Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
269/09.5TBACN-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VIRGÍLIO MATEUS
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
ÓNUS DA PROVA
PROVA PERICIAL
EXUMAÇÃO DE CADÁVER
Data do Acordão: 04/24/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALCANENA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.344 Nº2, 1801, 1871 CC
Sumário: 1.A sanção cominada no nº 2 do artigo 344º do Código Civil, que deve constar da notificação para comparência a exame, não é de actuação imediata ou automática, devendo ser aferida no momento do julgamento.

2. A prova pericial ao ADN representa o meio directo mais fiável para a descoberta da verdade nas acções de investigação de paternidade.

3. A colheita de material cadavérico para a realização de testes de ADN, com vista à efectivação do direito do investigante à sua identidade pessoal, não colide com a protecção legal concedida pela lei no art.71 nº1 CC.

Decisão Texto Integral: ACORDAM O SEGUINTE NESTA RELAÇÃO:


AM (…) e MJ (…) intentaram aos 25.5.2009 a presente acção de investigação de paternidade contra MO (…), AA (…), DM (…) e MA (…), pedindo a declaração de que DF (…) é pai de JF (…) (sendo este pai das AA.).
Para tanto, alegaram que JF (…) nasceu em 25.5.1930 e faleceu em 16.6.2008, estando registado como filho C (…) e de pai desconhecido, mas sempre foi conhecido e tratado como filho de D (…) até ao óbito deste. Mais alegaram que D (…) faleceu no dia 23.5.2006; que as Autoras são filhas de JF (…) e que os Réus são filhos de DF (…). As autoras invocaram a posse de estado de JF (…)como filho de DF (…), alegando, além do mais, que, sempre e até falecer, este tratou JF como filho (concretizaram os factos). Os réus (filhos de D (…)) impugnaram todos os factos relativos a tal tratamento, além de invocarem as excepções de ilegitimidade activa e a caducidade da acção. O conhecimento destas excepções foi remetido para final, conforme acórdão desta Relação de 18.01.2011 com o mesmo relator, que revogou a decisão proferida no momento do saneador.
Foi posteriormente proferido despacho que seleccionou os factos assentes e organizou a base instrutória, em cujo quesito 5º se pergunta se das relações sexuais entre D (…) e C (…) nasceu J (…).
Na fase instrutória, as AA., além de arrolarem testemunhas, requereram que se procedesse no IML ao exame hematológico nas pessoas dos AA e RR, para determinação do respectivo ADN e visando a prova do facto do quesito 5º da base instrutória; e requereram que, no caso de se entender que os RR não podiam ser coagidos à sua realização, o exame se fizesse nos corpos dos falecidos D (…) e J (…).
O despacho de 9.9.2011 a fl. 9 deferiu a realização da perícia, quanto àquela pretensão principal, nestes termos: «Admito a prova pericial através do Instituto de Medicina de Legal, a efectuar exame hematológico da pessoa das Autoras e de todos os Réus, visando determinar o respectivo ADN. Oficie ao IML a fim de indicar data e após notifique os Réus para comparecer com a advertência que a recusa implica a inversão do ónus da prova (artigo 344, n.º2 do Código Civil). Notifique, igualmente, as Autoras sem contudo mencionar a advertência».
Por requerimento de 25.10.2011, as AA. vieram dizer que compareceram para os exames hematológicos mas os RR não compareceram, terminando por reiterar o pedido de exame aos cadáveres de DF (…) e de JF (…) mediante exumação.
Foi proferido o despacho de 29.11.2011, que contém: «entendemos, salvo melhor opinião, verificada a inversão do ónus da prova pela recusa ilegítima e a falta de colaboração, que a resposta ao pedido de exumação é necessariamente negativa. Em conclusão, impõe-se o indeferimento do requerido exame».
Inconformadas, recorrem as AA, concluindo a sua alegação pela revogação dessa decisão de indeferimento. Não houve contra-alegação.
Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir:
A questão consiste em saber se, depois de ordenado um primeiro exame sanguíneo a AA. e RR. sem que estes tivessem comparecido apesar da advertência da inversão do ónus da prova nos termos do artigo 344º/2 do CC (caso de injustificada ou culposa não comparência), ainda pode ser realizado o exame aos falecidos DF (…) e JF(…) mediante exumação. A 1ª instância decidiu que não e as AA. apelantes defendem que sim.
A razão está do lado das AA.
A prova da procriação biológica pode ser conseguida directamente através dos exames de sangue e quaisquer outros métodos cientificamente comprovados e tal é facultado expressamente pelo artigo 1801º do CC.
As AA. haviam pedido subsidiariamente os exames a DF (…) e a JF (…) no caso de não se realizarem os exames aos RR. O M.mo juiz parece ter entendido que, invertido o ónus da prova por não comparência dos RR, seria inútil o exame a DF (…) e a JF (…).
Ora, como dissemos no acórdão proferido nesta data no apenso A, a aplicação do preceituado no nº 2 do artigo 344º do Código Civil não deve ser imediata ou automática. Essa cominação (ameaça de sanção) deve constar da notificação para comparência a exame, mas a sua efectiva aplicação está dependente de a falta ser injustificada ou culposa (neste sentido ver acórdão do STJ de 23.2.2012, Pº 994/06.2TBVFR.P1.S1, Bettencourt de Faria). Isto significa que tal sanção não é de actuação “imediata” ou automática e deve ser aferida sim no momento do julgamento.
Como refere o acórdão do STJ de 2.2.2010, Pº 684/07.9TBCBR.C1 (Hélder Roque), a prova pericial ao ADN representa o meio directo mais fiável para a descoberta da verdade; e ao investigante é-lhe lícito lançar mão de prova pericial através de exame ao ADN se alegou e constam da base instrutória factos relativos à própria procriação, mas, ainda que não tivesse alegado factos relativos à sua procriação, sempre este tipo de prova teria de ser admitido porque é apto a conferir credibilidade a outras provas.
Sobre exame pericial de ADN, para o efeito da investigação da paternidade, por exumação do cadáver, pronunciou-se o recente acórdão do STJ de 15-12-2011, Pº 912-B/02.C1.S1 (relator: Álvaro Rodrigues), que confirmou o acórdão da Relação de Coimbra que confirmara a decisão a ordenar tal diligência e que estava em oposição com o da Relação do Porto de 3.11.2010.
Nesse douto acórdão do Supremo, depois de passar em revista os factos quesitados e a causa de pedir, considerou-se:
«É assim evidente que há toda a necessidade de sobre os referidos quesitos incidir prova tendente a demonstrar a verdade dos factos quesitados, sob pena de os mesmos se quedarem perfeitamente inúteis (o que constitui acto proibido nos termos do artº 137º do CPC) ou resultarem forçosamente não provados e, sobre esta matéria factual, não restam dúvidas de que a prova pericial ao ADN, representa o meio directo mais fiável para a descoberta da verdade».
(…) «Se os conhecimentos científicos actuais e as técnicas laboratoriais contemporâneas facultam a verdade biológica com elevado grau de probabilidade, não se vislumbram razões válidas para postergar tais meios de prova, ainda que o fundamento da acção seja qualquer dos factos indiciadores elencados nas diversas alíneas do nº 1 do artº 1871º».
(…) «Importa, em todo o caso, sublinhar que no quadro jurídico contemporâneo, o cadáver não é titular de direitos, já que a titularidade de direitos e de obrigações pressupõe a personalidade jurídica que, como é sabido, é a susceptibilidade de tal titularidade, no sentido técnico-jurídico do conceito (não no domínio filosófico ou jusnaturalista). Ora, nos termos do artº 68º, nº 1 do Código Civil, a personalidade cessa com a morte (mors omnia solvit). Do exposto deflui, com meridiana clareza, que o cadáver não pode ser titular de quaisquer direitos ou obrigações, justamente por não ter personalidade jurídica.
«Como decidiu o Tribunal Constitucional no seu Acórdão de 8-06-1988 «A afirmação do artº 68º do Código Civil, segundo a qual «a personalidade cessa com a morte», vale igualmente no campo do direito constitucional, em conformidade com o carácter eminentemente subjectivo dos direitos fundamentais, pelo que, cessando a personalidade, não poderão reconhecer-se direitos fundamentais ao cadáver, nem admitir-se a transmissibilidade daqueles direitos pessoais para outrem» (BMJ, 378- 141)».
(…) «Assente que o cadáver não é titular de direitos, mas beneficiário da protecção a que se refere o nº 1 do artº 71º do C. Civil, importa dizer que na realização da colheita do material cadavérico para a realização dos testes do ADN, ordenada por autoridade judicial competente que a considerou necessária, após a devida ponderação, e levada a efeito nos limites procedimentais legal e tecnicamente previstos, não há objectivamente qualquer violação de direitos, tendo em atenção o direito do Investigante à sua identidade. A violação do respeito ao cadáver importa a prática de actos que consubstanciem, materialmente, um vilipêndio do cadáver, isto é, actos susceptíveis de aviltar, profanar ou ultrajar o cadáver e não actos médicos periciais exigidos com a legítima finalidade da descoberta da verdade biológica em casos em que importe o reconhecimento e declaração da identidade de uma pessoa».
Em síntese final:
Exposta esta resumida doutrina, e perfilhando-a, conclui-se que deve ser ordenado o solicitado exame mediante exumação dos cadáveres de DF (…) e JF (…), a tal não obstando a anterior decisão de realização do exame hematológico às pessoas dos RR, o qual não se terá realizado por falta de comparência destes, nem a tal obstando a circunstância de para esse primeiro exame os RR terem sido advertidos da sanção de inversão do ónus da prova.
 
Decisão:
Pelo exposto, acordam em julgar a apelação procedente, revogando a decisão impugnada, que deve ser substituída por outra que ordene o solicitado exame mediante exumação dos cadáveres de DF (…) e JF (…)
Custas pelos apelados.



Virgílio Mateus ( Relator )
Carvalho Martins
 Carlos Moreira