta de autorização por parte do mutuário e no excessivo valor peticionado, sem que, neste caso, seja quantificado o valor do débito. – “Os Contratos de Crédito ao Consumo na prática dos tribunais”, pág. 295, disponível in http://repositorio.uportu.pt:8080/bitstream/11328/1408/1/21_VIRGINIO-RIBEIRO.pdf.
[17] Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, Almedina 11ª ed., pág. 186.
[18] José Lebre de Freitas, “A Ação Executiva, à luz do Código de Processo Civil de 2013”, Coimbra Editora, 6ª ed., pág. 90.
[19] Anselmo de Castro, “Ação Executiva Singular, Comum e Especial”, Coimbra Editora, 1977, pág. 14.
[20] Neste sentido, José Lebre de Freitas, A Ação Executiva (…), págs. 212 e 213. Rui Pinto fala em reconhecimento da atual inexistência do direito exequendo, ou da falta de um pressuposto, específico ou geral da ação executiva, aludindo à posição de vários acórdãos que defendem tratar-se de uma ação de simples apreciação negativa da obrigação exequenda, de um pressuposto processual ou de uma condição da execução – “Manual da Execução e do Despejo”, Coimbra Editora, pág. 396.
[21] José Lebre de Freitas, “Estudos sobre Direito Civil e Processo Civil”, Coimbra Editora 2002, págs. 454, 456 e 457.
[22] José Lebre de Freitas, “A Ação Executiva, à luz do Código de Processo Civil de 2013”, págs. 206 e 207, nota (31), e “Estudos sobre Direito Civil e Processo Civil”, pág. 458 e 459. Neste sentido, cfr. ainda, Acórdão do STJ de 09.02.2011, relatado por Lopes do Rego, e Acórdão do TRC de 28-06-2011, relatado por Teles Pereira, ambos disponíveis in www.dgsi.pt. Aparentemente em sentido contrário, Miguel Teixeira de Sousa, defendendo embora o não afastamento das regras gerais sobre a matéria, pronuncia-se no sentido de que cabe ao executado embargante a prova dos fundamentos alegados (artigo 342º, nº1, CC), dado que estes são factos constitutivos da oposição deduzida – “Acção Executiva Singular”, LEX Lisboa 1998, pág. 177.
[23] A função ou valor probatório do documento volta a ser relevante nesta sede, beneficiando o exequente da eficácia probatória que a lei civil lhe atribuiu (Miguel Teixeira de Sousa, “A Exequibilidade da Pretensão”, Lisboa 1981, pág. 31.
[24] E dizemos, nesta sede, porque apenas nos reportamos à matéria do ónus da prova, uma vez que nos embargos o juiz não vai reapreciar o direito do exequente com a amplitude com que o faz na ação declarativa, limitando-se a conhecer os fundamentos de oposição que lhe são colocados pelo executado/embargante.
[25] O valor de 3.300,00 € resultante de pagamentos parciais efetuados já na pendência da presente execução, não influenciando o valor da quantia exequenda, deverá ser contabilizado na execução.