Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
198/17.9PFCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA;
TENTATIVA IMPOSSÍVEL;
TENTATIVA INIDÓNEA;
MEIO PARTICULARMENTE PERIGOSO
FACA
Data do Acordão: 07/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE COIMBRA – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA, PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTS. 22.º, N.º 2, E 23.º, N.º 3, 143.º, N.º 1, 145.º, N.ºS 1, AL. A), E 2, E 132.º, N.º 2, AL. H), DO CP
Sumário: I – À tentativa prosseguida com meios inaptos ou sobre objecto essencial inexistente dá a doutrina a designação de tentativa impossível ou tentativa inidónea.
II – O juízo sobre a aptidão ou inaptidão do meio [ou sobre a (in)existência de objecto] - artigo 23.º, n.º 3, do CP - tem de ser, em primeiro lugar, um juízo objectivo, quer dizer, não releva aquilo que o agente considera apto ou inapto, existente ou inexistente, sendo que, em segundo lugar, a aferição daquela valoração, tanto quanto possível objectiva, tem de assentar em dois planos: de um lado, na determinação e consideração razoáveis que a generalidade das pessoas ou um círculo de pessoas - que detenham especiais conhecimentos na matéria - fazem sobre o meio ou o objecto da causa; de outro, nos especiais conhecimentos do agente e da sua pertinência à vítima.
III – Num quadro factual em que, aquando da reacção do ofendido, o arguido já praticava actos de execução (artigo 22.º n.º 2, do CP), tendentes a provocar ofensas no corpo de agentes policiais - encontrava-se, após aproximação, junto daqueles e a faca que detinha era meio adequado para concretizar as ofensas -, está afastada a invocada manifesta ineptidão do meio empregado e a inexistência do objecto essencial à consumação dos crimes.
IV – A alínea h) do n.º 2 do artigo 132.º do CP prevê, não apenas meio perigoso, mas meio particularmente perigoso, sendo assim definido o que, para além de dificultar de modo exponencial a defesa da vítima, é susceptível de criar perigo para outros bens jurídicos importantes. Por outra palavras, tem de ser um meio que revele uma perigosidade muito superior ao normal, marcadamente diverso e excepcional em relação aos meios mais comuns que, por terem aptidão para matar, são já de si perigosos ou muito perigosos, sendo que na natureza do meio utilizado se tem de revelar já a especial censurabilidade do agente.
V - Estão, assim, afastados da qualificação do crime os meios, métodos ou instrumentos mais comuns de agressão que, embora perigosos ou mesmo muito perigosos (facas, pistolas, instrumentos contundentes) não cabem na estrutura valorativa, fortemente exigente, do exemplo-padrão.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório:
No âmbito do processo sumário n.º 198/17.9PFCBR que corre termos na Comarca de Coimbra – Juízo Local Criminal de Coimbra – Juiz 2, em 17/11/2017, foi proferida Sentença, cujo Dispositivo é o seguinte:
DISPOSITIVO
“Pelo exposto, julgo procedente por provada a acusação e, consequentemente, condeno o arguido, A…, (…), pela prática como autor material e em concurso efectivo, de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada previstos e punidos pelos art.ºs 22.º, 23.º, 143.º n.º 1, 145.º, n.ºs 1, al. a), e 2, e 132.º, n.º 2, als. h) e l), do Código Penal, respectivamente, na pena de 1 (um) ano de prisão para cada um dos crimes.
Operado o cúmulo jurídico dessas penas parcelares, cuja coma material corresponde a 2 (dois) anos de prisão, nos termos do art.º 77.º, n.ºs 1 e 2 do Cód. Penal, condeno o arguido na pena única de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão.
Visto o preceituado no art.º 58.º, n.ºs 1, 2, 3 e 5, do Código Penal, determino a substituição da pena de prisão pela pena de 480 (quatrocentas e oitenta) horas de prestação de trabalho a favor da comunidade.
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(….).
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Inconformado com a decisão, dela recorreu, em 18/12/2017, o arguido, extraindo da motivação as seguintes conclusões:
A. Com o presente recurso a incidir sobre matéria de facto (maxime demissão ajuizativa sobre parte do circunstancialismo factual de prática dos factos!) e de Direito, unicamente subjacente a vícios decisórios, subsunção jurídica e dosimetria penal, não se pretende colocar em causa o exercício das mui nobres funções nas quais se mostram investidos os Ilustres julgadores, mas tão-somente exercer “manifestação de posição contrária” ou “discordância de opinião”, traduzido no legalmente consagrado direito de recorrer;
B. Analisada a matéria de facto dada por provada constata-se que, para além da ausência de antecedentes criminais bem como circunstancialismo económico e social do arguido, mais nada foi levado ao elenco dos factos provados, aderindo-se à douta acusação pública, julgando-se que o circunstancialismo vertido na douta acusação pública, e transposto para a douta decisão condenatória, é em si mesmo insuficiente, pois nada diz sobre a distância a que se mostrava o arguido de cada um dos senhores agentes policiais e tal circunstancialismo é essencial para que se perceba se de facto alguma tentativa houve e qual o número de ofendidos (e correspectivamente o número de crimes!) ou se ao invés apenas se tratou da exibição de uma faca com distância inapta para qualquer lesão, julgando-se que a douta sentença padece da nulidade plasmada na alínea c) do art. 379º CPP, atenta a demissão de inquisitório e ajuizativa;
C. Mostrou-se o arguido devida e cabalmente manietado e imobilizado quer pela exibição de arma de serviço quer pelo atingir com gás pimenta pelo que se questiona onde ver no elenco dos factos provados qualquer concreto acto de tentativa de ofensa à integridade física, como seja, e desde logo, a colocação a uma distância próxima e manejamento ou arremesso da faca em direcção a quem quer que seja quando nada se mostra dito nos factos provados sobre qualquer efectiva tentativa de atingir os ofendidos e sempre tal tentativa seria impossível, tal qual configurada no art. 23º do Código Penal pois veja-se o quadro factual: alguém a quem não haviam prendido a sua solicitação, caminha, alegadamente em direcção a dois agentes de autoridade, não os atacando pelas costas ou de forma insidiosa, com uma faca na mão e dizendo em voz alta que os iria “f*d*r”;
D. Que sentido fará tal circunstancialismo, a representar insanidade e auto-colocação em perigo, sujeitando-se a ser abatido?! Como é que alguém poderá representar o atingir de tal desiderato quando terá pela frente dois agentes policiais, devidamente treinados e armados para fazer face a situações de ataque?! E tanto era impossível que o foi em concreto, não tendo havido a mínimo ofensa para a integridade física dos senhores agentes que manietaram o arguido muito antes de o mesmo estar próximo o suficiente para esboçar qualquer ataque, havendo manifesta tentativa impossível, a justificar a não punibilidade, pois em concreto não foi levado a cabo qualquer concreta tentativa ou acto de execução que visasse a ofensa da integridade física de tais agentes;
E. Mostra-se inconstitucional, por violação dos princípios da legalidade, tipicidade e natureza de ultima ratio do Direito penal o entendimento e dimensão normativa do art. 22º n.º 1 CP no sentido de [P]ara o preenchimento da tentativa de ofensa à integridade física mediante utilização de faca basta que o agente anuncie tal mal e exiba uma faca, caminhando na direcção das supostas vítimas sem necessidade de movimentar tal faca objectivamente próximo do corpo dos alegados ofendidos e em condições de efectivamente os lesar ou de os tentar atingir mediante arremesso falhado”;
F. Impor-se-á ainda que o Tribunal dê por provado o circunstancialismo que se julga essencial para a boa decisão da causa e que se mostrou a génese da reacção do arguido, que não a desculpando a torna mais compreensível e menos censurável, nomeadamente a exaltação e aparente embriaguez, o que mostrou referido pela prova testemunhal ouvida (passagens 01:26 a 01:31 e 03:24 a 03:28 da testemunha B… e 00:10 a 00:17 do depoimento iniciado a 15:09:24 e que aparece cindido na gravação, da testemunha C…) bem como confessado pelo arguido na passagem 14:36 a 14:39 do seu depoimento, referindo “estar bêbedo, com uns copitos”, bem como paragem e não avanço do arguido logo que foi dito para largar a faca e exibida a arma (passagem 07:14 a 07:24 da testemunha B…);
G. No âmbito do presente processo foi proferida doutas acusação pública e sentença condenatória imputando ao ora recorrente a prática do supra referido crime de ofensa à integridade física qualificada, tentada, e ao abrigo da alínea h) do n.º 2 do art. 132º CP, mas ouvida a douta sentença proferida constata-se que a mesma não dedicou particular atenção a tal qualificação jurídica, podendo mesmo estar em causa a nulidade plasmada na alínea c) do art. 379º CPP; atenta a falta de fundamentação, não sendo dadas a conhecer as razões de tal subsunção jurídica e têm-se sérias reservas no tocante à subsunção jurídica dos factos e qualificação do crime ao abrigo de tal alínea, pois não se tratando de prática conjunta com, pelo menos, mais duas pessoas ou que se traduza de crime de perigo comum a questão é saber se o meio utilizado pelo recorrente é ou não particularmente perigoso;
H. Entende o recorrente, em nome da Justiça, que não utilizou nenhum meio particularmente perigoso, uma vez que colhendo os ensinamentos vertidos no Comentário Conimbricense, tomo I, fls. 37, em anotação à anterior alínea g) [actual h)] do n.º 2 do art. 132º CP, não se poderão considerar como tal as facas, revólveres, pistolas, ou vulgares instrumentos contundentes, pois há que atentar que a lei exige que sejam particularmente perigosos, ou seja, terão de revelar uma perigosidade muito superior à normal, como seja o uso de gasolina incendiada ou talvez de uma granada, sendo, cumulativamente, indispensável determinar, com particular exigência e severidade, se da natureza do meio utilizado resulta ou não já uma especial perversidade ou censurabilidade do recorrente, tendo para nós que a resposta será negativa pois a exaltação trata-se de um fenómeno que foi já alvo de vários estudos, surgindo assim a conduta criminosa como defesa contra a eclosão de um surto psicótico, evitado pela descarga da energia destrutiva através do acto criminoso;
I. Há sempre o perigo que resulta destas remissões intra sistemáticas e em bloco contidas no Código Penal, uma vez que se remete para situações em que terá ocorrido um homicídio ou tentativa do mesmo, havendo que interpretar cum grano salis tal questão e sob pena de “tomarmos a árvore pela floresta”, não se pode pretender ter por forma-regra da ofensa à integridade física a sua qualificação, uma vez que até uma simples pedra poderia ser meio especialmente perigoso, não se devendo integrar em tal conceito as armas vulgares, invocando-se o teor decisório da jurisprudência deixada em sede de motivação para entender a douta sentença por padecer de errónea subsunção jurídica pois ao entender-se como se mostra entendido na douta sentença ora recorrida, subverte-se o inteiro método de qualificação legal e incorre-se no erro político criminal grosseiro de arvorar o crime qualificado em forma regra do crime de ofensa à integridade física, devendo “cair” a qualificação do crime de ofensa à integridade física ao abrigo de tal alínea h), devendo interpretar-se cum grano salis a norma incriminadora;
J. Todos os preceitos constitucionais integram normas que fornecem os parâmetros de interpretação recta do Direito que lhe está infra ordenado, devendo assim lançar-se mão do princípio da interpretação conforme a Constituição da República Portuguesa, sendo a progressividade não mais do que a densificação do conceito de justiça proveniente da igualdade material, princípio base de todo o Direito, pressupondo um conceito de democraticidade: a lei penal é igual para todos e essa a essência do princípio da igualdade que não consiste em tratar tudo por igual sob pena de, por paradoxal que pareça, gerar manifesta e clara desigualdade, mas sim em tratar de forma igual o igual e de forma diferenciada o desigual, tendo assim por violados os princípios da igualdade, proporcionalidade bem como do carácter de ultima ratio do Direito Penal que assim se vê convocado quando a litigiosidade e danosidade material se mostra inexistente e a “justiça restauradora” uma realidade dado que, com o devido respeito, todos instrumentos que são aptos a provocar lesões na integridade física terão forçosamente de ser considerados perigosos tout court mas nem todos o serão particularmente;
K. Olhada a douta sentença proferida constata-se que se mostra o recorrente condenado em pena de prisão, substituída pela prestação de trabalho, as quais pelo seu conjunto não se deixam de reputar como excessivas, face ao circunstancialismo único daquilo que se poderá designar por “uma noite de copos” e zanga com a namorada, dado que olhado todo o circunstancialismo conjugado com os factos provados acrescentados, de ausência de antecedentes criminais e como habilitações literárias o 12º ano de escolaridade, constata-se que haverá manifesta desproporcionalidade, sendo o conjunto sancionatório deveras punitivo e pesado quando por força da tentativa haveria atenuação especial, se bem que sem atenuação do limite mínimo e com dupla valoração para a pena única, pois o único plus é uma segunda vítima, já toda a ilicitude tendo sido considerada na pena parcelar e a não poder representar acréscimo de 2/3 da segunda pena parcelar;
L. Tem-se por inconstitucional, por violação dos princípios da proporcionalidade e igualdade, a dimensão normativa e interpretação da alínea b) do n.º 1 do art. 73º CP segundo a qual sempre e quando o limite mínimo da pena de prisão aplicável ao crime consumado for já o correspondente ao mínimo legal não há qualquer atenuação do limite mínimo da punição em sede de punição com pena especialmente atenuada em virtude de tentativa”;
M. Numa visão global de conjunto está em causa I) factualidade e circunstancialismo cometidos de forma essencialmente homogénea e tudo no mesmo contexto, II) num quadro de revolta comum e contínua, III) com identidade ao nível dos destinatários/vítimas, IV) num curto lapso temporal, V) subjacente à mesma descarga emocional do arguido, VI) num quadro de exaltação e consumo prévio de bebidas alcoólicas, VII) felizmente sem gravidade material ou concreta, reduzindo-se ao estado de tentativa sem produção de qualquer dano, VIII) factualidade cometida por quem não tinha antecedentes criminais, como ressalta provado, IX) por quem denota hábitos laborais e se mostrou inserido profissionalmente, X) e tem como habilitações literárias o 12º ano, sendo que tal circunstancialismo globalmente considerado atenua substancialmente a culpa e as exigências de prevenção, devendo tais variadas e plúrimas as atenuantes contrabalançar com a moderada gravidade do caso, sendo a atenuação punitiva uma exigência da Justiça, julgando-se adequadas a pena em medida não superior a 4 meses de prisão por cada crime e em cúmulo jurídico na pena de 6 meses de prisão, igualmente substituída por prestação de 180 horas de trabalho;
N. A dosimetria da pena de substituição (trabalho a favor da comunidade!), não obstante a sua conformidade e adequação à normatividade jurídica aplicável, radica no facto de a própria lei se mostrar mal efectivada e impor um juízo correctivo e atenuador da pena, dado que basta notar que a dosimetria da pena substitutiva seria a mesma caso o recorrente (ou qualquer outro cidadão!) tivesse sido condenado em pena de prisão até dois anos uma vez que em termos de conversão da pena em prestação de trabalho a favor da comunidade, tal condenação é similar à que resultaria da aplicação de uma pena de prisão correspondente a dois anos, ou seja, para lá do ponto médio da moldura penal e levando a que haja 8 meses de impunidade (in casu, para o arguido, apenas 4)!
O. Ao fixar o limite máximo de 480 horas pretendeu o legislador, o qual, nos termos do n.º 3 do art. 9º CC, consagra as soluções mais adequadas, não consagrou uma impunidade para todos os arguidos que sejam condenados em mais de 1 ano, 3 meses e 25 dias de prisão sempre e quando venha tal pena a ser substituída por pena de trabalho a favor da comunidade pois tal seria completamente contrário aos fins das penas, tantas e tantas vezes convocados a reclamar a punição majorante, bem como aos princípios da igualdade e proporcionalidade consagrados na Constituição da República Portuguesa, pelo que reputamos tal entendimento de inconstitucional, restando a hipótese de, para evitar injustiças e violação do princípio da igualdade (de facto, outro arguido condenado em dois anos de prisão teria de cumprir tantas horas quanto o ora recorrente ou outro condenado a 1 ano, 3 meses e 26 dias!) se mostrar o Tribunal investido de um poder-dever de adequação de tal limite ao caso concreto pelo que, ao assim não ter actuado o Tribunal a quo, se tem por violada a teleologia imanente a tal norma, não tendo a obediência à lei que ser cega mas pensante, apontando-se, além da inconstitucionalidade supra, igualmente a resultante da não previsão de uma cláusula geral de salvaguarda a prever expressamente tal situação!
P. Pela visão de conjunto dos factos e pela justa subsunção jurídica ao nível da determinação e dosimetria, entende-se que há manifestamente margem para atenuar as condenações vertidas na douta sentença recorrida, por força das atenuantes a que se fez referência supra e que ora se dão por integralmente reproduzidas, sendo que Filipe II, dirigindo-se aos julgadores, tinha por máxima: “ministrai a justiça com imparcialidade e rectidão, e se necessário, com rigor e exemplaridade. Mas quando a natureza das gentes e das coisas o permitam, sede também misericordiosos e benignos”, Diego de Saavedra Fajardo referia que a justiça e a clemência andam sempre de mão dada, devendo V/ Exa. usar da primeira por forma a que a segunda se não mostre ofendida, acompanhando-se Santa Catarina de Siena quando afirma que “a pérola da Justiça, brilha melhor na concha da misericórdia”!
Q. Mostram-se violadas as seguintes normas jurídicas violadas: maxime arts. 1º n.º 3, 22º, 23º n.ºs 1, 2 e 3, 40º n.ºs 1 e 2, 47º n.º 2, 71º n.ºs 1 e 2, 73º n.º 1 b), 77º, 132º n.º 2 h) e l), 145º n.ºs 1 a) e 2 CP; art. 379º n.º1 c) CPP; art. 412º CPC; arts. 13º, 18º, 29º n.º 5 e 202º n.ºs 1 e 2 CRP; bem como violados e erroneamente aplicados os seguintes princípios jurídicos: maxime da culpa, da proporcionalidade e adequação, da legalidade, da tipicidade, da fragmentaridade e natureza de ultima ratio do Direito penal, in dubio pro reo, ne bis in idem, da proibição da dupla valoração bem como inerentes aos fins das penas.
Contando sempre com o mui douto suprimento de V/ Exas., atento o supra exposto, por razões substanciais, entende o recorrente que em obediência aos mais elementares princípios constitucionais e comandos interpretativos que presidem a um Direito penal que se queira justo e processualmente conforme, por essencial para correcta subsunção dos factos ao Direito, não poderá deixar de ser dado provimento ao presente recurso.
E em consequência alterada a douta decisão recorrida, por via de I) demissão ajuizativa e omissão de pronúncia, a cominar nulidade, face a circunstancialismo factual; II) reapreciação da prova gravada e adição do estado de ânimo do arguido e sua acção após a a ordem de paragem, III) errónea subsunção jurídica, com convocação indevida e não fundamentada da alínea h) do n.º 2 do art. 132º C e IV) majoração condenatória a reclamar atenuação da dosimetria penal;
V/Exas., seres humanos sábios, pensarão e decidirão necessariamente de forma justa, alcançando a costumada e almejada Justiça, na medida em que, citando Montesquieu e Milo Sweetman, a injustiça feita a um é uma ameaça dirigida a todos, devendo a justiça, tal como o relâmpago, causar a ruína de poucos homens mas o receio de todos! Todavia, nunca esquecendo que, acompanhando Emma Andievska, A justiça é a bondade medida ao milímetro!
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O recurso, em 15/1/2018, foi admitido.
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O Ministério Público, em 5/3/2018, respondeu ao recurso, defendendo a sua improcedência, tendo apresentado as seguintes conclusões:
1) Deverá ser negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida.
2) A sentença não enferma de qualquer vício.
3) Designadamente o previsto no artigo 379.º, n.º 1, c), do CPP.
4) O tribunal efectuou uma correta subsunção jurídico-penal dos factos.
5) As penas aplicadas traduzem uma equilibrada e adequada aplicação dos critérios estabelecidos nos artigos 40.º, 41.º, 58.º, 70.º e 71.º, do Código Penal.
6) E não foram violadas quaisquer normas legais, nomeadamente, do artigo 379.º, n.º 1, c), do CPP, 1.º, n.º 3, 22.º, 23.º, n.ºs 1, 2 e 3, 40.º, n.ºs 1 e 2, 47.º, n.º 2, 71.º, n.ºs 1 e 2, 73.º, n.º 1, b), 132.º, n.º 2, h) e l), 145.º, n.º s 1, a) e 2, do Código Penal, 412.º, do CPC, e 13.º, 18.º, 29.º, n.º 5, 202.º, n.ºs 1 e2, da CRP.
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Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, em 12/4/2018, no sentido de que o recurso merece parcial provimento, o qual termina do modo seguinte: “quanto à circunstância do artigo 132.º, n.º 2, h), do Código Penal, que não se verifica, mas que, no entanto, não me parece que releve para efeitos de alteração da medida da pena aplicada, confirmando-se, no mais, a douta sentença recorrida.”
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Cumpriu-se o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, tendo sido exercido, em 2/5/2018, o direito de resposta.
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Em 16/5/2018, foi proferido Despacho a determinar que o Tribunal a quo procedesse à transcrição da sentença, ao abrigo do disposto no artigo 101.º, n.º 5, do CPP.
Os autos, em 21/5/2018, baixaram à 1ª instância, a título devolutivo
Em 28/5/2018, o respetivo Auto de Transcrição foi junto aos autos.
Em 12/6/2018, os autos voltaram ao Tribunal da Relação de Coimbra.
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Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II. Decisão Recorrida:
(…).
Factos Provados:
Discutida esta causa resultaram provados todos os factos que constam da acusação os quais aqui se dão por integralmente reproduzidos.
Acrescem os seguintes:
(…)
Não existem factos não provados nem outros se provaram com relevo para a decisão da causa.
Fundamentação de facto:
Quanto à motivação da decisão de facto, importa considerar que foram atendidos o confronto e a conjugação das declarações prestadas pelo arguido em audiência de julgamento com os depoimentos espontâneos e esclarecedores das testemunhas B… e C…, agentes da PSP, que procederam ao contacto com o arguido e depois à sua subsequente detenção no âmbito da factualidade em causa.
Não menos despiciente foi também o Auto de Notícia, designadamente, quanto à precisão geográfica dos eventos e também quanto ao seu circunstancialismo temporal.
Também não menos relevante o Auto de Apreensão da faca constante aqui de folhas 8 dos autos.
Com efeito, o arguido, reconhecendo o contacto com os agentes policiais nas circunstâncias espcio-temporais descritas no texto acusatório, e motivado pelo circunstancialismo que o precedeu, os alegados danos anteriormente provocados e a situação em que o arguido se encontrava, procurou, enfim, negar a prática dos factos, optando por uma versão que, eu direi, vai-se me desculpar, quase risível e descabida, pretendendo fazer crer que era propósito do arguido pôr termo à sua vida.
Ora, desde logo, pelo modo como o arguido se apresentou, empunhando a faca e pelo, enfim, todo aquele circinstancialismo envolvente, e que foi bem descrito, no essencial, pelas testemunhas inquiridas, esta versão cai por terra e, portanto, credibiliza toda a versão das duas testemunhas em que se estriba o texto acusatório que é merecedora de crédito.
O arguido saiu, de facto, exaltado depois de ter sido confrontado com os agentes da PSP que, aliás, o tinham, nas palavras do agente B…, aconselhado a ir para casa. O arguido, se calhar muito aborrecido por não ter sido preso como solicitava, como instava junto dos agentes, foi buscar a faca e precisamente veio com ela ocultada, conforme ambos os depoimentos concordaram. Veio com ela, primeiro, ocultada atrás das costas e, depois, empunhando-a em direção aos agentes da PSP.
É claro que aqui todo este circunstancialismo aponta claramente para a subjetividade presente no arguido, não aquela, naturalmente, de pôr termo à sua vida, mas de atingir os agentes da PSP com os quais se confrontava.
Não é outra a subjetividade que se descobre deste comportamento.
O próprio arguido, aliás, reconheceu ter identificado os visados como agentes policiais e, também pela própria versão que o arguido trouxe à audiência de julgamento, revelou estar bem consciente do que sucedera, inclusivamente antes e depois do evento que praticou.
E, portanto, o que afasta desde logo qualquer falta de consciência de ilicitude, ainda que pudesse estar influenciado pelo álcool, isso surge desde logo afastado, não sendo de crer que o mesmo pudesse desconhecer de facto ou agir por qualquer outro motivo que não fosse aquele da sua vontade esclarecida e deliberada, no intuito, naturalmente, de atingir a integridade física dos agentes policiais.
Comportamento cuja punibilidade é do geral conhecimento dos cidadãos e, portanto, necessariamente do arguido.
Quanto à ausência de antecedentes criminais, o mesmo resulta do certificado de registo criminal junto aos autos.
As condições pessoais e económicas do arguido resultaram das declarações que o mesmo, espontaneamente, a este respeito prestou em audiência de julgamento, sendo certo que, também, não foram carreados para os autos quaisquer elementos que as contrariassem, afigurando-se as mesmas credíveis à luz da normalidade.
Fundamentação de Direito:
(…)
Medida da pena:
(…).
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A sentença ora em crise, além do mais, dá por provados “todos os factos que constam da acusação”, considerando-os como integralmente reproduzidos.
Por isso mesmo, para uma exata compreensão do objeto do recurso, na sua totalidade, impõe-se a sua transcrição na íntegra, o que, de imediato, passamos a fazer:
“(…)”
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III. Apreciação do Recurso:
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P.
As questões a conhecer são as seguintes:
1 - Saber se a sentença padece da nulidade a que alude a alínea c), do n.º 1, do artigo 379.º, do CPP.
2 – Saber se devem ser acrescentados novos factos à matéria dada como assente.
3 – Saber se a conduta do arguido configura uma tentativa/tentativa impossível.
4 – Saber se a qualificação jurídica dos factos está incorreta.
5 – Saber se a medida da pena aplicada em concreto é a adequada.
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1) Da nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, c), do CPP:
O recorrente considera que o circunstancialismo vertido na acusação pública, e transposto para a decisão ora em crise, é em si mesmo insuficiente, pois nada diz sobre a distância a que se mostrava o arguido dos senhores agentes policiais, sendo isso essencial para que se perceba se, na realidade, existiu alguma tentativa ou se apenas se tratou da exibição de uma faca a distância inapta para qualquer lesão.
Além disso, alega que não está claro o número de ofendidos (se um ou se dois), pois não está concretizado se aqueles estavam próximos um do outro.
Na sequência do exposto, defende que a sentença recorrida “padece da nulidade plasmada na alínea c) do artigo 379.º CPP, atenta a demissão do inquisitório e ajuizativa.
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Constitui jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça que “a nulidade resultante de omissão de pronúncia verifica-se quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (alínea c) do n.º 1 do artigo 379º), sendo certo que não se tem por verificada quando o tribunal deixa de apreciar algum ou alguns dos argumentos invocados pela parte tendo em vista a decisão da questão ou questões que a mesma submete ao seu conhecimento, só ocorrendo quando o tribunal deixa de se pronunciar sobre a própria questão ou questões que lhe são colocadas ou que tem o dever de oficiosamente apreciar, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte na defesa da sua pretensão.” – neste sentido, Acórdão do STJ, de 9/2/2012, Processo n.º 131/11.1YFLSB – 3ª Secção, relatado pelo Exmo. Conselheiro Oliveira Mendes, em www.dgsi.pt.
Tendo presente o que acaba de ser exposto, salvo o devido respeito, entendemos que a sentença recorrida não enferma da nulidade de omissão de pronúncia, pois estão em causa apenas argumentos usados pelo recorrente, em sede de apreciação da prova, e não uma falta de apreciação da questão que se colocava ao tribunal, neste caso concreto, a descrição da conduta em causa.
Eventualmente, poderíamos estar perante uma insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício a que alude o artigo 410.º, n.º 2, a), do CPP.
Mas tal não se verifica.
Os factos dados como provados não foram impugnados pelo recorrente.
Acontece que os mesmos não deixam qualquer dúvida quanto à respetiva dinâmica.
Assim, deles resulta que o arguido estava em movimento de aproximação aos dois agentes da PSP, empunhando uma faca com determinadas caraterísticas, apontada na direção de ambos, ao mesmo tempo que proferia a descrita expressão, enquanto se aproximava ainda mais dos dois agentes, preparando-se-lhes para lhes desferir golpes.
Mais está dado como assente que o esfaqueamento dos dois agentes só não aconteceu em virtude da pronta reação de um dos alementos policiais.
Daqui resulta, necessariamente, que os agentes B… e C… se encontravam juntos e ao alcance do arguido.
É isso que releva, sendo irrelevante saber a que distância exata os intervenientes se encontravam uns dos outros.
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2) Do aditamento de certos factos à matéria dada como assente:
O recorrente defende que importa levar ao quadro factual a circunstância de o arguido estar bastante exaltado e aparentemente alcoolizado, bem como ter acatado a ordem de paragem e não ter avançado após ordem para largar a faca.
Para tanto, faz apelo a certas passagens da gravação da audiência de julgamento (ver conclusões – F).
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Em presença do disposto no n.º 2, do artigo 368.º, do CPP, a enumeração dos factos provados e não provados abarca tanto os factos alegados pela acusação e pela defesa como os que resultaram da discussão da causa, relevantes para a decisão.
Entendemos como inócuos para o efeito pretendido os factos indicados pelo recorrente.
Em primeiro lugar, a exaltação do arguido resulta já dos factos provados, sendo inútil estar a fazer constar isso, em concreto, dos factos provados
Na realidade, pelas regras da experiência, salvo demonstração em contrário, quem provoca danos em vários viaturas e quem mantem uma atitude provocatória para com elementos policiais, dizendo “prendam-me, prendam-me”, necessariamente que se encontra perturbado.
Em segundo lugar, no que tange ao arguido aparentar estar alcoolizado, é preciso ter bem presente o que consta da fundamentação da sentença quanto a estar afastada qualquer falta de consciência de ilicitude, ainda que pudesse estar influenciado pelo álcool, sendo certo que consta dos factos provados que o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, matéria que não foi impugnada, em sede de erro de julgamento.
Logo, torna-se irrelevante dar como provado que o arguido aparentava estar alcoolizado.
Em terceiro lugar, relativamente ao arguido ter ficado parado antes de ser atingido pelo gás pimenta, depois de lhe ter sido dito para largar a faca, também não vislumbramos que tal possa ser relevante para a decisão, pois não tem a virtualidade de apagar toda a anterior dinâmica dos factos, na qual se esgotam os dois crimes imputados ao arguido.
Por conseguinte, também aqui, não assiste razão ao recorrente.
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3) Se a conduta do arguido configura uma tentativa/tentativa impossível:
Quanto a esta questão, no essencial, o recorrente alega que, a existir tentativa, a mesma teria de ser considerada impossível, a justificar a não punibilidade, tal qual configurada no artigo 23.º, do Código Penal, salientando que há uma ausência manifesta de qualquer ato tentado de ofensa à integridade física dos elementos policiais.
Mais refere que só seria possível estar configurada a tentativa se tivesse chegado mesmo perto dos ofendidos, a uma distância não superior a um metro, e lhes tivesse tentado golpear ou arremessado a faca sem que os tivesse atingido.
Ainda a este propósito, é alegado que se encontram violados os princípios da legalidade, tipicidade e natureza de ultima ratio do Direito Penal (ver conclusões – E).

Sob a epígrafe «Punibilidade da tentativa», estabelece o artigo 23.º, n.º 3, do Código Penal:
“3 - A tentativa não é punível quando for manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência do objecto essencial à consumação do crime.”
Como é consabido, à tentativa levada a cabo com meios inaptos ou sobre objecto essencial inexistente dá a doutrina o nome de tentativa impossível ou tentativa inidónea.
A inidoneidade do meio ou a carência do objecto não devem ser aferidas através daquilo que o agente se representa, mas sim através das regras da experiência comum ou da causalidade adequada, portanto objectivamente, segundo o critério da generalidade das pessoas.
As referidas inidoneidade e carência têm de ser manifestas, ou seja, se, pelo menos aparentemente, se verifica um perigo objectivo justifica-se a punição, pela intranquilidade que o acto cria.
Assentemos, pois, que o juízo sobre a aptidão ou inaptidão do meio (ou sobre a existência ou inexistência de objecto) – art. 23.º, n.º 3, do CP – tem de ser, em primeiro lugar, um juízo objectivo, quer dizer, não releva aquilo que o agente considera apto ou inapto, existente ou inexistente. Em segundo lugar, a aferição daquela valoração, tanto quanto possível objectiva, tem de assentar em dois planos: de uma banda, na determinação e consideração razoáveis que a generalidade das pessoas ou um círculo de pessoas – que detenham especiais conhecimentos na matéria – fazem sobre o meio ou objecto em causa, por outra, nos especiais conhecimentos do agente e da sua pertinência à vítima.
Revertendo ao caso em apreço, importa recordar que está provado o seguinte:
“(…)”
Como resulta da factualidade provada, o arguido, empunhando uma faca a curta distância dos elementos policiais, só não conseguiu esfaqueá-los porque o agente C… o atingiu na face com gás pimenta, o que pressupõe uma necessidade de defesa face a uma iminente agressão, não sendo possível, salvo o devido respeito, considerar que houvesse manifesta ineptidão do meio empregado pelo arguido nem inexistência do objeto essencial á consumação dos crimes.
A dinâmica dos factos dados como assentes demonstra que, aquando da reação do referido C…, o arguido praticava já atos de execução, nos termos do artigo 22.º, n.º 2, do Código Penal, tendentes a provocar ofensas corporais nos elementos policiais, pois a faca era meio idóneo para as concretizar, sendo certo que estava, na sequência da respetiva aproximação, junto deles, como resulta de ter sido atingido pelo pulverizador de gás pimenta, cujo alcance é curto.
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Ainda neste âmbito, o recorrente defende que se mostra inconstitucional, por violação dos princípios da legalidade, tipicidade e natureza de ultima ratio do Direito penal o entendimento e dimensão normativa do art. 22º n.º 1 CP no sentido de [P]ara o preenchimento da tentativa de ofensa à integridade física mediante utilização de faca basta que o agente anuncie tal mal e exiba uma faca, caminhando na direcção das supostas vítimas sem necessidade de movimentar tal faca objectivamente próximo do corpo dos alegados ofendidos e em condições de efectivamente os lesar ou de os tentar atingir mediante arremesso falhado.
Pois bem, o recorrente, neste caso, salvo o devido respeito, está apenas a colocar em causa a forma como o tribunal a quo procedeu à subsunção da factualidade do caso ao tipo legal de crime pelo qual foi condenado, ou seja a própria decisão judicial em si, e não a norma (ou «dimensão normativa»).
Por outras palavras, visa a sindicância do mérito da decisão proferida no tribunal a quo, nomeadamente, no que respeita à aplicação do direito aos factos, em vez de colocar em crise o conteúdo da norma.
Como tal, o recurso, nesta parte, é manifestamente improcedente.
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4) Da qualificação jurídica dos factos:
A condenação do arguido tem por base a prática de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada previstos e punidos pelos art.ºs 22.º, 23.º, 143.º n.º 1, 145.º, n.ºs 1, al. a), e 2, e 132.º, n.º 2, als. h) e l), do Código Penal,
O recorrente considera que deve “cair” a qualificação do crime de ofensa à integridade física ao abrigo da alínea h), do n.º 2, do artigo 132.º, do Código Penal, em virtude de não ter usado meio particularmente perigoso.
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Quanto a esta questão, temos que atender, para já, ao seguinte:
a) Artigo 143.º, do Código Penal:
“1 – Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.”;
b) Artigo 145.º, do Código Penal:
“1 – Se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido:
a) Com pena de prisão até 4 anos no caso do artigo 143.º;
…;
2 – São suscetíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º.”
c) Artigo 132.º, do Código Penal:
“…
2 – É suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:

h) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum;”
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O meio utilizado (faca de cozinha) é perigoso pela potencialidade específica que tem para causar dano à integridade física ou à vida.
A lei refere-se, todavia, não apenas a meio perigoso, mas a meio particularmente perigoso.
Por conseguinte, tal meio (instrumento, método ou processo), para além de dificultar de modo exponencial a defesa da vítima, tem de ser suscetível de criar perigo para outros bens jurídicos importantes; tem que ser um meio que revele uma perigosidade muito superior ao normal, marcadamente diverso e excepcional em relação aos meios mais comuns que, por terem aptidão para matar, são já de si perigosos ou muito perigosos, sendo que na natureza do meio utilizado se tem de revelar já a especial censurabilidade do agente (cfr., v. g., o acórdão do STJ, na CJ (STJ), ano VIII (2000), pág. 241).
Estão, assim, afastados da qualificação os meios, métodos ou instrumentos mais comuns de agressão que, embora perigosos ou mesmo muito perigosos (facas, pistolas, instrumentos contundentes) não cabem na estrutura valorativa, fortemente exigente, do exemplo-padrão.
Assim sendo, indo ao encontro da pretensão do recorrente, consideramos que não se verifica, no caso, a circunstância prevista na alínea h), do n.º 2, do artigo 132.º, do Código Penal.
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5) Da medida da pena:
O recorrente considera excessiva a pena aplicada em concreto.
Em seu entender, a pena deverá ser fixada em medida não superior a 4 meses de prisão por cada crime e, em cúmulo jurídico, na pena de 6 meses de prisão, igualmente substituída por prestação de 180 horas de trabalho.
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Como dispõe o artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal, a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. As finalidades das penas, na previsão, na aplicação e na execução, são assim na filosofia da lei penal vigente a protecção de bens jurídicos e a integração do agente do crime nos valores sociais afectados.
Na protecção de bens jurídicos está ínsita uma finalidade de prevenção de comportamentos danosos que afectem tais bens e valores (prevenção geral) como também a realização de finalidades preventivas que sejam aptas a impedir a prática pelo agente de futuros crimes (prevenção especial negativa).
As finalidades das penas na sua vertente de prevenção positiva geral e de integração ou prevenção especial de socialização conjugam-se na prossecução do objectivo comum de, por meio da prevenção de comportamentos danosos, proteger bens jurídicos comunitariamente valiosos cuja violação constitui crime.
No caso concreto a finalidade de tutela e protecção de bens jurídicos há-de constituir o motivo fundamento da escolha do modelo e da medida da pena, da tutela da confiança das expectativas da comunidade na validade das normas e especificamente na validade e integridade das normas e dos correspondentes valores concretamente afectados.
Por seu lado, a finalidade de reintegração do agente na sociedade há-de ser em cada caso prosseguida pela imposição de uma pena cuja espécie e medida, determinada por critérios derivados das exigências de prevenção especial, se mostre adequada e seja exigida pelas necessidades de ressocialização do agente, ou pela intensidade da advertência que se revele suficiente para realizar tais finalidades.
Nos limites da prevenção geral de integração e de prevenção especial de socialização será encontrada a medida concreta da pena, sempre de acordo com o princípio da culpa que, nos termos do artigo 40.º, n.º 2 do Código Penal, constitui limite inultrapassável da prevenção a realizar através da pena (cfr. nomeadamente Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1ª edição, pags. 238 a 255).
Postas estas considerações gerais, que devem estar presentes no juízo conducente à pena concreta e adequada, o artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal, preceitua, na senda do citado artigo 40.º, que a determinação concreta da pena, dentro dos limites legalmente definidos, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção e o n.º 2 do mesmo artigo determina que o tribunal atenda a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, enumerando algumas a título exemplificativo, circunstâncias estas que nos darão a medida das exigências de prevenção em concreto a realizar porque indicadoras do grau de violação do valor em causa e da prognose de no futuro o agente se poder determinar com o respeito pelo valor penalmente protegido (a necessidade da pena revela-se desse modo em função da menor ou maior exigência do exercício da prevenção e da reintegração).
Em resumo, tendo como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta, ou seja, tendo como primeira referência a culpa, a fixação da medida da pena perseguirá concomitantemente a prevenção (que, neste contexto, exige fixação de pena que seja entendida pela sociedade como a necessária à tutela do direito e adequada à confiança na aplicação da justiça) e, sempre, objectivos pedagógicos e ressocializadores, tudo tendo em vista a protecção de bens jurídicos e a reinserção social do agente.
Dispõe o art. 70º, do Código Penal, que, quando forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
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No caso em apreço, face ao grau de ilicitude dos factos, referenciado pelo modo e circunstâncias da sua execução, sendo certo que não houve danos a lamentar, ao dolo directo, às exigências preventivas gerais, associadas, sobretudo, ao respeito devido aos elementos da autoridade policial, às circunstâncias em que as condutas foram levadas a cabo, num enquadramento de exaltação, à falta de antecedentes criminais do arguido e à sua integração familiar e social, julgamos algo excessivas as penas de prisão aplicadas, impondo-se a sua redução, ainda que não ao nível exposto no recurso.
Tudo visto e ponderado, julga-se como adequada a pena de nove meses de prisão para cada um dos crimes.
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Quanto ao cúmulo jurídico a efetuar, é o conjunto dos factos que fornece a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique, assim como a personalidade do agente.
Face aos factos conhecidos nos autos, não consideramos que os mesmos sejam reconduzíveis a uma tendência criminosa, radicada na personalidade do arguido, antes a uma pluriocasionalidade, decorrente de uma ação isolada que se exauriu num momento breve, associada a um estado de exaltação.
Quanto à natureza e gravidade dos crimes praticados, se é certo que estamos perante um ilícito penal contra a integridade física das pessoas, também é verdade que os elementos policiais não sofreram ferimentos.
No que tange à personalidade do arguido, o processo é escasso em elementos, o que não causa estranheza face à celeridade inerente à natureza do processo sumário.
Apenas podemos concluir que o arguido não interiorizou o desvalor da sua conduta, o que não abona em seu favor.
Salvo o devido respeito, quanto ao mais, a circunstância de estar desempregado não pode servir para daí retirar, necessariamente, algo de negativo quanto à sua personalidade.
Para concluir, a pena conjunta a obter, em termos de prevenção geral, não pode deixar de ter em consideração o conjunto de actos praticados ao nível da perturbação da paz e segurança dos cidadãos e, num outro plano, a ressocialização do ora recorrente.
E, assim, tudo visto e ponderado, consideramos que se deverá fixar a medida da pena concreta em um ano de prisão.
Nos termos do artigo 58.º, n.ºs 1, 2, 3 3 5, do Código Penal, a mencionada pena de prisão é substituída por 365 horas de trabalho a favor da comunidade.
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IV. Decisão:
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em conceder parcial provimento ao recurso, indo o arguido condenado, pela prática como autor material e em concurso efectivo, de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada previstos e punidos pelos art.ºs 22.º, 23.º, 143.º n.º 1, 145.º, n.ºs 1, al. a), e 2, e 132.º, n.º 2, al. l), do Código Penal, respetivamente, na pena de 9 (nove) meses de prisão para cada um dos crimes.
Operado o cúmulo jurídico dessas penas parcelares, cuja soma material corresponde a 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, nos termos do art.º 77.º, n.ºs 1 e 2 do Cód. Penal, condena-se o arguido na pena única de 1 (um) ano de prisão.
Visto o preceituado no art.º 58.º, n.ºs 1, 2, 3 e 5, do Código Penal, determino a substituição da pena de prisão pela pena de 365 (trezentas e sessenta e cinco) horas de prestação de trabalho a favor da comunidade.
Sem custas.
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(Elaborado e revisto pelo relator, antes de assinado)

Coimbra, 10 de Julho de 2018

José Eduardo Martins (relator)

Maria José Nogueira (adjunta)