Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1900/10.5T2AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
PERDA DE INTERESSE NA PRESTAÇÃO
RESOLUÇÃO
CLÁUSULA RESOLUTIVA EXPRESSA
Data do Acordão: 04/24/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CBV AVEIRO JMPIC JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS 432.º Nº 1 DO CC
Sumário: I – A perda do interesse na prestação não pode basear-se numa simples mudança de vontade de o promitente-comprador já não querer habitar a fracção predial objecto do contrato-promessa;

II – Não produz efeitos como cláusula resolutiva expressa ou convencional, por indeterminabilidade, aquela em que se dispos que “por incumprimento definitivo considera-se, para todos os efeitos, a conduta de outorgante violadora das disposições do presente contrato que não seja sanada no prazo de 15 dias após notificação para o efeito pela contraparte”;

III – Os interessados não estavam assim dispensados do cumprimento dos requisitos da resolução legal – interpelação admonitória e prova da perda do interesse na prestação.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            1. Relatório

A... e mulher B... propuseram na Comarca do Baixo Vouga a presente acção declarativa que, mercê de reconvenção, passou da forma sumária a ordinária, contra “C... Lda.”, alegando, em resumo, que celebraram com a Ré um contrato-promessa de compra e venda de imóvel, que foi incumprido definitivamente por esta, razão pela qual o resolveram, pedindo fosse declarada a sua resolução e a Ré condenada a restituir em dobro aos AA. a quantia recebida a título de sinal (€ 10.000,00), no valor total de € 20.000.00, acrescida da quantia de € 5.000.00 nos termos da cláusula 7.ª, ponto 7.1, desse contrato e ainda de juros legais desde a citação até efectivo pagamento.

Na contestação apresentada a Ré sustentou que não foi ela que incumpriu o contrato, pelas razões que aduz, antes os AA., que se recusaram a outorgar a escritura pública de compra e venda que agendou, razão pela qual, em reconvenção, pediu fosse declarado resolvido o contrato-promessa de compra e venda por incumprimento definitivo dos AA. e, por essa via, reconhecido o direito a fazer suas as quantias por estes entregues a título de sinal.

Replicaram os AA., refutando a argumentação da Ré, concluindo como na petição inicial e, ainda, pela improcedência do pedido reconvencional.

No despacho saneador foi entendido que o processo dispunha, sem necessidade de mais provas, dos elementos necessários ao conhecimento do mérito da causa, pelo que foi proferida sentença a julgar improcedente a acção e a Ré absolvida do pedido e procedente a reconvenção e em consequência declarado resolvido o contrato-promessa celebrado entre as partes, por incumprimento definitivo dos AA., fazendo a Ré sua a quantia de € 10.000,00 entregue a título de sinal e princípio de pagamento.

Inconformados, apelaram os AA. apresentando alegações que finalizaram com as seguintes úteis conclusões:

a) – Da análise do conteúdo das cartas juntas de 20.9.10 e 14.10.10 os AA. recorrentes identificaram o motivo do incumprimento da Ré – atraso na marcação da escritura – e estabeleceram o prazo de 15 dias – previsto na cláusula 7.3 do contrato-promessa igualmente junto – para que o incumprimento fosse sanado;

b) – Na carta de 20.9.10 os recorrentes referiram que a comunicação era para dar cumprimento ao acordado e descrito na cláusula 7.ª, ponto 7.3, do contrato-promessa que definiu o que se entende por incumprimento definitivo;

c) – Nessa carta os recorrentes comunicaram à recorrida de forma objectiva que “esta situação tem-nos acarretado sérios e graves prejuízos quer monetários, quer morais, pelo que não temos condições, nem pretendemos mais, para continuar a suportar o incumprimento do referido contrato-promessa a que só V. Ex.as se deve”;

d) – Porque a interpelação de 20.9.10 não surtiu qualquer efeito, mantendo-se a situação de incumprimento por parte da recorrida, na carta de 14.10.10 os recorrentes alegaram que “já não temos qualquer interesse na aquisição das fracções (…)”, tanto que nela calcularam os valores devidos em consequência da resolução do respectivo contrato-promessa de compra e venda, bem como fixaram em 8 dias o prazo para sua entrega;

e) – De tais missivas (e ainda da de 9.11.10) e contrato-promessa ter-se-ia de concluir pela interpelação admonitória da recorrida, uma vez verificados os seu elementos constitutivos de intimação para o cumprimento, a fixação de um termo peremptório para o cumprimento e a cominação de que a obrigação se terá por definitivamente não cumprida se não verificado o cumprimento dentro do prazo;

f) – Quanto ao prazo para celebração da escritura o tribunal a quo não curou de saber se os recorrentes já teriam manifestado junto da Ré ou seus representantes legais o seu desagrado pelo não cumprimento do prazo;

g) – Nem se fizeram diligências junto da recorrida ou seus representantes para pôr fim ao contrato-promessa depois de esgotado esse prazo;

h) – Ou se a recorrida alguma vez tentou justificar e impedir a resolução do contrato por parte dos recorrentes antes do envio das cartas de 20.9 e 14.10.10;

i) – Ou se os recorrentes manifestaram já não ter interesse no cumprimento do contrato em virtude do atraso na realização da escritura definitiva;

j) – O tribunal a quo não ponderou ainda as implicações que o atraso acarretou aos recorrentes a nível do corte de empréstimo bancário a que iriam recorrer para proceder ao pagamento do preço;

l) – Os recorrentes nos art.ºs 13.º, 15.º e 16.º da petição inicial alegaram factos que sustentam a perda de interesse na concretização do negócio;

m) – Ainda assim o tribunal a quo deveria ter lançado mão do disposto no n.º 3 do art.º 508.º do CPC e convidar os recorrentes a concretizar a matéria de facto referente à perda de interesse na concretização do negócio;

n) – A sentença recorrida violou o disposto no art.º 808.º do CC, pelo que deve ser revogada e ser julgada procedente a acção ou reenviados os autos à 1.ª instância para que convide os recorrentes a concretizar a matéria de facto referente à perda de interesse na concretização do negócio, prosseguindo depois os autos.

Não houve lugar a resposta.

Dispensados os vistos, cumpre decidir, podendo as questões suscitadas no recurso, pela ordem segui, resumir-se às seguintes:

a) – Se houve incumprimento definitivo e resolução do contrato-promessa imputável à recorrida fosse por efeito do próprio contrato, fosse por válida e eficaz interpelação admonitória, fosse por perda de interesse do credor (recorrentes);

b) – Se a decisão enferma de insuficiência de matéria de facto;

c) – Se deveria ter havido lugar a despacho-convite quanto à matéria integrante na perda de interesse na prestação.

Vejamos.


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            2. Fundamentos

            a) – De facto

            O saneador-sentença recorrido ateve-se à seguinte factualidade provada:

            1. – No dia 17 de Maio de 2007, autores e ré celebraram entre si um contrato, que designaram “contrato promessa de compra e venda” no âmbito do qual esta prometeu vender e aqueles comprar, pelo preço de 86.270,00 €, a fracção autónoma tipo T 3, no designado LOTE D. 1º andar, Entrada D1, Fracção D112; a fracção autónoma correspondente a um lugar de estacionamento na cave, designada pelo número GD 112, e a fracção autónoma correspondente a um arrumo no cave, designado pelo número AD112, sitas no empreendimento designado por ..., sito na ..., Freguesia de ..., Concelho de Aveiro, inscrito na matriz predial sob o artigo x...e descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob o n.º y.../170985, tudo conforme documento n.º 1 da petição inicial, cujo teor se dá aqui por reproduzido;

2. – Os autores entregaram nessa data à Ré, a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros);

3. – Os autores dirigiram à ré as cartas registadas com aviso de recepção datadas de 20.09.2010, 14.10.2010 e 09.11.2010, juntas por cópia como documentos n.ºs 2 e 3 da petição inicial e documento n.º 6 da contestação, cujo teor se dá aqui por reproduzido, que foram recebidas;

4. – A ré remeteu aos autores a carta registada com aviso de recepção datada de 03.11.2010, junta por cópia como documento n.º 2 da contestação, cujo teor se dá aqui por reproduzido, que foi recebida;

5. – Na data designada para realização da escritura pública (30.11.2010), compareceram no Cartório Notarial de Aveiro, a cargo da Dra. W..., D... , em representação da ré, e os aqui autores, não tendo sido celebrada a escritura em virtude de estes terem declarado “terem já resolvido o respectivo contrato de promessa”.


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            b) – De direito

            Como é sabido e resulta dos art.ºs 684.º, n.º 3 e 685.º-A, n.º 1, do CPC, na redacção aplicável decorrente do DL n.º 303/07, de 24.8, são as conclusões que delimitam o âmbito do recurso, não podendo conhecer-se de questões nelas não equacionadas, salvo se forem de conhecimento oficioso.

            Por uma questão metodológica comecemos por apreciar se o saneador/sentença recorrido padece de insuficiência de matéria de facto ou se o tribunal a quo deveria ter lançado mão do disposto no art.º 508.º, n.º 3, do CPC com vista à correcção de insuficiência ou concretização da matéria de facto respeitante à perda do interesse dos recorrentes na conclusão do contrato-promessa de compra e venda da fracção predial a que respeitam os autos.

            Quanto à 1.ª questão, importa sublinhar que, de acordo com o disposto nos art.ºs 410.º, n.º 2 e 875.º, do CC, o contrato-promessa de compra e venda de fracção predial subscrito por ambas as partes está obrigatoriamente sujeito à forma escrita (documento particular) e daí que, por força do art.º 364.º, n.º 1, do CC, o documento não possa ser substituído por outro meio de prova que não seja de força probatória superior.

            E, porque nem a sua materialidade, nem a sua veracidade foram postos em causa, é merecedor da força probatória que o art.º 376.º do CC lhe confere.

            Por outro lado, se bem que o art.º 436.º, n.º 1, do CC não exija forma especial para a declaração de resolução do contrato, toda a petição inicial dos recorrentes foi gizada no teor do contrato-promessa junto e nas cartas de 20.9.10 e 14.10.10, igualmente juntas, em que alegadamente foram, respectivamente, efectuadas a interpelação admonitória da recorrida e comunicada a resolução do contrato.

            Foi com essa prova documental que o tribunal a quo se bastou para, sem necessidade de mais provas, conhecer imediatamente do mérito da causa, como lho facultava a alín. b) do n.º 1 do art.º 510.º do CPC, interpretando as pertinentes cláusulas contratuais, de acordo, aliás, com o comando do art.º 236.º do CC, bem como a materialidade dos demais documentos.

            E fez bem.

            Daí não ter qualquer sentido o disposto nas conclusões recursivas reunidas nas antecedentes alíns. f) a j) que, s.d.r., não passa de lamentação inconsequente, sem expressão na petição inicial e com afloramento na réplica, mas cuja causa de pedir ou pedido não foram aí alterados, ampliados ou modificados (art.º 273.º, n.ºs 1, 2 e 6, do CPC), sendo que, para além disso, o teor das conclusões da alín. j) configura matéria nova, antes não alegada e, por isso, impertinente para o tribunal de recurso.

            Ainda nesta sede, de questionada ampliação da matéria de facto e no que tange à conclusão recursiva da alín. l) e sem prejuízo do que à frente se dirá, a alegação de que os recorrentes destinavam a fracção predial objecto do contrato-promessa a casa de morada de família e que face ao incumprimento do negócio (mora) perderam interesse em habitá-la, tal não releva.

            A admitir-se a mora da Ré recorrida, não bastava aos recorrentes dizer que a prestação (habitação) já não lhe interessava.

            De acordo com o disposto no n.º 2 do art.º 808.º do CC a perda do interesse na prestação é apreciada objectivamente.

            Conforme o entendimento doutrinal e jurisprudencial corrente, a perda do interesse não pode basear-se numa simples mudança de vontade ou arbítrio do credor, desacompanhado de qualquer circunstância além da mora, como seja o facto de, por causa da mora, o negócio não ser já do seu agrado. Deve, por outro lado, ser valorada de acordo com o critério do comum das pessoas.[1]

            Daqui se conclui pela irrelevância do teor daquela matéria.

            Quanto à 2.ª questão, da falta de despacho convite sobre matéria que melhor pudesse integrar a perda de interesse na prestação, igualmente não podem os recorrentes obter ganho de causa.

            Antes de mais, o despacho em causa (n.º 3 do art.º 508.º do CPC), trata-se de mera faculdade do juiz, não impugnável, um despacho de aperfeiçoamento não vinculado, cuja omissão não tem quaisquer consequências processuais.

            Por outro lado, no contexto global da petição inicial, em que nenhuma circunstância objectiva foi alegada de onde pudesse concluir-se a perda de interesse, não tinha sentido que o juiz a quo convidasse ao aperfeiçoamento de insuficiência ou imprecisão na exposição de matéria de facto!

            A tanto se opunha o princípio da auto-responsabilidade dos AA., corolário do princípio dispositivo (art.º 264.º n.º 1 do CPC).

            Improcede, assim, estoutra conclusão.

            Quanto ao incumprimento definitivo e consequente resolução do contrato-promessa por via da interpelação admonitória e perda de interesse na prestação a sentença recorrida fez uma larga e correcta explanação, que subscrevemos, mas, em rigor, a posição que os recorrentes sustentam não é tanto a natureza indicativa ou previsível ou não absoluta do prazo para realização do contrato definitivo (“a celebração da escritura pública de compra e venda terá lugar logo após o empreendimento estar completamente acabado e as fracções dotadas das respectivas licenças de utilização, o que se prevê acontecer no prazo de 24 meses após a data da celebração do presente contrato”) e a necessidade de fixação de um prazo admonitório cuja não observância pudesse levar ao incumprimento definitivo e resolução do contrato, antes fazem derivar do próprio contrato esse incumprimento definitivo.

            Dispõe a cláusula 7.3 do contrato-promessa que “por incumprimento definitivo considera-se, para todos os efeitos, a conduta de outorgante violadora das disposições do presente contrato que não seja sanada no prazo de 15 dias após notificação para o efeito pela contraparte”.

            Diz-se, assim, que a carta de 20.9.10 não visou uma interpelação, antes uma notificação para a Ré “sanar” a falta de marcação da escritura definitiva.

            Trata-se de uma cláusula resolutiva expressa (resolução convencional admitida pelo n.º 1 do art.º 432.º do CC).

            Mister é saber se se trata de uma “verdadeira” ou “falsa” cláusula resolutiva.

            Parafraseando Gravato Morais[2]cumpre, no entanto, realçar que é muito frequente – o que tem sido relevado devidamente pela doutrina – a cláusula que determina que “se considera resolvido o contrato no caso de incumprimento de qualquer das obrigações dele emergentes”.

            Tal convenção, qualificada como sendo “de estilo” ou até “inútil”, não representa qualquer modificação ao regime legal do incumprimento. A sua falta de precisão, o facto de ser genérica e indeterminada, torna-a uma cláusula não distintiva para produzir o efeito pretendido”.

            Aderindo a este entendimento, os recorrentes não estavam dispensados do cumprimento dos requisitos da resolução legal, v. g. da interpelação admonitória relevante e que no caso não ocorreu, também quanto à carta de 14.10.10, que equivocamente comunicou à Ré a “intenção de resolução do contrato-promessa”, que não a própria resolução do contrato enquanto declaração receptícia, resolução que, afinal, os recorrentes peticionaram na presente acção, ou da alegação de circunstâncias objectivas e concretas comummente atendíveis e reveladoras da perda de interesse, o que não ocorreu, como vimos acima, como nesse sentido e sem crítica concluiu a decisão recorrida.

Merece, assim, confirmação a conclusão da sentença recorrida em como a mora da recorrida não se transformou em incumprimento definitivo, pelo que, porque aos recorrentes foi imputável a não celebração do contrato prometido, haveria, como foi, que ter absolvido do pedido a recorrida e, na procedência da reconvenção, condená-los na perda do sinal prestado.

Deste modo, improcedem todas as conclusões recursivas.


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            3. Sumariando (n.º 7 do art.º 713.º do CPC)

            I – A perda do interesse na prestação não pode basear-se numa simples mudança de vontade de o promitente-comprador já não querer habitar a fracção predial objecto do contrato-promessa;

            II – Não produz efeitos como cláusula resolutiva expressa ou convencional, por indeterminabilidade, aquela em que se dispos que “por incumprimento definitivo considera-se, para todos os efeitos, a conduta de outorgante violadora das disposições do presente contrato que não seja sanada no prazo de 15 dias após notificação para o efeito pela contraparte”;

            III – Os interessados não estavam assim dispensados do cumprimento dos requisitos da resolução legal – interpelação admonitória e prova da perda do interesse na prestação.


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            4. Decisão

            Face ao exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.

            Custas pelos recorrentes.


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Francisco M. Caetano (Relator)

António Magalhães

Ferreira Lopes


[1] V. A. Varela, RLJ, 118.º-55, nota 1 e Gravato Morais, “Contrato-Promessa Em Geral e Contrato-Promessa Em Especial”, 2009, 160 e Ac. STJ de 14.4.11, Proc. 4074/05.0TBVFR.P1.S1, in www.dgsi.pt.
[2] Ob. cit. pág. 166.