Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
35/07.2JACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
REENVIO
TRIBUNAL CÍVEL
INCIDENTE
INTERVENÇÃO PROVOCADA
Data do Acordão: 10/22/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL – AVEIRO, DA COMARCA DO BAIXO VOUGA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 129.º DO CÓD. PENAL; ARTS. 71.º, 72.º, 74.º E 82.º DO CPP
Sumário: I - A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil. Quando tal sucede, três vias seriam possíveis para o lesado exercer o direito. Um sistema de independência absoluta, em que o crime e a indemnização civil são conhecidos e decididos no foro penal e no foro civil. Um sistema de adesão alternativa, em que, quer a jurisdição penal, quer a jurisdição civil, podem conhecer da indemnização civil, cabendo a opção da jurisdição ao lesado. E um sistema de adesão obrigatória, em que a indemnização civil tem que, obrigatoriamente, ser conhecida e decidida no processo penal.

II - O C. Processo Penal vigente – no seguimento do Código de 1929 – consagra o sistema de adesão obrigatória, como disposto no seu art. 71.º, com as exceções previstas no art. 72º.

III - Sendo que o disposto no art. 82º do C. Processo Penal, porque derroga aquele princípio de adesão obrigatória, tem natureza excecional, só devendo ser usado nos casos nele expressamente previstos.

IV - A negação dos factos imputados, a impossibilidade lógica do preenchimento do tipo do crime de burla, ou os fundamentos de direito invocados para a admissibilidade dos incidentes deduzidos são completamente alheios à questão de saber se estão ou não verificados os pressupostos de que a lei processual penal faz depender o reenvio das partes do pedido civil deduzido na ação penal para os meios comuns.

V - O reenvio da ação civil enxertada para a jurisdição civil não atenta contra qualquer garantia de defesa da recorrente.

VI - A admissão do incidente de intervenção provocada, ainda que o seu processamento possa determinar o adiamento da audiência de julgamento e ao mesmo seja deduzida oposição, não constitui, necessariamente, um atraso inaceitável na marcha do processo.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

 

I. RELATÓRIO

            No Juízo de Média Instância Criminal – Aveiro, da Comarca do Baixo Vouga corre termos o processo comum singular nº 35/07.2JACBR onde é arguida A..., com os demais sinais nos autos, que se encontra pronunciada pela prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217º, nº 1 e 218º, nº 2, a), ambos do C. Penal, e pela prática de um crime de falsidade informática, p. e p. pelo art. 4º, nºs 1 e 3 da Lei nº 109/91, de 17 de Setembro, com referência aos arts. 26º e 386º, ambos do C. Penal.

            A Direcção de Saúde e Assistência na Doença da Guarda Nacional Republicana (DSAD) deduziu pedido de indemnização civil contra a arguida com vista à sua condenação no pagamento da quantia de € 875,02, acrescida de juros de mora desde a data dos factos e até integral pagamento.

            A Administração Central do Sistema de Saúde, I.P. (ACSS) deduziu pedido de indemnização civil contra a arguida com vista à sua condenação no pagamento da quantia de € 138.487,05, acrescida de juros vincendos, à taxa legal, desde a notificação do pedido e até integral pagamento.

Na contestação que apresentou aos pedidos de indemnização deduzidos, a arguida requereu, nos termos do art. 317º do C. Processo Civil, a intervenção provada do Estado Português e do Hospital B....

Por despacho de 19 de Fevereiro de 2014 foram as partes remetidas para os tribunais civis, quanto aos pedidos de indemnização.


*

            Inconformada com a decisão, recorreu a arguida, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

1 – No processo n.º 35/07.2JACBR – Juiz 2, dos Juízos de Média Instância Criminal da Comarca do Baixo Vouga, do despacho proferido pela Mmª Juíza em 19.02.2014, consta designadamente o seguinte: "Veio a arguida A... requerer a intervenção provocada do Estado Português e, bem assim do Hospital B..., alegando que, caso venha a ser condenada no pagamento de qualquer quantia, tem sempre o direito de regresso por esse pagamento, contra o Estado e contra o Hospital, entidades que beneficiaram desse alegado enriquecimento ilícito, injustificado e sem justa causa.

Notificados para se pronunciar o Ministério Público e os demandantes civis, apenas o Ministério Público se pronunciou no sentido de nada ter a opor quanto à intervenção provocada requerida e, por via dessa admissibilidade, entende ser de remeter as partes para os meios comuns para resolução da questão cível.

… A este propósito, verificando-se que, a questão suscitada de intervenção provocada, inerente aos pedidos de indemnização civil formulados, poderia fazer atrasar, desde logo, o inicio do julgamento (agendado para o próximo dia 7 de Março de 2014), sendo que estamos perante factos que remontam já ao ano de 2007, conclui-se que tais situações, na fase processual em que a questão se colocou ao tribunal, provocam um retardamento intolerável do processo penal motivado pelas questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil – sendo hipoteticamente configuráveis situações de demora excessiva provocadas por estes incidentes, quer pela impossibilidade de citação antes da data designada para a realização do julgamento, quer pela possibilidade de oposição à intervenção provocada – pelo que se entende, nesta fase, que essa intervenção afectaria o direito da própria arguida a um julgamento célere e com garantias de defesa, nos termos constitucionalmente consagrados, pelo que se decide remeter as partes para os tribunais civis no que aos pedidos de indemnização civil diz respeito, nos termos do art. 82º, n.º 3 do Código de Processo Penal".

2 – Salvo o devido respeito, tal despacho revela-se num flagrante e inadmissível atentado contra os mais elementares direitos de defesa da arguida constitucionalmente consagrados.

Senão veja-se:

3 – A ora recorrente, à data dos factos objecto dos presentes autos, para além do cargo de Directora do Serviço de Gestão de Doentes no Hospital B..., sito em x..., era médica no serviço de Ortopedia.

4 – A função de directora do serviço de gestão de doentes, é uma função gratuita de nomeação do Conselho de Administração, feita para efeitos de coordenação dos serviços, e para essa função, o Conselho de Administração escolhe o médico competente e respeitado pelos demais colegas e pelos funcionários por forma a esbater o mais possível quaisquer atritos que surjam na interligação entre as várias áreas clínicas e o funcionamento normal do hospital, pelo que recorrente, nenhuma interferência, nem interesse tinha, teve ou tem nos resultados económicos, financeiros ou administrativos do Hospital B..., facto a que foi totalmente alheia, e o único objectivo que tinha e tem num hospital é os doentes serem o mais bem tratados possível, e obter bons resultados clínicos, mais nada.

5 – Na sua qualidade de directora clínica do serviço de gestão de doentes. a recorrente tem o direito de exigir do pessoal administrativo, no que toca à gestão de doentes, e sem que isso represente uma relação hierárquica vinculativa e funcional, o cumprimento das obrigações que forem mais eficazes e eficientes à gestão do serviço, no entanto, a ora recorrente, não tem, nem poderia ter qualquer interferência no tratamento administrativo, informático, contabilístico, económico e financeiro da entrada e da saída de doentes, pois em termos de tratamento administrativo dos doentes, os funcionários têm os seus superiores hierárquicos e é perante esses que têm o dever de obediência, orientação e lealdade.

6 – É totalmente falso que a recorrente tenha alguma vez dado ordens a quem quer que fosse para converter episódios de doentes operados em regime ambulatório. para episódios de internamento.

Acresce que,

7 – Na data de 31 de Dezembro de 2005, o Hospital B..., transformou-se em Entidade Pública Empresarial, antes dessa data o Hospital B... era uma sociedade anónima com um único accionista que era o Estado, conforme se alcança pela Lei 27/2002 de 8 de Novembro – alínea c) do n.º 1 do artigo 2º.

8 – Consagra o artigo 19º do citado diploma legal o seguinte: "Capitulo III – Sociedades anónimas de capitais públicos – Artigo 79º – Regime – 7 – Os hospitais previstos na alínea c) do n.º 1 do artigo 2° regem-se pelo disposto no capitulo I desta lei em tudo o que não seja incompatível com a sua natureza jurídica, pelo presente capitulo e nos respectivos diplomas de criação, onde constam os estatutos necessários ao seu funcionamento, pelo regime jurídico do sector empresarial do Estado, pela lei reguladora das sociedades anónimas, bem como pelas normas especiais cuja aplicação decorra do seu objecto social e do seu regulamento. 2 – A titularidade do capital social pertence apenas ao Estado e a empresas de capitais exclusivamente públicos, nos termos a definir nos respectivos diplomas de criação. 3 – Os direitos do estado como accionista, bem como os poderes de tutela económica, são assegurados conjuntamente pelos Ministérios das Finanças e da Saúde, de acordo com o regime jurídico aplicável e as orientações estratégicas definidas. 4 – Compete ao Ministro da Saúde verificar o cumprimento, pelos hospitais das orientações relativas à execução da política nacional de saúde, podendo, para o efeito, determinar especiais deveres de informação".

Por sua vez, o artigo 1º sob a epigrafe "Natureza", do Decreto Lei n.º 11/93 de 15 de Janeiro, que aprova o Estatuto do Serviço Nacional de Saúde, consagra o seguinte: "O Serviço Nacional de Saúde, adiante designados por SNS, é um conjunto ordenado e hierarquizado de instituições e de serviços oficiais prestadores de cuidados de saúde, funcionando sob a superintendência ou a tutela do Ministro da Saúde''.

9 – Nos termos do Código das Sociedades Comerciais, uma sociedade anónima, cujas acções tenham um único titular é uma sociedade de domínio total titulado pelo seu accionista no caso concreto o Estado, estabelecendo-se entre eles uma relação de grupo, assim, nos termos do artigo 501º de CSC o Estado é responsável por todas as obrigações do Hospital B... nos anos de 2004/2005 por força do domínio total que vigorava, assim como, nos termos do artigo 502º do CSC o Hospital B... nos anos de 2004/2005, tinha o direito de exigir que o Estado o compensasse de quaisquer perdas que por qualquer razão se verificassem na sua administração.

10 – Igualmente qualquer credor do Hospital B... tinha o direito nos anos de 2004/2005 de exigir do Estado o pagamento integral dos seus créditos.

11 – O Serviço Nacional de Saúde é uma entidade directamente dependente do Estado, sendo o Estado igualmente responsável integralmente por todos os créditos e débitos do SNS, bem como dos seus subsistemas ADSE e ADMG, significa isto que, quer os doentes estivessem em regime ambulatório ou em regime de internamento o custo de tais doentes e as receitas decorrentes desses custos, tanto para o Hospital B..., como para qualquer entidade decorrente do Ministério da Saúde, sempre eram neutros, pois sempre o Estado era simultaneamente credor e devedor de toda e qualquer quantia, significa também isto que, nunca a recorrente tinha a possibilidade legal de beneficiar o Hospital B..., mesmo que o quisesse (e nunca o quis, nem nunca teve consciência de praticar qualquer acto que beneficiasse ou prejudicasse alguém, quer o Estado ou qualquer subsistema de saúde, quer o Hospital B...), pois em qualquer uma das entidades referidas era sempre o Estado que era simultaneamente o beneficiário e pagador.

12 – Na situação concreta, sendo o Hospital B... à data dos factos uma sociedade anónima detida na sua totalidade por capitais públicos, os créditos e débitos dessa Unidade Hospitalar consolidam-se na mesma entidade – Estado, ou seja, o Estado é simultaneamente o pagador desses débitos, através do Ministério da Saúde – Instituto de Gestão Informática e Financeira da Saúde, e credor na medida em que é o único accionista do Hospital B....

13 – Bastariam os factos atrás descritos para por si só tornarem impossível a prática do crime de burla, pois pelos motivos expostos, há desde logo e liminarmente a falta de um requisito essencial, para que se verifique a prática de tal crime, a saber "Quem com intenção de obter … para terceiro um enriquecimento ilegítimo", ou seja, na situação concreta, objecto dos presentes autos, inexiste o "beneficio desse terceiro", e consequentemente, não se encontram preenchidos os elementos típicos para que possamos estar perante o preenchimento do tipo legal do crime de burla, de facto, não se percebe a que titulo é que a arguida ia querer beneficiar o Hospital B... em que quer que seja, nem se percebe, em que é que o Estado seria beneficiado ou prejudicado, pois qualquer divergência de valores que existissem sempre teriam que ser pagos pelo próprio Estado ou através de pagamentos feitos ao hospital, ou através de pagamentos feitos ao Serviço Nacional de Saúde ou aos subsistemas de saúde, nomeadamente ADSE e ADMG, ou seja, estaríamos perante uma situação em que o Estado era simultaneamente credor e devedor, não existindo autonomia jurídica e autonomia judiciária, do Hospital B..., relativamente ao Estado.

De facto,

14 – Os demandantes dos Pedidos de Indemnização Civil, são órgãos que fazem parte do Estado no seu todo, pelo que a situação ora em apreço nunca poderá ser tratada numa relação de beneficio/prejuízo, porque no caso em concreto, (a terem ocorrido os factos. que não ocorreram), existe a confusão na mesma entidade que é o Estado, da sua qualidade de beneficiário e prejudicado, e nessa medida, não ocorre a situação de enriquecimento injustificado, pois a mesma entidade, que é o Estado. a terem ocorrido os factos, é simultaneamente o beneficiário e o prejudicado em iguais montantes ou valores, pois pela acusação é confessado (o que se aceita porque é verdade), que a arguida não obteve nenhum benefício de nenhuma das situações.

Mais,

15 – Conforme se alcança do preceituado na Cláusula Décima Oitava do Contrato Programa celebrado no ano de 2005 entre o Hospital B... e o Ministério da Saúde – Instituto de Gestão Informática e Financeira da Saúde, I.P.: "3. O IGIF tem o direito de auditar todos e quaisquer aspectos relacionados com os sistemas de informação, nomeadamente os procedimentos envolvidos na recolha, registo, tratamento e transmissão de informação, tendo em vista verificar a veracidade, consistência e fiabilidade da informação registada e transmitida", ora, perante tal dispositivo, a serem verdade os factos pelos quais a ora recorrente está a ser acusada, o que só por mera hipótese se admite, tais factos sempre seriam e deveriam ter sido "detectados" pelo Estado – Ministério da Saúde (IGIF), e a haver irregularidades, deveriam apurados os seus responsáveis ter sido punidos disciplinarmente, o que nunca sucedeu na presente situação.

Acresce que,

16 – O Decreto-Lei 558/99 de 17 de Dezembro, tem por objecto estabelecer o regime do sector empresarial do Estado, incluindo as bases gerais do estatuto das empresas públicas do Estado, da análise dos artigos 10º e 12º de tal dispositivo legal, somos necessária e forçosamente levados uma vez mais a concluir que, os demandantes do Pedido de Indemnização Civil, ao serem órgãos que fazem parte do Estado no seu todo, a situação ora em apreço nunca poderá ser tratada numa relação de beneficio/prejuízo, porque no caso em concreto, (a terem ocorrido os factos, que não ocorreram), existe a confusão na mesma entidade que é o Estado, da sua qualidade de beneficiário e prejudicado, e nessa medida, não ocorre a situação de enriquecimento injustificado, pois a mesma entidade, que é o Estado, a terem ocorrido os factos, é simultaneamente o beneficiário e o prejudicado em iguais montantes ou valores.

17 – É totalmente falso, que a Dra. A..., constatando que as cirurgias com internamento eram pagas a um preço substancialmente mais elevado do que as cirurgias em ambulatório, tenha formulado o propósito de converter para efeitos administrativos as intervenções realizadas em ambulatório em intervenções com internamento e de assim as facturar ao SNS e aos subsistemas de saúde ADSE e ADMG, com o intuito de obter maiores proveitos para o Hospital.

DA INTERVENÇÃO PROVOCADA – cfr. Artigo 317º CPC

18 – Na própria acusação, diz-se que existe um enriquecimento ilegítimo por parte do Hospital B... no montante de 145.837,93 € (cento e quarenta e cinco mil. oitocentos e trinta e sete euros e noventa e três cêntimos).

19 – No caso da arguida ser condenada no pagamento de qualquer quantia, tem sempre o direito de regresso por esse pagamento, contra o Estado e contra o Hospital B..., entidades que beneficiaram desse acusatório enriquecimento ilícito, injustificado e sem justa causa, na verdade, a existir algum beneficio, que não existiu, quem beneficiou das alegadas quantias monetárias indevidas objecto dos pedidos de indemnização civil formulados nos presentes autos, foi única e exclusivamente o Estado e aquele hospital, não tendo a ora arguida retirado qualquer contrapartida financeira em termos pessoais resultante da divergência nos montantes pagos.

20 – Nessa medida, sempre deverá ser requerida a intervenção provocada nos presentes autos do Estado Português e do Hospital B..., nos termos consignados na lei processual civil, tendo em conta que se algum benefício indevido houve, sempre foi o Estado e o Hospital B... quem logrou do mesmo, e consequentemente a haver direito de regresso, sempre deverão ser estas entidades a prestá-lo.

Acresce que,

21 – Os pedidos de indemnização civil foram formulados nos presentes autos, foram liminarmente aceites, nunca tendo antes o Tribunal a quo, remetido os demandantes civis para os meios processuais comuns, para eventualmente serem ressarcidos, das quantias por estes indevidamente pagas, sendo que, a ora recorrente apenas tomou conhecimento da existência de tais pedidos de indemnização civil nos presentes autos, conjuntamente com a notificação de 14.11.2013, constante a fls … dos autos, da marcação da audiência de julgamento, e para querendo apresentar contestação à acusação formulada nos autos, e aos respectivos pedidos de indemnização civil formulados.

22 – Pelo que, a este respeito o despacho recorrido quando refere: " … conclui-se que tais situações, na fase processual em que a questão se colocou ao tribunal, provocam um retardamento intolerável do processo penal motivado pelas questões suscitadas pelo pedido indemnização civil", não assenta em pressupostos válidos, na medida em que, ao contrário daquilo que se quer fazer crer em tal despacho, a ora recorrente quando tomou conhecimento de tais Pedidos de Indemnização Civil, desde logo e na contestação que quanto aos mesmos deduziu, requereu a intervenção dos únicos a reais beneficiários do eventual enriquecimento ilícito, pelo que e no que a este argumento se refere, não poderá, salvo melhor opinião, o despacho recorrido proceder.

Mais,

23 – Os Pedidos de Indemnização Civil formulados nos presentes autos, e a eventual prática dos ilícitos criminais, constantes dos autos, encontram-se intrinsecamente ligados, não se podendo falar, nem fazendo sentido falar autonomamente de ambos, pois um é decorrência directa do outro, sendo que, e por tudo quanto já se expôs, a discussão apenas da parte criminal dos autos, desprovida da parte cível e dos seus intervenientes – demandantes, e demandados cuja intervenção se requereu, viola os mais elementares princípios de direito constitucionalmente consagrados, como poderemos querer analisar/julgar um processo à luz dos mais elementares princípios de um Estado de Direito Democrático, quando impedimos que no mesmo intervenham, os verdadeiros e reais beneficiários da prática dos alegados crimes? Onde estão as garantias de defesa da arguida no presente processo, se o tribunal a quo lhe impede sem mais argumentos, que os beneficiários do crime que lhe acusam ter cometido, "são convidados a sair de cena" sem qualquer razão ou fundamento.

24. Os presentes autos quando devidamente analisados, resulta clara e inequivocamente. que julgar a parte criminal desprovida da parte cível, estaremos antes a pôr em perigo nas palavras de Maia Gonçalves "uma decisão rigorosa" do pleito a que qualquer arguido tem direito.

25 – É certo que o artigo 32º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, consagra: "Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa", consagrando ainda o n.º 1 de tal dispositivo o seguinte: "O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso", ora, da análise de ambos os preceitos constitucionais, resulta claramente que se é certo que todo o arguido tem direito a ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa, não é menos certo que, em nome da celeridade processual, se possa pôr em causa tais garantias de defesa do arguido.

26 – Não poderemos querer sobrepor uma atempada realização e conclusão da audiência de julgamento e consequente decisão final, aos direitos de defesa que assistem ao arguido na realização da tal audiência, sob pena de estarmos então a violar o Princípio do Contraditório, constitucionalmente consagrado, princípio ao qual emerge enquanto corolário das garantias de defesa do arguido, o Principio da Adesão, segundo o qual existindo uma dependência funcional e intrínseca entre ambos, tal questão só faz sentido quando apreciada no seu todo.

Acresce que,

27 – O tribunal a quo, ao impedir os autores dos pedidos de indemnização civil, de intervirem nos presentes autos, viola uma vez mais um dispositivo constitucionalmente consagrado, na medida em que os impede enquanto eventuais prejudicados pela conduta da arguida, de participarem na audiência de julgamento na qual será determinada ou não a autoria da arguida pela prática de tais factos e nessa medida a procedência ou não dos pedidos de indemnização que os ofendidos querem ver assegurados.

Sem prescindir,

28 – Como consta da própria acusação, da alegada conduta ilícita da arguida, resultou um enriquecimento ilegítimo para o Hospital B..., e consequentemente para o Estado Português, pelas razões já supra explanadas, ora perante tais factos era dever do Ministério Público formular também a acusação e respectivo pedido de indemnização civil, contra o Hospital B..., e consequentemente contra o Estado Português, na medida em que e como aliás é pelo mesmo expressamente reconhecido, foram estes os únicos beneficiários da alegada prática do crime.

29 – Estando-se aqui claramente perante o instituto do "Enriquecimento sem Causa", consagrado nos artigos 473º e seguintes do Código Civil, ou seja, o Ministério Publico deveria ter em nome e em representação dos interesses do Estado Português, também formulado a acusação contra aqueles que sem causa justificativa enriqueceram à custa de outrem, que como o reconhece expressamente não foi a arguida nos presentes autos, pois a existir um alegado enriquecimento ilícito e sem justa causa, e um consequente direito de regresso, tais factos estão necessária e objectivamente ligados com a alegada prática dos crimes, pelos quais a recorrente vem acusada.

30 – De facto, da leitura atenta dos artigos 524º e 525º do C.C., resulta clara e inequivocamente que ao relegar-se as partes para os meios comuns para a discussão dos eventuais pedidos de indemnização civil e consequentemente do direito de regresso que quanto aos mesmos a arguida terá direito, poderá por si só, implicar uma diminuição das garantias de defesa da ora recorrente, na medida em que os demais responsáveis solidários, poderão opor à ora recorrente/credora "… qualquer outro meio de defesa, quer este seja comum, quer respeite pessoalmente ao demandado", ou seja, a não intervenção no presente processo crime quer do Hospital B..., quer do Estado Português, poderá legitimá-los a invocar contra a ora recorrente que a não intervenção no processo crime os isenta de qualquer responsabilidade e consequentemente não aceitam pagar qualquer indemnização, implicando a inversão do ónus da prova, na medida em que, caberá à ora arguida, na acção a intentar contra o Hospital B... e o Estado Português, fundada num eventual direito de regresso, por enriquecimento sem causa, a prova dos factos constitutivos do direito em que se arroga.

Mais,

31 – O indeferimento pelo Tribunal a quo da requerida intervenção nos presentes autos, quer do Hospital B..., quer do Estado Português, na qualidade de beneficiários das quantias que foram indevidamente pagas pelo Estado Português Ministério da Saúde, através do IGIF (Instituto de Gestão Informática e Financeira da Saúde), é por si só violadora de forma clara e irresponsável dos mais elementares direitos de defesa da arguida, subjacentes a um Estado de direito democrático, direitos estes consignados desde logo no artigo 2º da CRP, segundo o qual: "A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado … no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais …".

32 – Conforme preceitua o n.º 1 do artigo 487º do Código Civil "É ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, …", ou seja na situação em concreto dos autos, cabia ao Ministério Público na qualidade de legitimo representante do Estado Português provar a culpa dos autores da lesão, in casu a arguida e os beneficiários da mesma, o Hospital B... e o Estado Português, ao relegar-se a discussão dos pedidos de indemnização civil formulados nos autos e eventual direito de regresso, para os meios comuns, está-se claramente a querer inverter o ónus da prova que neste caso caberá à arguida na medida em que caberá a esta a prova dos factos constitutivos do alegado direito de regresso que invoca quer contra o Hospital B... quer contra o Estado Português.

33 – O caso concreto, é decorrente de uma negligência grave do Ministério Público, pois este sabia claramente e admite-o na própria acusação que o único beneficiário da alegada prática dos factos constantes da acusação foi o Hospital B..., ora assim sendo, outra coisa não restava senão deduzir a acusação não apenas contra a ora recorrente como indevidamente o fez, mas também contra o Hospital B..., existindo o direito/obrigação de fazer intervir nos presentes autos e na consequente discussão do processo crime quer o Hospital B..., quer o Estado Português, estando-se claramente perante uma situação de litisconsórcio necessário, pois também eles são partes interessadas nos presentes autos.

34 – Da leitura atenta dos artigos 483º, 490º e 497º todos do C.C. a questão que desde logo ressalta prende-se com o facto de a própria acusação referir-se a vários intervenientes e consequentes beneficiários da alegada prática dos factos constantes da acusação, no entanto apenas e unicamente a arguida está a ser acusada pela prática de tais factos, "simplesmente retirando de cena" todos os demais actores que a própria acusação faz menção, e que também eles senão enquanto autores, instigadores ou auxiliares, participaram da alegada prática dos factos que a acusação descreve, estando-se por isso claramente perante uma situação de responsabilidade solidária nos presentes autos, quer por parte do Hospital B..., quer do Estado Português.

35 – Ora, subsumindo a situação factual dos autos ao consignado nos artigos 500º, n.º 1 e 501º ambos do C.C., sempre estaríamos perante uma relação comitente – comissário entre a ora recorrente e o Hospital B... – Estado Português, na medida em que a arguida nas funções que exercia sempre actuou em representação e beneficio do Hospital B... e consequentemente do Estado Português, pelo que, à luz destes preceitos legais, tais entidades sempre seriam responsáveis conjunta e solidariamente com a ora recorrente pela alegada conduta descrita nos autos e pela consequente indemnização civil que da mesma possa advir.

36 – Atendendo ao consignado no n.º 1 do artigo 800º e no n.º 1 do artigo 998º ambos do C.C. em ambos os preceitos legais, somos uma vez mais, necessária e forçosamente levados a concluir que o Ministério Público errou nos pressupostos e fundamentos pelos quais pautou a acusação formulada nos presentes autos, de facto, uma vez mais, não se percebe como é que a acusação objecto dos presentes autos, nos termos e fundamentos em que está formulada, apenas leva única e exclusivamente a ora recorrente a julgamento, quando a mesma actuou em representação e no exclusivo interesse do Hospital B... com a alegada prática dos factos objecto dos presentes autos.

37 – Por tudo quanto resulta exposto, o despacho recorrido, ao indeferir a intervenção nos presentes autos quer do Hospital B..., quer do Estado Português, relegando os pedidos de indemnização civil formulados nos presentes autos para os meios comuns, revela-se num flagrante e inadmissível atentado contra os mais elementares direitos de defesa da arguida constitucionalmente consagrados.

Nestes termos e nos melhores de Direito,

- deve ser dado provimento ao presente recurso e em consequência:

- deve o despacho que indeferiu a intervenção provocada nos presentes autos, do Estado Português e bem assim do Hospital B..., ser revogado, com as consequências legais, fazendo-se assim, inteira JUSTIÇA.


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            Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público alegando, em síntese, que o reenvio das partes para os tribunais civis relativamente aos pedidos de indemnização deduzidos não atenta contra os direitos de defesa da arguida e que o exercício do invocado direito de regresso nos meios comuns possibilita, nessa sede, a pretendida intervenção provocada do Estado e do Hospital B..., e concluindo pela improcedência do recurso.


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            O Exmo. Procurador-Geral Adjunto apôs o seu visto.


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Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pela recorrente, a questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, é a de saber se estão ou não verificados os pressupostos de que a lei faz depender o reenvio para os tribunais civis dos pedidos de indemnização deduzidos nos autos.

 


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            Para a resolução desta questão importa ter presente o teor do despacho recorrido que é o seguinte:

            “ (…).

            Veio a arguida A... requerer a intervenção provocada do Estado Português e, bem assim, do Hospital B..., alegando que, caso venha a ser condenada no pagamento de qualquer quantia, tem sempre o direito de regresso por esse pagamento, contra o Estado e contra o Hospital, entidades que beneficiaram desse alegado enriquecimento ilícito, injustificado e sem justa causa.

Notificados para se pronunciar o Ministério Público e os demandantes civis, apenas o Ministério Público se pronunciou no sentido de nada ter a opor quanto à intervenção provocada requerida e, por via dessa admissibilidade, entende ser de remeter as partes para os meios comuns para resolução da questão cível (cfr. fls. 2566).

                Cumpre pois, apreciar e decidir.

Fazendo-o comecemos por apreciar a questão da admissibilidade ou não do incidente de intervenção de terceiros em processo penal:

Têm sido seguidas duas correntes jurisprudenciais, uma que entende não ser admissível a intervenção provocada de terceiros na acção cível enxertada no processo penal, uma vez que não há "caso omisso", já que o Código de Processo Penal, nos artigos 73.º e 74.º, prevê e regula toda a matéria de intervenção de terceiros, não havendo por isso qualquer lacuna a preencher, com recurso às normas do processo civil, nos termos do art. 4.º do Código de Processo Penal; outra que entende que no pedido de indemnização civil deduzido em acção penal é admissível o incidente de intervenção provocada de terceiros, sustentando tal tese na argumentação de que cm processo civil, o incidente de intervenção provocada, tal como o espontâneo, configuram uma intervenção de terceiros com a finalidade de fazer valer um interesse igual ao dos autor ou do réu, pelo que, substancialmente, o objectivo da intervenção espontânea e da provocada é o mesmo e, na perspectiva dos propósitos do instituto e da sua adequação ao processo penal, tendo em atenção a primazia das regras processuais penais que se sobrepõem, em regra, às normas do processo civil, não se vislumbra motivo para admitir apenas uma das suas formas em processo penal. Concluem que o Código de Processo Penal, interpretado a esta luz, consagra a regra geral da admissibilidade da intervenção de terceiros com assento legal no disposto no n.º 3 do seu art. 74.º, enquanto o n.º 2 do art. 73.º se limita a esclarecer a possibilidade também da intervenção espontânea.

É esta a tese que perfilhamos e que encontra sustentação nos Acórdãos da Relação de Coimbra, de 7 de Novembro de 2007 e de 29 de Outubro de 2003, da Relação de Lisboa, de 11 de Abril de 2000, da Relação de Évora, de 12 de Junho de 2012, da Relação do Porto, de 8 de Marco de 2006 e de 16 de Maio de 2012, e do STJ, de 25 de Junho de 2008, todos disponíveis in www.dgsi.pt

Transcreve-se, a propósito, o que vem esclarecedoramente referido no Acórdão da Relação de Coimbra, de 7 de Novembro de 2007: "O Prof. Figueiredo Dias, mentor incontestado da nova lei processual penal defendia já em 1974, ao analisar o problema no plano do direito a constituir "Direito Processual Penal" 1º volume, Coimbra Editora, 1974, pg. 572; as soluções propostas e explanadas a pg.s 559 a 575 vieram, aliás, a ser genericamente consagradas no Código de Processo Penal de 1987 que "deverá finalmente generalizar-se a possibilidade – aberta hoje entre nós pelo Código da estrada – de o lesado exigir, no processo penal, indemnização às pessoas só civilmente responsáveis pelo facto imputado ao arguido, podendo elas intervir voluntariamente no processo penal movido contra o mesmo arguido. Paralelamente, quando a indemnizarão seja apreciada no tribunal penal e o arguido declare que pretende chamar à demanda pessoas só civilmente responsáveis, não deverá por esse facto cessar a competência daquele tribunal para apreciar a indemnização".

Isto posto, temos como admissível, em termos genéricos, o incidente de intervenção de terceiros em processo penal e, consequentemente, no caso concreto também o é.

Na realidade, e sem entrarmos ainda na análise do tipo de intervenção aqui em causa e da verificação do preenchimentos dos respectivos pressupostos, impõe-se salientar que os interesses dos intervenientes em consequência da prática de um crime só ficam suficientemente salvaguardados se lhes for dada a possibilidade de requererem a intervenção de terceiros.

Não obstante, e em concreto, considerando o momento processual em que tal incidente foi deduzido, verifica-se que a admissão do mesmo seria susceptível de interferir com a atempada realização e conclusão da audiência de julgamento e consequente decisão final, atendendo a que a audiência já se encontra marcada e houve já um adiamento anterior.

Trata-se, segundo Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 12.ª ed., pág. 247, "de uma disposição cautelar, destinada a evitar que através do sistema de adesão, que em princípio se consagra, se possa entravar a rápida administração da justiça penal. A remessa para os tribunais prevista no nº 3 deve ser ordenada sempre que uma decisão rigorosa ou a necessária celeridade do processo penal sejam postas em perigo pelo processamento da questão civil conjuntamente. Como fundamento da remessa podem apontar-se quaisquer razões, designadamente incidentes da instância, desde que causadoras daquele perigo".

Como vem referido no Acórdão da Relação de Lisboa, de 2 de Dezembro de 2009, acessível in www.dgsi.pt., "a remessa para os meios comuns vai permitir que o pedido seja julgado em melhores condições e sem custos de protelamento do processo penal. O reenvio é no fundo um mecanismo que tem em vista evitar os prejuízos que podem ocorrer com a manutenção da adesão, designadamente, quando está em causa a boa decisão da causa cível e o julgamento da causa penal num prazo razoável".

A este propósito, verificando-se que, a questão suscitada de intervenção provocada, inerente aos pedidos de indemnização civil formulados, poderia fazer atrasar, desde logo, o início do julgamento (agendado para o próximo dia 7 de Março de 2014), sendo que estamos perante factos que remontam já ao ano de 2007, conclui-se que tais situações, na fase processual em que a questão se colocou ao tribunal, provocam um retardamento intolerável do processo penal motivado pelas questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil – sendo hipoteticamente configuráveis situações de demora excessiva provocadas por estes incidentes, quer pela impossibilidade de citação antes da data designada para a realização do julgamento, quer pela possibilidade de oposição à intervenção provocada – pelo que se entende, nesta fase, que essa intervenção afectaria o direito da própria arguida a um julgamento célere e com garantias de defesa, nos termos constitucionalmente consagrados, pelo que se decide remeter as partes para os tribunais civis no que aos pedidos de indemnização civil diz respeito, nos termos do art. 82.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.

Notifique.

Desconvoque as testemunhas arroladas nos respectivos articulados civis. Aguardem os autos a data designada para audiência de julgamento.

(…)”.


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            Com interesse, colhem-se ainda dos autos os seguintes elementos:

            i) O inquérito teve início em 2007 e o Ministério Público deduziu acusação contra a arguida em 11 de Maio de 2009, imputando-lhe a prática de um crime de burla, p. e p. pelos arts. 217º, nº 1 e 218º, nº 2, a), e de um crime de falsidade informática, p. e p. pelo art. 4º, nºs 1 e 3 da Lai Criminalidade Informática, com referência aos 26º 386º do C. Penal;

            ii) Em 1 de Junho 2009 a Direcção de Saúde e Assistência na Doença, da Guarda Nacional Republicana deduziu pedido de indemnização civil contra a arguida, sem específico requerimento de prova;      

            iii) Em 5 de Junho de 2009 a Administração Central do Sistema de Saúde, I.P., deduziu pedido de indemnização civil contra a arguida, tendo no respectivo requerimento de prova indicado nove testemunhas e juntado dois documentos;

            iv) Em 9 de Junho de 2009 a arguida requereu a abertura da instrução;

            v) Em 10 de Julho de 2013 foi proferida decisão instrutória, pronunciando a arguida pela prática dos crimes imputados na acusação pública;

            vi) Em 6 de Dezembro de 2013 a arguida contestou os pedidos de indemnização civil e requereu a intervenção provocada do Estado Português e do Hospital B..., tendo no respectivo requerimento de prova indicado dez testemunhas e solicitado a notificação do hospital referido para juntar o organigrama em vigor na data dos factos;

            vii) Em 19 de Fevereiro foi proferido o despacho recorrido;

viii) A audiência de julgamento iniciou-se em 7 de Março de 2014, com declarações da arguida;

ix) Prosseguiu em 25 de Março de 2014, com declarações da arguida;

x) Continuou em 26 de Março de 2014, com a inquirição de oito testemunhas, tendo a sessão seguinte sido designada para 23 de Abril de 2014.


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Da verificação ou não dos pressupostos de que a lei faz depender o reenvio para os tribunais civis dos pedidos de indemnização

1. A prática de um crime, para além de responsabilidade penal, pode também dar origem a responsabilidade civil, a uma indemnização de perdas e danos de natureza exclusivamente civil. Assim, dispõe o art. 129º do C. Penal que a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.

            Quando tal sucede, coloca-se a questão de saber como pode o lesado exercer o direito, separados que há muito se encontram, o processo penal e o processo civil. Para tanto, três caminhos são possíveis.

            Um sistema de independência absoluta, em que o crime e a indemnização civil são conhecidos e decididos no foro penal e no foro civil. Um sistema de adesão alternativa, em que, quer a jurisdição penal, quer a jurisdição civil, podem conhecer da indemnização civil, cabendo a opção da jurisdição ao lesado. E um sistema de adesão obrigatória, em que a indemnização civil tem que, obrigatoriamente, ser conhecida e decidida no processo penal. 

            O C. Processo Penal vigente – no seguimento do Código de 1929 – consagra o sistema de adesão obrigatória, dispondo no seu art. 71º, sob a epígrafe «Princípio de adesão»:  

            O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.

            O princípio comporta, no entanto, excepções, permitindo a lei, em certos casos, que o pedido de indemnização seja deduzido em separado, nos tribunais civil. Assim acontece, entre outras situações, quando ocorra demora excessiva no andamento do processo penal, quando este tiver sido arquivado ou extinto antes do julgamento, quando o procedimento respeite a crimes semi-públicos e particulares, quando, ao tempo da acusação, não houver danos ou notícia da sua existência, quando a sentença penal não se tenha pronunciado sobre o pedido, quando a forma de processo o não comporte (cfr. art. 72º, nº 1 do C. Processo Penal).

            São apontadas como vantagens do sistema de adesão obrigatória, razões de economia processual, já que num mesmo processo se resolvem todas as questões suscitadas pela prática do crime, razões de economia de meios, pois os interessados não se vêem obrigados a despender custos acrescidos, e razões de prestígio institucional, na medida em que a existência de um único processo previne a possibilidade de julgados contraditórios. Figueiredo Dias refere ainda o contributo deste sistema para o fim retributivo e preventivo da pena e, por esta via, para alcançar o fim do processo penal, e dá particular realce à realização mais rápida, mais barata e mais eficaz do direito do lesado à indemnização (Direito Processual Penal, 1ª Edição 1974, Reimpressão, pág. 562).           

            Por outro lado, a lei, no seguimento da lição do Mestre citado (cfr. ob. cit., pág. 567 e ss), não deixou de prevenir as situações em que a escassez de elementos suficientes no processo penal e a complexidade ou demora na apreciação da questão civil, são susceptíveis de prejudicar o normal desenvolvimento do processo penal.

            Assim, dispõe o art. 82º do C. Processo Penal, sob a epígrafe, «Liquidação em execução de sentença e reenvio para os tribunais civis»:

            1 – Se não dispuser de elementos bastantes para fixar a indemnização, o tribunal condena no que se liquidar em execução de sentença. Neste caso, a execução corre perante o tribunal civil, servindo de título executivo a sentença penal.

            2 – Pode, no entanto, o tribunal, oficiosamente ou a requerimento, estabelecer uma indemnização provisória por conta da indemnização a fixar posteriormente, se dispuser de elementos bastantes, e conferir-lhe o efeito previsto no artigo seguinte.

            3 – O tribunal pode, oficiosamente ou a requerimento, remeter as partes para os tribunais civis quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil inviabilizarem uma decisão rigorosa ou forem susceptíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal.

            O nº 1 rege para a situação em que o tribunal não dispõe de elementos que lhe permitam a fixação da indemnização. Aqui, pressuposta que é que a averiguação de tais elementos retardará de forma excessiva o processo penal, o tribunal, o tribunal condena na quantia que se liquidar em execução de sentença, correndo esta no tribunal civil.

            O nº 3 rege para a situação em que uma decisão rigorosa ou a exigível celeridade do processo penal sejam afectadas pelo conhecimento do pedido civil ou seja, quando a complexidade das questões substantivas suscitadas ou eventuais incidentes, designadamente, incidentes da instância, façam perigar aquela celeridade.

            O ponto comum a ambas as situações é, portanto, a prevenção de uma rápida realização da justiça penal (cfr. Maia Gonçalves, C. Processo Penal Anotado, 10ª Edição, pág. 234).

            Deve, no entanto, ter-se sempre presente que o disposto no art. 82º do C. Processo Penal, porque derroga o princípio de adesão obrigatória, tem natureza excepcional, só devendo ser usado nos casos nele expressamente previstos.

           

            2. Sintetizando as conclusões formuladas pela recorrente verificamos que nelas começa por transcrever parte do despacho recorrido e considerar o mesmo flagrantemente atentatório dos seus direitos de defesa [1 e 2], passa de seguida a uma descrição das suas funções no hospital B..., afirma a impossibilidade de ter interferido no tratamento informático de entrada e saída de doentes e nega ter dado ordens para a conversão de episódios de cirurgia em regime ambulatório para cirurgia em regime de internamento [3 a 6], descreve a natureza jurídica do referido hospital, o seu regime legal, o seu relacionamento com o Serviço Nacional de Saúde e subsistemas de saúde, o seu relacionamento com o Estado enquanto único accionista, refere a impossibilidade de ter praticado o crime de burla por não ter tido consciência de praticar qualquer acto prejudicial a terceiro e de ser impossível qualquer benefício ilegítimo de quem quer que fosse, pois o Estado surge simultaneamente como beneficiário e pagador, acrescendo que, se irregularidades houve, o Ministério da Saúde, a quem cabia a fiscalização da informação processada pelo Hospital B..., não as detectou nem puniu disciplinarmente os responsáveis [7 a 17], justifica a requerida intervenção do Estado e do hospital por sobre eles ter direito de regresso, caso seja condenada nos pedidos de indemnização, pedidos que foram liminarmente aceites e dos quais só teve conhecimento quando notificada da data do julgamento e para os contestar, tendo na contestação deduzido os incidentes [18 a 22], argumenta que a não intervenção no processo dos verdadeiros beneficiários da prática dos crimes imputados viola as suas garantias de defesa constitucionalmente garantidas designadamente, o princípio do contraditório, não podendo a pretendida rápida realização da audiência pô-las em causa, pois a questão objecto dos autos só será convenientemente tratada e decidida se incidir sobre os aspectos criminais e civis, bem como viola os próprios direitos dos demandantes que se vêem privados de participar na audiência [23 a 27], e termina, invocando o enriquecimento sem causa e consequente direito de regresso, a omissão do Ministério Público em deduzir acusação e pedido de indemnização contra o hospital e o Estado, a possibilidade de estes, na acção cível, excepcionarem contra si a sua não intervenção no processo crime, e de se inverter o ónus da prova, sendo clara a existência de um litisconsórcio necessário, e a relação de comitente – comissário, entre si e o hospital [28 a 37].

Tudo isto para dizermos que a negação dos factos imputados, a impossibilidade lógica do preenchimento do tipo do crime de burla, ou os fundamentos de direito invocados para a admissibilidade dos incidentes deduzidos são completamente alheios à questão de saber se estão ou não verificados os pressupostos de que a lei processual penal faz depender o reenvio das partes do pedido civil deduzido na acção penal para os meios comuns.

E uma precisão há ainda que fazer. Contrariamente ao alegado pela recorrente na parte final das conclusões, e ressalvado sempre o devido respeito por distinta opinião, o despacho recorrido não indeferiu a intervenção provocada por si requerida – o que pressupunha a manutenção da acção civil enxertada, se bem que sem o incidente supostamente indeferido – antes teve um âmbito mais alargado e, pelo reenvio, excluiu do processo penal, a acção civil.

Aqui chegados, passemos então ao objecto do recurso.

3. Alega a recorrente que o “retardamento intolerável do processo penal motivado pelas questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil” não assenta em pressupostos válidos, pois que, logo que teve conhecimento dos pedidos de indemnização civil – em 14 de Novembro de 2013, com a notificação da data da audiência e do prazo para os contestar – requereu a intervenção dos beneficiários – o que fez na contestação apresentada [conclusão 22].

Mais alega que o conhecimento da questão criminal, desacompanhada da questão civil e portanto, sem demandantes, demandados e intervenientes, viola as suas garantias de defesa, não podendo a celeridade processual por em causa aquelas garantias designadamente, o princípio do contraditório [conclusões 23 a 27].

3.1. Começando pela última questão proposta, e adiantando a resposta, não vemos que o reenvio da acção civil enxertada para a jurisdição civil possa atentar contra qualquer garantia de defesa da recorrente. Vejamos.

O princípio do contraditório, com assento constitucional no art. 32º, nº 5 da Lei Fundamental, significa, numa formulação ampla, que o juiz, para decidir, deve ouvir a acusação e a defesa ou, dito de outra forma, que à acusação e à defesa assiste o direito de se pronunciarem sobre alegações, iniciativas ou actos processuais da outra (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, 4ª Edição, pág. 77), e quando concebido como princípio ou direito de audiência, significa a oportunidade conferida a todo o participante processual de influir, através da sua audição pelo tribunal, no decurso do processo (Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 153). 

Assim balizado, o reenvio das partes civis para a jurisdição civil, em si mesmo, em nada o afecta, na medida em que tal significa apenas que a é excluída do processo penal a determinação da indemnização devida pelos danos causados pelo crime de burla imputado. É que sendo o crime de burla um crime de dano – consuma-se com a verificação de um efectivo prejuízo no património do lesado – e um crime de resultado – consuma-se com a saída dos bens da disponibilidade do lesado (cfr. A. M. Almeida Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, pág. 276 e ss.) –, o prejuízo do lesado é elemento constitutivo do respectivo tipo objectivo. Assim, bastando-se o processo penal com a discussão da existência ou não deste prejuízo – não exigindo, portanto, a sua extensão e/ou quantificação monetária – para efeitos da tipicidade ou atipicidade da conduta, a estrita observância das regras do processo no decurso da audiência de julgamento, como é suposto suceder, seguramente assegurará todas as garantias de defesa, incluindo, a observância do invocado princípio. Aliás, a não se entender deste modo, e agora por hipótese de raciocínio, a circunstância de os lesados não deduzirem pedidos de indemnização levar-nos-ia à conclusão, inaceitável, de que a ausência de formulação daqueles pedidos afectaria, sempre, as referidas garantias.                      

3.2. A recorrente, se bem percebemos a alegação, pressupõe que no despacho recorrido lhe é atribuída a responsabilidade do “retardamento intolerável do processo penal motivado pelas questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil”, ao ter deduzido o incidente, quando entende que o fez com a diligência e maior rapidez que a marcha do processo permitia.

Dúvidas não restam, face aos elementos disponíveis nestes autos de recurso, que o incidente de intervenção do Estado Português e do Hospital B... foi deduzido no tempo próprio isto é, na contestação atempadamente apresentada, aos pedidos de indemnização civil deduzidos.

Sucede, porém, que a ratio decidendi do despacho recorrido não se funda numa qualquer falta de diligência da recorrente na sua conduta processual e, muito menos, na consideração de que a dedução do incidente é meramente dilatória.

Na verdade o que o despacho recorrido afirma, sem grandes desenvolvimentos argumentativos, é certo, é que, atento o momento processual em que o incidente foi deduzido, a sua admissão seria susceptível de interferir com a realização da audiência, já marcada e uma vez adiada, e atrasar a decisão, já que, hipoteticamente, poderiam configurar-se situações de demora no processamento do incidente designadamente, a possibilidade de oposição, sendo que os factos se reportam a 2007, assim sendo provocado um retardamento intolerável do processo penal.

Resulta objectivamente dos autos que o retardamento do processo se verifica desde as suas primeiras fases. Com efeito, o inquérito foi autuado em 2007, e acusação pública foi deduzida em Maio de 2009, a instrução foi requerida em Junho do mesmo ano e a decisão instrutória data de Julho de 2013 o que significa que, desde o início do processo e até à fase do julgamento, decorreram já mais de cinco anos.

A admissão do incidente de intervenção provocada, ainda que o seu processamento possa determinar o adiamento da audiência de julgamento e ao mesmo seja deduzida oposição, não constitui, necessariamente, um atraso inaceitável na marcha do processo.

Mas a eventual admissão dos intervenientes irá muito provavelmente implicar um aumento substancial da complexidade da questão civil a decidir. Com efeito, para além das dificuldades que se adivinham com a representação do Estado Português pelo Ministério Público que, simultaneamente, terá que sustentar a acusação pública, perspectivam-se questões relacionadas com o regime legal do sistema de saúde, com o regime legal das empresas de capitais públicos, com o regime da responsabilidade extracontratual do Estado, e tudo isto independentemente dos meios de prova que os intervenientes pretendam vir a produzir.

Cremos, pois, não merecer censura o juízo prudencial formulado pela Mma. Juíza a quo ao remeter as partes para a jurisdição civil, já que na decisão se não vislumbra qualquer arbitrariedade ou desvio das finalidades processuais visadas pelo art. 82º, nº 3 do C. Processo Penal.


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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam o despacho recorrido.

            Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs. (arts. 513º, nº 1 do C. Processo Penal e 8º, nº 9 e tabela III do R. das Custas Processuais).


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Coimbra, 22 de Outubro de 2014

 (Vasques Osório – relator)

 (Fernando Chaves - adjunto)