Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
50/08.9TBACN-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELDER ALMEIDA
Descritores: PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
SEGURANÇA SOCIAL
Data do Acordão: 11/16/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALCANENA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 11° DO DECRETO-LEI 103/80, DE 9 DE MAIO E 733º, 734º, 744° E 822° DO CC.
Sumário: 1. Os créditos por contribuições em dívida às instituições de segurança social e respectivos juros, enquanto garantidos por privilégio creditório, não estão sujeitos ao limite temporal de dois anos, à semelhança do disposto nos artigos 734º e 744º do Código Civil.
2. Essa garantia que assiste a tais créditos e concernentes juros não persiste em relação aos vencidos após a data da penhora efectuada em processo executivo.

3. Estes créditos não gozam de qualquer preferência pelo que, assumindo-se de natureza comum, não há sequer lugar a qualquer consideração dos mesmos na operação graduativa a efectuar.

Decisão Texto Integral:             Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I – RELATÓRIO
            1. A..., por apenso à Execução Comum que B... move a C..., e que corre trâmites pelo Tribunal Judicial de Alcanena, veio deduzir douta reclamação de créditos em cuja petição alega -em síntese-, que a Executada, na sua qualidade de contribuinte inscrita no A..., não efectuou o pagamento das contribuições respeitantes aos meses de Dezembro de 1997, Agosto a Dezembro de 1998, Janeiro e Dezembro de 1999, Janeiro de 2000, e Janeiro de 2002 a Setembro de 2009, contribuições estas que perfazem o montante global de € 293.322,46.

            A esta importância –acrescenta o Reclamante-, acrescem juros até integral cumprimento, cifrando-se os vencidos até Novembro de 2009 em € 171.319,74.

Por outro lado –aduz ainda o Reclamante‑, a Executada liquidou as contribuições referentes aos meses de Novembro de 2000 e Dezembro de 2004 depois de decorrido o prazo regulamentar para o efeito, pelo que se acham também em dívida juros de mora no montante de € 44,71.

            E assim fundado, remata o seu petitório impetrando a graduação dos apontados créditos, no montante global de € 464.686,91, no lugar que em correspondência lhes couber.

            Notificadas Exequente e Executada, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 866º, nº 2, do CPC, não foi apresentada qualquer impugnação pelo que a Mm.ª Juíza de imediato verteu nos autos douta sentença, na qual, julgando parcialmente procedente a reclamação, reconheceu e graduou os créditos em concurso da seguinte forma:

            1º - Instituto de Segurança Social, I.P. (contribuições dos meses de Agosto de 2007 a Julho de 2009;

            2º - Crédito exequendo;

            3º - Instituto de Segurança Social, I.P. (contribuições dos meses de Agosto e Setembro de 2009).

            As custas do processo seriam a sair precípuas da venda dos bens penhorados.

            2. Irresignado com esta decisão, dela interpôs o Reclamante o presente recurso de apelação, o qual –visando a que o seu reclamado crédito seja na sua totalidade graduado antes do crédito exequendo‑, encerra com as seguintes conclusões:
1° O artigo 11° do Decreto-Lei 103/80, de 9 de Maio, dispõe que "Os créditos pelas contribuições, independentemente da data da sua constituição, e os respectivos juros de mora gozam de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património das entidades patronais à data da instauração do processo executivo, graduando-se logo após os créditos referidos no artigo 748º do Código Civil".
2° O Privilégio creditório é, conforme o estipulado no art. 7330 do CC " a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros".
3° Por outro lado, de acordo com o artigo 822° do CC o crédito reclamado pelo CDS, com a penhora do bem imóvel, desfruta de preferência em relação ao crédito do exequente, uma vez que goza de garantia anterior - privilégio creditório.

4° A decisão foi precedida da invocação de vários preceitos legais, contudo, não é explicitado em que medida estes artigos fundamentaram a decisão, pelo que também não nos é possível concretizarmos a forma como deveriam ser interpretadas e aplicadas.

5º Contudo, face aos decido terá de se entender que a sentença não fez a aplicação e interpretação correcta das normas, uma vez que o art. 110 do Decreto-Lei 103/80, de 9 de Maio, norma que devia ter sido aplicada, determina que os créditos da Segurança Social por contribuições e os respectivos juros gozam de privilégio creditório, sem qualquer limitação temporal, não lhes sendo, assim, aplicável o disposto nos art.(s) 734º e 744° do CC.
6° Acresce que a interpretação dos artigos 733° e 822° do CC, que deviam ter sido aplicados, determinam que o crédito reclamado pelo CDS, com a penhora do bem imóvel, desfruta de preferência em relação ao crédito do exequente, uma vez que goza de garantia anterior - privilégio creditório.
7° Nestes termos, o crédito reclamado pela Segurança Social, no montante global de € 464.686,91 (quatrocentos e sessenta e quatro mil seiscentos e oitenta e seis euros e noventa e um cêntimos) deve ser graduado antes do crédito exequendo.
8° A douta decisão violou, além do mais, o disposto nos artigos 11° do Decreto-Lei 103/80, de 9 de Maio e 733º, 734º, 744° e 822° do CC.

3. Não foram apresentadas contra-alegações.

Nada a tal obstando, cumpre decidir.

            II – DOS FACTOS

            Na douta sentença, considerando a falta de impugnação dos créditos reclamados, os autos principais e a prova documental junta aos autos pelos Reclamantes, foi vertida como assente e com interesse para a decisão da causa a seguinte factualidade:

1. Nos autos de execução a que estes se encontram apensos, foi penhorado o seguinte bem da executada:

a. Prédio urbano, constante de casa de rés-do-chão, com quatro divisões, duas destinadas a comércio e duas destinadas a habitação e pátio, sito na ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..., freguesia de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., da mesma freguesia;

2. Essa penhora foi registada a favor da Exequente, em 27-08-2009 pela apresentação de registo n.º ....

3. A Executada está inscrita no Reclamante Instituto da Segurança Social, I.P. sob o regime dos contribuintes do regime geral.

4. A Executada não procedeu ao pagamento das quantias inscritas para cobrança referentes aos meses de:

a. Dezembro de 1997;

b. Agosto a Dezembro de 1998;

c. Janeiro e Dezembro de 1999;

d. Janeiro de 2000;

e. Janeiro a Dezembro de 2002;

f. Janeiro a Dezembro de 2003;

g. Janeiro a Dezembro de 2004;

h. Janeiro a Dezembro de 2005;
i. Janeiro a Dezembro de 2006;
j. Janeiro a Dezembro de 2007;
k. Janeiro a Dezembro de 2008;

                  l. Janeiro a Setembro de 2009;

5. A executada procedeu ao pagamento das contribuições referentes aos meses de Novembro de 2000 e Dezembro de 2004 depois de decorrido o prazo para o pagamento das mesmas.

            III – DO DIREITO

            1. Como é sabido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente, nos termos do disposto nos arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1, ambos do Cód. Proc. Civil, circunscrevendo-se às questões aí equacionadas.

            Assim, analisado aquele quadro de sintéticas proposições acima reproduzido, constatamos que a duas se circunscrevem as questões a dilucidar em tal âmbito, quais sejam saber (1) se os créditos por contribuições em dívida às instituições de segurança social e respectivos juros, enquanto garantidos por privilégio creditório, estão ou não sujeitos ao limite temporal de dois anos, à semelhança do disposto, respectivamente, nos arts. 734º e 744º do Código Civil[1] e (2) se essa garantia que assiste a tais créditos e concernentes juros persiste ‑mantém-se operante‑, ou não, mesmo em relação àqueles vencidos após a data da penhora efectuada no processo executivo a que se reporta a concernente reclamação.

            Vejamos, pois.

            2. No que tange à primeira questão, vemo-nos sem mais remetidos para o disposto no artigo 11º, do DL nº 103/80, de 9 de Maio, o qual, sob a epígrafe “Privilégio imobiliário” estatui que “[o]s créditos pelas contribuições, independentemente da data da sua constituição, e os respectivos juros de mora gozam de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património das entidades patronais à data da instauração do processo executivo, graduando-se logo após os créditos referidos no artigo 748º do Código Civil.”

            2.1. Ora, perante este teor normativo, cremos, salvo o muito respeito, não subsistirem dúvidas sérias de que no tocante aos créditos propriamente ditos –capital ou cifra das contribuições: em suma, crédito principal‑, nenhum limite temporal –para o passado[2]‑ é possível sustentar, como vem sendo decidido e, ao que nos é dado saber, de forma absolutamente unânime, pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores.

            Na verdade, e tal como deflui da douta exposição inserta no Ac. do STJ de 22.11.2005, em face da redacção constante do inciso inicial do acima transcrito preceito ‑“os créditos pelas contribuições, independentemente da data da sua constituição, e os respectivos juros de mora….”‑, se dúvidas são cabíveis sobre se essa expressão excludente de qualquer restrição temporária –“independentemente da data da sua constituição”‑, se refere também aos subsequentemente aludidos juros moratórios, o mesmo já não se verifica em relação ao capital das contribuições, das prestações mensais em dívida. Quanto a esta vertente de crédito, o teor iniludível, inequívoco, da norma exclui, manifestamente, qualquer outro entendimento, sob pena de –inaceitável e incompreensivelmente‑, se retirar qualquer sentido ou conteúdo útil a tal expressão, indiscutivelmente ditada pela especial relevância comunitária do interesse com ela prosseguido, qual seja, uma real e eficaz protecção dos beneficiários do sistema da segurança social.

            A importância ou capital das contribuições, não está, pois, sujeita qualquer limitação temporalpretérita, insista-se‑, designadamente reconduzível ao disposto no artigo 744º, nº 1, pelo que, atendo-nos à espécie sujeita, de concluir é –pelo menos e para já‑ que se impunha e impõe reconhecer e efectuar a graduação dos créditos reclamados pelo ora Recorrente relativos não só –e a exemplo da douta sentença‑ às contribuições dos meses de Agosto de 2007 a Julho de 2009 – Facto nº4, alíneas j), k) e [em parte] l)‑, mas também respeitantes às contribuições dos demais meses reportados nas diversas alíneas desse Facto nº 4[3], com excepção –presente essa alínea l)‑, dos meses de Agosto e Setembro de 2009.

           

            2.2. Quanto aos juros de mora, consoante dimana do antes explanado, a forma assertiva acaba de expressar em relação ao capital ou “quantum” das prestações, no sentido de não ocorrer em relação aos respectivos créditos qualquer limitação temporária, já não se evidencia por igual aplicável em relação a tais juros.

            Com efeito, e atendo-nos de novo à nossa a jurisprudência, verifica-se a tal respeito uma certa e até agora insuperada divisão, pese que pendendo o prato da balança, decisivamente, para a orientação que, à semelhança do capital das contribuições, afasta também em relação aos atinentes juros moratórios a existência de qualquer circunscrição temporal.

            Diz-se nesta pontificante sede[4], que a normação do predito artigo 11º ‑o mesmo valendo em relação ao precedente artigo 10º‑ não apresenta qualquer limitação, desde logo –e como antes já se estatuiu‑, no tocante ao crédito do capital, crédito principal, afastando assim terminantemente a aplicação, no referente a ele, dessa limitação.

Desse modo, e tendo presente que o legislador em tal(is) preceito(s) –a que importa ainda aditar o artigo 14º‑, estabeleceu uma iniludível conexão entre os regimes desse crédito e dos juros, mencionando-os em paridade, tudo impõe concluir que, com essa “irmanada” menção, mais não se teve em vista que a consagração da regra “acessorium sequitur principale”. Consagração que a já antes aludida relevância do interesse em salvaguarda, uma vez, e por igual, tornou impositiva.

            Sendo a explanada orientação aquela que também quanto a nós merece sufrágio, reportando-nos de novo ao caso em apreço, logo concluímos que igualmente no tocante aos juros em consideração a douta sentença não logra anuência.

Como assim, e alterando uma vez mais tal decisão, impõe-se que, no reconhecimento do crédito da Recorrente quanto a tais juros, que o mesmo é dizer, aqueles que respeitam às contribuições mensais acima referenciadas, e bem assim às mencionadas no Facto nº 5, sejam os mesmos graduados, em igual plano, com tais contribuições.

Frente a todo o exposto, pois, a douta objecção recursória acima e em primeiro lugar equacionada logra cabal procedência.

3. Incidindo a nossa objectiva sobre a segunda e subsequente questão, pensamos que, sempre ressalvando o muito respeito, neste particular cobra razão o entendimento da Mm.ª Juíza ao excluir da garantia do privilégio os créditos por contribuições vencidas após a data da realização da penhora em apreço nos autos.

Na verdade, e conforme a mui autorizada exposição de Salvador da Costa[5] “[n]o quadro das garantias reais e preferências legais de pagamento dispensadas de registo assume relevo fundamental na operação de graduação a data da respectiva constituição, no confronto da data da penhora que deva ser considerada.”

E prosseguindo: “Os direitos de crédito reclamados constituídos posteriormente ao acto de penhora são insusceptíveis de graduação, salvo os garantidos por arresto, penhora em outra execução, hipoteca legal ou judicial”, que, no entanto –acrescenta‑ “só são susceptíveis de relevar para efeito de reclamação de créditos se remanescente houver em relação ao produto dos bens alienados no confronto com o exequente e os outros credores reclamantes.” [sublinhados nossos].

Nestes termos, pois, subscrevemos também na íntegra o decidido no já antes referenciado Ac. da R.E. de 18.10.2007, no sentido de que à menção constante do artigo 11º, do DL. nº 103/80 –“independentemente da data da sua constituição”‑, não deve atribuir-se o alcance de, no tocante ao privilégio imobiliário ali reportado, todos os créditos –contribuições e respectivos juros‑ gozarem de forma ilimitada do mesmo, mas ‑apenas e só‑, o de eliminar para o passado, em relação a tais créditos, a restrição temporal estabelecida para os impostos directos nos artigos 736º, nº 1, e 744º, nº 1. Eliminação que, porém, já não ocorre em relação aos créditos posteriores à penhora, os quais, de conformidade com as apontadas regras gerais do concurso de credores, não são oponíveis a garantais reais anteriores, e, portanto, e entre o mais, a tal diligência apreensiva.

Destarte, e em síntese, os créditos reclamados pelo ora Recorrente, substanciados nas contribuições dos meses de Agosto e Setembro de 2009 e respectivos juros moratóriosFacto nº 4, alínea l) ‑, não gozam de qualquer preferência pelo que, assumindo-se de natureza comum, não havia sequer lugar, salvo sempre melhor opinativo, a qualquer consideração dos mesmos na operação graduativa a efectuar.

Sem embargo, em tal conformidade não se determinou a Mm.ª Juíza, pelo que, não tendo esse procedimento sido objecto de competente impugnação, cumpre ora mantê-lo –por força do estipulado no nº 4, do artigo 684º, do CPC[6]‑, e assim a decidida ordenação de tais créditos após o crédito exequendo.

Improcedendo, deste modo, a douta objecção ora apreciada, considerando tudo o que explanado fica, termina-se com a seguinte


IV – DECISÃO
Termos em que, e sem mais considerações, na parcial procedência da apelação, revoga-se nessa medida a douta sentença recorrida, em conformidade decidindo:
1) ‑ Julgar reconhecidos os créditos reclamados referentes às contribuições relativas aos meses aludidos no Facto nº 4, alíneas a) a i), e –com atinência à alínea j)‑, Janeiro a Julho (inclusive) de 2007, bem como os correspondentes juros de mora;
2) – julgar, outrossim, reconhecidos os créditos reclamados referentes aos juros de mora respeitantes às contribuições relativas aos meses de Agosto de 2007 a Julho de 2009, e Novembro de 2000 e Dezembro de 2004. Em consequência:
‑Proceder à graduação de todos esses créditos em 1º lugar, a par dos demais –contribuições dos meses de Agosto de 2007 e Julho de 2009‑, contemplados em tal prioritária ordenação na douta sentença recorrida;
‑ no mais manter esta sentença inalterada.
Custas pelo Recorrente na parte em que decaiu, sendo a demais isenta de tributação.

                                                               *
Oportunamente, dever-se-á ter em conta o teor das peças constantes de fls. 62 e ss.
                                                               *
Helder Almeida (Relator)
Francisco Caetano
António Magalhães.


[1] Ao qual respeitam os demais preceitos a citar sem menção de proveniência.
[2] Ressalva que se impõe fazer, considerando, entre o mais, o conteúdo da segunda questão recursória acima equacionada e de que iremos, mais à frente, cuidar.
[3] Sendo certo que inexistem nos autos elementos que possibilitem levar a efeito o oficioso conhecimento, que para os créditos em presença se vem entendendo forçoso, do decurso do atinente prazo prescricional, na esteira da doutrina proclamada pelo Ac. da R.C. de 4.03.2008, in Col., II, pág. 7.
[4] A título meramente exemplificativo, cfr. o Ac. da Rel. de Lisboa de 29.11.1990, in Col., V, pág. 127, os Acs. da Rel. de Évora de 6.3.1997, in Bol. 465º-666 e de 18.10.2007, proferido no Proc. nº 1605/07-2, in dgsi/Net, o Ac. da RL. 14.03.2005, in Col., II, pág. 231 e, ainda, o Ac. desta R.C. proferido no Proc. nº 2662/99, 1ª sec., inédito, tendo por relator o do presente.
[5] Cfr. O Concurso de Credores, 4ª edição actualizada e ampliada, Almedina, pág. 263.
[6] Preceito que, como sabido, consagra a proibição da “reformatio in peius”. por todos, vide Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos sobre o Novo Processo Civil, lex, pp. 465 e ss.