Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
44/15.8YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: ESCUSA DE JUIZ
INTERVENÇÃO DO JUIZ NOUTRO PROCESSO
Data do Acordão: 03/25/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU LAMEGO INSTÂNCIA LOCAL DE LAMEGO – SECÇÃO CRIMINAL – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: PEDIDO DE ESCUSA DE JUIZ
Decisão: RECUSADA A ESCUSA
Legislação Nacional: ART. 43.º DO CPP
Sumário: A intervenção de um juiz num processo criminal que deu origem a outro da mesma natureza, por força de extracção de certidão nos termos do disposto no artigo 359.º, n.º 2, do CPP, não constitui, só por si, fundamento de escusa.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

A – Relatório:

A Exma. Senhora Dr.ª A...., Juiz de Direito a exercer funções no Tribunal da Comarca de Viseu, Lamego – Instância Local – Secção Criminal – J1, veio, em 5/1/2015, ao abrigo do disposto nos artigos 43º a 47.º, do Código de Processo Penal, requerer que lhe seja concedida escusa de intervenção nos autos de processo comum (tribunal singular) nº 354/13.9TALMG, invocando os seguintes fundamentos:

Os presentes autos tiveram o seu início com a extracção de certidão do processo 163/11.0PBLMG do então 2º Juízo de Lamego, certidão esta cuja extracção foi por nós ordenada no final da audiência de julgamento naqueles autos, e, por, após produção de prova, se ter entendido que os factos aí constantes da acusação poderiam consubstanciar a prática não do crime aí imputado ao arguido, de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo artigo 151º, do Código Penal, mas o crime de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 147.º, do Código Penal.

Em tal processo foi igualmente proferida sentença na qual nos pronunciámos sobre os factos da então acusação e que, com excepção do elemento subjectivo de ambos os ilícitos, são em tudo semelhantes.

Assim, verifica-se que já no processo n.º 163/11.0PBLMG formámos a nossa convicção e nos pronunciámos sobre a situação de facto, objecto destes dois processos.

Entendemos que, uma vez que já nos pronunciámos em momento anterior sobre este acontecimento da vida, sobre os factos, se encontram reunidas as circunstâncias para que a nossa imparcialidade neste novo julgamento seja colocada em causa e considerada suspeita.

Assim, porque se nos afigura que a factualidade supra alegada configura os motivos constantes do n.º 4 do artigo 43.º, do CPP, requer-se a V. Exa. Que defira o presente pedido de escusa e consequentemente que seja dispensada de intervir, na qualidade de juiz, no processo n.º 354/13.9TALMG.”

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O pedido de escusa mostra-se suficientemente instruído, pelo que não se revela necessária a produção de outras provas.

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                B – Fundamentação:

Foram colhidos os vistos legais.

Cumpre decidir.

Os factos relevantes para a decisão do presente incidente são os que ficaram referidos no relatório que antecede.

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O requerimento apresentado pela Meritíssima Juiz cumpre os requisitos formais de admissibilidade.

De facto, dispõe o artigo 43.º, n.º1, do Código de Processo Penal, que a intervenção de um Juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

Embora o Juiz não possa declarar-se voluntariamente suspeito, pode porém, pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem aquelas condições (n.º 4 do preceito).

O pedido de escusa é admissível até ao início da audiência, situação em que o processo se encontra – artigo 44.º, do Código de Processo Penal.

Não se verifica nos autos qualquer situação a enquadrar nos artigos 39.º e 40.º, do Código de Processo Penal, que obrigaria a uma declaração de impedimento.

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Os factos invocados pela Meritíssima Juiz, constitutivos dos fundamentos do pedido de escusa, assentam em ter ordenado a extracção de certidão do processo 163/11.0PBLMG, do então 2º Juízo de Lamego, por, após produção de prova, ter entendido que os factos aí constantes da acusação poderiam consubstanciar a prática não do crime aí imputado ao arguido, de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo artigo 151º, do Código Penal, mas o crime de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 147.º, do Código Penal, sendo certo que, em tal processo veio a proferir sentença na qual se pronunciou sobre os factos da respectiva acusação, pelo que, em seu entender, formou já a sua convicção, ficando, por isso, que a sua imparcialidade no novo julgamento colocada em causa.

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Está em causa a noção de imparcialidade do Tribunal.

Relembre-se, pois tal é essencial para compreender a solução a dar ao problema, que, já na Antiguidade, uma das quatro características de um juiz consistia em decidir com imparcialidade, paralelamente a ouvir com atenção, responder com sabedoria e pensar com prudência.

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Inexistindo normativo no ordenamento jurídico português que explicitamente defina tal conceito, dispõe o artigo 6.º, n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (Direito a um processo equitativo) [1] - a vigorar na ordem jurídica interna portuguesa com valor infra constitucional - que “qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, …”.

Este normativo estabelece garantias dos quais ressalta a “imparcialidade”, enquanto elemento “constitutivo e essencial” da noção de Tribunal.

O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem vindo a desenvolver jurisprudência concretizadora do conceito de “tribunal imparcial” que se impõe recordar:

“XII. A imparcialidade do tribunal deve ser apreciada segundo uma dupla ordem de considerações; de uma perspectiva subjectiva, relativamente à convicção e ao pensamento do juiz numa dada situação concreta, não podendo o tribunal manifestar subjectivamente qualquer preconceito ou prejuízo pessoais, sendo que a imparcialidade pessoal do juiz se deve presumir até prova em contrário.

XIII. A perspectiva objectiva da imparcialidade exige que seja assegurado que o tribunal ofereça garantias suficientes para excluir, a este respeito, qualquer dúvida legítima.”

(Acórdão Lavents v. Letónia de 28-11-2002)

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Também o Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 124/90 (v. igualmente os acórdãos nº 935/96 e 186/98), vem a reconhecer aquelas vertentes do conceito “imparcialidade”, de Tribunal imparcial, na consagração constitucional do princípio do acusatório (artigo 32.º, n.º 5 da CRP) e do princípio do processo justo e equitativo (“a due process of law”) na consagração das garantias de defesa (artigo 32.º, n.º 1, da CRP):
«Ao consagrar o n.º 5 do artigo 32.º da Constituição uma tal garantia - a garantia do processo criminal de tipo acusatório - o que, pois, a Lei Fundamental pretende assegurar é ……….um julgamento independente e imparcial».
………………..
“Num Estado de direito, a solução jurídica dos conflitos há-de, com efeito, fazer-se sempre com observância de regras de independência e de imparcialidade, pois tal é uma exigência do direito de acesso aos tribunais, que a Constituição consagra no artigo 20º, nº 1 ………..”
“um julgamento independente e imparcial é, de resto, também uma dimensão - e dimensão importante - do princípio das garantias de defesa, consagrado no artigo 32º, nº 1, da Constituição, para o processo criminal, pois este tem que ser sempre a due process of law”.”
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São, pois, estes os parâmetros normativos que regem a noção de “imparcialidade” no ordenamento constitucional português.
A que devemos adicionar a própria previsão de necessidade de “independência” dos Juízes – artigo 203.º, da CRP – e que resulta como consequência pensada na estatuição de um regime de garantias e incompatibilidades – artigo 216.º, da CRP.
E acrescenta aquele Tribunal, no Acórdão nº 135/88 (Diário da República, II série, de 8 de Setembro de 1988):                                                
Assim, necessário é, inter alia, que o desempenho do cargo de juiz seja rodeado de cautelas legais destinadas a garantir a sua imparcialidade e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição.
É que, quando a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nessa imparcialidade é justificadamente posta em causa, o juiz não está em condições de "administrar justiça". Nesse caso, não deve poder intervir no processo, antes deve ser pela lei impedido de funcionar - deve, numa palavra, poder ser declarado iudex inhabilis.

Importa, pois, que o juiz que julga o faça com independência. E importa, bem assim, que o seu julgamento surja aos olhos do público como um julgamento objectivo e imparcial.

Ou seja, o Tribunal Constitucional vem igualmente a consagrar as ditas vertentes objectiva e subjectiva do conceito de “imparcialidade”.

Essa imparcialidade poderia suscitar-se por intervenção nesse ou noutro processo ou por especial relação com os nele intervenientes, “que faça legitimamente suspeitar da sua imparcialidade”.


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Impõe-se, portanto, apurar se há algo nos factos alegados pela Meritíssima Juiz que impeça que o julgamento a realizar surja aos olhos do público como um julgamento objectivo e imparcial ou, de outra forma, se há uma especial relação estabelecida com os intervenientes no processo “que faça legitimamente suspeitar da sua imparcialidade”.

Na perspectiva subjectiva importa fazer apelo a um critério essencialmente social, a um ponto de vista comunitário, ao “homem médio” (“a reasonable person” do Supremo Tribunal canadiano), desapaixonado e plenamente consciente das circunstâncias do caso concreto.

O que importa é determinar se um cidadão médio, representativo da comunidade, pode, fundadamente, suspeitar que o juiz, influenciado pelo facto invocado, deixe de ser imparcial e, injustamente o prejudique”, no dizer do Tribunal Constitucional.

Além disso, para a procedência da escusa, não servem quaisquer razões, mesmo que penosas para o Juiz.

Aquela há-de assentar em razões fortes, a abalar aquela credibilidade de um ponto de vista da comunidade, “motivos, sérios e graves, adequados a gerar desconfiança sobre a imparcialidade dos juízes”. [2]

Ou, no dizer do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 5 de Abril de 2000 (in C.J. – Supremo Tribunal de Justiça – II, 244), “só deve ser deferida escusa ou recusado o juiz natural quando se verifiquem circunstâncias muito rígidas e bem definidas, tidas por sérias, graves e irrefutavelmente denunciadoras de que ele deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção”.

Daí que, também nas causas de escusa, se deve recorrer a uma exegese restritiva, como o fez o legislador na previsão de fundamentos para o impedimento.                                                             Naturalmente que não se deve atender ao convencimento da Meritíssima Juiz quanto, no caso, à sua capacidade para “vir a ser imparcial”.           

Deve, ao invés, fazer-se apelo aos factos e circunstâncias objectivas invocadas. E estas, fazendo apelo ao homem médio inserido na comunidade em que a Meritíssima Juiz exerce a sua função não são suficientes para a procedência da escusa.

Na verdade, a intervenção futura da Meritíssima Juiz está, processualmente, rodeada de cautelas, o exercício da sua função não assenta no arbítrio e é sindicável.

Salvo o devido respeito, o facto de um juiz ter tido intervenção num processo que deu origem a outro processo-crime cujo julgamento lhe cabe fazer, não constitui só por si fundamento de escusa.

A decisão de extrair de uma certidão para os efeitos previstos no artigo 359.º, do CPP, faz parte das normais funções de um Magistrado Judicial.

A audiência que vier a ter lugar na sequência de tal despacho terá que obedecer, como é evidente, aos princípios previstos na lei que garantam o seu normal funcionamento, designadamente quanto à prova que, então, for produzida.

Acresce que é natural e vulgar que um juiz tenha jurisdição em mais do que um processo em que haja envolvimento das mesmas pessoas.

                Não se vislumbra, pois, que a imparcialidade da Meritíssima Juiz possa estar em causa, pelo que não ocorre, no caso concreto, legítimo fundamento para a escusa requerida nos termos do artigo 43.º, do CPP.

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C – Dispositivo:

Nestes termos, decidem os juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em indeferir o pedido de escusa requerido pela Exma. Senhora Dr.ª A... , Juiz de Direito a exercer funções no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, Lamego – Instância Local – Secção Criminal – J1, no processo comum (tribunal singular) com o nº 354/13.9TALMG.

Sem custas.

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(elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).

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Coimbra, 25 de Março de 2015

(José Eduardo Martins - relator)

(Maria José Nogueira - adjunta)

   

[1]Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais”, de 4 de Novembro de 1950 (Roma), com entrada em vigor na ordem jurídica portuguesa a 9 de Novembro de 1978 - aprovada para ratificação pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro, publicada no Diário da República, I Série, n.º 236/78. Não houve reservas do Estado português relativamente ao citado artigo.
[2] - Prof. G. Marques da Silva, in Processo Penal, vol. I, p. 203, citando Costa Pimenta.