Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
202/09.4GDLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
OBTENÇÃO DE PROVA
ALCOOLÉMIA
EXAME SANGUÍNEO
PRINCÍPIO DO IN DUBIO PRO REO
Data do Acordão: 09/15/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: 152º,156ºE 158º DO CE;124º,127º E 171º DO CPP
Sumário: 1.Se a decisão sobre a matéria de facto do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.
2.A dúvida que leva o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras, ainda uma dúvida que impeça a convicção do tribunal.
3. A colheita de amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool efectuada por médico em estabelecimento oficial de saúde a condutor que intervenha em acidente de viação não viola as normas constitucionais dos artigos 25º e 32º da CRP.
Decisão Texto Integral: 17

I – Relatório.
1.1. F já melhor identificado nos autos, depois de submetido a julgamento, porquanto indiciado pela prática, em autoria material, de factos susceptíveis de integrarem um crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido através das disposições conjugadas dos artigos 292.º e 69.º, n.º 1, ambos do Código Penal, acabou por isso condenado na pena principal de 80 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, isto é, na multa global de € 400,00, bem como, ainda, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, durante o período de 4 meses.
1.2. Mostrando-se irresignado com tal veredicto, recorre o arguido, extraindo da motivação com que instruiu o respectivo requerimento de interposição, as conclusões seguintes:
1.2.1. Pese embora a convicção do Tribunal de 1.ª instância no que concerne à facticidade típica e culpabilidade tenha sido fundada nas declarações das testemunhas C e P, certo é que, ressalvado o devido respeito, não se poderá ter a mesma por segura.
1.2.2. Pois a matéria que o Tribunal a quo deu como provada na sentença recorrida e os fundamentos que para tanto invocou não são de todo suficientes para se decidir como o fez, pela condenação do arguido, tout court.
1.2.3. Acresce não ter sido feita prova – muito menos directa –, dos factos que se imputavam ao arguido, tendo-se cingido o Tribunal sindicado a provas meramente indiciárias e opinatórias, que não afirmativas.
1.2.4. Analisadas as declarações das mencionadas testemunhas de acusação, não resulta provado por qualquer forma ter sido o arguido quem conduziu, no dia 10 de.. de 2009, a viatura automóvel matricula 13-…, em diversas vias públicas do concelho de Leiria, nomeadamente pela 01.00 horas, na Estrada Nacional n.º 109, ao Km 147,900, localidade de Monte Redondo.
1.2.5. Em tais declarações apenas se relata a forma pela qual essas testemunhas adquiriram a convicção ou presumiram que o arguido era o condutor daquele veículo. Com efeito,
1.2.6. Das declarações do agente C, não se pode retirar que fosse o arguido a pessoa que conduzia o veículo aquando do despiste, até porque segundo o próprio afirmou “o senhor já não estava lá no local”, “Já tinha sido transportado para o hospital… exacto”. Isto é, a testemunha não contactou pessoalmente com o arguido, nem com os bombeiros, ou com qualquer outra pessoa; não os viu, atendendo a que não se encontravam no local e daí que não poderia ter identificado, em sede de audiência de julgamento, o arguido como sendo a pessoa que esteve no acidente ao qual foi chamado no exercício das suas funções. Acresce, ainda, que a identificação do arguido no hospital foi realizada pelo comando de Leiria, e não por esta testemunha.
1.2.7. Por outro lado, o depoimento da testemunha P mostrou-se contraditório com o antes prestado, pois que referiu ter-se deslocado ao local do acidente acompanhado pelo seu colega (C), onde tomaram ocorrência do acidente [“o senhor estava no local, estava dentro da ambulância a ser assistido”].
1.2.8. Ou seja, ocorreu manifesta incongruência e contradição entre os depoimentos colhidos a tais testemunhas.
1.2.9. Para decisão e condenação do arguido não pode o Tribunal concluir que a pessoa que se encontre ferida no local do acidente, e a quem são prestados socorros, é efectivamente o condutor do veículo sinistrado.
In casu, acresce que nenhum dos apontados membros da GNR referiu ter visualizado o arguido dentro do carro sinistrado; no banco do condutor; terem abordado alguém que lhes assegurasse de uma forma ou de outra que era o arguido o respectivo condutor do veiculo na altura do despiste, etc, etc.
1.2.10. Do que ademais decorre que o exame crítico das provas, além de deficiente, assenta em premissas erradas, ou, pelo menos, duvidosas.
Concretizando, sendo certo que o Tribunal a quo enumerou os meios de prova que alicerçaram a sua convicção, não menos verdade é que o seu conteúdo e pressuposto está em desconformidade com o verdadeiro conteúdo ou pressuposto dos meios de prova.
1.2.11. Incorrendo, consequentemente, em preterição ao princípio do in dúbio pro reo, corolário da presunção de inocência de que beneficiava o recorrente, e em violação aos princípios de garantia de defesa que lhe são constitucional e igualmente reconhecidos.
1.2.12. E cominando a sentença recorrida com os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto e de erro notório na apreciação da prova, conforme artigo 410.º, n.º 2, alíneas a) e c), do Código de Processo Penal, respectivamente.
1.2.13. A lei processual penal considera nulas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa humana.
1.2.14. O nosso ordenamento jurídico, considera tão importante o respeito pela civilidade dos meios de obtenção de prova, que consagrou constitucionalmente no artigo 32.º a nulidade das provas obtidas por meios que de uma forma ou de outra violam a dignidade da pessoa humana, os princípios de Direito Penal ou outros direitos constitucionalmente consagrados.
1.2.15. Não pode considerar-se como Estado de direito democrático aquele que permite a condenação dos seus cidadãos com base em provas obtidas por meios desumanos, desleais ou violadores de princípios constitucionalmente consagrados. O edifício jurídico-constitucional é demasiado precioso para se permitir que possa ser alvo de embates cíclicos por força de interesses de investigação criminal mais ou menos prementes em cada momento da vida do País.
1.2.16. A recolha de sangue, para exame como procedimento de obtenção de prova, implica necessariamente uma violação da integridade física da pessoa humana.
1.2.17. Mas, ainda que assim não se entenda, sempre terá de concordar-se que a utilização do resultado do exame de recolha e análise de sangue como meio de prova para efeitos criminais, quaisquer que estes sejam, viola a integridade moral do arguido expressamente protegida através dos artigos 25.º, n.º 1 e 32.º, n.ºs 1, 2 e 8 da Lei Fundamental, bem como do artigo 126.º, in totum, da lei adjectiva penal.
1.2.18. A recolha de álcool no sangue do condutor interveniente em acidente de viação encontra-se regulada no artigo 156.º do Código da Estrada. Assim, se o estado de saúde do condutor o permitir, realiza-se o exame através do ar expirado, com o respectivo aparelho, tal como dispõe o artigo 153.º, n.º 1. Mas, se em consequência do acidente, não for possível realizar o exame de pesquisa de álcool no ar expirado através de aparelho alcoolímetro, entra-se na previsão do n.º 2 do citado artigo 156.º,
1.2.19. Ou seja, o médico do estabelecimento oficial de saúde a que o interveniente no acidente seja conduzido, deve proceder à colheita de amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool, e, se, ainda por qualquer outro motivo, esta pesquisa de álcool no sangue não puder ser feita, então procede-se a exame médico para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool (n.º 3).
1.2.20. No caso presente, o arguido não foi esclarecido quanto à finalidade da recolha de sangue que lhe foi feita para determinação da TAS.
Uma vez que estava ferido na sequência do acidente de viação que sofrera, desconhecia o destino a dar àquele seu material biológico.
1.2.21. Ainda que o arguido não tivesse um verdadeiro direito de recusar a recolha de sangue para análise, pois que se não mostra esse direito legalmente consagrado no indicado artigo 156.º, é óbvio que tal recusa poderia verificar-se, embora sujeitando-se ele a sanção penal enquanto crime de desobediência tipificado pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal (cfr. neste sentido, o Acórdão prolatado pelo Tribunal da Relação do Porto, em 9 de Dezembro de 2009, e acessível no site www.dgsi.pt).
1.2.22. Na situação presente, porque a recolha do material biológico do arguido ocorreu sem que o mesmo haja sido informado do fim dessa colheita e, inclusive, sem o seu prévio consentimento, mostra-se tal operação inquinada por omissão de um procedimento essencial ao seu direito fundamental a um processo penal justo: o direito a saber que a recolha de sangue em causa era para efeitos de eventual responsabilização criminal e, assim, poder fazer valer o seu direito processual penal a não se auto-incrimar.
1.2.23. Nesta medida, aliás, para que o suprimento do direito de o condutor/sinistrado poder livremente recusar a colheita de sangue para efeitos de análise ao grau de alcoolémia de que seja portador, a alteração legislativa há de conceber-se como transportando um conteúdo autónomo, necessitava o legislador governamental da autorização legislativa, já que a decisão normativa primária cabia à Assembleia da República, ex vi da alínea c) do n.º 1, do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa.
1.2.24. O que redunda em que a actual colheita de sangue para tais fins, ao abrigo dos vigentes artigos 152.º, n.º 3; 153.º, n.º 8 e 156.º, n.º 2, todos do Código da Estrada, na redacção introduzida através do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro – sendo a do último preceito já desde a redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 265-A/2001, de 28 de Setembro –, sem possibilitar ao condutor a sua recusa, está ferida de inconstitucionalidade orgânica.
Terminou pedindo que no provimento do recurso se reconheça a ilegalidade da prova obtida, a qual não poderá, então, produzir qualquer efeito em Juízo.
1.3. Cumprido que foi o disposto pelo artigo 413.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, respondeu o Ministério Público, sustentando a manutenção do sentenciado.
Admitido o recurso, foram os autos remetidos a esta instância.
1.4. Aqui, com vista nos termos do artigo 416.º do mencionado diploma adjectivo, pronunciou-se o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitindo parecer conducente a idêntica subsistência do decidido.
1.5. Mostra-se acatado o estatuído pelo artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
No exame preliminar a que alude o n.º 6 deste inciso, consignou-se não interceder causa impeditiva do conhecimento do recurso.
Conhecimento que não através de decisão sumária, donde que determinado o seu prosseguimento, com recolha dos vistos e submissão à presente conferência.
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II – Fundamentação de facto.
2.1. A matéria de facto acolhida como provada na decisão recorrida, mostra-se como segue:
2.1.1. Relativa à Culpabilidade
- No dia 11 de… de 2009, o arguido conduzia o veículo automóvel de matrícula 13-.. na Estrada Nacional 109, na localidade de Monte Redondo, Leiria.
- Ao Km 147.900 o arguido sofreu um acidente por despiste, tendo sido conduzido pelos bombeiros ao Hospital de André de Leiria.
- No Hospital foi recolhido sangue, e, a respectiva amostra, enviada para a Delegação Sul do Centro do Instituto Nacional de Medicina Legal IP.
- Submetido o sangue a exame laboratorial, revelou uma TAS de 1,48g/l.
- O arguido sabia que não podia circular na via pública, conduzindo o veículo, sendo portador de uma T.A.S. considerada pela lei como crime, e não obstante isso, conduziu-o.
- O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
2.1.2. Relativa à determinação da sanção penal
- O arguido está desempregado.
- O arguido vive com a mãe de 78 anos de idade e um filho de 8 anos, em casa própria daquela.
- A mãe do arguido aufere uma pensão de reforma de € 500,00 e o arguido recebe € 150,00 da mãe do filho a título de alimentos ao menor.
- O arguido tem os seguintes antecedentes:
- Em 27-…-2005, o arguido foi condenado pela prática em 02-08-2003 de um crime de desobediência, na pena de 60 dias de multa à taxa diária de € 6,00.
- Em 18-..-2007 o arguido foi condenado pela prática em 02-08-2003 de um crime de condução em estado de embriaguez, na pena de 70 dias de multa à taxa diária de € 2,00 e na pena acessória de proibição de condução de veículos por um período de 3 meses.
2.2. Por seu turno, relativamente a factos não provados, consignou-se enquanto tal na mesma decisão:
Inexistem factos não provados.
2.3. Por último, tem o teor seguinte a respectiva motivação probatória:
A convicção do Tribunal, no que concerne à facticidade típica e culpabilidade fundou-se nas declarações das testemunhas C e P, ambos agente da G.N.R. nos termos que a seguir se expõe.
C, identificou o arguido como sendo a pessoa que esteve no acidente ao qual foi chamado no exercício das suas funções, tendo referido que identificou aos bombeiros com quem falou no hospital o local no qual ocorreu o acidente, para que não houvesse dúvidas quanto à identidade do arguido e à propriedade do sangue recolhido.
P também reconheceu o arguido e descreveu todo o processo de aquisição de dados para preenchimento do auto de notícia, bem como de acompanhamento ao hospital. Referiu ainda que quando chegou ao local o arguido estava dentro da ambulância a ser socorrido.
Resultou da congruência dos depoimentos prestados pelas testemunhas referidas, não apenas a identidade do participante no acidente, como sendo o arguido, mas sobretudo (e no que aqui importa, uma vez que foi questão suscitada pela defesa) a segurança de todo o procedimento de identificação do arguido, acompanhamento deste ao hospital, recolha de sangue e conexão entre o sangue recolhido e o arguido seu proprietário, não havendo por isso qualquer duvida que a amostra de sangue recolhida era do arguido.
As declarações prestadas pelo arguido que apenas referiu não se lembrar de nada, em nada acrescentam ou modificam a facticidade imputada.
No que concerne às condições sócio económicas do arguido, o tribunal ponderou as declarações prestadas pelo arguido e o CRC emitido em 14-12-2009 relativamente aos antecedentes criminais.
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III – Fundamentação de Direito.
3.1. Como é consabido, o âmbito do recurso define-se através das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação Cfr., o artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal., mas isto sem prejuízo do conhecimento, inclusive oficioso, dos vícios ou das nulidades insanáveis referidos/as, respectivamente, nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º, do mesmo diploma Cfr., ainda, o Ac. do STJ n.º 7/95, em interpretação obrigatória.

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In casu, sendo certo que se nos não antolha emergir quaisquer um de tais vícios ou nulidades determinantes à apontada intervenção oficiosa, lendo-se as conclusões extraídas pelo arguido da respectiva motivação, resulta constituir thema decidendum o aquilatarmos se a recolha de sangue a que o mesmo foi submetido e determinou a sua condenação nos autos, se mostra como meio ilegal (proibido) de prova, atento o disposto nos artigos 25.º, n.º 1 e 32.º, n.ºs 1, 2 e 8 da Lei Fundamental, bem como no artigo 126.º, in totum, da lei adjectiva penal.
Restrição que se faz porquanto, atentando-se nas ditas conclusões, o que em rigor emerge é que a desconsideração feita ao juízo conclusivo probatório do Tribunal a quo pelo recorrente – indevida ponderação dos testemunhos dos agentes C e P; preterição ao princípio do in dúbio pro reo, bem como, ainda, incorrência, na decisão recorrida, aos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto e de erro notório na apreciação da prova – tudo decorre dessa ilegalidade.
Todavia, mostra-se sem razão o assim expendido.
Com efeito:
3.2. De acordo com o estatuído pelo artigo 127.º, do Código de Processo Penal, “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”
Ou seja, com excepção da prova vinculada, é, pois, no equilíbrio destas duas vertentes – as regras da experiência e a livre convicção do julgador – que a prova há-de ser apreciada.
Este princípio da livre apreciação da prova é válido em todas as fases processuais, mas é no julgamento que assume particular relevo. Não que se trate de prova arbitrária, no sentido de o juiz decidir conforme assim o desejar, ultrapassando as provas produzidas. A convicção do juiz não deverá ser puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável. Tal decorre do artigo 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, quando estatui que a sentença deverá conter “uma exposição tanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentaram a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal.”
Mas a decisão do juiz há-de ser sempre uma “convicção pessoal” – até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g., a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais Cfr. Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra Editora, Vol. I, ed. 1974, pág. 204..
Por outro lado, a livre apreciação da prova é indissociável do princípio da oralidade.
Como ensinava o Prof. Alberto dos Reis, “a oralidade, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de se extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do principio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema de prova legal”. E concluía aquele Professor, citando Chiovenda, que “ao juiz que haja de julgar segundo o princípio da livre apreciação da prova é tão indispensável a oralidade, como o ar é necessário para respirar.”
O indicado artigo 127.º indica-nos um limite à discricionariedade do julgador: as regras da experiência e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.
Assim, a exposição tanto possível completa sobre os critérios lógicos que constituíram o substrato racional da decisão – citado artigo 374.º, n.º 2 – não pode colidir com as regras da experiência.
Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção. Na mencionada obra, a este propósito refere o Prof. Figueiredo Dias Págs. 233/234.: “Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efectivos e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao principio da escrita, desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha, e que derivava sobretudo de com ele se tornar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento (…). De qualquer modo, desde o momento em que – ­sobretudo por influxo das ideais da prevenção especial – se reconheceu a primacial importância da consideração da personalidade do arguido no processo penal, não mais se podia duvidar da absoluta prevalência a conferir aos princípios da oralidade e da imediação. Só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais.”
A impugnação da matéria de facto para ser validamente exercitada, faz recair sobre o sujeito processual interessado, determinados ónus – cfr. artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do diploma adjectivo penal -.
No caso vertente, descurando até do incumprimento pelo arguido destes ónus, o que pode afoitamente dizer-se é que nenhuma censura pode fazer-se ao juízo fáctico conclusivo do Tribunal a quo.
Compulsando-se os autos e os depoimentos invocados, o que sobressai é que os agentes mencionados, que se encontravam de serviço às ocorrências no horário 00.00/08.00 horas do dia 11 de .. de 2009, após serem alertados, via rádio, para a eclosão de um acidente de viação com um ferido leve, se dirigiram ao respectivo local. Aí, constataram que o condutor do veículo despistado se encontrava já a ser socorrido pelos Bombeiros locais (pese embora uma dissontonia entre ambos os depoimentos), sendo, após, transportado para o Hospital Distrito de Leiria. De acordo com as regras usuais de procedimentos, solicitaram, então, aos colegas de patrulha da área que se deslocassem a este estabelecimento de saúde, a fim de que precisada a identificação do sinistrado fosse, nomeadamente, o mesmo sujeito a um teste de pesquisa de álcool no sangue. Limitou-se a primeira testemunha, porque a autuante, a aguardar o recebimento do resultado do exame indicado, tramitando o expediente subsequentemente. Devidamente instadas, explicitaram ambas as testemunhas as cautelas que, em situações similares, seguem para identificação completa do interveniente no sinistro: indicação do local do acidente; informação sobre a sua identificação completa, caso seja susceptível de obtenção imediata, referenciação do corpo de bombeiros que eventualmente transportou o interveniente, o caso concreto; recolha pelos elementos da patrulha a quem comunicam o incidente destes mesmos elementos, tudo para que fique explícito, fora de dúvidas, o efectivo interveniente e conformidade do exame a que tenha sido sujeito.
Neste circunspecto, arredada a verificação presencial dos factos pelos indicados elementos (sem olvidarmos que o segundo tomou uma atitude de maior reserva, porquanto não participante, mas sempre reconhecendo que o arguido estava já no interior da ambulância a receber assistência), tudo conjugado, segundo as regras de presunção naturais, de acordo com as regras da experiência comum o juízo conclusivo do Tribunal a quo, ademais estribado no exame realizado ao recorrente, como sobressai da fundamentação da sentença impugnada.
3.3. Subsequente censura que lhe vem assacada, o de pretensa violação ao princípio do in dúbio pro reo que, constituindo uma emanação do princípio da presunção de inocência, surgiu como resposta ao problema da incerteza em processo penal, impondo a absolvição do acusado quando a produção de prova não permita resolver a dúvida inicial que está na base do processo. Se, a final, persiste uma dúvida razoável e insanável acerca da culpabilidade ou dos concretos contornos da actuação do acusado, esse non liquet na questão da prova tem de ser resolvido a seu favor, sob pena de violação do dito princípio.
Em todo o caso, convém não olvidar que na aplicação da regra processual da «livre apreciação da prova» (ut apontado artigo 127.º, não haverá que lançar mão, limitando-a, deste princípio (do in dúbio pro reo), se a prova produzida [ainda que «indirecta»], depois de avaliada segundo as regras da experiência e a liberdade de apreciação da prova, não conduzir à subsistência no espírito do tribunal de uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto.
Isto porquanto e com efeito, o in dúbio pro reoparte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador.” Cfr. Cristina Líbano Monteiro, In Dúbio Pro Reo, Coimbra, 1997.

A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade. Nessa tarefa, o juiz lança-se à procura do «realmente acontecido» conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o «agarrar». E, por isso, é que, nos casos em que as regras da experiência, a razoabilidade e a liberdade de apreciação da prova convencerem da verdade da acusação (Suscitando, a propósito, “uma firme certeza do julgador”, sem que concomitantemente “subsista no espírito do tribunal uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto”.), não há lugar à intervenção da contra face (de que a «face» é a «livre convicção») da intenção de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva que é o in dúbio pro reo (cuja pertinência «partiria da dúvida, suporia a dúvida e se destinaria a permitir uma decisão judicial que visse ameaçada a sua concretização por carência de uma firme certeza do julgador»).
A prova, o processo probatório traduz-se em verificar cada um dos enunciados factuais pertinentes para a apreciação e decisão da causa. Para o prosseguir, o tribunal está munido de uma racionalidade própria, em parte comum só a ela e que pode apelidar-se de razoável. A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade: no trabalho de verificação dos enunciados factuais, a posição do investigador-juíz pode, de algum modo, assimilar-se à do historiador: tanto um como o outro, irremediavelmente situados num qualquer presente, procuram reconstituir algo que se passou antes e que não é reprodutível. Donde que não seja qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido, mas apenas a chamada dúvida razoável (“a doubt for which reasons can be given”)». Isto porque nos actos humanos nunca se dá uma certeza contra a qual não militem alguns motivos de dúvida. Assim, pedir uma certeza absoluta para orientar a actuação seria, por conseguinte, o mesmo que exigir o impossível e, em termos práticos, paralisar as decisões morais. A dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal.
A sua violação há-de resultar do texto da decisão recorrida, integrando, una voce, o vício de erro notório Cfr. por todos o Ac. do STJ, de 15 de Abril de 1998, in BMJ, 476/82..
Ora, lendo-se a decisão recorrida, e só este texto, em ponto algum se denota que a M.ma julgadora, confrontada com qualquer dúvida sobre a forma da ocorrência dos factos, haja decidido desfavoravelmente ao recorrente. Antes, categoricamente, estabeleceu o acervo factual de acordo com meios legais de prova produzidos em audiência.
3.4. Por fim, assacado à decisão recorrida o haver incorrido em dois dos vícios plasmados no citado artigo 410.º, n.º 2.
Consabendo-se a sua definição estrutural, que aqui nos dispensamos de fazer, lendo-se mais uma vez o texto da decisão impugnada, e só ele, em ponto algum se vislumbra uma insuficiência de factos para a decisão assumida (coisa distinta de diferente interpretação acerca do valor da prova produzida, o que se limita a fazer o recorrente), além de que também dele não emerge um vício de raciocínio na apreciação das provas, patente aos olhos do homem médio, traduzido em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido.
3.5. Punctum saliens da alegação do recorrente, o que contende com a sua submissão ao teste de pesquisa de álcool no sangue.
Relembremos dois dos preceitos do regime actualmente vigente, porque a propósito para o caso sub judice:
Artigo 153.º, do Código da Estrada, sob a epígrafe “Fiscalização da condução sob influência de álcool”:
1 - O exame de pesquisa de álcool no ar expirado é realizado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito.
2 - Se o resultado do exame previsto no número anterior for positivo, a autoridade ou o agente de autoridade deve notificar o examinando, por escrito, ou, se tal não for possível, verbalmente, daquele resultado, das sanções legais dele decorrentes, de que pode, de imediato, requerer a realização de contraprova e de que deve suportar todas as despesas originadas por esta contraprova no caso de resultado positivo.
3 - A contraprova referida no número anterior deve ser realizada por um dos seguintes meios, de acordo com a vontade do examinando:
a) Novo exame, a efectuar através de aparelho aprovado;
b) Análise de sangue.
4 – No caso de opção pelo novo exame previsto na alínea a) do número anterior, o examinando deve ser, de imediato, a ele sujeito e, se necessário, conduzido a local onde o referido exame possa ser efectuado.
5 – Se o examinando preferir a realização de uma análise de sangue, deve ser conduzido, o mais rapidamente possível, a um estabelecimento oficial de saúde, a fim de ser colhida a quantidade de sangue necessária para o efeito.
6 – O resultado da contraprova prevalece sobre o resultado do exame inicial.
(…)
8 – Se não for possível a realização de prova por pesquisa de álcool no ar expirado, o examinando deve ser submetido a colheita de sangue para análise ou, se esta não for possível por razões médicas, deve ser realizado exame médico, em estabelecimento oficial de saúde, para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool.”
Artigo 156.º, do mesmo diploma, sob a epígrafe “Exames em caso de acidente”:
1 – Os condutores e os peões que intervenham em acidente de trânsito devem, sempre que o seu estado de saúde o permitir, ser submetidos a exame de pesquisa de álcool no ar expirado, nos termos do artigo 153.º.
2 – Quando não tiver sido possível a realização do exame referido no número anterior, o médico do estabelecimento oficial de saúde a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos deve proceder á colheita da amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool.
3 – Se o exame de pesquisa de álcool no sangue não puder ser feito, deve proceder-se a exame médico para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool.
(…).
Buscando pretenso arrimo na argumentação expendida em dois arestos Mencionado aresto de 09.12.2009, bem como, ainda, o exarado pelo Tribunal Constitucional, sob o n.º 647/08, de 27 de Maio de 2009, e acessível no site www.tribunalconstitucional.pt., insurge-se o arguido alegando não ter sido elucidado quanto à finalidade da recolha de sangue que lhe foi feita no Hospital de Leira, desconhecendo, nomeadamente, o destino que ia ser dado àquele seu material biológico; depois, alegando que a recolha de amostra de sangue para análise, de condutor sinistrado, transportado a um estabelecimento de saúde, efectuada sem o mesmo ter conhecimento do fim da colheita padece de inconstitucionalidade orgânica; por fim, aduzindo que a concreta recolha de sangue feita para determinação do seu grau de alcoolemia, o foi com ofensa á sua integridade física, donde que constitua prova ilegal, inválida ou nula, insusceptível de assumir valor probatório em juízo.
Constituindo um método de obtenção das provas legalmente previsto para os casos de condutores intervenientes em acidentes de viação (como era o recorrente), não menos verdade é que hipóteses existirão nas quais poderá tal procedimento redundar em uma indevida ofensa a direitos constitucionalmente reconhecidos ao mesmo – v.g., à integridade física e moral; à não auto-incriminação –.
Valerá, então, o brocardo de cada caso é um caso.
Na situação presente, a sentença recorrida, porque nada nos autos acarretava distinta solução, concluiu que o exame realizado o fora a coberto dos mandamentos dos elencados artigos 153.º e 156.º.
Isto porquanto também tinha o arguido, na altura, capacidade volitiva para tomar consciência do acto de recolha de sangue para efeitos de análise ao álcool e para recusar ou consentir no mesmo. Daí que tivesse alternativa de procedimento: ou se submetia à sua realização, ou, facultava então ao médico o recurso à previsão do n.º 3 do último inciso.
Conclusão conforme às regras da experiência comum, por forma alguma infirmadas pelo recorrente, que apenas em sede de recurso invoca a incapacidade de avaliação relativamente à recolha de sangue efectuada.
Acresce ser demasiado célere a alegação segundo a qual este tipo de exame redunda, necessariamente, num “acto invasivo” no corpo do condutor, logo, atentatório da sua integridade física e moral.
É que, como bem retorquiu o Ministério Público, em 1.ª instância, o conceito de “invasivo” é, neste momento, em termos clínicos, muito ténue, além de comummente aceite pelo cidadão, não traduzindo qualquer dor relevante, prejuízo para a saúde ou qualquer outro malefício que aconselhe clinicamente a sua não prática. Aliás, de não menosprezarmos, inclusive, que até poderá estar em causa um superior interesse de natureza e ordem pública, qual seja o de o Estado acautelar, punindo criminalmente, se necessário, a condução sob o estado de influenciado pelo álcool. Noutros termos, e com rigor, poderá estar mesmo em causa eventual interesse legítimo e relevante de terceiro lesado com a actuação do condutor, não sendo indiferente para averiguação da eventual culpa, o estado de influenciado ou não pelo álcool, do condutor.
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IV – Decisão.
São tudo termos pelos quais negamos provimento ao recurso interposto.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 4 UCs.
Notifique.
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Coimbra, 15 de Setembro de 2010