Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
815/16.8T8CLD-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: PERÍCIA
SEGUNDA PERÍCIA
PRESSUPOSTOS
Data do Acordão: 12/18/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – J. L. CÍVEL DE CALDAS DA RAINHA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 487º, 488º E 489º DO NCPC.
Sumário: I- São pressupostos ou condições legais da admissão da realização da 2ª perícia:
a) Que ela seja requerida por qualquer das partes (no prazo de 10 dias seguintes ao do seu conhecimento do resultado da primeira) ou então que seja ordenada oficiosamente pelo tribunal (não estando neste caso dependente de qualquer prazo, bastando que para efeito a considere necessária par a apuramento da verdade);

b) Que - sendo requerida por iniciativa das partes - a parte que a requer exponha, de forma clara e concludente, no respetivo requerimento, os fundamentos das razões da sua discordância com o resultado a primeira perícia;

c) Que o objeto da 2ª perícia coincida com o objeto de investigação da 1ª.

II- A segunda perícia - mesmo que destine a corrigir eventuais inexatidões da mesma - não invalida a primeira (não havendo prevalência de resultados), ficando ambas sujeitas à livre apreciação do tribunal.

III- Verificando-se que na segunda perícia foi ampliado o objeto da primeira, tal não deve conduzir ao indeferimento da mesma mas tão só à redução/circunscrição dos seus limites de investigação às questões de facto que integraram objeto da primeira.

Decisão Texto Integral:









Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório

1. No Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Juízo Local Cível, a autora, E..., LDA instaurou (em 22/08/2018) contra a ré, C..., CRL, ambas com os demais sinais dos autos, ação declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo a condenação a última a:

“- reconhecer que a autora é possuidora e legitima proprietária do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ..., referente ao artigo ..., com uma área de 3.156,00 m2, freguesia de ...;

- reconhecer que o direito de propriedade da autora configura a planta de implantação junta como doc. n.º 6 (e cujo original se protesta juntar), limitando-se as estremas de ambos os prédios por tal configuração;

- abster-se de praticar quaisquer atos que obstem ao normal exercício do direito de propriedade da autora, reconhecendo ainda que tal parcela de terreno em litígio nunca fez parte integrante do rústico da ré descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº..., referente ao artigo ..., no qual consta uma área inscrita de 5.692,00 m2, freguesia de ...

Para tanto, e em síntese, alegou:

Ser legítima possuidora e proprietária daquele prédio acima identificado, por o ter adquirido por escritura pública de compra e venda outorgada em 07.03.2014; e a ré o ser do prédio confinante ao da autora (os quais pertenciam ambos ao mesmo proprietário), existindo atualmente ente a autora e a ré uma divergência de área, de cerca de 400,00 m2, na delimitação das estremas entre os dois prédios.

No final, e entre outros meios de prova que indicou, requereu que fosse efetuada “uma perícia colegial afim de se proceder a um levantamento topográfico dos artigos rústicos da autora e da ré.”

2. A ré contestou, impugnando, em síntese, os limites dos prédios confinantes nos termos definidos pela autora, sustentando que inexiste qualquer “invasão de 400m2” do prédio da autora, nos termos alegados por esta, porquanto tal faixa de terreno integra, não o prédio da autora, mas sim o seu prédio, confinante com aquele.

Terminou pedindo a improcedência da ação e a sua absolvição do pedido.

3. Na audiência prévia/despacho saneador, além do mais decidiu-se;

a) Fixar o objeto do litígio, tendo-se enunciando as seguintes questões decidendas:

 “1. Direito de propriedade da autora sobre o prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ..., e inscrito na respectiva matriz sob o artigo ... da união de freguesias de ...;

2. Reconhecimento do direito de propriedade da autora sobre uma concreta faixa de terreno com 400m2 situada a norte do prédio ... e respectiva reivindicação da ré.

3. Demarcação entre a estrema sul do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº..., e inscrito na respectiva matriz sob o artigo ... da freguesia de ... e a estrema norte do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ..., e inscrito na respectiva matriz sob o artigo ... da freguesia de ..., titulado pela ré.”

b) Fixar os factos já considerados como assentes.

c) Admitir a perícia colegial requerida pela autora (após a ré se ter pronunciado sobre a mesma, propondo uma maior abrangência do seu objeto nos termos por si indicados), a ser realizada por três peritos, fixando o seu objeto nos seguintes termos:

 « a) Levantamento topográfico (identificação da área e delimitação) do prédio acima identificado sob o ponto 1, de acordo com a delimitação constante do documento de fls. 68 dos autos;

b) Levantamento topográfico (identificação da área e delimitação) do prédio acima identificado sob o ponto 1, de acordo com a delimitação indicada pela Autora no local;

c) Levantamento topográfico (identificação da área e delimitação) do prédio acima identificado sob o Ponto 5, de acordo com a delimitação indicada pela Ré no local;

d) Medição e descrição, em termos de área, da eventual sobreposição/divergência de estremas entre as delimitações indicadas por ambas as partes;

e) Delimitação dos metros quadrados em litígio, considerando-se o documento junto pela Autora a fls. 68 e o documento junto pela Ré a fls. 146 do apenso A;

e) Definição da área total e real ocupada por cada uma das parcelas;

f) Definição da área e delimitação das estremas de cada uma das parcelas, com base nos documentos que foram juntos ao processo de obra na Câmara Municipal com o nº ... »

4. Realizada tal perícia, os srs. peritos juntaram aos autos o respetivo relatório (datado de 06/06/2019 e subscrito por unanimidade dos três peritos), cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido.

5. Notificado que foi às partes de tal relatório pericial, veio, em tempo útil, a autora requer, à luz do artº. 487º do CPC, a realização de segunda perícia, nos termos e com os fundamentos que se deixam integralmente transcritos:

« (…) A)

1º Do relatório de peritagem ressalvam-se as seguintes conclusões:

a)- os limites do prédio da ré do lado ponte é com caminho público, do lado sul está delimitado por um muro e do lado nascente com uma talide/barreira;

b)- a ré tem como área real mais de 229,00m2 do que tem registado na Conservatória;

c)- a ré (e seus antecessores) efetuou ao longo do anos várias retificações ao prédio – cifra documentação já junta nos autos e ainda assim e após rectificações ainda tem 229,50m2 a mais (depois de retificar a dizer que esta conforme);

d)- a autora tem como área real menos 920m2;

e)- a autora (e seus antecessores) nunca retificou a área do seu prédio;

f)- a ré (e seus antecessores) ao retificarem a área e a ocuparem a mais 229,50m2 da área registada, tiveram que forçosamente, face aos limites da sua propriedade (cifra a) supra)), ocupar o terreno da autora;

g) conclusão da autora: ocupa a ré terreno da autora, “empurrando” os m2 que lhe “iam dando jeito”.

2º Tirando as certezas supra, o demais relatório contém imprecisões e não permite definir as divergências de forma clara e precisa (tal como até o próprio relatório o refere).

B)

3º Refere o douto relatório que “a resposta aos quesitos b), c) e d) é conclusiva e precisa”, o que parece uma notória contradição, pois conclusivo é notoriamente diferente de preciso.

4º Ao resto dos quesitos, tudo é “imprecisa e de pouco rigor”, segundo o douto relatório.

5º E, a este respeito, quesitos b), c) e d), fica a autora sem perceber se a resposta é conclusiva ou precisa!?...

6º É que os Srs. Peritos que iam efetuar a perícia, a qual inferna de graves omissões, já que todos informaram que iriam acompanhar a diligência de perícia, mas tal não aconteceu pois o Sr. Perito nomeado pelo Tribunal foi-se embora logo no momento em que se iniciou a perícia para levantamento topográfico e nunca mais esteve presente no local, pelo menos que a autora tenha tido conhecimento.

7º O que por si só é suficiente para a autora colocar a perícia em causa e toda a sua eficácia, pois não foi acompanhada por todos, tal como vieram informar os autos.

8º Por outro lado, os limites da propriedade da autora foi indicada aos Srs. Peritos respeitando os documentos/levantamentos topográficos juntos na p. i. e nunca naquele particular local ou linha sequer.

9º Não correspondendo à verdade que os limites da propriedade da autora fossem indicados no local de forma clara e precisa, a não ser com o considerando supra, ou seja, considerando os documentos juntos por ela.

10º Dito de outra forma, referiu que os limites da sua propriedade eram as constantes nos seus documentos, com o inerente “transporte” de tais documentos para o local para efeitos de indicação, o que aliás decorre da p. i. e demais articulados juntos.

11º Pois qualquer limite da propriedade invocado pela autora, decorre de documentos que lhe foram enviados e declarações do vendedor (administradora judicial de insolvência).

12º Nem outra situação é de esperar, pois a autora adquiriu o imóvel em insolvência e jamais poderia dizer com precisão e de forma clara qual o seu limite, como é óbvio.

13º Pelo que, os Srs. Peritos desenharam uma linha divisória (e, convenientemente, imaginária), no levantamento junto em ponto b) e c) da perícia, tornando-a o mais funcional possível face ao que lá existe, o que é notório, e nunca considerando os documentos juntos, o que era objeto de perícia, cujo levantamento solicitado era na versão da autora (com os documentos que juntou e considerados no objeto da perícia) e na versão da ré.

14º Não consideram o fato dos documentos junto na CM ... e do levantamento topográfico que a ré juntou ou deveria ter junto em tal município, tal como era objeto de perícia.

15º Não consideraram os Srs. Peritos os requerimentos entregues pela autora a 16/5/2018, 15/2/2019 e 11/4/2019, cujos elementos neles constantes ou a considerar são elementos objetivos.

16º E sendo tal linha “criada”, os doutos levantamentos a este respeito, a respeito desta linha de “limites” a autora não aceita, nem nunca a indicou aos Srs. Peritos e jamais a poderia ter indicado, face ao que fica dito.

17º. E, por isso, se propugna que o Sr. Perito que efetuou o levantamento, sem o acompanhamento de todos os peritos (como acima se referiu), e da forma como o fez tem caris parcial, o qual não é aceite pela autora e disso referiu e alertou o Tribunal no seu requerimento de 7/3/2019.

18º Jamais a divisória entre o terreno da autora e da ré tem ou teve uma linha tão retilínea como os Srs. Peritos indicam no seu relatório, o que alias é aflorado nos documentos juntos pela autora e tal como consta nos documentos camarários.

19º Razão pela qual o ponto d) da peritagem não corresponde à verdade, pois existe divergências e sobreposição de áreas.

20º Reitera-se:” a)- os limites do prédio da ré do lado ponte é com caminho público, do lado sul está delimitado por um muro e do lado nascente com uma talide/barreira; b)- a ré tem como área real mais de 229,00m2 do que tem registado na Conservatória; c)- a ré (e seus antecessores) efetuou ao longo dos anos várias retificações ao prédio – cifra documentação já junta nos autos e ainda assim e

após retificações ainda tem 229,50m2 a mais (depois de retificar a dizer que esta conforme); d)- a autora tem como área real menos 920m2; e)- a autora (e seus antecessores) nunca retificou a área do seu prédio; f)- a ré (e seus antecessores) ao retificarem a área e a ocuparem a mais 229,50m2 da área registada, tiveram que forçosamente, face aos limites da sua propriedade (cifra a) supra)), ocupar o terreno da autora;”

21º É notório que os Srs. Peritos não esclarecem os quesitos indicados, são pouco esclarecedores e imprecisos, o que a autora não aceita.

22º Nunca deveriam dizer que não existe qualquer zona de divergência/sobreposição, sem que tivessem totalmente esclarecidos de todos os fatos, bem como pela análise dos documentos junto na CM ...

C)

23º Assim e face ao discorda a autora do relatório pericial junto pelo perito nos pontos supra e face às imprecisões/omissões, requerendo assim, uma segunda perícia, nos termos do art. 487º CPC pois, segundo a autora, é notória a inexatidão e contradição dos resultados obtidos, nomeadamente quanto aos pontos que estão em notória contradição entre documentação e conclusões, as quais são postas em causa pela autora, nos moldes que se tem vindo a explanar.

24º Pois, esta segunda perícia é essencial para o apuramento da verdade e dadas as parcas respostas e imprecisas respostas, requer-se que a segunda perícia tenha por objeto os mesmos quesitos formulados pela ré e autora na peritagem – cifra ata de 7/12/2017:

“Mais requer a Autora, a realização de levantamento topográfico, a fim de apurar os concretos m2 da área em litígio objecto dos autos, considerando:

a) O documento junto pela Autora a fls. 68 e o documento junto pela Ré a fls. 146 do Apenso A, junto como doc. 10;

b) A versão da Autora e da Ré a indicar ao perito no local.”

25º Bem como com os seguintes considerandos:

"A Ré entende que o levantamento topográfico a realizar, bem como a perícia, devem ter um objecto mais abrangente, nomeadamente:

1) aferir da área total real ocupada de ambas as parcelas e verificar se estas correspondem às áreas registadas de cada uma das parcelas;

2) aferir da área de cada parcela em cada uma das versões apresentadas por Autora  e Ré.”

26º E, por fim: “a perícia deve ser feita com base não apenas nos levantamentos topográficos juntos por Autora e Ré, mas com base nos documentos juntos no processo da Câmara nº ..., nomeadamente o 1º levantamento topográfico aí constante, bem como todos os que acompanharam a sucessão de projectos.”

27º Nada do supra exposto, foi respondido e nem sequer foi analisado, não fazendo parte do relatório a análise dos documentos supra (em sequer plantas da CM ...).

28º Não estão refletidos nos levantamentos topográficos quaisquer referências aos documentos referidos na peritagem, os quais seriam os pontos a definir os limites da propriedade da autora e ré.

29º E, por tudo, requer-se a realização de uma segunda perícia, nos termos do artigo 487º e ss do CPC, tudo o que se requer para os devidos efeitos legais, respondendo a todas as questões da peritagem e acima referidas:

AA) A realização de levantamento topográfico, a fim de apurar os concretos m2 da área em litígio objecto dos autos, considerando:

a) O documento junto pela Autora a fls. 68 e o documento junto pela Ré a fls. 146 do Apenso A, junto como doc. 10;

b) A versão da Autora e da Ré a indicar ao perito no local.

BB) A Ré entende que o levantamento topográfico a realizar, bem como a perícia, devem ter um objecto mais abrangente, nomeadamente:

1) aferir da área total real ocupada de ambas as parcelas e verificar se estas correspondem às áreas registadas de cada uma das parcelas;

2) aferir da área de cada parcela em cada uma das versões apresentadas por Autora e Ré.

CC) A perícia deve ser feita com base não apenas nos levantamentos topográficos juntos por Autora e Ré, mas com base nos documentos juntos no processo da Câmara nº..., nomeadamente o 1º levantamento topográfico aí constante, bem como todos os que acompanharam a sucessão de projectos.

30º Bem como deve a perícia incidir para responder às seguintes questões, afim de esclarecer a verdade dos fatos:

1- os limites do prédio da ré do lado ponte, do lado sul e do lado nascente?

2- a ré (e seus antecessores) efetuou ao longo dos anos várias retificações ao prédio?

3- a ré após as retificações referidas em 2, ainda tem 229,50m2 a mais?

4- a autora (e seus antecessores) nunca retificou a área do seu prédio?

5- a ré (e seus antecessores) ao retificarem a área e a ocuparem a mais 229,50m2

da área registada, tiveram que forçosamente, face aos limites da sua propriedade (cifra 1 supra)), ocupar o terreno da autora?

6- de onde terá saído a área que a ré (e seus antecessores) incluiu nas suas retificações?

7-d e onde terá saído a área que a ré (e seus antecessores) que tem a mais de 920m2;

31º Que seja concedido prazo de 10 dias à autora para nomear perito, assim que lhe seja deferida a perícia.

Mais requer a presença dos Srs. Peritos em audiência de julgamento a agendar. »

6. A ré veio opor-se à realização dessa 2ª perícia requerida pela autora, pedindo o indeferimento do pedido que a formula.

7. O pedido de realização da 2ª perícia formulado pela autora foi indeferido, pelo despacho de 24/09/2019, com os fundamentos que se transcrevem:

« Dispõe o art. 487º, nº 1 do Código de Processo Civil que “qualquer das partes pode requerer que se proceda a realização de segunda perícia, no prazo de dez dias a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundamentadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado”.

Ora, ponderado o requerimento apresentado pela Autora o que resulta é que esta não aceita o resultado, unânime, da perícia realizada, não fundamenando cabalmente a Autora a razão de tal discordância.

Por outro lado, o objecto proposto pela Autora para a segunda perícia pretendida não coincide com o objecto da perícia já realizada nos autos.

Ou seja, o que a Autora pretende é uma perícia totalmente diversa.

Nestes termos, entende-se não haver lugar à realização de uma segunda perícia, pelo que se indefere o requerido »

8. Inconformada com tal despacho decisório, a autora dele apelou, tendo concluído as respetivas alegações de recurso nos seguintes termos:

...

9. Contra-alegou a ré, pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção do decidido, após ter concluído:

« Em suma, a autora formula um pedido que padece de dois vícios, que terão justificado o seu indeferimento:

1. Não apresenta fundadamente as razões de discordância com o relatório pericial.

2. Pretende ampliar e alterar o objecto da perícia, o que consubstancia uma nova e diferente Perícia.»

10. Cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.


II- Fundamentação

A) De facto.

Com relevância e interesse para a apreciação e decisão do presente recurso, devem ter-se- como assentes os factos que se deixaram descritos no Relatório que antecede (extraídos das peças processuais e documentais que integram estes autos de recurso- subidos em separado - e bem assim das demais que compõem os autos principais, após consulta do respetivo processo eletrónico que dele fizemos):

B) De direito.

1. Como é sabido, é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se fixa e delimita o objeto dos recursos, pelo que o tribunal de recurso não poderá conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs. 635º, nº. 4, 639º, nº. 1, 608º, nº. 2, CPC).

Ora, calcorreando as conclusões das alegações do recurso da autora/apelante verifica-se que a única questão que aqui, verdadeiramente, nos cumpre apreciar traduz-se em saber se a 2ª. perícia requerida pelo autora deve ou não ser admitida.

O tribunal a quo entendeu não (no que é secundado pela ré), argumentando, para o efeito, com base num duplo fundamento: a) não ter a autora/requerente fundamentado cabalmente a razão da sua discordância em relação ao relatório da sua perícia; b) e não coincidir o objeto da 2ª perícia pretendida com o objeto da 1ª já realizada.

Discorda autora/apelante de tal entendimento, refutando os fundamentos aduzidos para o efeito.

2. Apreciemos.

Sob a epígrafe “realização de segunda perícia”, dispõe o artigo 487º do nCPC (que reproduziu na integra o artº 589º CPC de 61, na versão então vigente aquando da sua revogação), que:

« 1 - Qualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia, no prazo de 10 dias a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado.

2 - O tribunal pode ordenar oficiosamente e a todo o tempo a realização de segunda perícia, desde que a julgue necessária ao apuramento da verdade.

3 - A segunda perícia tem por objeto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexatidão dos resultados desta. »

Decorre da leitura de tal normativo legal que os pressupostos ou condições legais para a admissão da realização da 2ª perícia são os seguintes:

a) Que ela seja requerida por qualquer das partes (no prazo de 10 dias seguintes ao do seu conhecimento do resultado da primeira) ou então que seja ordenada oficiosamente pelo tribunal (não estando neste caso dependente de qualquer prazo, bastando que para efeito a considere necessária par a apuramento da verdade);

b) Que - sendo requerida por iniciativa das partes - a parte que a requer exponha no respetivo requerimento os fundamentos das razões da sua discordância com o resultado a primeira perícia;

c) Que o objeto da 2ª perícia coincida com o objeto da 1ª..

A 2ª perícia não constitui uma instância de recurso, visando tão só fornecer ao tribunal novos elementos relativamente aos factos que foram objeto da primeira, cuja indagação e apreciação técnica por outros peritos (artº 488º, al. a) do CPC), pode contribuir para a formação duma mais adequada convicção judicial (vide Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª. ed., Almedina, pág. 324.”).

Nessa medida, e tal como decorre estatuído no artº 489º do CPC, a segunda perícia - mesmo que destine a corrigir eventuais inexatidões da mesma - não invalida a primeira (não havendo prevalência de resultados), ficando ambas sujeitas à livre a apreciação do tribunal (cfr. ainda artº 389º do CC).

Como se viu, quando ela é da iniciativa da parte não basta a esta – e contrário do sucedida no revogado CPC de 61, na versão anterior àquela que lhe foi introduzida pela reforma de 95 – requerê-la, pois que se lhe se exige que explicite de forma clara e fundamentada as razões da sua discordância relativamente ao relatório da primeira e aos resultados nela atingidos. Discordância essa que tanto pode recair sobre os fundamentos, como sobre as conclusões do relatório pericial. Daí que essas razões aduzidas, independentemente da sua procedência só possa vir a ser sindicada depois de realizada a 2ª perícia, se devam mostrar claras, sérias e concludentes (Vide, por todos, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Ob. cit., pág. 342, e Acs. do STJ, de 25/11/04, in “CJ, Ano XII, T3- 123”; da RG de 12/07/2016, proc. 559/14.5.TJVNF.G1, de 19/05/2016, proc. 188/12.8TMBRG-F.G1; da RC de 28/04/2015, proc. 408/13.1TBBBR-A.C1, disponíveis em www.dgsi.pt, ainda da RP de 25/05/2015, in “CJ, 2015, Ano XL, T4-319”).

Por outro lado, e como igualmente se viu, o objeto da segunda perícia, quando requerida pelas partes, deve coincidir com a objeto da primeira, isto é, com as questões de facto indicadas pelas partes e que o juiz circunscreveu no despacho da sua admissão, ou melhor ainda, deve ter, na expressão da lei, a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira (cfr. artºs 475º, nº 1, 476º, nºs 1 e 2, do CPC).

Servindo-nos novamente das palavras de Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (in “Ob. cit., pág. 343)o que está vedado é requerer  nova perícia com outro objeto.”

Tendo presente o que se deixou exposto, é chegada à altura de dar resposta à questão acima colocada.

Para tal importa indagar se no caso em apreço se mostram verificados os pressupostos legais acima enunciados para que seja admitida a 2ª perícia de que vimos falando.

Essa segunda perícia foi requerida, no prazo legal, pela autora, parte na ação, pelo que mostra, assim, preenchido o 1º dos requisitos legais acima elencados (pressuposto esse, diga-se, que no caso não constitui objeto de discussão).

Pela leitura do requerimento - que acima se deixou, propositadamente, transcrito na íntegra – dele decorre, a nosso ver, de forma patente, que nele a autora explicita de forma clara e fundamentada as razões da sua discordância relativamente ao relatório da primeira perícia e aos resultados nela atingidos. Razões e dúvidas aí expostas que, a nosso ver, são compreensíveis, pois que, como decorre o teor do relatório pericial, são os próprios srs. peritos que as “ajudam” a gerar, ao ali afirmarem (independentemente da interpretação que se possa atribuir a essas afirmações), além do mais, - nos considerandos prévios tecidos e em jeito de justificação dada às mesmas - que a resposta aos quesitos e) a g), “é imprecisa e de pouco rigor.”

Mostra-se, assim, também preenchido o segundo dos pressupostos legais acima elencados.

Já a resposta quanto à verificação do terceiro e último dos aludidos pressupostos legais pode-se não mostrar tão fácil.

Como acima deixámos expresso, exige-se que haja coincidência ou identidade entre os objetos das perícias, ou seja, que os factos a investigar na segunda perícia sejam os mesmos que foram objeto de investigação levada a efeito pela primeira.

Ora, calcorreando o aludido requerimento, dele se extrai que a autora/apelante amplia os objeto da primeira perícia, pedindo que além daqueles que foram objeto da primeira se indaguem/investiguem, na 2ª perícia, outros factos (não coincidentes com os da primeira, embora estejam, a nosso ver, numa relação indireta/ou de complementariedade com eles, e que são justificados, por aquela, com a ideia de esclarecer a verdade os factos em discussão na ação).

Verdadeiramente, estamos, assim, não perante uma nova perícia com objeto (totalmente) diferente do da primeira, mas perante uma mesma perícia ampliada, ou seja, com a ampliação do seu objeto.

E sendo assim, haverá não que indeferir a realização da mesma (na sua totalidade), mas tão só reduzir o seu objeto àquele sobre o qual incidiu a primeira, ou seja, tão somente aos concretos factos que foram objeto dessa primeira perícia.

E isso sem prejuízo de o tribunal a quo, se entender que tal se se poderá vir a mostrar deveras relevante para a descoberta da verdade e boa da causa, poder, à luz do disposto no nº 2 do artº 487º do CPC, vir integrar tais factos (cuja indagação ampliada se pede) ou alguns deles no objeto da 2ª perícia solicitada.

Termos, pois, em que nessa medida se julga parcialmente procedente o recurso, revogando-se o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que admita e ordene a realização da segunda perícia requerida pela autora/apelante, embora reduzindo/limitando o seu objeto às questões de facto que integraram objeto da primeira.


III- Decisão

Assim, em face do exposto, acorda-se, na parcial procedência do recurso, em revogar o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que admita e ordene a realização da segunda perícia requerida pela autora/apelante, embora reduzindo/limitando seu objeto às questões de facto que integraram objeto da primeira.

Custas pela autora/apelante e pela ré/contra-alegante, na proporção do seu vencimento no incidente/recurso, e qual para o efeito se fixa em 50% para cada um delas (artº 527º, nºs 1 e 2, do CPC).

Sumário

I- São pressupostos ou condições legais da admissão da realização da 2ª perícia:

a) Que ela seja requerida por qualquer das partes (no prazo de 10 dias seguintes ao do seu conhecimento do resultado da primeira) ou então que seja ordenada oficiosamente pelo tribunal (não estando neste caso dependente de qualquer prazo, bastando que para efeito a considere necessária par a apuramento da verdade);

b) Que - sendo requerida por iniciativa das partes - a parte que a requer exponha, de forma, clara e concludente, no respetivo requerimento os fundamentos das razões da sua discordância com o resultado a primeira perícia;

c) Que o objeto da 2ª perícia coincida com o objeto de investigação da 1ª.

2- A segunda perícia - mesmo que destine a corrigir eventuais inexatidões da mesma - não invalida a primeira (não havendo prevalência de resultados), ficando ambas sujeitas à livre a apreciação do tribunal.

3- Verificando-se que na segunda perícia foi ampliado o objeto da primeira, tal não deve conduzir ao indeferimento da mesma mas tão só à redução/circunscrição dos seus limites de investigação às questões de facto que integraram objeto da primeira.

Coimbra, 2019/12/18