Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1162/10.4TXCBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: LIBERDADE CONDICIONAL
RENOVAÇÃO DA INSTÂNCIA
Data do Acordão: 01/12/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DE PENAS DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 180º DO CÓDIGO DA EXECUÇÃO DAS PENAS E MEDIDAS PRIVATIVAS DA LIBERDADE(LEI 115/09-12/10)
Sumário: A renovação da instância de 12 em 12 meses prevista no artigo 180º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade para o processo de liberdade condicional deve ocorrer enquanto não for concedida a liberdade condicional e não apenas até aos 2/3 nas penas até 6 anos ou até aos 5/6 nas penas superiores a seis anos.
Decisão Texto Integral: I. Relatório
No âmbito do processo gracioso de liberdade condicional 1162/10.4TXCBR do Tribunal de Execução de Penas respeitante ao arguido P... que cumpre a pena de cinco anos e nove meses de prisão e que atingiu os dois terços daquela em 26.5.2010, em 10.5.2010 foi proferida decisão que recusou a liberdade condicional e onde se mencionou que não há lugar a qualquer renovação da instância.

Em 17.5.2010 o Ministério Público requereu que fosse determinada a renovação da instância para 10.5.2011 nos termos do artigo 180º, nº 1 do CEPML.

A Mmª Juiz a quo proferiu despacho em 24.5.2010, indeferindo o requerido.

Inconformado com o teor deste despacho, dele recorreu o Ministério Público, extraindo da respectiva motivação do recurso as seguintes conclusões:
1. Não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso
2. O Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade veio acrescentar às apreciações da liberdade condicional previstas no Código Penal as que resultam da renovação anual da instância.
3. Sem prejuízo das apreciações pela metade, dois terços e cinco sextos (se a tal houver lugar), a liberdade condicional é apreciada um ano a seguir à metade e sucessivamente um ano depois, até ao fim da pena ou à libertação condicional.
4. Foi violada, entre outras, a norma do n° 1 do artigo 1800 do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade
Termos em que, com os do douto suprimento de V.Exas., deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e determinando-se a renovação da instância, pois assim é de DIREITO e só assim se fará JUSTIÇA!

Notificado, o arguido respondeu ao recurso, concluindo o seguinte:
1ª. O art. 180°, n° I do CEPMPL, mantendo as apreciações a metade, 2/3 e, eventualmente, 5/6 do cumprimento da pena pelo condenado com vista à concessão de liberdade condicional previstas no art. 61 ° do Código Penal, veio acrescentar a estas as que resultam da renovação anual da instância nos casos em que a liberdade condicional não tenha sido concedida e a prisão haja de prosseguir por mais de um ano.
2ª. Não pode, pois, subsistir a decisão recorrida, que decidiu mal ao considerar não haver lugar no caso concreto à renovação anual da instância.
Deve ser dado por V. Exas. provimento ao presente recurso, com as inerentes consequências legais, revogando-se a decisão recorrida e ordenando-se a sua substituição por outra que determine a renovação da instância para efeitos de apreciação da concessão da liberdade condicional ao arguido nos termos do art. 180°, n" 1 do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas de Liberdade, aprovado pela Lei n° 115/2009, de 12 de Outubro,
Com o que farão inteira e costumada JUSTIÇA.

Admitido o recurso, a Mmª Juiz a quo manteve a decisão recorrida.

Nesta Relação o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer acompanhando a motivação de recurso.

Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não tendo havido resposta.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar conferência, importando apreciar e decidir.
II. Fundamentos da Decisão Recorrida
O despacho recorrido é do seguinte teor:
Nos termos do disposto no artigo 180° da Lei 115/09 de 12/10, refere-se:
"Sem prejuízo do disposto no artigo 81° do Código Penal, nos casos em que a liberdade condicional não tenha sido concedida e a prisão haja de prosseguir, por mais de um ano, a instância renova-se de 12 em 12 meses, a contar da data em que foi proferida a anterior decisão"
Sendo certo que só nos movem interesses de bem servir a Justiça, nada nos repugnando, o maior ou menor número de vezes que nos devamos deslocar aos Estabelecimento Prisionais, para apreciar a situação dos reclusos, queremos contudo fazê-lo, de acordo com o legalmente estipulado e não discricionariamente e sem qualquer sentido.
Assim cremos bem interpretar o normativo em causa, quando, não obstante permitir a renovação da instância, de 12 em 12 meses, tal só ser de efectuar, até aos marcos temporais previstos no artigo 61° do Código Penal, isto é até aos 2/3 nas penas até 6 anos e até aos 5/6, nas penas superiores a 6 anos.
A não ser assim, não vemos a razão de ali se encontrar estatuído - "Sem prejuízo do disposto no artigo 61° do Código Pena!. .. "
Por outro lado ainda, e a assim se não entender, ficaria sem qualquer justificação a concessão de liberdade obrigatória pelos 5/6 das penas, já que anualmente se poderia continuar a apreciar a situação do recluso, deixando de existir os fundamentos, que é sabido estarem na base de tal obrigatoriedade de concessão de liberdade condicional.
Por estes motivos, cremos estar certas quando, na pena aqui em causa e tendo já observado os limites temporais do artigo 61° do Código Penal, concluímos não haver lugar a mais renovações da instância, o que, mantemos.
Notifique e d.n..
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III. Apreciação do Recurso
Como é jurisprudência constante e pacífica, o âmbito do recurso delimita-se através das conclusões extraídas pelo recorrente e formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. o Acórdão da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95 de 19 de Outubro).
Resulta das conclusões do recurso interposto e acima transcritas que no caso em apreço se suscita a questão de saber se a renovação da instância de 12 em 12 meses prevista no artigo 180º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade para o processo de liberdade condicional apenas deve ocorrer até aos 2/3 nas penas até 6 anos ou até aos 5/6 nas penas superiores a seis anos (tese do despacho recorrido) ou se deve ocorrer sem tal restrição e enquanto não for concedida a liberdade condicional (tese do recorrente).
O artigo 180º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade aprovado pela Lei nº 115/2009 de 12.10, inserido no Capítulo V "Liberdade condicional" Secção I "Concessão" e que suscita o presente conflito interpretativo preceitua o seguinte sob o título "Renovação da instância":
1- Sem prejuízo do disposto no artigo 61º do Código Penal, nos casos em que a liberdade condicional não tenha sido concedida e a prisão haja de prosseguir por mais de um ano, a instância renova-se de 12 em 12 meses a contar da data em que foi proferida a anterior decisão.
Quanto ao artigo 61º do Código Penal, citado no anterior normativo, preceitua o seguinte:
1. A aplicação da liberdade condicional depende sempre do consentimento do condenado.
2. O Tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrar cumprida metade da pena e no mínimo 6 meses se:
a) For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes; e
b) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e a paz social.
3. O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrarem cumpridos dois terços da pena e no mínimo 6 meses, desde que se revele preenchido o requisito constante da alínea a) do número anterior.
4. Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, o condenado a pena de prisão superior a 6 anos é colocado em liberdade condicional logo que houver cumprido cinco sextos da pena.
6. Em qualquer das modalidades a liberdade condicional tem uma duração igual ao tempo de prisão que falte cumprir, até ao máximo de cinco anos, considerando-se então extinto o excedente da pena.
Tratando-se de uma questão de interpretação da lei devemos reconduzir-nos ao disposto no artigo 9º do Código Civil, normativo que trata de tal matéria.
Dispõe este preceito:
1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Resulta do normativo transcrito que a interpretação do sentido e alcance da lei deve buscar-se, em primeiro lugar, no seu texto, posto que não pode ter acolhimento a interpretação que não tenha na sua letra um mínimo de correspondência verbal ainda que imperfeitamente expresso.
Menciona-se no despacho recorrido que não se vê razão para se encontrar estatuído no preceito "sem prejuízo do disposto no artigo 61º do Código Penal" a não ser que seja interpretado no sentido de a renovação da instância só ser de efectuar até aos marcos temporais aí previstos; dois terços ou cinco sextos.
Não alcançamos o sentido de tal afirmação porque no contexto mencionado não nos parece oferecer qualquer dúvida que a expressão "sem prejuízo do disposto no artigo 61º do Código Penal" significa sem prejuízo das apreciações da liberdade condicional previstas no preceito incluindo. Com efeito, resulta do artigo 61º que a concessão de liberdade condicional deve ser ponderada pela primeira vez atingida que seja metade da pena, pela segunda vez aos dois terços da pena (o que implica renovação da instância) e, nas penas superiores a 6 anos, pela terceira vez aos cinco sextos da pena (o que implica renovação da instância). Vem, pois, o artigo 180º preceituar que sem prejuízo de tais renovações e sempre que a pena deva prosseguir por mais de um ano, deve a instância renovar-se de 12 em 12 meses.
Não se vislumbra qualquer incompatibilidade entre tais preceitos na interpretação literal efectuada e, de igual modo, não se entende a afirmação contida no despacho recorrido no sentido de que fica sem justificação a concessão de liberdade obrigatória aos cinco sextos das pena, já que anualmente se poderia continuar a apreciar a situação do recluso deixando de existir os fundamentos que é sabido estarem na base de tal obrigatoriedade.
E não vislumbramos o sentido de tal afirmação porque, como resulta da conjugação dos preceitos em análise, a concessão de liberdade condicional nas renovações que ocorrerem entre a metade e os dois terços da pena depende da verificação dos requisitos do artigo 61º, nºs 1 e 2, as renovações que ocorrerem entre os dois terços e os cinco sextos dependem da verificação dos requisitos do artigo 61º, nº 1 e nº 2, alínea a) e as que ocorrerem após os cinco sextos dependem da verificação do requisito do artigo 61º, nº 1 (consentimento do condenado). Claro que as renovações posteriores aos cinco sextos só ocorrerão se o condenado não tiver consentido na sua libertação, ou seja não se não tiver sido libertado. Mas também as anteriores só ocorrerão do mesmo modo se não tiver sido concedida a liberdade condicional.
Sendo certo que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada, não oferecendo dúvidas que esteve na mente do legislador um controle temporal menos espaçado no tempo dos pressupostos da concessão da liberdade condicional, também desse ponto de vista a interpretação efectuada é a única possível, manifestando-se o sentido erróneo do despacho recorrido.
Em consequência merece provimento o recurso interposto.
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III. Decisão
Nestes termos decide-se conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogar o despacho recorrido, ordenando que a instância seja renovada em 10 de Maio de 2011.
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Maria Pilar Pereira de Oliveira (Relatora)
José Eduardo Fernandes Martins