Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5441/05.4TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS GIL
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
LESADOS
TERCEIROS
DANOS INDIRECTOS
Data do Acordão: 11/22/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.495, 496 CC
Sumário: 1.No âmbito da responsabilidade civil extracontratual, o legislador parece ter tido o propósito de restringir o direito de indemnização com base em facto ilícito à pessoa directamente lesada com a acção ou omissão geradora da obrigação de indemnizar fundada em facto ilícito, pelo que, em princípio, apenas são ressarcidos os danos sofridos pelo lesado, enquanto titular do direito violado ou interesse juridicamente protegido pela norma violada.

2. Porém, a lei admite, nos casos excepcionais dos arts.495 e 496 nº2 e 3 Código Civil, o ressarcimento dos danos indirectos provocados a terceiros.

3. As razões que levaram ao disposto nos nºs 2 e 3, do artigo 496 do Código Civil, também se verificam relativamente aos familiares de pessoas vítimas de lesões corporais graves que as afectam de forma permanente e irreversível, pelo que se justificará a aplicação analógica de tais preceitos a estes casos, sendo, por isso, indemnizáveis os chamados danos “reflexos” ou indirectos.

Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            1. Relatório

            A 05 de Setembro de 2005, no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, J (…) e S (…), por si e em representação de G (…), filho de ambos, com o benefício de apoio judiciário, instauraram acção declarativa sob forma ordinária contra a Companhia de Seguros (…), SA pedindo a citação prévia da ré e que a mesma seja condenada:

a) a pagar aos dois primeiros autores a quantia de cento e dois mil quatrocentos e setenta e três euros, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento;

b) a pagar ao terceiro autor a quantia de quatrocentos mil euros, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento;

c) a pagar ao terceiro autor indemnização por danos futuros a liquidar ulteriormente.

Em síntese, para fundamentarem as suas pretensões, os autores alegam que no dia 17 de Julho de 2002, pelas 8h45, na Rua Principal dos Parceiros, o primeiro autor conduzia o veículo de matrícula (...) -AO, no sentido Leiria-Parceiros, quando foi colidido na zona dianteira, pelo veículo de matrícula (...) -GX, conduzido por (…), segurado da ré, que não respeitou o sinal de STOP existente na via de que provinha. Em consequência da colisão, G (…), de sete meses de idade, sofreu afundamento parietal direito com laceração da dura-máter que careceu de cirurgia, tendo estado em tratamento até Setembro de 2004, enquanto o veículo (...) -AO só foi entregue reparado pela oficina a 04 de Setembro de 2002, tendo os dois primeiros autores sofrido angústia e ansiedade com as lesões sofridas pelo filho de ambos e suportado despesas com transporte e perdas de remuneração motivadas pelo acompanhamento do mesmo.

 Deferido o requerimento para citação prévia da ré e efectuada a citação por carta registada com aviso de recepção, a ré contestou impugnando a generalidade da factualidade articulada pelos autores, concluindo pela total improcedência da acção.

Os autores impugnaram o documento oferecido pela ré com a contestação.

A ré foi notificada para juntar aos autos cópia da apólice do contrato de seguro de responsabilidade civil referente ao veículo de matrícula (...) -GX, sendo o autor notificado para comprovar o pagamento faseado da taxa de justiça.

A ré ofereceu o documento cuja junção foi notificada para efectuar, enquanto o autor, após variadas vicissitudes, veio a comprovar o pagamento faseado da taxa de justiça.

A audiência preliminar foi dispensada e procedeu-se à condensação da factualidade relevante para a boa decisão da causa, discriminando-se os factos assentes dos controvertidos, estes últimos a integrarem a base instrutória.

As partes ofereceram as suas provas, requerendo ambas a gravação da prova pessoal produzida na audiência de discussão e julgamento.

Foi produzida a prova pericial requerida por ambas as partes.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, respondendo-se à matéria vertida na base instrutória.

Seguidamente, a 12 de Janeiro de 2011, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente por provada e, em consequência, a ré foi condenada a pagar a J (…) e S (…) a quantia de quarenta e quatro euros e setenta cents, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora contados à taxa legal, desde a citação até integral pagamento e a G (…) a quantia de quatro mil euros, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros contados desde a data da sentença até integral pagamento.

Inconformados com a sentença proferida, os autores interpuseram recurso de apelação contra tal decisão, recurso que foi admitido como de apelação, com subido imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Os recorrentes ofereceram as suas alegações de recurso que concluíram do seguinte modo:

(…)

Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

            2. Questões a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelos recorrentes nas conclusões das suas alegações (artigos 684º, nº 3 e 690º nºs 1 e 4, ambos do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil

2.1 Da impugnação das respostas aos artigos 22º e 23º da base instrutória[1];

2.2 Do direito dos dois primeiros autores a compensação por danos não patrimoniais por causa das lesões sofridas pelo filho de ambos;

2.3 Da incorrecta fixação do montante da compensação por danos não patrimoniais devida ao terceiro autor;

2.4 Da incorrecta fixação do montante indemnizatório devido aos dois primeiros autores, a título de perdas de vencimento, despesas com portagens e combustíveis;

2.5 Do termo inicial da contagem de juros de mora sobre a ou as compensações por danos não patrimoniais.

3. Fundamentos

3.1 Da impugnação das respostas aos artigos 22º e 23º da base instrutória

(…)

3.2 Fundamentos de facto enumerados na sentença sob censura e que se mantêm, por a impugnação dessa decisão pelo recorrente ter sido indeferida e os elementos do processo não imporem decisão diversa, impassível de ser destruída por outras provas e ainda por não ter sido oferecido qualquer documento superveniente que por si só seja suficiente para destruir a prova em que a decisão recorrida assentou


3.2.1

No dia 24/11/2001, nasceu G (…), filho de J (…) e de S (…) (alínea A dos factos assentes).

3.2.2

Pelas 8.45 horas do dia 17/07/2002, o primeiro autor conduzia o veículo de sua propriedade, de marca Opel, modelo Corsa, matrícula (...) -AO, na Rua Principal dos Parceiros, na freguesia de Parceiros, no sentido norte / sul (Leiria / Parceiros), proveniente do IC2, mais conhecido como EN-1 (alínea B dos factos assentes).

3.2.3

No sentido sul / norte (Parceiros / Leiria), (…) conduzia o veículo de sua propriedade, de matrícula (...) -GX, dirigindo-se a um cruzamento para posteriormente alcançar a passagem subterrânea debaixo do IC2 (alínea C dos factos assentes).

3.2.4

Os dois referidos veículos colidiram um com o outro (alínea D dos factos assentes).

3.2.5

A responsabilidade civil por acidentes de viação em que fosse interveniente o veículo de matrícula (...) -GX encontrava-se então transferida para a ré Companhia de Seguros (…) S.A. (que, através de fusão, veio a assumir a denominação da ora ré), por contrato de seguro titulado pela apólice nº5095909 (alínea E dos factos assentes).

3.2.6

Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1., estava sol e o piso da estrada estava seco (alínea F dos factos assentes).

3.2.7

No local do embate, o pavimento, alcatroado, estava em boas condições (alínea G dos factos assentes).

3.2.8

Considerando o sentido de marcha do condutor do GX, existia, no local, um sinal de stop (alínea H dos factos assentes).

3.2.9

Imediatamente antes do embate, o condutor do GX não parou no sinal que se lhe deparava junto ao cruzamento (resposta ao artigo 1º da base instrutória).

3.2.10

Avançou para a estrada onde seguia o autor, sem lhe ceder a passagem (resposta ao artigo 2º da base instrutória)[2].

3.2.11

Foi embater com a frente do GX na parte dianteira do veículo do primeiro autor (resposta ao artigo 3º da base instrutória).

3.2.12

Aquando do acidente, G (…) seguia no banco da frente do veículo do primeiro autor, numa cadeira para crianças (resposta ao artigo 4º da base instrutória).

3.2.13

Logo após o acidente, o primeiro autor foi ver o estado de seu filho (resposta ao artigo 7º da base instrutória).

3.2.14

O menor G (…) apresentava afundamento parietal direito (resposta ao artigo 8º da base instrutória).

3.2.15

O primeiro autor tirou o menor da cadeira onde era transportado (resposta ao artigo 9º da base instrutória).

3.2.16

Após o aludido acidente, o primeiro autor levou seu filho G (…) ao Hospital de Santo André, em Leiria, onde ele foi atendido nesse mesmo dia (17/07/2002) (respostas aos artigos 10º e 11º da base instrutória).

3.2.17

Ainda no mesmo dia, foi transferido para o Hospital Pediátrico de Coimbra, tendo sido examinado pelos médicos, que o consideraram neurologicamente bem (resposta ao artigo 12º da base instrutória).

3.2.18

Não obstante ter sido constatado o afundamento parietal direito, foi dada alta ao G (…), naquele mesmo dia (resposta ao artigo 13º da base instrutória).

3.2.19

O autor G (…) foi internado no Hospital Pediátrico de Coimbra, no dia 21 de Julho de 2002, para ser operado no dia seguinte (22/07/2002) (resposta ao artigo 14º da base instrutória).

3.2.20

As lesões que G (…) sofreu foram consideradas “lesão fechada” (resposta ao artigo 15º da base instrutória).

3.2.21

Ao ser operado no dia 22 de Julho de 2002, foi constatada, pelo médico, uma fractura afundamento com laceração da dura-máter e foi feita craniotomia a envolver o afundamento, sutura da dura-máter, redução do afundamento e recolocação dos retalhos ósseos (resposta ao artigo 16º da base instrutória).

3.2.22

O pós-operatório decorreu sem complicações (resposta ao artigo 17º da base instrutória).

3.2.23

Após a intervenção cirúrgica, o menor G (…) foi seguido clinicamente nas consultas externas de neurocirurgia do Hospital Pediátrico de Coimbra até início de Novembro de 2004 (resposta ao artigo 18º da base instrutória).

3.2.24

Actualmente, G (…) aparenta um comportamento normal para qualquer criança da sua idade (resposta ao artigo 21º da base instrutória).

3.2.25

A ré cedeu ao autor uma viatura de substituição entre o dia 17/07/2002 e o dia 27/07/2002 (respostas aos artigo 24 e 25º da base instrutória).

3.2.26

As deslocações a Coimbra para acompanhar o menor no internamento e, posteriormente, nas consultas externas a que compareceu, ocorridas nos dias 31/07/2002, 10/09/2003, 29/09/2004, 19/10/2004 e 10/11/2004, acarretaram para os autores seus pais despesas de deslocação, nomeadamente, de portagens (resposta ao artigo 30º da base instrutória).

3.2.27

O preço da portagem para os veículos de classe 1, entre Leiria e Coimbra Sul, pela Auto-estrada nº1, ascendia (cada viagem) a €3,55 em 2002; a €3,70 em 2003 e a €3,85 em 2004 (resposta ao artigo 33º da base instrutória).

3.2.28

Em Julho de 2002, o primeiro autor auferiu a remuneração base ilíquida de €450,00 (resposta ao artigo 35º da base instrutória).

3.2.29

A cirurgia do menor causou angústia e ansiedade nos seus progenitores (resposta ao artigo 37º da base instrutória).

3.2.30

No período de Julho a 2002 a Setembro de 2004, os primeiro e segundo autores sentiram angústia e ansiedade em virtude de temerem que seu filho pudesse vir a padecer de sequelas que afectassem a normalidade do seu crescimento (respostas aos artigos 38º e 39º da base instrutória).

4. Fundamentos de direito

4.1 Do direito dos dois primeiros autores a compensação por danos não patrimoniais por causa das lesões sofridas pelo filho de ambos

Os dois primeiros autores pugnam pela revogação da sentença sob censura no segmento em que lhes negou o direito a qualquer compensação por danos patrimoniais, por causas das lesões sofridas pelo filho de ambos, compensação que pediram no montante de cem mil euros. Para tanto, sustentam, em síntese, que sofreram angústia e ansiedade quanto à incerteza do estado de saúde do filho de ambos e a eventuais sequelas decorrentes do sinistro sofrido e que foi violado o direito de personalidade dos progenitores que se traduz no exercício sadio das responsabilidades parentais, impossibilitando-os, temporariamente, de promover o desenvolvimento físico, intelectual e moral do filho de ambos. Mais alegam que o entendimento sufragado na sentença sob censura de que os danos não patrimoniais sofridos pelos progenitores de menor lesado apenas são compensáveis nas situações em que haja grave dependência ou perda de autonomia que interfira na esfera jurídica de terceiros é violador do princípio constitucional da igualdade consagrado no artigo 13º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.

Na decisão sob censura fundamenta-se a improcedência desta pretensão dos dois primeiros autores citando-se a posição doutrinal sustentada pelo Sr. Desembargador Abrantes Geraldes na sua obra intitulada Temas da Responsabilidade Civil, II Volume, Indemnização dos Danos Reflexos, afirmando-se que não estavam preenchidos os pressupostos definidos por este autor para a compensação daqueles danos não patrimoniais e acrescentando-se que menos ainda se verificariam à luz de jurisprudência mais exigente que nega em qualquer caso a indemnização por danos não patrimoniais aos lesados indirectos ou reflexos. De todo o modo, na decisão sob censura acaba por não se tomar uma posição clara e incisiva sobre o entendimento seguido, apenas sendo certo que entendeu não assistir aos dois primeiros autores o direito a indemnização por danos não patrimoniais por força das lesões sofridas pelo filho de ambos.

Cumpre apreciar e decidir.

A problemática da compensabilidade dos danos não patrimoniais sofridos por pessoas com vínculo familiar com a vítima de facto constitutivo de obrigação de indemnizar com base em facto ilícito tem dado origem a orientações doutrinais e jurisprudenciais divergentes.

Tradicionalmente, com base no disposto nos artigos 495º e 496º, nº 2, ambos do Código Civil, sustenta-se que a titularidade do direito de indemnização com fundamento em facto ilícito só compete a terceiros nos casos expressamente previstos na lei[3], não sendo as normas em causa passíveis de aplicação analógica, dado serem excepcionais, nem sendo caso de interpretação extensiva por resultar dos trabalhos preparatórios do Código Civil que a intenção do legislador foi limitar a indemnização a terceiros aos casos como tal previstos[4]. Nesta orientação, o direito de indemnização competiria ao titular do direito subjectivo ou do interesse legítimo protegido atingido directamente para acção ou omissão geradora da obrigação de indemnizar com base em facto ilícito.

Esta visão clássica foi desde cedo objecto de crítica, primeiramente a nível doutrinal e depois com cada vez maiores apoios doutrinais e jurisprudenciais, com fundamentações nem sempre coincidentes. Assim, logo em 1972, em anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Janeiro de 1970[5], o Professor Adriano Vaz Serra referia que “Mas, embora sejam excepcionais as disposições que reconhecem a certos parentes do lesado imediato um direito de indemnização elas são susceptíveis de interpretação extensiva (Cód. Civil, art. 11.º), e, por conseguinte, de extensão a outros casos compreendidos no espírito da lei.

De resto, pode ser que a lesão do lesado imediato seja acompanhada da lesão de um direito ou bem juridicamente protegido de um dos seus parentes, havendo então uma lesão imediata deste, e não já uma simples lesão mediata (isto é, um dano de terceiro), como se, por ex., uma mãe sofre uma depressão nervosa pelo facto de seu filho ser atropelado, ou um filho sofre um grave choque espiritual com consequentes perturbações nervosas por assistir à morte ou atropelamento de seu pai.

Nestes casos, o direito de indemnização da mãe ou do filho não é um direito de indemnização de terceiro, mas um direito de indemnização fundado na violação ilícita imediata de um direito deles (direito à saúde), e, portanto, independente, não lhe sendo aplicável o artigo 496.º, n.º 2, mas os artigos 483.º e 496.º, n.º 1 do Código Civil ou os artigos 503.º e 496.º, n.º 1, do mesmo Código (…)[6].

Esta posição doutrinal foi tendo acolhimento jurisprudencial de forma inicialmente tímida mas hoje com uma já significativa representatividade[7], tendo sido publicados estudos doutrinais que de uma ou outra forma seguem na peugada daquele Ilustre Professor[8].

Após o enquadramento doutrinal e jurisprudencial da questão decidenda, cumpre tomar posição.

O nosso legislador civil parece ter tido o propósito de restringir o direito de indemnização com base em facto ilícito à pessoa directamente lesada com a acção ou omissão geradora da obrigação de indemnizar fundada em facto ilícito. Se não fosse esse o horizonte normativo do legislador civil, mal se perceberiam as previsões dos artigos 495º e 496º, nºs 2 e 3, ambas do Código Civil, que têm uma nítida vocação de ampliação do leque daqueles que têm direito a indemnização com fundamento na prática de acto ilícito[9]. Esta restrição, em regra, do direito de indemnização ao directamente prejudicado com a acção ou omissão ilícita é necessária a fim de que não haja um alargamento excessivo da obrigação de indemnizar, dada a multiplicidade e difícil previsibilidade das consequências da conduta humana. A ausência de uma limitação nos termos expostos afectaria a liberdade de actuação das pessoas em geral, por receio das possíveis consequências mediatas das suas condutas.

No projecto normativo do legislador civil, no que tange aos danos não patrimoniais, excepcionou-se a regra da compensabilidade apenas do lesado directo ou imediato, no caso de morte do directamente prejudicado, conferindo-se, nessa eventualidade, um direito de indemnização por danos não patrimoniais às pessoas indicadas no nº 2, do artigo 496º do Código Civil[10].

Pode questionar-se por que razão não foram acolhidas as propostas do Professor Vaz Serra que davam maior amplitude à compensabilidade do dano não patrimonial a pessoas diversas do directamente lesado, embora sejam escassos os elementos disponíveis para uma tomada de posição segura sobre tal matéria. Afigura-se-nos que terá pesado o receio de um alargamento excessivo da obrigação de indemnizar, numa economia ainda pouco desenvolvida, com os lesantes a responderem em regra directamente pelas consequências dos seus actos e com um leque de riscos sociais ainda diminuto, nomeadamente por força de um reduzido parque automóvel.

Volvidos mais de quarenta anos sobre a entrada em vigor do Código Civil vigente, num quadro de grande sinistralidade estradal, com a obrigação legal de segurar a responsabilidade civil no que respeita a danos causados a terceiros e com a melhoria das condições de assistência médica que permitem a sobrevivência de pessoas que anteriormente dificilmente sobreviveriam, há que questionar se o referido projecto normativo ainda se mostra adequado às novas realidades da vida, isto é, se não ocorre presentemente uma situação carecida de tutela jurídica e que não tem o necessário arrimo normativo expresso.

Na nossa perspectiva, os familiares de pessoas vítimas de lesões corporais graves que as afectam de forma permanente, de forma irreversível, acham-se numa situação em tudo equiparável do ponto de vista dos interesses em jogo à situação dos familiares de uma vítima que morre em consequência das lesões. Por vezes, o sofrimento de familiares de vítimas que sobrevivem fortemente incapacitadas, poderá até ser superior ao dos familiares de uma vítima que vem a falecer.

 Neste circunstancialismo, afigura-se-nos que as previsões dos nºs 2 e 3[11] do artigo 496º do Código Civil são lacunosas carecendo de ser preenchidas por um procedimento de analogia legis.

Em contraponto, dir-se-á que a existirem as apontadas lacunas, as mesmas não serão susceptíveis de ser supridas por um procedimento analógico, dado estarem em causa normas excepcionais, normas relativamente às quais o legislador exclui a aplicação analógica (artigo 11º do Código Civil). Daí que, sensíveis a este argumentário, segundo cremos, alguns se acolhem à sombra da difícil se não impossível distinção da interpretação extensiva da integração analógica[12], invocando um proteico espírito do legislador, para desse modo completar a previsão normativa de acordo com aquilo que afirmam ser o espírito do legislador[13].

A objecção que antecede ao procedimento analógico obriga-nos a determinar o sentido da proibição da aplicação analógica das normas excepcionais. Segundo cremos, com esta proibição legal, o que o legislador pretendeu foi evitar que um regime excepcional pudesse por via da aplicação analógica ser transformado num regime regra. No entanto, se na situação omissa se verificarem as razões que levaram à adopção do preceito excepcional, parece que nada obstará à aplicação analógica da norma excepcional[14]. Ao invés, parece que tal procedimento será uma decorrência necessária do princípio da igualdade, uma exigência da justiça do caso. Ora, a nosso ver, as razões que levaram ao disposto nos nºs 2 e 3, do artigo 496º do Código Civil, também se verificam relativamente aos familiares de pessoas vítimas de lesões corporais graves que as afectam de forma permanente e irreversível, pelo que se justificará a aplicação analógica de tais preceitos a estes casos.

Revertendo ao caso dos autos, verifica-se que o terceiro autor não ficou a padecer de qualquer afectação grave, permanente e irreversível, pelo que não há lugar à aplicação analógica por que se pugnou anteriormente.

A exclusão do caso dos autos do âmbito das referidas previsões legais não constitui qualquer violação do princípio constitucional da igualdade, já que tal princípio constitucional obriga não só a que as situações iguais sejam igualmente tratadas, mas também a que as situações desiguais sejam desigualmente tratadas. Ora, parece não sofrer dúvida que o caso da morte não é normativamente equiparável ao caso de alguém que embora sofrendo lesões corporais numa zona nobre do corpo não ficou com quaisquer sequelas.

 Pelo exposto, confirma-se a decisão sob censura no que respeita a não titularidade por parte dos pais do terceiro autor do direito a compensação por danos não patrimoniais decorrentes das lesões sofridas por este último.

4.2 Da incorrecta fixação do montante da compensação por danos não patrimoniais devida ao terceiro autor

Os recorrentes insistem pela justeza do montante da compensação por danos não patrimoniais sofridos pelo autor pedida na petição inicial e que computaram em quatrocentos mil euros. Para fundamentarem o acerto dessa pretensão apelam ao prolongamento no tempo das cirurgias, tratamento médico e consultas médicas ao terceiro autor, ao quantum doloris fixado pericialmente em grau 5, numa escala de 0 a 7, ao dano estético fixado em grau 2, numa escala de 0 a 7 e à insuficiência do valor arbitrado para desempenhar a função punitiva da compensação por danos não patrimoniais.

Apreciemos.

            A obrigação de indemnização tem como finalidade precípua a remoção do dano causado ao lesado. Por isso, prescreve o artigo 562º do Código Civil que “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.”

O nosso legislador acolheu prioritariamente a via da reconstituição natural (ver artigo 566º, n.º 1, do Código Civil) e, sempre que a indemnização é fixada em dinheiro, determina que se fixe por referência à medida da diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos (artigo 566º, n.º 2, do Código Civil).

Embora vigore a regra da prioridade da restauração natural, tem-se entendido que o lesado pode optar pela indemnização em dinheiro[15].

Há que ter em atenção que os danos não patrimoniais não são por sua própria natureza passíveis de reconstituição natural e que, por outro lado, nem em rigor são indemnizáveis mas apenas compensáveis pecuniariamente.

A compensação arbitrada nestes casos não é o preço da dor ou de qualquer outro bem não patrimonial, mas sim uma satisfação concedida ao lesado para minorar o seu sofrimento, paliativo que numa sociedade que deifica o dinheiro assume naturalmente esta feição.

Importa ainda não perder de vista que apenas são compensáveis os danos não patrimoniais merecedores de tutela jurídica, estando afastados do círculo dos danos indemnizáveis os simples incómodos (artigo 496º, n.º 1, do Código Civil).

Finalmente, o montante da compensação por danos não patrimoniais será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º do Código Civil (primeira parte do nº 3, do artigo 496º, do Código Civil, na redacção vigente à data do sinistro).

No caso em apreço os danos não patrimoniais cuja compensação o terceiro autor peticionou, por força da deficiente articulação factual na petição inicial, não suprida, reduzem-se às dores que o terceiro autor terá certamente sofrido por força da colisão do veículo segurado na ré contra o veículo em que era transportado o terceiro autor, bem como às decorrentes da intervenção cirúrgica a que o mesmo foi submetido, dores que constituem facto notório[16], por isso não carecido de alegação e prova (artigo 514º, nº 1, do Código de Processo Civil).

Não dispõe este tribunal de quaisquer dados de facto sobre a duração e o perfil das incapacidades temporárias que afectaram o terceiro autor em consequência do sinistro dos autos, uma vez mais por patente défice de preenchimento do ónus de alegação na petição inicial.

Apenas se sabe que, após ter sido submetido a uma única cirurgia, o terceiro autor compareceu a cinco consultas externas de neurocirurgia, desconhecendo-se quando lhe foi dada alta (a resposta restritiva ao artigo 18º da base instrutória afastou a data que foi alegada pelos autores como sendo a da alta).

Os factos provados permitem-nos concluir que a lesão sofrida pelo terceiro autor, apesar da sua aparente gravidade, não foi considerada medicamente carecida de uma intervenção urgente, pois que o terceiro autor foi apenas operado cinco dias após os factos. A extensão da lesão sofrida pelo terceiro autor não será certamente também alheia à sua tenra idade e ao facto do sistema ósseo ainda se achar em formação.

Dada a idade do terceiro autor não é de presumir que tenha tido preocupações decorrentes da zona do seu corpo atingida no embate. Não resulta dos factos provados que o terceiro autor tenha ficado com sequelas.

Tudo sopesado, desconhecendo-se concretamente as condições económicas do lesado e do lesante, tendo em conta a ausência de factos que permitam qualificar o grau de culpa do agente, a natureza da lesão sofrida e a ausência de sequelas provadas, não existem quaisquer razões para afastar o valor da compensação arbitrado em primeira instância, antes se revelando esse valor adequado à realidade fáctica retratada nos autos.

Pelo exposto, improcede este fundamento do recurso do terceiro autor.

4.3 Da incorrecta fixação do montante indemnizatório devido aos dois primeiros autores, a título de perdas de vencimento, despesas com portagens e combustíveis

Os dois primeiros recorrentes pugnam pela alteração da decisão sob censura no que tange a indemnização por danos patrimoniais por perda de vencimento, por despesas com portagens, despesas com gasolina nas deslocações a Coimbra efectuadas nos dias 29 de Setembro de 2004, 18 de Outubro de 2004 e 10 de Novembro de 2004.

Na decisão sob censura arbitrou-se aos dois primeiros autores, a título de danos patrimoniais, a quantia de € 44,70, correspondente ao custo das portagens na auto-estrada por pelo menos duas viagens em 2002, uma viagem em 2003 e três viagens em 2004 (viagens de ida e volta de Leiria a Coimbra).

Apreciemos.

A matéria de facto relevante para sustentar as pretensões patrimoniais dos dois primeiros autores, no que respeita a despesas com portagens, despesas com gasolina nas deslocações a Coimbra e perdas de vencimento constava dos artigos 30º a 36º da base instrutória, que tinham a seguinte redacção:

- “As deslocações a Coimbra para acompanhar o menor no internamento, a cirurgia e, posteriormente, as consultas a que o menor foi submetido, acarretaram aos AA J (...) e S (...) despesas de deslocação e perda de dias de trabalho ao autor J (...) , com consequente desconto no salário?” (artigo 30º da base instrutória);

- “Os autores gastaram em deslocações ao Hospital Pediátrico, no período de Julho de 2002 a Setembro de 2004, a quantia de € 473,00 para acompanhar na cirurgia em Julho de 2002 e, posteriormente, nas consultas no período de Julho de 2002 a Novembro de 2004?” (artigo 31º da base instrutória[17]);

- “Cada deslocação de Leiria a Coimbra acarretou, aos AA J (...) e S (...) , despesas de gasolina na ordem dos € 20,00?” (artigo 32º da base instrutória);

- “Em cada trajecto por auto-estrada entre Leiria e Coimbra, os AA J (...) e S (...) pagaram portagens de € 8,00 (ida e volta incluídas)?” (artigo 33º da base instrutória);

- “O Autor J (…), no período entre Julho de 2002 e Setembro de 2004, perdeu 11 dias de trabalho?” (artigo 34º da base instrutória);

- “O seu salário era, em 2002, de € 450,50 mensais, à razão diária de € 15,00?” (artigo 35º da base instrutória);

- “Foram-lhe descontados 11 dias de salário, no total de € 165,00?” (artigo 36º da base instrutória).

O tribunal a quo respondeu negativamente aos artigos 31º, 32º, 34º e 36º da base instrutória, respondendo aos artigos 30º, 33º e 35º da base instrutória nos termos que constam dos pontos 3.2.26 a 3.2.28 dos fundamentos de facto deste acórdão.

As respostas que o tribunal a quo deu aos artigos 30º a 36º da base instrutória não foram objecto de qualquer impugnação por parte dos recorrentes. Não existem elementos no processo que imponham decisão diversa relativamente aos pontos de facto respondidos negativamente ou restritivamente pelo tribunal a quo, nem foi oferecido qualquer documento superveniente pelos recorrentes (artigo 712º, nº 1, alínea b) e c), do Código de Processo Civil), pelo que não estão reunidas as condições legais para a eventual alteração oficiosa da decisão da matéria de facto sobre aqueles pontos.

A pretensão dos recorrentes de que seja atendido directamente o conteúdo de documentos que foram desconsiderados pelo tribunal a quo na decisão da matéria de facto não tem qualquer base legal, tendo ínsita uma confusão entre meios de prova e factos provados, bem como entre impugnação da decisão da matéria de facto e impugnação da decisão sobre a matéria de direito.

Não estando preenchidos os pressupostos legais para alteração oficiosa da decisão da matéria de facto, nem tendo sido impugnada a decisão do tribunal a quo nos segmentos pertinentes para a dilucidação das questões ora em análise, este tribunal há-de responder às pretensões dos recorrentes dentro do quadro factual em que se moveu o tribunal recorrido.

Provou-se que: o autor G (…) foi internado no Hospital Pediátrico de Coimbra, no dia 21 de Julho de 2002, para ser operado no dia seguinte (22/07/2002) (resposta ao artigo 14º da base instrutória); as deslocações a Coimbra para acompanhar o menor no internamento e, posteriormente, nas consultas externas a que compareceu, ocorridas nos dias 31/07/2002, 10/09/2003, 29/09/2004, 19/10/2004 e 10/11/2004, acarretaram para os autores seus pais despesas de deslocação, nomeadamente, de portagens (resposta ao artigo 30º da base instrutória); o preço da portagem para os veículos de classe 1, entre Leiria e Coimbra Sul, pela Auto-estrada nº1, ascendia (cada viagem) a €3,55 em 2002; a €3,70 em 2003 e a €3,85 em 2004 (resposta ao artigo 33º da base instrutória).

A matéria de facto acima rememorada permite-nos concluir que em 2002, os autores terão efectuado pelo menos duas viagens de ida e volta de Leiria a Coimbra. Afirma-se que foram efectuadas pelo menos duas viagens de ida e volta em 2002 porque muito embora o internamento do terceiro autor se tenha prolongado por dois dias, não foi alegado nem provado que em cada um dos dias do internamento do terceiro autor os seus progenitores tenham regressado a Leiria. Deste modo, nas duas viagens de ida e volta de Leiria para Coimbra, os dois primeiros autores despenderam em portagens a quantia de catorze euros e vinte cents (€ 3,55 x 4= € 14,20).

No ano de 2003, os autores efectuaram uma viagem de Leiria a Coimbra, ida e volta, despendendo em portagens o montante de sete euros e quarenta cents (€ 3,70 x 2= € 7,40).

No ano de 2004, os autores efectuaram três viagens de Leiria a Coimbra, ida e volta, despendendo em portagens o montante de vinte e três euros e dez cents (€ 3,85 x 6= € 23,10).

Pelo exposto, conclui-se que em portagens os autores despenderam um total de € 44,70, tal como se concluiu na decisão sob censura.

Para além das despesas com portagens, não foi produzida qualquer prova de gastos com combustível ou de descontos no vencimento do primeiro autor.

Pelo que precede, conclui-se, sem margem para quaisquer dúvidas, que não tem qualquer suporte factual a pretensão dos autores de que seja alterada a decisão recorrida, no que respeita a despesas de transporte (portagens e gastos com gasolina), bem como no que tange alegados descontos no vencimento do primeiro autor decorrentes de faltas ao serviços motivadas pelo acompanhamento do terceiro autor no internamento e nas consultas externas.

Face ao exposto, improcede este fundamento do recurso.

4.4 Do termo inicial da contagem de juros de mora sobre a ou as compensações por danos não patrimoniais

Os recorrentes pugnam pela incidência de juros de mora sobre as compensações por danos não patrimoniais por si peticionadas desde a citação da ré e até efectivo e integral pagamento, alegando ainda relativamente à compensação atribuída ao terceiro autor, que por ter sido fixada em montante inferior ao peticionado na petição inicial, não se pode considerar um valor actualizado, não sendo por isso aplicável ao caso o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2002.

Na decisão sob censura fez-se decorrer a contagem de juros de mora sobre a compensação por danos não patrimoniais apenas a partir da decisão que procedeu a tal fixação da circunstância do montante arbitrado ser actualizado.

Cumpre apreciar e decidir.

O artigo 805º, n.º 3, do Código Civil dispõe que “se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto não se tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor; tratando-se, porém de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja então mora nos termos da primeira parte deste número.”
Em nosso entender, resulta desta norma que o termo inicial da contagem de juros moratórios, no caso de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, é, em regra, a citação para a acção.

No momento presente importa ainda ter em conta o acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 4/2002, no qual se dispôs que “sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação” (publicado no Diário da República, nº 146, da série I-A, de 27 de Junho de 2002).

A compensação arbitrada na decisão sob censura ficou muito aquém do que havia sido peticionado pelo terceiro autor. Na verdade, a este título, na petição inicial, o terceiro autor peticionara o montante de quatrocentos mil euros.

A decisão sob censura esclarece que a compensação arbitrada é actualizada por referência ao momento da prolação da decisão.

Neste circunstancialismo, é indubitável que a decisão do tribunal a quo no que respeita o termo inicial de contagem de juros moratórios sobre a compensação por danos não patrimoniais é a que legalmente se impunha. Um procedimento diverso, do género daquele por que propugnam os recorrentes, constituiria um inadmissível e injustificado enriquecimento à custa da ré, pois que se os juros se destinam a compensar “a forfait” o credor pela mora na efectivação da satisfação devida, essa compensação é destituída de fundamento quando o valor arbitrado é actualizado com referência ao momento da decisão. Numa tal hipótese, o credor da indemnização só vê a prestação que lhe é atribuída desvalorizada por força do simples decurso do tempo no período que decorre após a fixação do valor da prestação a cargo do devedor.

Assim, face ao exposto, improcede também este fundamento do recurso.

5. Dispositivo

Pelo exposto, em audiência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra acordam em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto por J (…) e S (…), por si e em representação de G (…) e, em consequência, em confirmar a sentença sob censura proferida a 12 de Janeiro de 2011. Custas do recurso a cargo dos recorrentes, sem prejuízo do apoio judiciário que lhes foi concedido e atentas as modalidades concretas de que beneficiam.


***

Carlos Gil ( Relator )

Fonte Ramos

Carlos Querido



[1] Nas conclusões do recurso, tal como nas alegações, os recorrentes indicam como objecto da pretendida reapreciação, os artigos 23º e 24º da base instrutória. Porém, quando descrevem a matéria de facto impugnada, bem como quando transcrevem parcialmente o depoimento em que fundam a pretendida alteração da decisão da matéria de facto, é notório que os recorrentes se insurgem contra as respostas negativas aos artigos 22º e 23º da base instrutória. Além disso, os recorrentes afirmam que as respostas impugnadas foram negativas, quando o artigo 24º da base instrutória foi objecto de uma resposta conjunta e restritiva com o artigo 25º da base instrutória. Por isso, dada a ostensividade do lapso cometido pelos recorrentes, reapreciar-se-ão as respostas negativas aos artigos 22º e 23º da base instrutória, sem prévia audição das partes, por patente desnecessidade.
[2] Na decisão sobre a matéria de facto respondeu-se por duas vezes ao artigo 2º da base instrutória, respondendo-se provado, na primeira vez, e, na segunda vez, não provado (veja-se a folha 601 destes autos). Na sentença deu-se relevância ao primeiro juízo em detrimento do segundo, nada se dizendo para justificar a opção tomada. Estas respostas contraditórias sobre a mesma realidade factual seriam motivo bastante para anulação da decisão da matéria de facto no que respeita esta matéria, ex vi artigo 712º, nº 4, do Código de Processo Civil. Porém, atentando na motivação das respostas à matéria de facto é possível concluir, com segurança, que a convicção do tribunal a quo relativamente à matéria vertida no artigo 2º da base instrutória foi no sentido da comprovação de tal realidade (vejam-se folhas 503 e 504), sendo neste circunstancialismo lícito concluir que a repetição da resposta ao artigo 2º da base instrutória, em sentido oposto à resposta primeiramente dada, se deveu a um lapso de composição do texto, possivelmente resultante da utilização da função de copiar. Por isso, dar-se-á prevalência à primeira resposta ao artigo 2º da base instrutória que julgou provada a matéria aí vertida.
[3] Neste sentido vejam-se: Das Obrigações em Geral, Volume I, 6ª edição, Almedina 1989, João de Matos Antunes Varela, páginas 591 a 595; Direito das Obrigações, 7ª edição, Almedina, Mário Júlio Almeida e Costa, páginas 527 a 529. No domínio do direito anterior ao do actual Código Civil, em sentido coincidente, vejam-se o artigo publicado na Revista dos Tribunais, Anos 81 e 82, intitulado Responsabilidade Civil e Criminal por Acidente de Viação, especialmente no Ano 82, página 410 e o Tratado de Direito Civil, Volume XII, Coimbra Editora 1937, Luiz da Cunha Gonçalves, página 478.
[4] Neste sentido veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Setembro de 2009, relatado pelo Sr. Conselheiro João Camilo, no processo nº 292/1999-S1, com dois votos de vencido dos Srs. Conselheiros Salreta Pereira e Salazar Casanova. No mesmo sentido vejam-se os seguintes acórdãos: de 13 de Janeiro de 1970, do Supremo Tribunal de Justiça, publicado no Boletim do Ministério da Justiça nº 193, páginas 349 a 352, com anotação discordante do Professor Vaz Serra publicada na Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 104, páginas 14 a 16; de 04 de Outubro de 1991, da Relação do Porto, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano XVI, Tomo II, páginas 254 a 256; de 26 de Outubro de 1993, da Relação de Coimbra, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano XVIII, Tomo IV, páginas 69 a 73; de 02 de Novembro de 1995, do Supremo Tribunal de Justiça, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Ano III, Tomo III, páginas 220 a 226; de 21 de Março de 2000, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Ano VIII, Tomo I, páginas 138 a 143; de 30 de Abril de 2003, do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no processo nº 4489/02, acessível no site da DGSI; de 26 de Junho de 2003, da Relação de Lisboa, proferido no processo nº 4554/2033-6, acessível no site da DGSI; de 26 de Fevereiro de 2004, do Supremo Tribunal de Justiça, proferido na revista nº 4298/03, da 2ª secção e acessível no site da DGSI; de 20 de Outubro de 2004, da Relação do Porto, proferido no processo nº 0414382 e acessível no site da DGSI.
[5] Publicada na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 104, página 16.

[6] A esta posição do Professor Vaz Serra aderiu o Professor Jorge Leite Areias Ribeiro de Faria in Direito das Obrigações, Volume I, Almedina 1990, página 491, nota 2.
[7] Por ordem cronológica, vejam-se os seguintes acórdãos: acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Novembro de 1998, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 481, páginas 471 a 480; acórdão da Relação do Porto de 26 de Junho de 2003, Ano XXVIII, Tomo III, páginas 200 a 202; acórdão da Relação de Coimbra de 25 de Maio de 2004, proferido no processo nº 3480/03, acessível no site da DGSI; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Maio de 2009, proferido no processo nº 3413/03.2TBVCT.S1, acessível no site da DGSI; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08 de Setembro de 2009, proferido no processo nº 2733/06.9TBBCL.S1, acessível no site da DGSI.

[8] Assim, vejam-se, Ressarcibilidade dos Danos não Patrimoniais de Terceiros em Caso de Lesão Corporal, António Santos Abrantes Geraldes, in Estudos em Homenagem ao Professor Inocêncio Galvão Telles, IV, Almedina, Coimbra 2003, páginas 263 a 289; Ressarcibilidade dos Danos Não Patrimoniais a Familiares de Lesados Profundos, Rosa Maria Fernandes, 2004, trabalho a que acedemos pela Internet, via Google; O Núcleo Intangível da Comunhão Conjugal, Os Deveres Conjugais Sexuais, Almedina 2004, Jorge Alberto Caras Altas Duarte Pinheiro, páginas 733 a 739; Temas da Responsabilidade Civil, II Volume, Indemnização dos Danos Reflexos, Almedina 2005, António Santos Abrantes Geraldes; Direito das Obrigações, Volume I, 7ª edição, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, página 406, nota 846.
[9] O nº 3, do artigo 496º do Código Civil, na sua primitiva redacção, a que corresponde actualmente o nº 4, do mesmo artigo, na redacção introduzida pela Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto, completa o nº 2 já citado, esclarecendo que estão em causa não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, mas também os danos não patrimoniais sofridos pelas pessoas antes elencadas.
[10] Refira-se que em sede de trabalhos preparatórios do Código Civil, o Professor Vaz Serra, ainda que de forma não peremptória, já se mostrava favorável à compensação dos danos não patrimoniais sofridos por certos familiares do lesado. Na verdade, a este propósito, escreveu o referido Professor: “Reconhecido este direito a certos familiares, não deveria igualmente reconhecer-se, no caso de lesão de outra natureza, um direito de satisfação a favor de determinados familiares (v.g., ao pai no caso da mutilação do filho)? Ver Carbonnier, Lug. Cit. (referência na nota 49).
                Este autor escreve que «a presença de uma vítima imediata parece excluir as mediatas».
                Mas não será razoável que o pai tenha, naquele exemplo, um direito de satisfação? Este direito poderia prejudicar o do filho, pois o responsável pode não estar em situação económica que lhe permita pagar a ambos. Se, porém, não o prejudicar, talvez devesse admitir-se, visto que o pai pode ter danos morais consideráveis. Além do pai, os outros familiares, que, segundo o critério proposto para o caso da morte, teriam direito pessoal de satisfação, parece deverem tê-lo aqui também” (citação extraída da nota 54-a, na página 96, do Boletim do Ministério da Justiça nº 83). Em consonância com esta posição, o Professor Vaz Serra viria a propor o nº 5, do artigo 759º do Direito das Obrigações (Parte Resumida), com a seguinte redacção: “No caso de dano que atinja uma pessoa de modo diferente do previsto no § 2.º [isto é, fora do caso de morte da vítima], têm os familiares dela direito de satisfação pelo dano a eles pessoalmente causado. Aplica-se a estes familiares o disposto nos parágrafos anteriores; mas o aludido direito não pode prejudicar o da vítima imediata” (citação extraída do Boletim do Ministério da Justiça nº 101, página 138).
[11] Actualmente nº 4 do artigo 496º do Código Civil, por força da já citada alteração introduzida pela Lei nº 23/2010 de 30 de Agosto.
[12] Sobre esta problemática veja-se, Metodologia, Problemas Fundamentais, Coimbra Editora 1993, António Castanheira Neves, páginas 265 a 272.
[13] Afiguram-se-nos também de rejeitar os procedimentos tendentes a identificar um direito violado na esfera jurídica do lesado mediato para assim concluir pela compensação dos danos não patrimoniais daí decorrentes por força do disposto no nº 1, do artigo 496º do Código Civil. Mesmo nos caos em que se logre essa identificação, a questão normativa decisiva a resolver será a de saber se esse direito foi directamente violado por acção ou omissão do lesante ou apenas de forma indirecta ou reflexa. Segundo cremos, a regra do nº 1, do artigo 496º do Código Civil, refere-se apenas ao directamente lesado pela acção ou omissão do lesante.
[14] Neste sentido veja-se, Metodologia, Problemas Fundamentais, Coimbra Editora 1993, António Castanheira Neves, páginas 273 a 276.
[15] Veja-se assim, Dario Martins de Almeida, Manual dos Acidentes de Viação, 1987, página 115; em sentido oposto vejam-se, Direito das Obrigações, Pessoa Jorge, edição de 75/76 da AAFDL, páginas 585 a 587 e Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, Coimbra Editora 2008, volume II, Paulo Mota Pinto, páginas 1490 e 1491.
[16] A circunstância da dor ser um facto notório quando se sofrem lesões corporais não dispensava os autores do ónus de alegação e prova da intensidade e duração das dores, a fim de facultar uma pormenorização o mais completa possível para determinação de uma justa compensação por danos não patrimoniais. Esse défice não pode agora ser suprido, como se sustenta na apelação, mediante aquilo que consta do relatório pericial que é um simples meio de prova e não um instrumento para introdução de factos nos autos. Por isso, são espúrias as considerações tecidas na apelação quanto à intensidade das dores e quanto ao dano estético porque tais factos não foram oportunamente alegados na petição inicial (veja-se o disposto no artigo 264º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), nem se fez uso do mecanismo previsto no nº 3, do artigo 264º do Código de Processo Civil ou ainda da figura do articulado superveniente (artigo 506º e 507º, ambos do Código de Processo Civil).
[17] Este artigo transcreve, fielmente, o que foi alegado no artigo 45º da petição inicial. Como se vê, há uma clara e inexplicável dissonância temporal entre o que se refere na primeira parte do artigo e a sua segunda parte.