Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
160/15.6IDLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
CRIME CONTINUADO
CONDENAÇÃO ANTERIOR
INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
REENVIO (PARCIAL) DO PROCESSO
NOVO JULGAMENTO
Data do Acordão: 11/15/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE POMBAL, JUIZ 1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 30.º, N.º 2, E 79.º, N.º 2, DO CP; ARTS. 410.º, N.º 2, AL. A), E 426.º, DO CPP
Sumário: I – Perante o trânsito em julgado da sentença que, no âmbito de determinado processo, condenou o arguido, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada, reportado ao não pagamento de IVA dos 1.º, 2.º, 3.º e 4.º trimestres de 2013, e de um crime (autónomo) de abuso de confiança fiscal, respeitante ao não pagamento de IVA do 2.º trimestre de 2014, não mais é reavaliável, noutro processo, a dita qualificação jurídica.

II – Tendo em conta o disposto no artigo 79.º do CP, no novo processo apenas é questionável se a falta de pagamento de IVA do 2.º trimestre de 2014 (avaliada no primeiro processo) e do 3.º trimestre do mesmo ano integram uma continuação criminosa, posto que o tribunal que julgou a primeira conduta, não tendo a segunda como objecto do processo, apenas podia concluir pela existência de um crime único.

III – Porém, não tendo o tribunal de 1.ª instância investigado, no processo em curso, a factualidade susceptível de agregar aquelas duas condutas na figura do crime continuado, ou seja, as circunstâncias concretas em que ocorreu a falta de pagamento do IVA, inter alia, se esse não pagamento ocorreu antes ou depois da constituição do arguido no anterior processo, se foi propiciado pela inércia da administração fiscal e se se deveu a dificuldades económicas ou a quaisquer outros motivos adequados a diminuírem consideravelmente a culpa, a sentença recorrida padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria

Decisão Texto Integral:










Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

No processo comum com intervenção do tribunal singular 160/15.6IDLRA do Juízo Local Criminal de Pombal, Juiz 1, Comarca de Leiria, após realização da audiência de julgamento foi proferida sentença em 8 de Fevereiro de 2017 com o seguinte dispositivo:

Face ao exposto julgo pronúncia procedente por provada e, em conformidade:

a) Condeno o arguido A... , pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º, n.ºs 1, 2 e 4, alínea b) do RGIT, aprovado pela Lei n.º 1512001, de 5/06, na pena de 130 (cento e trinta) dias de multa, à taxa diária de 6,00 € (seis euros), no montante global de 780,00 € (setecentos e oitenta euros).

b) Condeno a arguida B...- Sucursal em Portugal, em autoria material e na forma consumada, um (1) crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 7.º, 12º, n.ºs 1 e 3 e 105.º, n.ºs 1 e 4 do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5/06, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de 6,00 € (seis euros), no montante global de 600,00 € (seiscentos euros).

c) Condeno ainda os arguidos no pagamento das custas e respectivos encargos, nos termos dos artigos 513.º e 514.º do Código de Processo Penal e artigo 8.º, 16.º e 24.º do Regulamento das Custas Processuais, fixando-se em 2 UC a taxa de justiça para cada um.

Inconformado, recorreu o arguido A... , extraindo da motivação do recurso as seguintes conclusões:
1) Conforme consta da acusação de fls., o arguido A... foi acusado pela prática de um (1) crime de abuso de confiança fiscal, p.p. pelas disposições conjugadas dos artigos 6º, 8º, nº1 e 7 e 105º, nº 1 e 4 do Regime Geral das Infrações Tributárias e 26º do Código Penal;
2) Porque, alegadamente, não entregou aos cofres do Estado a quantia de 7.884,40 €, a título de IVA, referente ao 3º trimestre do ano de 2014, em representação e na qualidade de sócio gerente da empresa B... -Sucursal em Portugal;
3) O Arguido apresentou a sua contestação onde alegou o acima transcrito;
4) Realizou-se o julgamento, nos termos em que manda a LEI, e, finalmente, foi proferida sentença que concluiu da forma acima transcrita;
5) No modesto entendimento do Arguido, a ser deduzida acusação por prática do crime de abuso de confiança fiscal, por falta de pagamento de IVA, deveria ter sido na forma continuada;
6) E não deduzir-se uma acusação para cada período, ou semestre em separado;
7) Tendo como factos provados, a falta de pagamento das declarações de IVA, referentes aos períodos de 2013/03T, 2013/06T, 2013/09T, 2013/12T, 2014/06T nos valores de €11.754,57, €16.127,74, €23.864,00, €10.067,72 e €13.401,07, respetivamente;
8) Estamos perante um caso de crime continuado;
9) Se os factos criminalmente relevantes tivessem sido investigados no mesmo inquérito, como de resto o deveriam ter sido, os mesmos compreender-se-iam num arco temporal que se situaria entre o março de 2013, e o setembro de 2014;
10) Certas atividades que preenchem o mesmo tipo legal de crime – ou mesmo diversos tipos legais, mas que fundamentalmente protegem o mesmo bem jurídico – e às quais presidiu uma pluralidade de resoluções (que portanto atiraria a situação para o campo da pluralidade de infrações), devem ser aglutinadas numa só infração, na medida em que revelam uma considerável diminuição da culpa do agente;
11) O fundamento desta diminuição da culpa encontra-se na disposição exterior das coisas para o facto, isto é, no circunstancialismo exógeno;
12) O pressuposto da continuação criminosa será assim a existência de uma relação que, de fora, e de modo considerável, facilitou a repetição da atividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito;
13) São pressupostos do crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime (ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico); homogeneidade da forma de execução (unidade do injusto objetivo da ação); unidade do dolo (unidade do injusto pessoal da ação); lesão do mesmo bem jurídico (unidade do injusto resultado); persistência de uma “situação exterior” que facilita a execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente;
14) O crime continuado é formado sobre a base de uma pluralidade sequencial de resoluções e subsequente execução de condutas criminosas, que devem ser unificadas para efeitos de punição, atendendo à acentuada diminuição da culpa que preside à reiteração criminosa;
15) O elemento agregador ou unificador é, precisamente, essa considerável diminuição da culpa, em resultado da compulsão de um elemento externo, que favorece a continuação;
16) Uma considerável diminuição da culpa só é concebível, por um lado, no quadro da repetição do mesmo tipo legal de crime, ou de tipos que protegem bens jurídicos idênticos, e de forma de execução criminosa essencialmente homogénea;
17) A figura do crime continuado determina a perda de autonomia das várias condutas do agente, estabelecendo uma ideia de diminuição do grau da culpa do agente, porquanto a execução das diversas atividades aparece facilitada;

18) Não basta qualquer solicitação exterior mas é necessário que ela facilite de maneira apreciável a reiteração criminosa;
19) No crime continuado assaca-se uma menor exigibilidade ao agente, pois a continuação está ligada a circunstâncias externas que facilitam a conduta;
20) O pressuposto da continuação criminosa será, verdadeiramente a existência de uma relação que, de fora, e de uma maneira considerável, facilitou a repetição da atividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, de acordo com o direito – (in Direito Criminal, Eduardo Correia, II, pag. 209);
21) Exige-se também, quanto aos elementos subjetivos da continuação criminosa, a homogeneidade do dolo, bastando do “dolo de continuação”;
22) No caso “sub judice”, e atenta a factualidade que se respiga dos autos, estamos perante a prática do mesmo tipo de crime (abuso de confiança fiscal), factos que foram executados de forma essencialmente homogénea (através da não entrega à Administração Fiscal das prestações retidas e num período temporal limitado), no quadro da solicitação da mesma situação exterior (o acesso facilitado às referidas quantias, por estarem em poder do agente, a necessidade das mesmas para fazer face a outras despesas, atentas as dificuldades económicas da atividade desenvolvida pela arguida e à inércia da Administração Fiscal na sua cobrança);
23) Face aos factos que constam da acusação da fls., há que se considerar que estão preenchidos os pressupostos em que assenta a existência de um crime continuado, o que se requer, com todas as consequências legais daí resultantes;
24) Nesta medida, coloca-se a problemática da violação do princípio “ne bis in idem”;
25) Trata-se de uma disposição que preenche o núcleo fundamental de um direito: o de que ninguém pode ser duplamente incriminado e punido pelos mesmos factos sob o império do mesmo ordenamento jurídico;
26) A expressão “julgado mais do que uma vez” não pode ser entendida no seu estrito sentido técnico-jurídica, tendo antes de ser interpretada num sentido mais amplo, de forma a abranger, não só a fase do julgamento, mas também outras situações análogas ou de valor equivalente, designadamente aquelas em que num processo é proferida decisão final, sem que, todavia, tenha havido lugar àquele conhecido ritualismo;
27) É o que sucede com a declaração judicial de extinção da responsabilidade criminal por amnistia, por prescrição do procedimento ou por desistência de queixa, situações em que, obviamente, o respetivo beneficiário não pode ser perseguido criminalmente pelo crime ou crimes objeto da respetiva declaração da extinção da responsabilidade criminal;
28) O atual Código de Processo Penal não contém uma regulamentação autónima sobre o instituto do caso julgado, pois só em dois artigos se reporta a ele (artigos 84º e 467º, nº 1), avançando a jurisprudência com várias alternativas, desde a aplicação análoga com base nos princípios gerais sobre o tema, à luz do regime anterior (CPP/29), até à aplicação subsidiária do Código de Processo Civil (artigos 493º a 498º), quer da forma integral ou mitigada;
29) Não podemos deixar de olvidar que os novos factos ora em análise se encontram dentro do “mesmo crime”, no entanto, a questão não fica resolvida caso se entenda que estamos perante uma situação de crime continuado, que supõe a existência de várias resoluções criminosas, mas que o nº 2, do artigo 30º, do Código Penal qualifica desde logo como “um só crime continuado”;

30) Não podemos deixar de olvidar que a alteração ao artigo 79º do CP, com o acrescentamento do nº 2, alude especificamente para o repensar de uma nova pena que substitua a anterior, que apenas é possível “se (…) for conhecida uma conduta mais grave que integre a continuação”, desinteressando-se de agravar a responsabilidade do agente, apenas em virtude de uma reiteração;
31) Afigura-se que as condutas relativas à falta de entrega das prestações tributárias devidas aos cofres do Estado que foram tomadas em consideração no Processo Comum Singular nº 73/14.9IDLRA, e as ora em causa nos presentes autos, supra especificadas, encontram-se integradas numa mesma continuação criminosa, uma vez que estamos perante condutas que preenchem várias vezes o mesmo tipo legal de crime, executadas por forma essencialmente homogénea e no quadro de uma mesma solicitação exterior que diminui consideravelmente a culpa, pelo que estamos perante a prática pelo arguido de um único crime, na forma continuada;
32) Os “novos” factos aqui em causa nos presentes autos, e que integram a continuação, não consubstanciam a conduta mais grave, atendendo a que a prestação tributária concernente ao 3º trimestre de 2014, não representam o cometimento de crime com moldura mais gravosa;
33) Neste caso, não se vislumbra o preenchimento de um abuso de confiança fiscal qualificado, ou qualquer conduta que, dentro do crime continuado, consubstancie a conduta mais grave, inalterada se deve manter a boa doutrina do Professor Eduardo Correia, em matéria de proteção do princípio “ne bis in idem”;
34) De resto, para além de não ser inócuo submeter um arguido a um segundo julgamento, estar-se-ia, agora numa perspetiva pragmática das coisas e de respeito pela economia processual, a gastar tempo e meios preciosos ao Tribunal, quando, de antemão, se sabe que a sanção penal do primitivo julgamento não poderá ser alterada por outra medida concreta ou de natureza mais gravosa;
35) Este Venerando Tribunal, em respeito do direito penal da premissa constitucional e do princípio “ne bis in idem” em particular, cabe absolver o arguido, por referência ao nº 5, do artigo 29º da CRP, e uma vez sobpesada a factualidade à luz do artigo 79º, nºs 1 e 2, do CP, o que se requer, com todas as consequências legais daí resultantes;
36) Lendo, atentamente, A Sentença recorrida verifica-se que não se indica nela factos concretos verdadeiramente suscetíveis de revelar, informar, e fundamentar, a real e efetiva situação, do verdadeiro motivo da condenação do Arguido/Recorrente;
37) A Meritíssima Juiz do Tribunal “a quo”, com a decisão recorrida, não assegurou a defesa dos direitos do Arguido, e não fundamentar exaustivamente a sua decisão;

38) A Sentença recorrida viola:

a) Artigos 374º, nº 2 e 379º, nº 1 do C.P.P;

b) Artigos 30º, 79º, nº 1 e 2 do C.P

c) Artigos 29º, 205º, 207º e 208º da CRP.


Termos em que, se requer, V. Exas., a REVOGAÇÃO do Acórdão recorrido, na parte de que se recorre, nomeadamente quanto à medida da pena aplicada, por ser de LEI, DIRETO E JUSTIÇA.

O recurso foi objecto de despacho de admissão.

O Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo o seguinte:

1. Integrando a "inércia da administração fiscal na cobrança das quantias devidas" o quadro da mesma solicitação exterior, esse contexto motivacional deixou de existir com o conhecimento por parte do recorrente da pendência do processo 73/14.9IDLRA.

2. Existindo uma alteração da unidade de contexto situacional inexiste homogeneidade do «fracasso psicológico»:

3. No caso concreto não se pode afirmar que a culpa se mostra consideravelmente diminuída.

4. Os factos objecto dos presentes autos não se inscrevem no crime continuado punido no processo nº 73/14.9IDLRA;

5. Não estando perante o mesmo crime continuado inexiste violação do princípio ne bis in idem, devendo subsistir as duas punições;

6. A douta sentença recorrida encontra-se devidamente fundamentada;

7. A decisão do Tribunal a quo fez correta aplicação do direito;

8. Não se vislumbra em momento algum qualquer violação de norma legal, designadamente da Constituição da República Portuguesa.

Nestes termos e nos demais de direito, que V. Exª. dignarão suprir, negando provimento ao recurso e mantendo, na integral a douta sentença recorrida, farão como sempre, a costumada JUSTIÇA.

Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não ocorreu resposta.

Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais foi realizada conferência, cumprindo apreciar e decidir.


***

            II. Fundamentos da decisão recorrida

A decisão recorrida contém os seguintes fundamentos de facto e de direito:

A-FACTOS PROVADOS

Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:

1 - A sociedade arguida B... , tem como objecto o comércio e indústria de madeiras, importação e exportação, exploração florestal e compra e venda de propriedades, com sede em (...).

2 - A sociedade arguida é, assim, sujeito passivo de IVA, enquadrado no regime normal trimestral, estando legalmente obrigada a entregar os impostos liquidados nos prazos e locais estabelecidos nos artigos 27°, n. ° 1 e 41 ° do CIV A.

3 - Desde a constituição da sociedade que o arguido A... exerce as funções de gerente da aludida empresa, sendo quem exerce as funções de gestão diária da B... , tal como o pagamento das remunerações aos empregados e da gerência, pagamentos a fornecedores, contactos com clientes, entre outros actos.

4 - Incumbindo ao arguido A... , enquanto gerente, providenciar pela entrega nos cofres do Estado das quantias de IV A liquidado e recebido de clientes.

5 - No exercício das funções que exercia de representação da empresa, no período referente ao terceiro trimestre de 2014, foi enviada, em nome da arguida B... e no que respeita a tal período, a declaração periódica de IVA.

6 - Não procedendo, no entanto, à entrega nos cofres do Estado o IV A que fora liquidado nas operações tributáveis levadas a cabo naquele trimestre, totalizando a quantia de 7.884,40€.

7 - O arguido A... , enquanto representante legal da sociedade arguida, não efectuou o pagamento dos valores supra descritos relativos a IVA nos 90 dias seguintes ao término daquele prazo.

8 - Tendo os arguidos sido devidamente notificados nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105°, n.º 4, alínea b) do RGIT, que lhes concede 30 dias para proceder ao pagamento da quantia em dívida, que eximiria as respectivas responsabilidades criminais, nada fizeram, continuando tal dívida por pagar, na sua totalidade, ao Estado.

9 - O arguido A... agiu da forma descrita, enquanto gerente, por si e em nome e no interesse da arguida B... e também no seu interesse pessoal, intimamente ligado àquela empresa, fazendo reverter para os cofres desta as quantias referidas, e utilizando-as em benefício da sociedade.

10 - Bem sabendo o arguido que a B... havia liquidado e recebido as quantias referidas de terceiros (clientes), a título de IVA, com obrigação de as entregar nos cofres do Estado, a quem pertenciam, agindo da forma descrita por forma a prejudicar o Estado, obtendo, assim, vantagens patrimoniais no referido período contributivo a que sabiam não terem direito.

11 - Ao agir desta forma, os arguidos actuaram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas criminalmente.

12 - Por sentença datada de 09.06.2016, transitada em julgado em 11.07.2016, proferida no âmbito do Processo Comum Singular n.º 73/14.9IDLRA, da Instância Local Criminal de Pombal, 12, foi o arguido A... condenado pela prática, em autoria material, em concurso efectivo, de um crime de abuso de confiança fiscal, sob a forma consumada e continuada, p. e p. pelos artigos 6°, n.º 1 e 105°, n.ºs l , 2 e 4 do RGIT e 30°, n.º 2 e 79° do C.P., quanto aos IVA´s de 2013, nos montantes de 11.754,57 €, 16.127.74 €, 23.864,00 €, 10.067,72 €, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de 6,00 €; e um crime de abuso de confiança fiscal, sob a forma consumada, p. e p. pelos artigos 6°, n.º 1 e 105°, n.º 1 , 2 e 4 do RGIT, quanto ao IVA do 2.° trimestre de 2014, no montante de 13.401,07 E, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de 6,00 E. Em cúmulo jurídico das referidas penas parcelares, foi o arguido condenado na pena única de 300 dias de multa, à taxa diária de 6,00 E, no montante global de 1800,00 E.

13 - Os montantes supra não se mostram integralmente pagos.

14 - O arguido é tido como pessoa trabalhadora, honesta, respeitadora, por aqueles que conhecem e no meio social onde vive.

15 - O arguido A... é casado, vive com a esposa, que o auxilia na sociedade arguida, em casa pertença de filha maior, que também ali reside, psicóloga de formação académica.

16 - O arguido padeceu de um enfarte de miocárdio no Verão de 2014, tendo permanecido cerca de um mês e meio internado em instituição hospitalar, o que lhe determina que se sujeite a consultas regulares de 4 em 4 meses, bem como esteja sujeito a medicação diária, pela qual despende cerca de 180,00 E de dois em dois meses.

17 - No ano de 2014, a sociedade dispunha de três trabalhadores, possuindo agora apenas dois, derivada de dificuldades financeiras relacionadas com a crise económica do país.

18 - O arguido A... tem como habilitações a 4.a classe de escolaridade.

Desde muito novo iniciou-se a trabalhar no ramo do comércio, tendo-se estabelecido por conta própria no comércio de frutas e legumes e desde 1988/1990 é que se encontra no ramo das madeiras.

19 - O arguido, juntamente com a sua esposa, retiram mensalmente um salário no valor aproximado de 800,00 E/900,00 E, com o qual fazem face às suas necessidades do dia-a-­dia, praticando ainda uma agricultura de subsistência e criando alguns animais de capoeira, o que constitui uma ajuda para a economia do casal.

20 - No âmbito do processo descrito em 12), a sociedade arguida foi condenada pela prática dos crimes aí descritos, nos termos do artigo 7° do RGIT, na pena única de 260 dias de multa, à taxa diária de 6,00 €, no montante global de 1560,00 €, não possuindo quaisquer outros antecedentes criminais registados.

21 - O arguido A... , para além da condenação descrita em 12), sofreu ainda as seguintes condenações:

a) Por sentença datada de 06.02.2008, transitada em julgado em 26.02.2008, proferida no âmbito do Processo Comum Singular n.039lü7.5AANS, do extinto Tribunal Judicial de Ansião, foi o arguido condenado, por factos de 2006, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelo artigo 105° do RGIT, na pena de 280 dias de multa, à taxa diária de 5,00 €. Pena esta que já se mostra extinta.

b) Por sentença datada de 24.06.2010, transitada em julgado em 10.09.2010, proferida no âmbito do Processo Comum Singular n.º.3IDLRA, do extinto Tribunal Judicial de Ansião, foi o arguido condenado, por factos de 2007, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelo artigo 105° do RGIT, na pena de 180 dias de multa, à taxa diária de 6,00 €. Pena esta que já se mostra extinta.

B-FACTOS NÃO PROVADOS

a) que despesas foram liquidadas com as quantias descritas em 6) dos Factos Provados, se existam e donde derivam;

Os demais factos alegados configuram juízos conclusivos de facto e/ou direito.

C - MOTIVAÇÃO

Na formação da sua convicção o Tribunal assentou na análise crítica da prova produzida em sede de audiência de julgamento, a qual, nos termos do artigo 127° do Código de Processo Penal (C.P.P.), foi apreciada segundo o princípio da livre convicção e as regras da experiência comum.

O arguido não prestou declarações sobre os factos que lhe são imputados, o que fez no exercício de um direito que legalmente lhe assiste - artigos 343°, n.º 1 e 61°, n.º 1, alínea d) do C.P.P..

Com efeito, prestou declarações unicamente quanto às suas condições económicas, sociais e pessoais, o que foi valorado atenta a forma espontânea como depôs, tanto mais que os factos atinentes à sua personalidade foram confirmados pelas testemunhas E... e F... , amigos/conhecidos.

A convicção do Tribunal quanto à factualidade dada como provada resulta apurada da análise dos documentos juntos aos autos, a saber, certidão permanente de fls. 19 e seguintes do apenso; documentação de fls.1 a 231 do inquérito apenso, onde se incluem comprovativos da notificação da alínea b), n." 4, do art. 105°, do RGIT; parecer do NIC da Direcção de Finanças de Leiria, de fls. 261 e seguintes do apenso; certidão do PCS 73/14.9IDLRA, de fls.2ü8 a 232 dos autos, CRC de fls.319 a 328 dos autos, coadunados com a prova testemunhal produzida, designadamente das declarações da inspectora tributária, C..., que demonstrou conhecimento directo dos factos em questão, sendo que a mesma declarou de forma consistente e credível que foi quem levou a cabo a acção inspectiva realizada à sociedade arguida, que tem como rosto físico a pessoa do arguido, a qual permitiu detectar qual o montante de IVA não entregue nos Cofres, acção inspectiva essa que se traduziu na análise meticulosa das facturas emitidas pelo arguido, análise da sua contabilidade e cruzamento com a contabilidade dos clientes no período em apreço. Desta análise, designadamente do cruzamento das referidas facturas com os comprovativos de pagamento que lhe foram remetidos pelos clientes, testemunha elaborou o parecer supra referido, de forma meticulosa, tendo concluído pelo montante em falta correspondente à quantia descrita nos factos apurados, a qual ainda não foi liquidada. Mais esclareceu que à data da instauração do presente inquérito, já havia sido ao Ministério Público o inquérito que originou o PCS 73/14.9IDLRA.

Das declarações da testemunha D... , técnico oficial de contas, a quem incumbia o processamento da contabilidade do arguido, designadamente no período contributivo em causa, o Tribunal extrai que o arguido é pessoa trabalhadora, que entregava os documentos necessários ao processamento das declarações periódicas em apreço, que era alertado pela testemunha para a necessidade de pagamento das quantias devidas, que actualmente vai pagando. Mais referiu, de forma espontânea, que o arguido não se queixava que os clientes não pagassem, aludindo, ainda que, de forma genérica, sem conhecimento directo, preciso, porque era o que clientes do mesmo ramo se queixavam, de situações de clientes que não exigiam factura e que originavam dificuldades de tesouraria.

Assim sendo, ainda que se diga que os elementos expostos, assim obtidos, não fazem prova directa dos factos atinentes ao elemento subjectivo tout court, a verdade é que têm o valor de indícios, isto e, de circunstâncias a partir das quais se pode, em determinadas condições, fundar a consistência de um facto desconhecido. Todos eles concorrem articuladamente para uma solução inequívoca no caso, a única que suportam, fazendo-se apelo as regras da normalidade - que o arguido actuou conforme se deu como provado, bem sabendo que estava obrigado a entregar a quantia dada como provada nos Cofres do Estado, o que não fez.

A factualidade não apurada resultou da ausência de prova que a permitisse sustentar conforme supra-exposto.

III - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Ao arguido A... é imputada a prática de um (1) crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 6°, 8°, n." 1 e 7 e 105°, n° 1 e 4 do Regime Geral das Infracções Tributárias e 26° do Código Penal

Por sua vez, à arguida B... , é imputada, em autoria material e na forma consumada, um (1) crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 7°, 12°, n.ºs 1 e 3 e 105°, n.ºs 1 e 4 do Regime Geral das Infracções Tributárias.

Cumpre então caracterizar o tipo de ilícito em questão.

Ora, ainda que a matriz essencial deste tipo legal possa ser reconduzida ao crime de abuso de confiança p. e p. pelo artigo 205° do Código Penal, certamente que o bem jurídico protegido aqui não será a propriedade.

“Assim, a Constituição da República Portuguesa consagra no n.º 3 do artigo 103°, como princípio geral, que "ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não tenham sido criados nos termos da Constituição”. Ora, para assegurar a garantia do cumprimento desta obrigação fundamental que recai sobre os cidadãos, o ordenamento jurídico-fiscal urdiu uma complexa rede de esquemas de cobrança e esquemas sancionatórios, de forma a lograr assegurar as receitas essenciais ao funcionamento do sistema. E porque o Estado tem meios limitados e não pode controlar de facto a realidade contributiva de todos os cidadãos, impôs-­se um sistema assente com base no princípio da declaração, ou seja, é ao contribuinte ou terceiro obrigado tributário que compete calcular, declarar, cobrar e pagar os montantes das contribuições devidas, pelo que entre estes e o Estado estabelece-se uma relação de confiança fundada na lei, cuja violação por parte daquele se toma passível de juízo de censura ético­jurídica.

A relação tributária constitui uma relação jurídica em que o Estado ou outro ente público exige, a título de imposto, uma determinada quantia a um sujeito dotado de capacidade contributiva.

O sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza, e a tributação do património pessoal ou real deve concorrer para a igualdade entre os cidadãos (arts. 103.°, n.º 1, e 104.°, n.º 3, da CRP), pelo que é da maior evidência, quer no plano teórico quer no plano prático, que o lançamento dos impostos, mostrando-se a coberto da tutela da lei ordinária e sustentada pela lei fundamental, reclama para sua cobrança um regime punitivo deferido ao Estado, sem o qual aquela superior e pública finalidade se mostraria seriamente comprometida, integrando-se, como se integra, o delito de fuga aos impostos naquilo que se apelida de “delinquência patrimonial de astúcia”.

Ora a obrigação em causa não emerge de um contrato mas deriva da própria lei, estabelecendo a obrigação de pagamento de impostos, achando-se o seu devedor em posição aproximada à de fiel depositário, no caso particular do IV A e do IRS, sendo de levar em conta este aspecto peculiar da posição dos responsáveis tributários, que não comporta uma pura obrigação contratual porque decorre da lei.

Após estes breves considerandos de enquadramento jurídico-dogmático acerca do bem jurídico protegido pelo âmbito da norma incriminadora, cumpre agora determinar quais os elementos do tipo legal de crime em questão.

Nestes termos, o bem jurídico a tutelar pelo âmbito de protecção desta norma é o interesse directo e imediato do Estado na boa cobrança das receitas indispensáveis ao bom funcionamento do sistema fiscal, ou nas palavras de Alfredo José de Sousa, a protecção do “regular funcionamento do sistema fiscal”.

Nos termos do artigo 105°, n° 1 e 2 do Regime Geral das Infracções Tributárias (R.G.I.T.), aprovado pela Lei n." 15/01, de 5 de Junho, comete o ilícito em causa “Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a 7500,00 e deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias”; “Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja”. Por outro lado, é ainda aplicável o disposto no n° 4 do artigo 105°, do RGIT, segundo a qual tais factos “só são puníveis se:

a) tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;

b) a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima”.

No que ao LV.A. diz respeito, este é um imposto geral sobre o consumo em que se tributam as transmissões de bens, a prestação de serviços, as importações e a aquisição intracomunitária de bens (José Casalta Nabais, Direito Fiscal, Almedina, 2000, p.384). Desta noção retiramos que o IV A é devido e toma-se exigível naquelas transmissões no momento em que os bens são postos à disposição do adquirente, sendo a liquidação do imposto feita por força da lei, de modo instantâneo, de tal modo que é logo cobrado ao adquirente juntamente com o preço dos bens ou serviços. O IVA é assim liquidado pelo respectivo sujeito passivo sendo igualmente este que procede à sua cobrança e pagamento, ou seja, fica desde logo devedor ao Estado do imposto que recebeu, com a obrigação de o entregar a este, sendo seu mero depositário.

A dívida de imposto de um sujeito passivo de IVA é dada pela diferença entre o montante que resulta da aplicação da taxa ao valor das vendas, durante determinado período, e o montante do imposto suportado nas aquisições efectuadas no mesmo período. Já o apuramento do imposto devido é feito pela dedução ao imposto liquidado do imposto suportado nas aquisições.

Pelo exposto, o sujeito passivo deve ao Estado o imposto que recebeu dos contribuintes com quem realizou negócios sujeitos a LV.A., e se não proceder à sua entrega, está a reter quantias que não lhe pertencem, que lhe foram entregues com destino ao Estado.

A propósito do IVA, haverá que ter em consideração o disposto no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 5/2015, segundo o qual “a omissão de entrega total ou parcial, à administração tributária de prestação tributária de valor superior a EUR 7.500 relativa a quantias derivadas do Imposto sobre o Valor Acrescentado em relação às quais haja obrigação de liquidação, e que tenham sido liquidadas, só integra o tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal, previsto no artigo 105 n° 1 e 2 do RGIT, se o agente as tiver, efectivamente, recebido”.

Aqui se faz constar entende-se que o crime de abuso de confiança fiscal tem como um dos seus elementos objectivos a dedução ou o recebimento da prestação tributária o que, no âmbito do imposto sobre o valor acrescentado (IVA), significa que o devedor tributário só pode praticar esse crime se tiver recebido o montante da prestação tributária ou seja se esta lhe tiver sido entregue pelo adquirente. O pressuposto do qual se arranca, e constitui denominador comum, é o de que, se o tipo legal do abuso de confiança fiscal pressupõe necessariamente a existência de uma relação fiduciária que se estabelece entre o Estado e os agentes económicos, então só existe desvalor da acção (rectius, desvalor de omissão) quando um agente económico que liquida, recebe e detém precária e temporariamente o imposto, omite a entrega ao Estado-Fisco do IVA efectivamente recebido.

Neste sentido de que no caso do IVA, só comete o crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105º do R.G.I.T., aquele sujeito passivo que, tendo efectivamente recebido o montante devido pela cobrança do imposto e esteja, por isso, obrigado à sua entrega ao Estado, o não faça no prazo legalmente fixado para tal, se pronunciaram Germano Marques da Silva, Direito Penal Tributário, cit., pág. 244 e nota 93; Susana Aires de Sousa, Os Crimes Fiscais, cit pág. 124; Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias, cit, págs.169 e 181; Paulo Marques, Infracções Criminais, vol. L Direcção Geral dos Impostos (Centro de Formação), Lisboa, 2007, págs 138-139 e Paulo Marques, Crime de Abuso de Confiança Fiscal, cit., pág. 75 e págs. 101 e ss.

Os crimes fiscais são estruturados em tomo do perigo ou do dano, referentes às receitas fiscais do Estado, causados pela violação de deveres de colaboração do contribuinte respeitantes à obrigação tributária principal. Protege-se, pois, o património fiscal do Estado, bem como valores como a verdade e a lealdade fiscal - neste sentido, cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-10-2000 in C.J., 2000, III, p. 194.

A relação tributária constitui uma relação jurídica em que o Estado ou outro ente público exige, a título de imposto, uma determinada quantia a um sujeito dotado de capacidade contributiva.

Além disso, o legislador postulou deveres de colaboração do contribuinte, traduzindo verdadeiras obrigações de facere, que se apresentam como deveres técnicos instrumentais à realização do dever de pagar imposto, puros métodos de aplicação da lei fiscal, deslocando para a esfera do cidadão tarefas de liquidação e cobrança de imposto - a este propósito, cfr. Saldanha Sanches in “A Quantificação da Obrigação Tributária - Deveres de Cooperação, Auto-avaliação e Avaliação Administrativa”, 1995, p.478 e ss .. Surge, assim, o fenómeno da substituição tributária, determinando a lei que um dado sujeito se substitua àquele relativamente ao qual se verificou o facto tributário, ocupando o seu lugar na obrigação de imposto, em via de regra beneficiando do direito de haver aquilo que por sua vez pagou (cfr. Cardoso da Costa in “Curso de Direito Fiscal”, 2a ed., p.287).

A obrigação de facere que recai sobre o contribuinte visa que este preste um dever de colaboração à administração fiscal como forma de tomar possível a realização das políticas distributivas de correcção das desigualdades tendo em vista uma sociedade mais justa e mais ordenada.

Por outro lado, saliente-se que não obstante aparentemente parecer não resultar dos artigos 105°, nº 1 e 107° do RGIT na redacção que lhe foi conferida pela Lei 15/2001, de 5 de Junho, a exigência do requisito da apropriação, o que é certo é que considerando o núcleo essencial deste tipo de crime, ou seja, o crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205º do Código Penal, que para o seu preenchimento exige a apropriação, pode considerar-se “que a apropriação é uma consequência lógica do desvio do destino das prestações tributárias retidas, estando por isso integrada no seu texto, pelo menos implicitamente” (cfr. neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24/03/2003, CJSTJ 2003, T.I, p.234 e ss) devendo considerar-se este requisito mesmo no âmbito da nova/actual formulação do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal.

Assim sendo, o não pagamento do imposto devido não constitui por si só violação desse dever de pagar imposto. No crime em apreço, bem como no crime de abuso de confiança contra a segurança social, apenas assume dignidade punitiva quando, para além do incumprimento do dever de colaboração fiscal (entrega no montante de imposto retido na fonte) há uma apropriação desse montante. Com efeito, só com o descaminho de prestações correspondentes de créditos tributários é que fica preenchido o desvalor de acção deste tipo legal de crime. Ou seja, o crime de abuso de confiança fiscal imputado ao arguido pressupõe ainda como conduta típica a apropriação no contexto de uma relação de confiança, traduzindo-se assim num crime de resultado com acento tónico na vertente do património fiscal, qualificando-se a lesão patrimonial como elemento objectivo da factualidade típica.

O elemento subjectivo basta-se com o dolo genérico, uma vez que não se exige uma qualquer intenção de obter para si ou para outrem vantagem patrimonial indevida.

Vertendo as considerações supra tecidas à factualidade apurada verificamos que o que transparece desta é que os arguidos apresentaram, dentro do prazo legal, a declaração de IVA referente ao terceiro trimestre de 2014, não tendo, todavia, entregue no cofre do Estado a quantia de IVA, liquidado e apurado a favor do Estado, no montante total de 7.884,40 € (sete mil, oitocentos e oitenta quatro euros e quarenta cêntimos), os quais deveriam, por imposição legal, ter entregue nos cofres do Estado, agindo intencionalmente, pelo que praticaram, de forma inequívoca, o tipo de ilícito em questão. Com efeito, os arguidos sabiam ser meros fiéis depositários da quantia descrita, a qual lhes havia sido entregue por título não translativo da propriedade e, apenas com o fim, de, por sua vez, a entregar ao Estado, não procederam à sua entrega, apesar de saberem estar legalmente obrigada a tal.

Cumpre ainda referir nesta sede (independentemente de até nem ter sido suscitada a questão nos autos em apreço) que o crime não deixa de ser cometido por o arguido utilizar quantias que estava obrigado a entregar ao Estado, sendo irrelevante para o efeito do preenchimento do tipo legal que o arguido não se tenha apropriado pessoalmente das quantias retidas e as tenha destinado à satisfação de outras obrigações derivadas da sua actividade empresarial - cfr. Acórdão do STJ, de 24/3/2003 e Acórdão da Relação de Guimarães de 11/11/2002 in CJ, Tomo I pág. 234 e CJ, Tomo V, p.285. De resto, tal comportamento como causa de exclusão de ilicitude exigiria que a não entrega das prestações devidas determinasse a violação de um dever superior, ou pelo menos igual do violado. Assim, ainda que se possa questionar a bondade da opção legal relativa à incriminação penal do comportamento em causa, não pode concluir-se que o facto de o agente não se apropriar das quantias para fins pessoais mas até para assegurar a continuidade da sua actividade, não toma lícita tal acção.

A isto acresce o facto de que a apropriação legalmente pressuposta não ir referida ou necessariamente referida a uma integração em proveito directo do património do arguido, sendo certo que no caso essa não resultou demonstrada, o que não obsta ao preenchimento do tipo legal de crime em apreço.

No que toca às pessoas colectivas, qualidade da qual goza a arguida B... importa considerar o seguinte.

Na nossa perspectiva, a pessoa colectiva é inequivocamente uma realidade, traduzindo o modo de expressão de uma verdadeira vontade colectiva juridicamente reconhecida. Vontade essa tão capaz de cometer crimes como uma vontade individual, logo passível de culpa - neste sentido, cfr. André Vitu e Roger Mede in "Tratado de Direito Criminal", 3a ed., vol. I, p. 743.

É certo que as pessoas colectivas são incapazes, por si mesmo, de realizarem a actividade física que consubstancia a conduta criminosa. Contudo, não menos certo é que elas são incapazes, por si próprias, de qualquer actividade física tout court, facto esse que não lhes exclui a personalidade jurídica. O que acontece é que as pessoas colectivas actuam por intermédio de pessoas singulares, membros dos seus órgãos sociais ou simples funcionários. Ora, será exactamente a actividade destes últimos, quando actuem em nome ou em representação da pessoa colectiva e traduzam o seu querer, que poderá eventualmente ser considerada criminalmente relevante, em determinados domínios, nomeadamente no âmbito do Direito Penal Secundário.

Seguindo este entendimento eclético, o legislador fiscal postulou, no artigo 7°, n.º 1, do RGIT, que “As pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades são responsáveis pelas infracções previstas na presente lei quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse colectivo”. Já o n.º 2 de tal preceito determina a exclusão da aludida responsabilidade “quando o agente tiver actuado contra ordens ou instruções expressas” dos seus superiores.

Por conseguinte, a arguida é, in casu, criminalmente responsável, pois o arguido A... , seu gerente, actuou em sua representação e na prossecução do interesse colectivo, sendo ambos autores da infracção que lhes vinha imputada.

Finalmente, nos presentes autos foram cumpridas as notificações previstas na alínea b) do n.º 4 do artigo 105° do RGIT.

Suscita o arguido A... a questão de que a conduta agora em causa integra a continuação criminosa pela qual já foi condenado no PCS n.º 73/14.9IDLRA, e não sendo a conduta de que agora vem acusado mais gravosa que a anterior, deve ter aplicação o disposto no artigo 79° n° 2 do Código Penal.

Ou seja, a questão efectivamente relevante que se coloca nos presentes autos redunda na circunstância de se aferir se a factualidade objecto do PCS n.º 73/14.9IDLRA e a factualidade presente nos presentes autos constitui no seu conjunto um único crime continuado ou, ao invés, dois crimes.

Ora, vejamos.

Por sentença datada de 09.06.2016, transitada em julgado em 11.07.2016, proferida no âmbito do Processo Comum Singular n.º 73/14.9IDLRA, da Instância Local Criminal de Pombal, J2, foi o arguido A... condenado pela prática, em autoria material, em concurso efectivo, de um crime de abuso de confiança fiscal, sob a forma consumada e continuada, p. e p. pelos artigos 6°, n.º 1 e 105°, n.º 1, 2 e 4 do RGIT e 30°, n.º 2 e 79° do C.P., quanto aos IVA's de 2013, nos montantes de 11.754,57 €, 16.127.74 €, 23.864,00 €, 10.067,72 €, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de 6,00 €; um crime de abuso de confiança fiscal, sob a forma consumada, p. e p. pelos artigos 6°, n.º 1 e 105°, n.º l , 2 e 4 do RGIT, quanto ao IVA do 2.° trimestre de 2014, no montante de 13.401,07 €, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de 6,00 €. Em cúmulo jurídico das referidas penas parcelares, foi o arguido condenado na pena única de 300 dias de multa, à taxa diária de 6,00 €, no montante global de 1800,00 €.

Nos presentes autos vem o arguido acusado pela prática do mesmo tipo de crime, sob a forma consumada, enquanto gerente da mesma sociedade, mas por factos referentes ao terceiro trimestre de 2014.

Nos termos do disposto no artigo 30° n° 2 do Código Penal, “constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.”

Acontece que esta aferição tem de ser concretizada no momento em que se deduz determinada acusação tendo por referência os factos conhecidos até àquele momento, sob pena de se tomar impraticável a prossecução penal.

De facto, o que importa para aferir do crime continuado é determinar quais foram os factos praticados em determinado lapso temporal que se finda com a prolação de uma acusação e se existe entre eles as particularidades consagradas no artigo 30º do Código Penal.

Sob pena de, assim não sendo, se limitar sem qualquer fundamento legal a acção penal do Ministério Público que ficaria coarctado na sua iniciativa.

Importa não esquecer que na base da figura do crime continuado encontramos o concurso de infracções, relevando o mesmo apenas e tão só no período temporal conhecido pelo Ministério Público que não pode acusar por factos que ainda não ocorreram, mas também não pode deixar de acusar em virtude da possibilidade do arguido continuar a prática de factos ilícitos iguais aos quais já existe conhecimento funcional para se deduzir a respectiva acusação.

É dentro deste limite temporal que há-de funcionar a figura do crime continuado quando exista a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.

E só dentro deste limite.

Pois que todos os factos que ocorram posteriormente à dedução da acusação e consequente sentença que redunde em condenação que haja transitado em julgado, não poderão mais ser tidos em conta para efeitos do englobamento dos mesmos na figura do crime continuado.

Aqui chegados importa esclarecer então o âmbito de aplicação do artigo 79º do Código Penal.

Ora, o escopo desta norma não é da aplicação a factos novos (constituam eles conduta mais grave ou não) ocorridos posteriormente aos factos já objecto de condenação transitada em julgado.

O escopo desta norma Circunscreve-se aos factos que hajam decorrido dentro do período de tempo ao qual foi aplicado o regime do crime continuado e que constituam também eles a realização do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente, mas cuja prática só chegou ao conhecimento da autoridade judiciária depois de julgada a causa e transitada em julgado.

Aqui sim, tem aplicação a disciplina do n° 1 do artigo 79º do Código Penal. Situações em que os factos posteriormente conhecidos, que integram a continuação constituam condutas de gravidade igual ou menor, tenham ocorrido no mesmo lapso temporal objecto da sentença já transitada em julgado - situação em que haverá que se proceder a uma nova ponderação da pena, perante o alargamento da ilicitude dos factos (do “mal” praticado, ou do prejuízo causado), e da sua consequente censurabilidade, ou seja, da culpa, sempre respeitando-se o caso julgado e a pena concretamente aplicável, mas existindo a limitação da pena abstractamente aplicável.

Aplicando-se a disciplina do n° 2 do artigo 79° do Código Penal aos casos em que seja conhecida uma conduta mais grave, praticada dentro do lapso temporal objecto de sentença já transitada em julgado mas da qual apenas se tenha, naturalmente, conhecimento depois do trânsito. Situação em que, se apreciará a(s) nova(s) conduta(s)/infracção, e aí sim, com a aplicação de uma pena única que englobará a anterior, ressalvando-se sempre a limitação de que este reajustamento da pena, que fica sujeita à moldura penal abstractamente aplicável à conduta mais gravosa, não pode entrar em contradição com a pena aplicada no anterior processo, obstando à aplicação de uma pena única mais leve (neste sentido veja-se Acórdão da Relação de Coimbra de 03.02.2016, Juiz Desembargador José Eduardo Martins, disponível em www.dgsi.pt.)

Tudo para concluir pela não aplicação ao caso dos autos do regime do artigo 79° do Código Penal, pois que a factualidade tratada no âmbito do Processo 73/14.9IDLRA e a factualidade tratada nos presentes autos não se circunscreve ao mesmo limite temporal.

Com efeito, para além do facto de o arguido ter tido conhecimento da acusação (15.01.2016) contra si deduzida nos presentes autos antes da condenação e trânsito do PCS 73/14.9IDLRA (cfr. fls.38 a 45,48,52,56 a 59, 111/112, 119, 120, 122 e 208 a 232), a verdade é que indiscutível se mostra, na nossa perspectiva, que o arguido olvida que não foi condenado no PCS 73/14.9IDLRA pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, sob a forma continuada, quanto ao IVA do segundo trimestre de 2014. Com efeito, a imputação sob a forma continuada restringiu-se ao crime de abuso de confiança fiscal reportado aos IVA's de 2013. No que tange ao IVA de 2014 (2.° trimestre), a sua conduta omissiva foi julgada e condenada, por sentença transitada em julgado, como uma conduta isolada relativamente àquela outra conduta sob a forma continuada e, portanto, não integrada nesta. Falta assim a verificação de uma continuação criminosa onde possa integrar-se a conduta agora imputada ao arguido, consistente na falta de pagamento do IVA devido pela sociedade arguida relativo ao período 2014/09T.

Ademais, a factualidade dada como provada não permite alcandorar a conclusão de considerar que o arguido agiu no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a sua culpa.

A este respeito, o arguido aduz na sua contestação que teve de canalizar os montantes do IV A (por si recebido dos clientes, mas não entregue nos cofres do Estado) para pagamento de despesas. Contudo, tais factos não lograram resultar provados, tanto mais que também alegados de forma genérica e conclusiva. Por outro lado, não se vislumbra qualquer inércia da administração fiscal na cobrança dos tributos não entregues, desde logo, em face da condenação transitada, facilmente se constata que o arguido tem vindo a ser sujeito a inspecções periódicas. Com efeito, a realização da inspecção pelos serviços de fiscalização tributária, que depararam com a infracção e procederam à instauração do PCS 73/14.9IDLRA deveria ter sido sentida pelo arguido, então, como agora, gerente, como tomada de consciência da ilicitude e censurabilidade da conduta omissiva, levando-o a agir de molde a que a sociedade passasse a cumprir as suas obrigações fiscais, o que não sucedeu, pelo que não se pode afirmar a subsistência duma situação exterior que determine menor exigibilidade na actuação do arguido, o que equivale a dizer, que a culpa do agente se não mostra consideravelmente diminuída.

Nos termos e com os fundamentos expostos, o Tribunal entende inexistir violação de caso julgado ou da proibição do ne bis in idem nos autos em apreço.

 

III. Escolha e Determinação da medida da pena

(…).


***

            III. Apreciação do Recurso

A documentação em acta das declarações e depoimentos prestados oralmente na audiência de julgamento determina que este Tribunal, em princípio, conheça de facto e de direito (cfr. artigos 363° e 428º nº 1 do Código de Processo Penal).

Mas o concreto objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da correspondente motivação, sem prejuízo das questões do conhecimento oficioso.

Vistas as conclusões do recurso, as questões a apreciar são as seguintes:

- Se a sentença recorrida viola o disposto no artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal, sendo nula;

- Se as condutas em que o arguido foi condenado no processo 73/14.9.IDLRA e no presente integram a prática de um único crime na forma continuada, devendo o arguido ser absolvido.

Apreciando:

Segundo colhemos do alegado pelo recorrente, a sentença recorrida padecerá, na sua tese, de nulidade por incumprimento do disposto no artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal porque não se encontra devidamente fundamentada.

No entanto, resulta também do alegado que o inconformismo do recorrente se expressa em discordância com os fundamentos da decisão recorrida e não com a menção expressa e concretizada da falta desses fundamentos.

Na conclusão 36ª o recorrente menciona que a sentença recorrida “não indica factos concretos verdadeiramente susceptíveis de revelar, informar e fundamentar a real e efectiva situação” o que, a verificar-se, não integrará a alegada nulidade, mas diferente vício como adiante melhor se especificará.

Certo é que analisada a decisão recorrida nela não divisamos incumprimento do disposto no artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal, não reconhecendo a apontada nulidade prevista no artigo 379º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal.

Alega o recorrente que os factos que determinaram a sua condenação neste processo e os que foram julgados no processo 73/14.9.IDLRA fazem parte de uma mesma continuação criminosa pelo que deve o arguido ser absolvido por decorrência do princípio ne bis in idem plasmado no artigo 29º, nº 5 da CRP e do disposto no artigo 79º, nº 2 do Código Penal.

No referido processo o arguido foi condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada p. e p. pelos artigos 6º, nº 1 e 105°, nºs l , 2 e 4 do RGIT e 30°, nº 2 e 79° do Código Penal, no que respeita   ao não pagamento de IVA dos 1º, 2º, 3º e 4º trimestres de 2013. Foi no mesmo processo condenado por um crime da mesma natureza (p. e p. pelos artigos 6°, nº 1 e 105°, nºs l , 2 e 4 do RGIT) respeitante ao não pagamento de IVA do 2º trimestre de 2014. Nestes autos o arguido foi condenado por um crime da mesma natureza respeitante ao não pagamento de IVA do 3º trimestre de 2014.

Como verificamos, no processo 73/14.9IDLRA apenas foi considerada a existência de crime continuado em relação aos valores não pagos de trimestres sucessivos, tendo-se considerado que a falta de pagamento referente ao 2º trimestre de 2014 não integrava o crime continuado, mas uma autónoma resolução criminosa, integradora de um crime autónomo. Esta decisão transitou em julgado, não sendo reavaliável a qualificação jurídica que da mesma consta no sentido de agora reunir todas as condutas na figura do crime continuado.

A força de caso julgado de tal decisão, que se exprime nos precisos termos e limites em que se julga (cfr. artigos 619º e 621º do Código de Processo Civil ex vi do artigo 4º do Código de Processo Penal) naturalmente apenas não abrangerá situações jurídicas que não eram do conhecimento do tribunal quando proferiu tal decisão.

Ou seja, neste processo apenas é questionável se a falta de pagamento de IVA dos 2º e 3º trimestre de 2014 integram uma continuação criminosa, posto que o tribunal que julgou a primeira conduta não tinha a segunda como objecto do processo e, perante a singularidade da conduta objecto do mesmo, apenas podia concluir pela existência de um crime único.

É neste processo que se constata a existência de uma segunda conduta de falta de pagamento de IVA, sendo neste processo que se pode e deve questionar se estamos perante concurso efectivo de crimes ou crime continuado.

Tal conclusão é decorrência do disposto no artigo 79º, nº 2 do Código Penal ao preceituar que “se, depois de uma condenação transitada em julgado, for conhecida uma conduta mais grave que integre a continuação, a pena que lhe for aplicável substitui a anterior”. Sendo conhecida uma conduta menos grave ou de idêntica gravidade que integre continuação, tal importará a manutenção da pena anterior.

Como refere Paulo Pinto de Albuquerque no seu Comentário do Código Penal, visou-se consagrar a tese de que a condenação por crime continuado não faz caso julgado, devendo ser reapreciada em novo julgamento a pertença do facto novo à continuação criminosa anteriormente julgada. Mas, como decorre do já exposto, tal supõe que no anterior processo todos os factos tenham sido considerados como integrantes da mesma continuação, não se podendo voltar a discutir os que se refiram a continuação criminosa considerada cessada.

Na lógica do preceito estão manifestamente em causa não só as situações em que a conduta julgada tenha sido plural, como as situações em que a conduta julgada anteriormente seja singular e por consequência se não tenha equacionado a figura jurídica do crime continuado.

Não se consegue, por isso, compreender o afirmado na decisão recorrida no sentido de não haver que ponderar a existência de crime continuado porque os factos não se referem ao mesmo limite temporal.

Eventualmente por força dessa conclusão, o que verificamos é que o Tribunal a quo não investigou a factualidade que seria susceptível de agregar as duas condutas em causa na figura do crime continuado, ou seja, as circunstâncias concretas em que ocorreu e determinaram o não pagamento do IVA dos 2º e 3º trimestres de 2014, se esse pagamento se verificou antes ou depois da constituição de arguido no processo 73/14.9IDLRA e pode ter sido propiciado pela inércia da administração fiscal, se se deveu a dificuldades económicas ou a quaisquer outras circunstâncias que possam reflectir a diminuição considerável de culpa que o crime continuado supõe.

A este propósito o tribunal a quo refere que “a factualidade dada como provada não permite alcandorar a conclusão de considerar que o arguido agiu no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a sua culpa.

A este respeito, o arguido aduz na sua contestação que teve de canalizar os montantes do IV A (por si recebido dos clientes, mas não entregue nos cofres do Estado) para pagamento de despesas. Contudo, tais factos não lograram resultar provados, tanto mais que também alegados de forma genérica e conclusiva. Por outro lado, não se vislumbra qualquer inércia da administração fiscal na cobrança dos tributos não entregues, desde logo, em face da condenação transitada, facilmente se constata que o arguido tem vindo a ser sujeito a inspecções periódicas. Com efeito, a realização da inspecção pelos serviços de fiscalização tributária, que depararam com a infracção e procederam à instauração do PCS 73/14.9IDLRA deveria ter sido sentida pelo arguido, então, como agora, gerente, como tomada de consciência da ilicitude e censurabilidade da conduta omissiva, levando-o a agir de molde a que a sociedade passasse a cumprir as suas obrigações fiscais, o que não sucedeu, pelo que não se pode afirmar a subsistência duma situação exterior que determine menor exigibilidade na actuação do arguido, o que equivale a dizer, que a culpa do agente se não mostra consideravelmente diminuída”.

Deste trecho resulta, por um lado, que o Tribunal pressupõe, sem que o tenha vertido nos factos provados, que os factos em apreciação neste processo foram cometidos depois de o arguido ter tido conhecimento da instauração do processo 73/14.9IDLRA, o que poderá manifestamente não corresponder à realidade, posto que neste processo estão em causa factos do ano de 2014, o mesmo ano em que foi instaurado o anterior processo e, por outro lado, desprezou por força do entendimento expresso o seu dever de investigar todos os factos relevantes para a decisão de direito, independentemente de alegação das partes, nos termos do artigo 340º do Código de Processo Penal.

Do que flui que a decisão recorrida padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, considerando que este vício a que alude a alínea a), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal, ocorre, como ensina Simas Santos e Leal-Henriques, ob. e loc. citados, quando exista “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher.

Porventura, melhor dizendo, só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final, sendo tal patente da leitura da decisão.

Ou, como vem considerando o Supremo Tribunal de Justiça, só existe tal insuficiência quando se faz a «formulação incorrecta de um juízo» em que «a conclusão extravasa as premissas» ou quando há «omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão».

Dado a impossibilidade de sanação do vício nesta instância de recurso, a sua verificação determina que o processo deva seja reenviado para novo julgamento (cfr. artigo 426º, nº 1 do Código de Processo Penal)a fim de se averiguar a factualidade necessária a determinar se os factos que são objecto deste processo e os factos que foram objecto do referido processo anterior, relativos a IVA não pago do 2º trimestre de 2014, devem ser qualificados como um único crime na forma continuada.

O novo julgamento restrito à questão factual acima delimitada e assinalada a negrito, deverá ser realizado nos termos previstos no artigo 426º-A do Código de Processo Penal.

Em suma, improcede o recurso com excepção do que se refere ao IVA não pago dos 2º e 3º trimestre de 2014 cuja integração, como pretende o recorrente, na figura jurídica do crime continuado depende de prova a produzir no novo julgamento a realizar.


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IV. Decisão

Nestes termos acordam em ordenar o reenvio do processo para novo julgamento restrito à questão factual acima delimitada nos termos dos artigos 426º , nº 1 e 426º-A do Código de Processo Penal.

Não há lugar a tributação em razão do recurso (cfr. artigo 513º, nº 1 do Código de Processo Penal).


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Coimbra, 15 de Novembro de 2017

(Texto elaborado e revisto pela relatora)

(Maria Pilar de Oliveira - relatora)

(José Eduardo Martins - adjunto)