Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
67/18.5T8GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL POR FACTOS ILÍCITOS
REQUISITOS
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 05/18/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA – JUÍZO L. CÍVEL DA GUARDA – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 483º E 493º DO C. CIVIL.
Sumário: I- No domínio da responsabilidade extracontratual por factos ilícitos são pressupostos, cumulativos, dessa responsabilidade (que impõe ao lesante a obrigação de indemnizar): a existência de um facto voluntário praticado pelo agente lesante, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

II- Esse facto/conduta tanto pode resultar de uma ação como de uma omissão.

III- Pressupostos esses cujos ónus de alegação e prova impende ao lesado, a não ser que beneficie de uma presunção legal, o que a acontecer transfere para o lesante o ónus de elidir essa presunção.

IV- Entre a situações que, no domínio dessa responsabilidade, invertem tal ónus de prova, estabelecendo uma presunção de culpa contra o lesante encontra-se aquela prevista no artº. 493º, nº. 2, do C. Civil.

V- Na verdade, nesse normativo estabelece-se uma presunção legal de culpa contra quem exerce uma atividade perigosa - perigosidade que tanto pode resultar quer pela própria natureza dessa atividade em si exercida, quer da natureza dos meios nela utilizados -, com a correspondente inversão do ónus de prova, tendo apenas a parte a favor de quem é estabelecida tal presunção o ónus de provar o facto que serve de base à mesma.

VI- Não concretizando/definindo a lei o que deve entender-se por “atividades perigosas” - limitando-se à admissão genérica de que a perigosidade derive da própria natureza da atividade ou da natureza dos meios nela utilizados -, deverá, assim, tal matéria ser apreciada à luz de cada caso e segundo as circunstâncias concretas da ocorrência do mesmo.

Decisão Texto Integral:






Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra
I- Relatório
1. No Tribunal Judicial da Comarca da Guarda (Juízo Local Cível da Guarda) a autora, A..., instaurou (em 02/02/2018) contra a ré, Z..., S.A., ambas melhor identificadas nos autos, a presente ação declarativa, com forma de processo comum, pedindo (no final) que a última seja condenada a pagar-lhe a indemnização imediata no valor de €10.000,00 (dez mil euros) e, num acerto futuro indemnizatório em razão do tratamento médico-hospital a que terá de ser submetida, na quantia indemnizatória nunca inferior a €15.000,00 (quinze mil euros).
Para o efeito, alegou, em síntese, o seguinte:
No dia 21/06/2017, quando tinha 82 anos de idade, sofreu uma queda no estabelecimento de supermercado denominado ..., sito na cidade da Guarda, onde se tinha deslocado para fazer compras.
Queda essa que foi provocada pela porta automática de saída, quando se aprestava para abandonar o referido estabelecimento com as compras ali feitas. Nessa altura, quando se encontrava já entre os batentes dessa porta (com os pés assentes na zona da soleira), que é de vidro e é comandada por uma célula eletrónica, a mesma disparou o fechamento (quando se deveria ter mantido aberta) projetando-a no solo e para o lado de dentro do estabelecimento.
Em consequência dessa queda fraturou a sacroilíaca, com tratamento hospitalar imediato nas urgências do hospital da Guarda, para onde foi transportada de ambulância. Apesar do decurso do tempo, a autora continua com queixas, locomovendo-se com canadianas, das quais nunca necessitou, sentindo graves dores, pelo que irá necessitar de tratamentos hospitalares e fármacos, tendo, com toda a probabilidade, necessidade de vir a ser submetida a uma operação cirúrgica ortopédica, em regime de medicina particular, por não ser elegível como doente do sistema de medicina pública.
Com tal, a autora sofreu danos de natureza não patrimonial - que descreve -, os quais devem ser avaliados em valor não inferior a €10.000,00.
Pela indemnização de tais danos está obrigada a ré, dado que na altura a responsabilidade pelo sobredito sinistro encontrava-se para ela transferida na sequência de contrato de seguro que para o efeito a sociedade proprietária do estabelecimento tinha com ela celebrado.
2. Na sua contestação, e em síntese, a ré defendeu-se, negando que a referida queda autora tenha sido provocada pela porta automática de saída do dito estabelecimento comercial e que tenha sido essa porta a projetá-la ao chão, ficando antes a dever-se ao facto de a mesma antes de ali ter chegado, e quando se encontrava a subir o primeiro degrau dos dois que dão acesso à mesma se ter desequilibrado, devido a problemas de locomoção de que padece, e caído ao solo.
De qualquer modo, e sem prescindir, defendeu-se ainda alegando que a aludida porta de saída é antecedida por dois degraus que têm 0,55m de comprimento e 0,273m de altura, sendo que, no cimo do segundo degrau, se encontra implantada a porta automática, pelo que poderá, nessa hipótese, ter sido a altura considerável e não regulamentar destes degraus que, perante a dificuldade de locomoção da autora, tenha provocado a sua queda, estando então nesse caso, e à luz do contrato de seguro invocado, excluída a sua responsabilidade por desrespeito das condições de segurança impostas pela legislação vigente.
Terminou pedindo a improcedência da ação, com a sua absolvição do pedido.
3. A ré respondeu àquela matéria de exceção, defendendo sua improcedência.
4. Realizou-se a audiência prévia, onde oi proferido despacho saneador, que afirmou a validade e regularidade da instância, fixando-se depois o objeto do litígio e enunciando-se os temas de prova, sem que tivesse sido formulada qualquer reclamação.
5. Mais tarde - e após algumas vicissitudes processuais relacionadas sobre a entidade que deveria suportar os custos a despender com a deslocação da A. ao IML para a realização de exame pericial pela própria requerido, o qual acabou por não ter sido efetuado pelos motivos exarados nos autos, e que levaram que a questão tivesse sido apreciada pela Relação, pelo STJ e pelo TC -, realizou-se a audiência de discussão e julgamento (tendo o tribunal se deslocado à residência da A., e devido à doença que a mesma padece, para a ouvir em declarações de parte), com a gravação da mesma.
6. Seguiu-se a prolação da sentença que, no final, julgou a ação improcedente, absolvendo a ré do pedido contra si formulado pela autora.
7. Inconformada com tal sentença, dela apelou a autora, tendo concluído as respetivas alegações de recurso (naquelas que apresentou em substituição das primeiras - substituição essa que foi admitida por despacho judicial, de 26/02/2021, da 1.ª instância) nos seguintes termos:
...
8. Contra-alegou a ré, pugnando pela sua improcedência total do recurso e pela manutenção integral do julgado (defendendo ainda, no requerimento de resposta à substituição das contra-alegações inicialmente apresentadas pela A./apelante, a rejeição da mesmo na parte referente à impugnação da decisão de facto da matéria de facto, por inobservância do disposto no artº. 640º, nº. 2 al a), do CPC).
9. Corridos que foram os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.
II- Fundamentação
1. Do objeto do recurso
É sabido que é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se fixa e delimita o objeto dos recursos, não podendo o tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (artºs. 635º, nº. 4, 639º, nº. 1, e 608º, nº. 2, do CPC).
Ora, calcorreando as conclusões das alegações do recurso da A./apelante delas resultas que as questões que aqui nos cumpre apreciar e decidir serão as seguintes:
a) Da impugnação/alteração da decisão da matéria de facto;
b) Da obrigação da ré pagar à autora a quantia indemnizatória que dela reclama nesta ação.
2. Pelo tribunal da 1ª. instância foram dados como provados os seguintes factos (mantendo-se na sua descrição a ortografia, a ordem e a numeração que constam na sentença recorrida):
...
3. Quanto à 1ª. questão.
3.1 - Da impugnação/alteração da decisão da matéria de facto.
3.1.1 Questão prévia.
3.1.1.2 Calcorreando as conclusões de recurso - que se mostram em sintonia a esse respeito com o corpo das alegações que as precedem -, importa, antes demais, atentar no que se mostra vertido nas conclusões, VII, e VIII, XVIII a XIX (e cujo teor deixamos novamente transcrito, apesar de o mesmo já constar da transcrição que acima já deixámos exarado no que concerne à integralidade das conclusões):
« (…) VII. Por conseguinte, a sentença recorrida, ao ter admitido a exculpação da R., infringiu o disposto no já citado art.º 493.º/2 do CC.
VIII. E infringiu esta disposição legal, considerando-se toda a matéria de facto comprovada, que dá por assente o fato/fundamento – queda da A. quando pretendia abandonar o estabelecimento da segurada, com porta de vidro comandada por uma célula electrónica..
(..:
XVII. Mas se porventura, Vossas Excelências considerarem por bem a inevitabilidade de uma prova da queda da recorrente, por efeito do derrube pela porta de vidro automática e de saída do supermercado, então, deverá ser corrigido o elenco dos factos provados, acrescendo este, explicitamente, com base no depoimento da advogada A…, sem razão para ser afastado, como foi, pela sentença recorrida.
XVIII. Afastamento pela sentença recorrida deste depoimento que, no entanto, transcreve no que é fundamental e necessário para a verificação, estimativa e assentar do facto.
XIX. Deste modo, a recorrente está, neste particular, naturalmente dispensada de apresentar transcrição e nota das rotações do depoimento gravado, aceita-se a referência que lhe foi feita na recorrida. (...). » (sublinhado e negrito nossos)
Da leitura conjugada de tais conclusões – que se apresentam, a nosso ver, e salvo e sempre o devido respeito, pouco claras, e mesmo confusas e ambíguas – delas decorre que a apelante entende/defende que o tribunal a quo incorreu em erro no julgamento de direito, pois que perante a da matéria de facto dada como provada (que considera suficiente para o efeito) e do disposto no artº. 492º, nº. 2, do CC (e da inversão do ónus de prova aí estabelecido) tal deveria (e deverá agora) ter conduzido à procedência da ação, com a condenação da ré no pedido.
Todavia, se porventura este o tribunal ad quem assim não entender e considerar necessário/inevitável, para a procedência da ação, a prova da queda da A./apelante, por efeito da porta de vidro automática de saída do estabelecimento, então, nesse caso, deverá ser alterada a matéria de facto dada como provada pelo tribunal a quo, aditando-lhe esse facto, com base no depoimento prestado a esse respeito pela testemunha A… (cfr. particularmente o vertido na transcrita conclusão XVII, a qual, como se deixou já referido, está em sintonia com o alegado a esse respeito no corpo das alegações).
Ora, ressalta do exposto, que a apelante deixa ao critério deste tribunal ad quem a impugnação da decisão de facto, ou seja, e por outras palavras, a referida impugnação da decisão de facto apenas é feita no caso deste tribunal considerar necessário/essencial para procedência da ação a prova do aludido facto.
Porém, a impugnação da decisão/julgamento de facto não tem que suscitar dúvidas, isto é, tem que ser ab initio, desde logo, deduzida, e não ficar dependente do entendimento que o tribunal ad quem possa vir a ter sobre a suficiência ou insuficiência da matéria de facto apurada com vista a dar guarida à pretensão da tutela judiciária requerida pela A./apelante.
E sendo, assim, não se toma conhecimento da referida (eventual) impugnação deduzida pela A./apelante.
3.1.1.3 Diga-se ainda, em passant, que mesmo que, porventura, assim não se entendesse, como se entende, e se considerasse a referida impugnação, a mesma sempre teria de ser rejeitada, e pelo seguinte:
Naquilo que para aqui importa, dispõe o artigo 640º do CPC, sob epígrafe “ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, que:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) (…)
3- (…).” (sublinhado e negrito nossos)
Da leitura de tal preceito legal ressalta que que a lei (adjetiva) impõe ao recorrente que pretenda impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto dois ónus, definindo uma hierarquia entre eles, pois que enquanto no nº. 1 enuncia aqueles que vêm sendo considerados/classificados de ónus principais, já no nº. 2 estão aqueles considerados/classificados por ónus secundários, dado que daqueles estão subordinados ou dependentes.
A razão de ser da exigência desses ónus da especificação, como ressalta do preâmbulo do Dec.- Lei nº. 39/95 de 15/2, reside no visar afastar a possibilidade de o recorrente se limitar “a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo pura e simplesmente a reapreciação de toda a prova produzida em 1ª. instância e manifestando genérica discordância com o decidido”, decorrendo ainda dos princípios estruturantes da cooperação, lealdade e boa fé processuais.
No que concerne ao segundo ónus (imposto pelo nº. 2 do citado artº. 640º) o propósito do legislador ao consagrá-lo parece ser claro: destina-se não tanto a fundamentar e a delimitar o recurso mas, sobretudo, a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida. Ou melhor ainda, facilitar, por um lado, o exercício do contraditório à parte contrária e o acesso, imediato e direto, à prova pelo tribunal de recurso, sem ter que ouvir a totalidade da gravação e, por outro, prevenir as impugnações genéricas e não concretizadas da decisão sobre a matéria de facto.
Ora, in casu, a apelante sustenta a sua (eventual) impugnação da decisão de facto, ao pretender que seja aditada aos factos provados a materialidade factual a que acima se aludiu, no depoimento da testemunha A… (cujo depoimento prestado em audiência de julgamento, a par dos demais depoimentos ali prestados por outras testemunhas e até pelas declarações de parte da A., foi objeto de gravação).
Mesmo que considerasse estarem preenchidos os ónus impostos no nº. 1 do citado preceito legal (embora sem deixar de se referir que tal conclusão é bastante benigna, pois que, como ressalta do acima exarado, a especificação do facto impugnado e do concreto sentido da decisão a proferir mostra-se feita, a nosso ver, de forma vaga e genérica), à mesma conclusão não se poderá chegar no que concerne ao segundo ónus (vg. o previsto na al. a) do nº. 2 do citado preceito legal).
É que em relação ao depoimento da aludida testemunha em que funda, em seu favor, a impugnação a apelante faz tábua rasa do mesmo, não indicando as passagens do registo gravação desse depoimento, e nem menos indica o inicio e o termo desse depoimento.
E nem se diga que fica a apelante dispensada de cumprir esse ónus pelo facto de concordar com as referências a ele feito pelo tribunal a quo na motivação da sua decisão de facto (cfr. conclusão XIX). É que, como acima se deixou expendido, um dos fins visados com a imposição do referido ónus é permitir o acesso, imediato e direto, à prova pelo tribunal de recurso, sem ter que ouvir a totalidade da gravação. Ora, o facto de a apelante aceitar as referencias feitas (na motivação da sua decisão de facto) de pelo tribunal a quo no que concerne ao depoimento dessa testemunha, não dispensa este tribunal ad quem, para formar a sua convicção, de ouvir o depoimento (gravado) dessa testemunha, e inclusive dos demais ali prestados, pois que, como é sabido, na formação da convicção do julgador (neste caso deste tribunal ad quem) não intervém apenas elementos racionalmente demonstráveis, mas também fatores não materializados - vg. através na simples redação ou referencia escrita aos depoimentos - (cfr., a propósito, Michele Taruffo, in “La Prueba de Los Hechos, 2002, pág. 292 e segs.)
Diga-se, por fim, que se assim não fosse, isto é, se este tribunal não tivesse de também formar a sua convicção, e dado que estamos, in casu, perante factos que não estão sujeitos a prova vinculada, bastaria olhar para a decisão de facto proferida pelo tribunal a quo para se verificar, como se verifica, que a mesma se encontra minuciosamente fundamentada, com uma bem estruturada análise critica da prova produzida nos autos (vg. a documental e a ouvida em audiência de julgamento final), com rigoroso cumprimento do disposto no artº. 607º, nº. 4, do CPC, e confirmar a referida decisão em respeito do princípio da livre apreciação das provas pelo julgador (neste caso da 1ª. instância) e da formação da sua convicção (nº. 5 do citado artº. 607º).
Termos, pois, em que perante o que se deixou supra exposto se mantém intangível a matéria de facto, acima descrita, fixada pelo tribunal a quo .
***
4. Quanto à 2ª. questão.

- Da obrigação da ré pagar à autora a quantia indemnizatória que dela reclama nesta ação.
A 2ª. questão acima elencada tem a ver com o julgamento do mérito da causa, e traduz-se, no final, em saber se a ré se constituiu, ou não, na obrigação de indemnizar a autora (e, no caso de resposta afirmativa, em que medida) pelos danos (patrimoniais e não patrimoniais) que sofreu na sequência de uma queda que sofreu no interior do estabelecimento comercial de denominado “...”?
A autora/ora apelante alicerçou, em termos de causa de pedir, essa sua pretensão indemnizatória (no âmbito da responsabilidade) no facto de ter sofrido uma queda no interior do referido estabelecimento comercial (no qual entrara para fazer compras), a qual foi provocada pelo mau/deficiente funcionamento da porta de vidro automática de saída, pois que, quando se aprestava para abandonar o referido estabelecimento com as compras ali feitas, e numa altura em que se encontrava já entre os batentes dessa porta (com os pés assentes na zona da soleira), a referida porta, que é comandada por uma célula eletrónica, disparou o fechamento (quando deveria ter mantido a mesma aberta) projetando-a no solo e para o lado de dentro do estabelecimento.
E foi em razão desse mau/deficiente funcionamento da referida porta que sofreu a aludida queda, e os consequentes danos que descrimina e cuja indemnização reclama agora da ré, em virtude responsabilidade desse sinistro se encontrar transferida para esta à luz do contrato de seguro que a tomadora do mesmo (a sociedade proprietária do dito estabelecimento) com ela celebrara e se encontrava então válido.
A essa questão tribunal a quo respondeu/decidiu que não, louvando-se na seguinte fundamentação que se deixa transcrita:
« (…) Decorre do disposto no art.º 483.º do Código Civil que a obrigação de indemnizar com origem na responsabilidade civil subjectiva depende da verificação cumulativa de determinados pressupostos, a saber: a existência de facto voluntário pelo agente, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Primeiro dos enunciados pressupostos é a existência de um comportamento -que não tem de consistir necessariamente numa acção, podendo traduzir-se numa omissão- posto que seja dominável pela vontade. Todavia, no caso das omissões, e como resulta do disposto no art.º 486.º, a imputação ao agente da conduta omissiva exige que sobre ele recaia o dever de praticar o acto omitido, uma vez que inexiste um dever genérico de evitar a ocorrência de danos. “Daí que para alguém ser responsável por omissão pelos danos sofridos por outrem se exija, para além dos outros pressupostos da responsabilidade delitual, um dever específico, que torne um particular sujeito garante da não ocorrência desses danos”. Tal específico dever pode resultar de contrato ou ser imposto por lei, como ocorre na previsão dos art.ºs 491.º, 492.º e 493.º, havendo que ter em consideração, neste domínio, os denominados deveres de prevenção do perigo (ou, noutra terminologia, deveres de segurança no tráfico), cujo acolhimento permite estender a responsabilidade delitual por omissão a todo aquele que, exercendo o domínio de facto sobre uma coisa, móvel ou imóvel, ou determinada actividade, sendo aquela e esta susceptíveis de causar danos a terceiro, não tome as providências destinadas a evitá-los.
A existência de um dever genérico de prevenção impõe assim ao criador ou mantenedor de uma situação especial de perigo que proceda à sua remoção, sob pena de responder pelos danos provenientes da omissão. Os deveres em causa têm a ver com a prevenção dos perigos em locais privados ou públicos (estradas, edifícios), relacionados com coisas ou actividades perigosas, deles sendo projecção, entre outras, as citadas disposições legais -art.ºs 492.º e 493.º-, nelas surgindo a posição do lesante agravada pela presunção de culpa.
Do n.º 1 do art.º 483.º extraem-se portanto com clareza as modalidades que a ilicitude pode revestir: violação de direitos subjectivos alheios ou de disposições legais destinadas a proteger interesses alheios, incluindo os assinalados deveres de segurança no tráfico, que terão todavia de corresponder a uma norma de conduta cujo desrespeito seja havido como ilícito e cujo conteúdo dependerá da ponderação de diversos factores, como a probabilidade da ocorrência do acidente e efeitos danosos a evitar, das medidas preventivas exigíveis e possibilidade de auto-protecção do lesado, sob pena de “uma ampla construção e admissão de deveres de prevenção do perigo equivaler na realidade à consagração de uma verdadeira responsabilidade pelo risco, que apenas formalmente se ampara nos esquemas da responsabilidade por culpa”.
A culpa exprime-se através de um juízo de reprovabilidade pessoal da conduta do agente que, em face das circunstâncias concretas do caso, podia e devia ter agido de modo a evitar o facto ilícito, e a sua apreciação, na ausência de outro critério legal, afere-se pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso, por força do princípio consagrado no art.º 487.º, n.º 2, do CC.
Finalmente, é necessário que do facto ilícito e culposo resulte um dano – o prejuízo, a perda “in natura” que o lesado sofreu, como consequência do facto, nos seus interesses (materiais, espirituais ou morais) – e que interceda um nexo de causalidade entre o facto e o dano.
No presente caso, ficou demonstrado que no dia 21 de Junho de 2017, pelas 15:45, a Autora sofreu uma queda no estabelecimento do “...”.
Mais ficou provado que esta empresa é tomadora do seguro credenciado pela apólice n.º ..., transferindo assim a sua responsabilidade extracontratual para a Ré.
Ficou ainda demonstrado que na sequência da queda, a Autora foi transportada de ambulância para as Urgências do Hospital da Guarda, tendo continuado com queixas nos dias seguintes e sido assistida por mais duas vezes, nestas mesmas urgências.
No dia da queda, a Autora sofreu dores, angústia, preocupação e stress.
Todavia, não ficou demonstrado que esta queda tenha sido provocada por mau funcionamento da porta de vidro automática do estabelecimento comercial, por falha na supervisão técnica e manutenção ordinária da mesma, por parte da Ré (ou da sua tomadora de seguro), conforme a Autora alega, nem que tenha sido provocada pela altura dos degraus do estabelecimento comercial, conforme alegado pela Ré.
Ora, conforme referido, não existe obrigação de indemnizar sem a imputação ao agente de um acto ou omissão ilícitos, recaindo sobre a Autora o ónus da prova respectiva.
Assim, não tendo ficado demonstrada que a causa da queda é imputável à tomadora do seguro da Ré, não será esta condenada a pagar qualquer valor indemnizatório à Autora, seja por danos patrimoniais, seja por danos não patrimoniais.
Do mesmo modo e sem serem necessárias demais considerações, não será apreciada a excepção peremptória suscitada pela Ré. »
Contra tal entendimento do tribunal a quo (que é também sufragado pela R./apelada) que conduziu à decisão que julgou improcedente a ação, se insurge a A./apelante, defendendo, se bem percebemos, que caindo o caso na previsão do nº. 2 do artº. 493º do CC, e estando provada a sua queda no dito estabelecimento comercial, era sobre a ré que impedia o ónus de prova (por força da presunção de culpa ali estatuída sobre si incidia) de que a proprietária/exploradora do referido estabelecimento comercial tomou todos os procedimentos adequados para evitar a sua queda, e particularmente no que diz respeito ao controle dos dispositivos elétricos que comandam o correto funcionamento da abertura e fecho da porta que provocou a essa queda; prova essa que, no sem entender, que não logrou fazer e daí que tenha que ser responsabilizada pelo evento.
Apreciando.
Importa dizer que, à luz dos factos apurados/dados como provados, nos revemos, na sua essência, no percurso lógico-dedutivo seguido pelo tribunal a quo, feito, a nosso ver, através de uma bem estruturada argumentação esgrimida para o efeito, e que conduziu à solução expressa na decisão final, com uma correta subsunção do direito aos factos apurados.
Todavia, em seu reforço, adiantaremos, ainda que de forma perfunctória, o seguinte:
É inolvidável que nos encontramos no domínio da responsabilidade extracontratual por factos ilícitos, também conhecida por responsabilidade subjetiva ou delitual (prevista no artº. 483º e ss. do Cód. Civil, diploma esse ao qual nos referiremos sempre que doravante mencionarmos somente o normativo sem a indicação da sua fonte).
Como constitui entendimento pacífico, são pressupostos, cumulativos, dessa responsabilidade (que impõe ao lesante a obrigação de indemnizar): a existência de facto voluntário pelo agente, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Esse facto/conduta tanto pode resultar de uma ação como de uma omissão (artº. 486º).
Pressupostos esses cujos ónus de alegação e prova impende ao lesado (artº. 342º, nº. 1), a não ser que beneficie de uma presunção legal (artº. 350º, nº. 1), o que a acontecer transfere para o lesante o ónus de ilidir essa presunção (artº. 350º, nº. 2).
No que concerne à culpa, ou seja, no que diz respeito pressuposto do nexo de imputação do facto ao agente, esse ónus de prova imposto ao lesado é ainda especificamente reforçado pelo artº. 487º.
Acontece que, no domínio daquela responsabilidade, nas situações previstas no artºs. 491º a 493º, e no que concerne ao pressuposto da culpa, abre-se uma exceção àquela regra estabelecida no citado artº. 487º, no sentido de inverter o seu ónus de prova, dele dispensando o lesado.
Entre essas situações importa aqui destacar a prevista no artº. 493º, nº. 2, (por ser este o normativo que a apelante invoca ter sido violado pelo tribunal a quo), onde se dispõe que “quem causar danos a outrem no exercício de uma atividade perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, exceto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir”.
Resulta, assim, desse normativo, que se estabelece nele uma presunção legal de culpa contra quem exerce uma atividade perigosa - perigosidade que tanto pode resultar quer pela própria natureza dessa atividade em si exercida, quer da natureza dos meios nela utilizados -, com a correspondente inversão do ónus de prova, tendo apenas a parte a favor de quem é estabelecida tal presunção que provar o facto que serve de base à mesma (vide, a propósito, Ac. do STJ de 18/1/2000, in “CJ, Acs do STJ, Ano VIII, T1- 39”, os profs. Pires de Lima e Antunes Varela in “Código Civil Anotado, Vol. I, 3ª ed., nota 1, pág. 468”, e o prof, A. Varela, in “Das Obrigações em Geral, Vol. I., 4ª. ed., Almedina, págs. 519/521”).
Nada se diz/define, porém, em tal normativo, o que deve entender-se por “atividades perigosas” – a não ser a admissão, genérica, que a perigosidade derive da própria natureza da atividade ou da natureza dos meios nela utilizados.
Pelo que se nos afigura que a melhor doutrina é que defende que tal matéria terá que ser apreciada à luz de cada caso e segundo as circunstâncias concretas, muito embora se deva partir do conceito abstrato de perigosidade (vide, entre outros, os profs. Pires de Lima e Antunes Varela in “Ob. cit., pág. 469, nota 3”).
Tendo presente o que que se deixou exposto, e respondendo, de forma mais incisiva, à questão acima colocada, diremos:
Afigura-se-nos ser patente que atividade exercida por quem explora estabelecimento comercial (um supermercado - que se dedica, infere-se, da matéria factual, à venda de produtos alimentares a consumidores) onde ocorreu a queda da autora não é em si, isto é, pela sua natureza, perigosa.
Mas mesmo que porventura se possa considerar a porta de saída (também de entrada, deduz-se) do referido estabelecimento comercial - dada sua natureza e modo de funcionamento (porta de vidro, automática e comandada por uma célula eletrónica – cfr. pontos 5) e 13) - um meio de utilização perigoso, sempre a ação estaria condenada a soçobrar pelas razões que se passam a adiantar.
A autora, como vimos, alegou que a sua queda (que lhe veio a provocar os invocados danos cujo ressarcimento reclama) foi causada pela referida porta do estabelecimento e devido ao mau/deficiente funcionamento da mesma.
Sendo assim, não bastava à autora provar a referida queda no estabelecimento, necessário se tornava a prova também de que a mesma foi provocada pela dita porta.
Feita a essa prova - e face à inversão do ónus de prova decorrente da presunção de culpa derivada do citado artº. 493º, nº. 2 – competia e então à ré demonstrar/provar que a referida porta se encontrava em perfeitas condições de funcionamento ou então que a sua segurada (proprietária/exploradora do estabelecimento) tomou todas providências para que tal acontecesse, não lhe sendo exigível, no caso, outro comportamento.
Ora, cotejando a materialidade factual apurada, dela resulta não só que a autora não logrou fazer a prova de tal facto, ou seja, de que a sua queda foi causada pelo funcionamento da dita porta, como inclusive dela ressalta, por um lado, que a ré fez prova do contrário, ou seja, de que a referida queda não foi provocada por essa porta mas antes se ficou a dever a uma causa natural exclusivamente a ela própria ligada, isto é, ao facto de (antes de ter chegado sequer junto dessa porta) se ter desequilibrado (por motivos relacionados com a sua elevada idade, com as dificuldades de locomoção que sentia e com os antecedentes que determinaram a colocação de uma prótese na sua anca), e, por um outro lado, fez prova ainda que a dita porta não padecia de anomalias no seu funcionamento, sendo certo ainda que (muito embora nem sequer ficasse provado que a queda ocorre nelas ou por causa delas) os degraus que antecedem essa porta tem as medidas legais regulamentares, elidindo assim, desse modo, a ré qualquer presunção de culpa que sobre ela pudesse porventura derivar acima citado artº. 493º, nº. 2, (cfr., nomeadamente, os pontos 12), 11), 13, e ainda as als. A) a D) dos factos não provados).
Fica, assim patente, que que não se mostram, desde logo, preenchidos os pressupostos legais do facto (neste caso, por omissão de conduta), da ilicitude, da culpa e do nexo de causalidade entre esse facto e os danos de que atrás demos conta e que pressupunham à imposição à ré da obrigação de indemnizar à A. pelos danos sofridos com a dita queda.
Termos, pois, em que, perante tudo o que se deixou exposto, se decide julgar improcedente o recurso e confirmar a sentença recorrida.

III- Decisão

Assim, em face do exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença da 1ª. instância.
Custas pela A./apelante.
Sumário
I- No domínio da responsabilidade extracontratual por factos ilícitos são pressupostos, cumulativos, dessa responsabilidade (que impõe ao lesante a obrigação de indemnizar): a existência de um facto voluntário praticado pelo agente lesante, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
II- Esse facto/conduta tanto pode resultar de uma ação como de uma omissão.
III- Pressupostos esses cujos ónus de alegação e prova impende ao lesado, a não ser que beneficie de uma presunção legal, o que a acontecer transfere para o lesante o ónus de elidir essa presunção.
IV- Entre a situações que, no domínio dessa responsabilidade, invertem tal ónus de prova, estabelecendo uma presunção de culpa contra o lesante encontra-se aquela prevista no artº. 493º, nº. 2, do C. Civil.
V- Na verdade, nesse normativo estabelece-se uma presunção legal de culpa contra quem exerce uma atividade perigosa - perigosidade que tanto pode resultar quer pela própria natureza dessa atividade em si exercida, quer da natureza dos meios nela utilizados -, com a correspondente inversão do ónus de prova, tendo apenas a parte a favor de quem é estabelecida tal presunção o ónus de provar o facto que serve de base à mesma.
VI- Não concretizando/definindo a lei o que deve entender-se por “atividades perigosas” - limitando-se à admissão genérica de que a perigosidade derive da própria natureza da atividade ou da natureza dos meios nela utilizados -, deverá, assim, tal matéria ser apreciada à luz de cada caso e segundo as circunstâncias concretas da ocorrência do mesmo.
Coimbra, 18/05/2021