Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
36/10.3TTLRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE MANUEL LOUREIRO
Descritores: PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
FALTA
ESTABELECIMENTO COMERCIAL
INSANÁVEL
Data do Acordão: 01/24/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE LEIRIA – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 5º/2 DO CPC; 158º CC; 1º/4 DO CSC; 27º/A DO CPT
Sumário: I – Quem tem personalidade jurídica tem personalidade judiciária, consistindo esta na susceptibilidade de ser parte – artº 5º/2 do CPC.

II – A personalidade jurídica é concedida a todas as pessoas singulares e às pessoas colectivas, nos termos do artº 158º do CC, bem como às sociedades comerciais e civis sob a forma comercial (artºs 5º e 1º/4 do C. S. Comerciais), podendo ainda a lei atribuí-las a outras entidades.

III – Nenhum desses normativos atribui, nem se vislumbra qualquer outro que atribua personalidade jurídica aos estabelecimentos comerciais.

IV – Os estabelecimentos comerciais não têm personalidade jurídica, nem judiciária, sendo insusceptíveis de ser demandados.

V – Resulta do artº 27º/1 do CPC que a intervenção de terceiros ou a prática dos actos nele previstos só podem ter lugar com vista ao suprimento de pressupostos processuais susceptíveis de sanação, o que não é o caso da falta de personalidade judiciária.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I - Relatório

A autora propôs a presente acção contra a sociedade B..., Lda, pessoa colectiva ..., com sede na avenida ..., Lisboa, e contra C... de D..., com sede na rua ...eiria.

Pediu, em via principal, a condenação solidária das rés a verem declarado ilícito o despedimento da autora, a reintegrar a autora ou indemnizá-la pelo despedimento ilícito, no montante de € 14.480,00, que deverá ser actualizado, já que os cálculos foram efectuados até Março de 2009, conforme a autora oportunamente optar, a pagarem à autora os salários vencidos e vincendos, desde a data do despedimento ilícito até à data do trânsito em julgado da sentença, a pagarem à autora a quantia de € 1.641,91, a título de crédito de horas de formação profissional, férias e subsídios de férias e Natal, tudo vencido em 2009, e juros legais calculados desde a data do despedimento ilícito até ao integral e efectivo cumprimento.

Só a ré B... deduziu contestação.

No início da sessão da audiência de julgamento de 27/3/2012, a ré B... apresentou o seguinte requerimento: “Compulsados os autos, constatou agora a ré B..., L.da que " C... de D..." consubstancia uma mera denominação, não tendo, por si, personalidade e capacidade jurídica.

Verifica-se que a presente acção foi interposta contra " C... de D...".

Embora não subsistam dúvidas de que D... é parte legítima nos presentes autos, denota-se que o mesmo, apesar de presente neste Tribunal, não contestou a presente acção, sendo certo que se encontra regularmente citado, constando do A.R. referente à correspondência que lhe foi remetida, a sua própria assinatura.

A ré B..., L.da, teme que esta situação possa vir a ser utilizada pela ré " C... de D..." no futuro, arguindo uma nulidade que não se aceita, mas que a ser julgada procedente, poderá inutilizar todo o processo.

Assim, de modo a evitar uma tramitação que poderá vir a revelar-se inútil e ao abrigo do disposto no artigo 27º, al. a) do Código de Processo do Trabalho, requer-se a V.ª Ex.ª que se digne ordenar a intervenção de D..., residente em ... Leiria, de modo a assegurar a regular tramitação dos autos e a evitar diligências inúteis.”.

Sobre esse requerimento, recaiu o seguinte despacho: “A presente acção foi interposta contra " B..., L.da" e " C... de D...". Apesar de, numa análise breve, nos parecer que a indicação da identidade da 2ª ré " C... de D..." resultará de mera confusão entre a pessoa titular do estabelecimento e este mesmo estabelecimento (o que poderá consubstanciar mera irregularidade), entendendo as razões invocadas pela ré " B..., L.da" e), salvaguardando a possibilidade de decisão inútil e nos termos do disposto no artigo 27º, al. a) do Código de Processo do Trabalho, que permite e até impõe ao Juiz o dever de, até à audiência de discussão e julgamento, mandar intervir na acção qualquer pessoa do lado activo ou passivo que entenda necessária, quer para assegurar a legitimidade das partes, quer para outros fins, nomeadamente, no que concerne aos presentes autos, em alegados casos de transmissão da posição jurídica do empregador, determina-se se notifique D..., na morada supra indicada e constante de fls. 28 dos autos, para contestar, querendo, a presente acção, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 56º, com a cominação do artigo 57º, ambos do Código de Processo do Trabalho, assim se sanando a irregularidade cometida.”.

É deste despacho que vem interposto, por D..., o presente recurso, apresentando o recorrente as conclusões a seguir transcritas:

[…]


*

II – Questões a resolver

Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso, a única questão a resolver neste recurso é a de saber se deve ou não subsistir o despacho que determinou a intervenção do recorrente ao abrigo do disposto no art. 27º/a do CPT.


*

III – Fundamentação

A) De facto

Os factos provados são os resultantes do relatório deste acórdão.

B) De direito

Tanto quanto resulta dos autos, a presente acção foi proposta contra uma sociedade comercial, a ré B..., e um estabelecimento comercial, C..., representado pelo seu titular, D....

Ora, como é sabido, quem tem personalidade jurídica tem personalidade judiciária (art. 5º/2 do CPC), consistindo esta na susceptibilidade de ser parte (artigo 5º/2 CPC).

A personalidade jurídica é concedida as todas as pessoas singulares e às pessoas colectivas nos termos do artigo 158º do CC, bem como às sociedades comerciais e civis sob a forma comercial (artigos 5º e 1º/4, do Código das Sociedades Comerciais), podendo ainda a lei atribuí-las a outras entidades.
Nenhum desses normativos atribui, nem se vislumbra qualquer outro que atribua personalidade jurídica aos estabelecimentos comerciais.

É certo que a lei admite e confere personalidade judiciária a entes que não são dotados de personalidade jurídica, como são o caso dos patrimónios autónomos e outros referidos no artigo 6º do CPC, cuja enumeração não deve ser considerada taxativa, pois “Não se deve excluir que outros patrimónios autónomos também possam ter personalidade judiciária: é o caso, por exemplo, do Estabelecimento Individual de Responsabilidade Limitada, regulado pelo Decreto-Lei nº 248/86, de 25/8 (cfr. RL – 13/2/1992, CJ 92/1, 156).” - Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, p. 138 e 139.

Não está alegado, nem resulta de qualquer elemento constante destes autos, que C... seja um Estabelecimento Individual de Responsabilidade Limitada (EIRL), já que para ser considerado como tal teria de constituir-se por escritura pública e a sua firma incluir sempre a expressão “Estabelecimento Individual de Responsabilidade Limitada” ou a sigla “EIRL” - acórdãos da Relação de Lisboa de 13/2/1992, in JTRL00009472, e de 2/12/2007, proferido no âmbito do processo 8281/2007-1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.

Os estabelecimentos comerciais não têm personalidade jurídica, nem judiciária, sendo insusceptíveis de ser demandados - acórdão da Relação de Lisboa de 17/12/2008, proferido no âmbito do processo proc. 8513/2008-4.

Como assim, a presente acção deveria ter sido proposta contra o próprio titular do estabelecimento C..., o ora recorrente, que não contra o próprio estabelecimento.

Tendo sido proposta contra o estabelecimento, o vício daí decorrente é o de falta de personalidade judiciária, que não, como parece resultar do despacho recorrido, o de ilegitimidade.

Apesar disso, no despacho recorrido determinou-se a intervenção do ora recorrente ao abrigo do art. 27º/a do CPT, tendo em vista, justamente, fazer intervir nos autos o real titular do estabelecimento demandado e, assim, superar a questão da falta de personalidade judiciária do dito estabelecimento, equacionada, no entanto, como questão de legitimidade.

Sem suporte legal, a nosso ver.

Na verdade, como resulta dos próprios termos literais do art. 27º/1 do CPC, a intervenção de terceiros ou a prática dos actos nele previstos só podem ter lugar com vista ao suprimento de pressupostos processuais susceptíveis de sanação – neste sentido, a propósito da norma congénere do art. 265º/2 do CPC, Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, pág. 348.

Nesse sentido apontou, também, o preâmbulo do DL 329-A/95, de 12/12, onde pode ler-se o seguinte:

No mesmo sentido de privilegiar a decisão de fundo, imporá consagrar, como regra, que a falta de pressupostos processuais é sanável.

Assim, para além de expressamente se consagrar, como princípio geral, que incumbe ao juiz providenciar oficiosamente pelo suprimento das excepções dilatórias susceptíveis de sanação, praticando os actos necessários à regularização da instância, ou, quando estiver em causa a definição das partes, convidando-se a suscitar os incidentes de intervenção de terceiros adequados, prevê-se especificadamente a possibilidade de sanação da falta de certos pressupostos processuais, até agora tida como insanável. Assim, prescreve-se a possibilidade de sanação da falta de personalidade judiciária das sucursais, agências ou filiais…”.

(…)
Mantendo embora a estrutura conceitual e sistemática do Código de Processo Civil vigente, relativa à tipificação e enunciação dos pressupostos processuais nominados, introduzem-se modificações sensíveis na sua concreta regulamentação. Assim, no que se refere à personalidade judiciária, procura articular-se o regime da personalidade judiciária das sociedades irregulares, constante do actual artigo 8.º do Código de Processo Civil, ao novo regime de aquisição da personalidade jurídica pelas sociedades comerciais, decorrente do art.º 5.º do Código das Sociedades Comerciais. (…)
”.

Aqui chegados, a pergunta surge inevitável: a falta de personalidade judiciária é sanável?

Em situação como a dos autos, insusceptíveis de enquadramento no art. 8º do CPC, a resposta é, inequivocamente, negativa – neste sentido, Castro Mendes, Direito Processual Civil, vol. II, pág. 33, Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, 2.º Volume, 1997, pág. 68, acórdão do STJ de 14/11/1986, BMJ 361, p. 478, acórdãos da Relação de Coimbra de 16/11/2010, proferido no âmbito do processo 51/10.7TBPNC.C1, e de 23/5/06, proferido no âmbito do processo 1481/06, acórdão da Relação de Évora de 10/11/2010, proferido no âmbito do processo 352/07.1TBGDL.E1.

Ora, sendo a falta de personalidade judiciária da C...insusceptível de sanação, não podia o tribunal recorrido ter determinado, como determinou, a intervenção do titular desse estabelecimento, tendo em vista sanar a falta de personalidade daquele estabelecimento.

Donde a decisão recorrida não possa subsistir.


*

IV – Decisão

Termos em que acordam os juízes desta secção social do Tribunal Relação de Coimbra no sentido de revogar o despacho recorrido, com a consequente anulação da citação do recorrente para contestar, querendo, a presente acção, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 56º, com a cominação do artigo 57º, ambos do CPT, bem assim como de todos os actos por este praticados no âmbito e sequência dessa citação.

Custas pelo vencido a final.



Jorge Manuel Loureiro (Relator)

Ramalho Pinto

Azevedo Mendes