Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
43/18.8T8TBU.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO DE PRIVAÇÃO DO USO DE VEÍCULO
REPARAÇÃO
Data do Acordão: 05/08/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE TÁBUA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 483º, 566º, Nº 2, E 1305º DO C. CIVIL
Sumário: I- Da imobilização de um veículo em consequência de acidente de viação pode resultar: a) um dano emergente - a utilização mais onerosa de um transporte alternativo como o seria o aluguer de outro veículo; b) um lucro cessante - a perda de rendimento que o veículo dava com o seu destino a uma atividade lucrativa; c) um dano advindo da mera privação do uso do veículo que impossibilita o seu proprietário de dele livremente dispor, gozar e fruir, nos termos que se encontram plasmados no artº. 1305º do CC.

II- Ocorrendo a última situação referida em c), a privação do uso de veículo constitui em si mesmo um dano autónomo, de expressão patrimonial, que deverá ser ressarcido, bastando para tal tão só que o seu proprietário afetado demonstre a utilização que dele vinha fazendo à data do acidente (independentemente do seu fim, que tanto pode ser de trabalho, de lazer, ou outro qualquer) e que por força dessa privação, causada pelos danos nele provocados, deixou de o poder fazer, isto é, de dele livremente poder dispor, gozar e fruir por certo período de tempo.

III- Em tais situações, o valor desse dano, como equivalente económico (compensatório), deve ser determinado/estimado com o recurso à equidade, num julgamento ex aequo et bono, com uma ponderação das circunstâncias concretas que o motivaram e das realidades da vida.

Decisão Texto Integral:





Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório

1. No Juízo de Competência Genérica de Tábua do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, o autor, J..., instaurou (em 16/03/2018) contra a ré, A...- COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., ambos melhor identificados nos autos, a presente ação declarativa, com forma de processo comum.

Para o efeito, alegou, em síntese, o seguinte:

No dia 19/03/2017, por volta das 11h45m, na Estrada ..., ocorreu um embate entre o veículo automóvel ligeiro de passageiros por si conduzido, e de que é proprietário, de matrícula ...-BG, e o ciclomotor de matrícula ...-DL, conduzido pelo seu proprietário, A..., que tinha então transferida para a ré seguradora a responsabilidade civil por danos causados a terceiros pelo mesmo.

Acidente esse que ficou exclusivamente a dever-se à conduta culposa do condutor daquele ciclomotor.

Desse embate resultaram para si danos, de natureza patrimonial e não patrimonial, que valorou na quantia total de €10.467,54 (correspondendo €2.500,00 aos danos não patrimoniais e o restante daquela quantia aos danos patrimoniais - €967,54, pelo custo da reparação do veículo que teve de efetuar devido à recusa da ré em proceder à mesma – e €7.000,00 pelo dano referente à privação do uso desse seu veículo enquanto a sua reparação não ocorreu).

Pelo que terminou pedindo a condenação da R. a pagar-lhe, em termos indemnizatórios, aquela quantia de €10.467,54, acrescida de juros moratórios legais, vencidos desde a sua citação e até ao seu integral pagamento.

2. Na sua contestação a ré defendeu-se por impugnação, terminando pedindo que a ação fosse julgada de acordo com a prova que viesse a ser produzida.

3. Dispensada a realização da audiência prévia, foi proferido despacho saneador, onde se afirmou a validade e regularidade da instância.

4. Mais tarde realizou-se a audiência de discussão e julgamento (com a gravação da mesma).

5. Seguiu-se a prolação (em 30/10/2018) da sentença, que, no final, julgando parcialmente procedente a ação, decidiu nos seguintes termos:

«I. Condenar a Ré a pagar ao Autor indemnização a liquidar posteriormente, com o limite máximo do peticionado, no valor de €967,54 correspondente à quantia despendida na reparação de veículo automóvel;

II. Condenar a Ré no pagamento ao Autor da quantia €5.600,00 (cinco mil e seiscentos euros), a título de dano da privação do veículo, pelo período correspondente a 19 de Março de 2017 a 24 de Dezembro de 2017, a que acrescem juros de mora à taxa legal de 4%, desde a data da prolação da presente sentença até integral pagamento;

III. Absolver a Ré do demais pedido;

IV. Condenar Autor e Ré nas custas da acção, na proporção do respectivo decaimento, a calcular aritmeticamente ».

6. Inconformada com tal sentença, dela apelou a ré, tendo concluído as respetivas alegações de recurso nos seguintes termos:

...

7. O autor não contra-alegou.

8. Corridos que foram os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.


II- Fundamentação

1. Do objeto do recurso

É sabido que é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se fixa e delimita o objeto dos recursos, não podendo o tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (artºs. 635º, nº. 4, 639º, nº. 1, e 608º, nº. 2, do CPC).

Ora, calcorreando as conclusões das alegações do recurso, verifica-se que as questões que se nos impõe aqui apreciar e decidir são as seguintes:

a) Da impugnação/alteração da decisão da matéria de facto;

b) Da responsabilidade na produção do acidente;

c) Da indemnização pelo dano referente à reparação do veículo automóvel do A.;

d) Da indemnização pelo dano sofrido pelo A. referente à privação do uso do seu veículo automóvel.

2. Pelo tribunal da 1ª. instância foram dados como provados os seguintes factos:

...

3.1.2 Como se escreveu no acórdão desta Secção e Relação de 18/02/2018 (in “Apelação nº. 13997/17.2YIPRT.C1, relatado pelo desembargador Jorge Arcanjo e no qual o ora relator e o 2º. adjunto intervierem, respetivamente como 1º. e 2º. adjuntos), muito embora a revisão do Código de Processo Civil, operada pelo DL nº. 329-A/95 de 12/2, haja instituído de forma mais efetiva a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto, o poder de cognição do Tribunal da Relação sobre a matéria de facto não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento de facto.

Para além da possibilidade de conhecimento estar confinada aos pontos de facto que o recorrente considere incorretamente julgados, com os pressupostos adrede estatuídos no artº. 640º CPC, a verdade é que o controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciarão da prova do julgador, fundada também na base da imediação e da oralidade, pois na formação da convicção do julgador não intervém apenas elementos racionalmente demonstráveis, mas também factores não materializados. Contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objetivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo. O que se torna necessário é que no seu livre exercício da convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção do facto como provado ou não provado, possibilitando, assim, um controle sobre a racionalidade da própria decisão.

Neste contexto, o controle da Relação sobre a convicção alcançada pelo tribunal da 1ª. instância, embora exija uma avaliação da prova (e não apenas uma mera sindicância do raciocínio lógico) deve, no entanto, restringir se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, sendo certo que a prova testemunhal ou por depoimento de parte é, notoriamente, mais falível do que qualquer outra, e na avaliação da respetiva credibilidade tem de reconhecer-se que o tribunal a quo, pelas razões já enunciadas, está em melhor posição, para a perceção da realidade factual em discussão.

Por outro lado, a prova deve ser valorada no seu conjunto, reclamando uma ponderação global, segundo o standard da “probabilidade lógica prevalecente”, em que havendo versões contraditórias sobre determinado facto, o julgador deve escolher das diferentes probabilidades a que, perante o conjunto dos elementos probatórios, se evidencie como a mais provável (cfr. Michele Taruffo, in “La Prueba de Los Hechos, 2002, pág. 292 e segs.”).

É tendo, pois, presentes tais princípios que será apreciada impugnação de facto deduzida.

Importa começar por salientar que, no que concerne aos factos sob impugnação, não estamos perante nenhuma situação de prova vinculada.

Importa igualmente referir que nos casos em que é impugnada a decisão da matéria de matéria de facto, e tal como vem sendo defendido dominantemente pelos nossos tribunais superiores e particularmente pelo nosso mais alto tribunal, não se impõe ao Tribunal da Relação que dilucide, ponto por ponto, ou seja individualmente cada um dos factos que os mesmos comportam, podendo fazê-lo de forma global.

...

Assim, por tudo o que se deixou exposto, e na formulação de um juízo global sobre a prova produzida nos autos (de natureza documental e testemunhal, que atrás se referenciou e assentando sobretudo esta no depoimento prestado pela testemunha ...), conjugada ainda com as regras da experiência da vida, somos levados a concluir - e à luz do princípio da livre apreciação das provas inserto no artº. 607º, nº. 5, do CPC - que a decisão proferida pelo tribunal a quo sobre os factos impugnados insertos nos pontos 1. 4. e 5. dos factos provados é aquela que se mostra mais consentânea com essa prova e a realidade ocorrida, e daí que se decida manter os mesmos, improcedendo, desse modo, a impugnação que sobre eles foi deduzida pela apelante.

...

Em suma, improcede, in totum, a impugnação que a apelante deduziu contra a decisão da matéria de facto proferida pelo tribunal a quo, mantendo-se intangível a matéria de facto fixada pelo tribunal a quo

4. Quanto à 2ª. questão.

- Da responsabilidade na produção do acidente.

Na sentença recorrida, o tribunal a quo decidiu, à luz dos factos que deu como provados, atribuir ao condutor do motociclo segurado na R./apelante a culpa exclusiva na produção do acidente.

No seu recurso defende a ré/apelante não ter ficado provado a culpa de qualquer um dos condutores na produção do acidente, devendo, assim, o caso ser decidido com base na responsabilidade pelo risco (artº. 506º, nº. 1, do CC), valorando, depois, a medida dessa responsabilidade na proporção de 60% para o veiculo automóvel conduzido pelo A. (com base no seu manifesto maior peso, volume e dimensão em relação do motociclo), e de 40% para o veículo motorizado.

Porém, e como decorre das suas alegações/conclusões de recurso, esse seu entendimento/defesa assentou no pressuposto da alteração da matéria de facto referente aos pontos 1. 4. e 5. nos termos por si propugnados, e que acima se deixou referidos.

Ora, como vimos, essa alteração não ocorreu, mantendo-se na íntegra a redação daqueles pontos dos factos provados fixada pelo tribunal a quo.

Sendo assim, à luz dos factos apurados (referentes à dinâmica do acidente) – cfr. pontos 1. a 6. -, é patente, como se concluiu na 1ª. instância, que a produção do acidente só ao exclusivo comportamento culposo do condutor do ciclomotor pode ser atribuído.

Desse modo - e dada a assertiva fundamentação desenvolvida, na sentença recorrida, pelo tribunal a quo - limitar-nos-emos, a esse propósito, a tecer umas breves e considerações técnico-jurídicas.

A pretensão do A. formulada nestes autos assentou na responsabilidade subjetiva do condutor do veículo motorizado, segurado na ré, na produção do acidente.

Essa responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, encontra-se prevista no artº. 483º do Código Civil - e a cujo diploma pertencerão os normativos doravante indicados, sem que se mencione a sua origem.

Como é sabido, são vários os pressupostos legais, estatuídos em tal normativo legal, que impõem a obrigação de indemnizar com base em tal responsabilidade, e que, no essencial, se traduzem na existência de um facto ilícito ligado ao lesante por um nexo de imputação subjectiva (a culpa) e a existência de danos causados adequadamente por esse facto ao lesado. (Vide, por todos, e para maior desenvolvimento, entre outros, os profs. Pires de Lima e A. Varela, in “Código Civil Anotado, vol. I, 3ª ed., pág. 444 ss).

Na questão aqui em análise, são sobretudo aqueles dois primeiros requisitos que estão em causa.

Como é sabido, o facto traduz-se num comportamento humano voluntário, isto é, facto controlável ou dominável pela vontade do agente, condicionante do próprio acidente, como seja o ato de conduzir.

Por sua vez, a ilicitude revela-se na lesão de um direito de outrem ou violação da lei que protege interesses alheios, ou seja, numa negação dos valores tutelados pela ordem jurídica, tendo em conta uma apreciação objetiva.
Por fim, nexo de imputação subjetiva (culpa) refere-se à ligação psicológica do agente com a produção do acidente e ao grau de censurabilidade que a sua conduta merece. A conduta do lesante será reprovável quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo.
A culpa, como facto constitutivo do seu direito, - como sucede, aliás, com os restantes pressupostos da obrigação de indemnizar - incumbe ao lesado provar, a não ser que beneficie, a esse respeito, da existência alguma presunção na lei (cfr. artºs. 342º, nº. 1, e 487º, nº. 1, e 350, nº. 1).

Em matéria de responsabilidade civil extracontratual consagrou-se um critério de apreciação da culpa em abstrato, pois releva a diligência de um bom pai de família e não a diligência normal do causador do dano, ainda que tal apreciação se faça em face das circunstâncias de cada caso, ou seja, releva a diligência que o homem normal teria perante o condicionalismo concreto - artº. 487º, nº 2. (Vide os profs. Pires de Lima e A. Varela, in “0b. cit., vol. I, 4ª ed., pág. 488”).

Por vezes, o próprio lesado não põe em prática, em relação aos seus próprios bens (como seja a integridade física ou a vida), as cautelas que se exigem em relação aos direitos de terceiros. Neste caso a conduta do lesado, porque entra em concurso com conduta do lesante, merece um juízo de censura semelhante ao da conduta deste, a aferir por igual padrão (artº. 487º, nº. 2), que a lei coloca na veste de culpa (artº. 570º).

Refira-se que em matéria de acidentes de viação a culpa não se confunde com uma mera violação de uma norma destinada a proteger interesses alheios e, como tal, a infração de uma regra legal de trânsito não implica automaticamente, sem mais, a existência de culpa do agente, pois a ilicitude e a culpa não se confundem (cfr., entre outros, Ac. S.T.J. de 15/1/80, in “B.M.J. nº. 293, pág. 285” e Ac. RLx. de 26/1/95, in “C.J., Ano XX, T1, pág. 101”).
Assim, haverá que apreciar em concreto a conduta do agente, embora essa infração às regras estradais possa constituir um índice semiótico da existência de um comportamento culposo do lesante, mas por via da factualidade que integra essa infração e não pela mera circunstância de ser uma infração estradal. Isto é, uma infração aos preceitos estradais não é só por si sinónimo de culpa, mas porque cometida no âmbito da condução automóvel, ato voluntário humano, inculca a imprudência do agente. Desse modo, vem sustentando a jurisprudência que, sob pena de se onerar o lesado insuportavelmente com a demonstração do nexo de imputação ético-jurídico do facto ilícito à vontade do condutor, por infração de norma regulamentar que protege interesses alheios, não se torna necessária a prova da concreta previsibilidade do evento, sempre que este se situe no círculo de interesses privados que a norma pretendeu acautelar, doutrinando-se existir uma presunção judicial de negligência.

Por fim, importa ainda dizer que a não existência de qualquer presunção de culpa não se confunde com a possibilidade, não afastada, de o tribunal recorrer a presunções naturais para vencer algumas dificuldades especiais de prova, a chamada «prova de primeira aparência» (cfr. artº. 349º do CC) - considerando que para provar a culpa no domínio da responsabilidade por factos ilícitos basta que o prejudicado possa estabelecer factos que, segundo os princípios da experiência geral, tornem verosímil a culpa (vide, entre outros, Ac. da RC de 15/3/83, in “C.J., Ano VIII, T2, pág. 15”).

Posto isto, e na linha da conclusão que logo acima deixamos assinalada, na conjugação dos factos apurados descritos sob os pontos 1. a 6., é inolvidável que o acidente em causa só ao comportamento culposo do condutor do motociclo pode ser atribuído, pois que, sem que nada o justificasse (dos factos apurados não resulta qualquer circunstância que leve tal a considera-se), e em violação do dever estradal consagrado no artº. 13º, nº. 1, do CE, invadiu a hemi-faixa de rodagem em que o autor (em observância àquele mesmo comando) então circulava – atento o sentido de marcha deste, contrário ao daquele -, nele vindo a embater.

Estão, pois, preenchidos aqueles dois primeiros requisitos que estabelecem a obrigação de a ré indemnizar o autor. pelos danos que tenha adequadamente sofrido por virtude do dito acidente (por força do contrato de seguro que celebrou com o proprietário/condutor do ciclomotor, em que assumiu a responsabilidade civil por danos causados a terceiros por esse veículo).

5. Quanto à 3ª. questão.

5.1 Da indemnização pelo dano referente à reparação do veículo automóvel do A..

5.1.1 Fixada a responsabilidade na produção do acidente, importa, agora, debruçarmo-nos sobre a indemnização dos danos que advieram para o autor, como consequência (direta ou indireta) do aludido acidente, e que aqui estão concretamente estão em causa.

Todavia, de o antes fazermos, importa tecer umas breves considerações preliminares sobre a obrigação (geral) de indemnizar, e tendo sempre presente o caso em apreço (de responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos).

Nos termos do artº. 562º, o objetivo da indemnização consiste em colocar o lesado na situação em que se encontraria se não fora o acontecimento produtor do dano, desde que este seja resultante desse evento em termos de causalidade adequada.

Tal resultado deve ser procurado, em primeiro lugar, pela reposição da situação tal como estava antes da produção do dano - princípio da restauração natural.

Todavia, não raras vezes essa reposição apresenta-se muito difícil ou mesmo impossível (como acontece no caso dos danos não patrimoniais - que aqui, diga-se, não estão em causa, já que a sentença recorrida absolveu a ré da do pedido de indemnização dos mesmos que o A. contra si havia também formulado), tendo lugar, então, a indemnização em dinheiro (cfr. artº. 566º, nº. 1).

Ou seja, como decorre dos normativos legais acabados de citar, vigora entre nós o princípio da restauração ou reposição natural, traduzido na imposição para o lesante da obrigação de reconstituir a situação anterior à lesão, isto é, no dever de reposição das coisas no estado em que estariam se não se tivesse produzido o dano. Ou melhor ainda, tal reparação do lesado deve, em princípio, ser feita através da restauração ou reposição natural, só devendo a mesma ser feita em dinheiro sempre que tal reconstituição (natural) não seja possível, não repare integralmente o dano ou se mostre excessivamente onerosa para o devedor.

Como resulta do artigo 563º, tal obrigação de reparação supõe a existência de um nexo causal entre o facto e prejuízo. Porém, o nexo de causalidade (adequada) exigido entre o dano e o facto não deverá excluir a ideia de causalidade indirecta – que se dá quando o facto não produz ele mesmo o dano, mas desencadeia ou proporciona um outro que leva à verificação deste (vide, por todos, os profs. Pires de Lima e A. Varela, in “Ob. cit., vol. I, pág. 548”).

O montante da indemnização medir-se-á pela diferença entre a situação (real) em que o lesado se encontra e a situação (hipotética) em que se encontraria se não tivesse ocorrido o facto gerador do dano (nº. 2 do artº. 566º, que consagra a chamada teoria da diferença).

Na fixação dessa indemnização deve atender-se não só aos danos patrimoniais, como também aos danos não patrimoniais (não estando estes, como já atrás referimos, aqui em causa).

Como decorre ainda do já acima citado artº. 564º, o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, ou seja, os danos emergentes, como também os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão, ou seja, os lucros cessantes, sendo que nos termos do nº. 2 daquele mesmo normativo na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis; e se não forem determináveis a fixação da indemnização correspondente deverá ser remetida para decisão ulterior.

5.1.2 Posto isso, apreciemos a questão acima referida.

Entre a pretensão indemnizatória deduzida pelo A. encontrava-se o dano que referente à reparação do veículo que alegadamente teve de suportar, devido à recusa da R. em o fazer, na quantia de €967,54.

Na sentença recorrida, o tribunal a quo concluiu pela existência desse dano, ou seja, que o veículo automóvel do A. sofreu danos em consequência do referido acidente (nexo de causalidade adequada), e que o mesmo teve de proceder à sua reparação (por forma a colocá-lo na situação em que se encontrava antes desse embate) devido à recusa da R. em do fazer (reparação natural). E desse modo impôs à ré a obrigação de indemnizar o autor pelo custo dessa reparação.

Porém, entendendo que, à luz dos factos apurados, não logrou o A. provar o montante do custo despendido nessa reparação, condenou a R. a indemnizar aquele no montante que viesse a ser apurado em posterior incidente de liquidação, estabelecendo como limite máximo dessa indemnização por tal dano aquele montante de €967,54.

No seu recurso a R. não questiona a existência desse dano, apenas o fazendo quanto ao quantum do montante da quantia que terá de pagar ao A. pela indemnização desse dano. E fê-lo porque antes defendera não ter ficado a provado a culpa de qualquer um dos condutores na produção do acidente, e sendo assim deveria o caso ser decidido com base na responsabilidade pelo risco (artº. 506º, nº. 1, do CC), valorando, depois, a medida dessa responsabilidade na proporção de 60% para o veículo automóvel conduzido pelo A. e de 40% para o veículo motorizado em si segurado. E daí que, naturalmente, defenda que a sua obrigação de indemnizar o A. se cifre apenas em 40% do montante que a final vier a ser liquidado (apurado).

Porém, como vimos, a tese defendida pela R. /apelante da responsabilidade pelo risco não veio a ter acolhimento, pois que se atribuiu ao condutor do veículo motorizado, em si segurado, a culpa total na produção do acidente.

E sendo assim, e tal como se decidiu na sentença recorrida, e estabelecido que está o necessário nexo de causalidade adequada entre o facto e o dano, terá a R. que suportar a totalidade do montante da indemnização ao A. por aquele o dano referente ao custo da reparação por si despendido com o aludido seu veículo sinistrado e que vier a ser apurado em incidente posterior de liquidação, e tendo como limite máximo a sobredita quantia de €967,54.

Pelo que nesse parte improcede igualmente o recurso.

6. Quanto à 4ª. questão.

- Da indemnização pelo dano sofrido pelo A. referente à privação do uso do seu veículo automóvel.

Como ressalta do que no início se deixou exarado, entre os danos que o A. alegou ter sofrido com o acidente e cuja indemnização reclamou da R., encontra-se aquele referente à privação do uso desse seu veículo automóvel enquanto a sua reparação não ocorreu, e que avaliou em €7.000,00 (correspondendo a €25,00 por cada dia dessa privação).

Na sentença recorrida o tribunal a quo concluiu pela existência desse dano e valorou o mesmo (reportado à data da prolação da sentença, com juros de mora a contar dessa data), à luz da equidade, no montante global de €5.600,00, e no qual condenou a ré a indemnizar o autor.

Na compensação desse dano considerou para tanto o período de 19 de março de 2017 a 24 de dezembro 2017 (num total de 280 dias), valorando-o na base de €20,00 por cada dia em que o correu essa privação.

Por sua vez, a R./apelante, aceitando a existência desse dano e o dever de o indemnizar (cfr. conclusão nº. 76 das suas alegações), discorda, porém, do seu quantum indemnizatório fixado pelo tribunal a quo, defendendo que a sua compensação não deve ir além dos €10,00 por cada dia em que o A. esteve privado de utilizar aquele seu veículo automóvel, cujo montante global deverá ser, porém, relegado para posterior incidente liquidação, dado não se ter provado o período durante o qual A. ficou privado do seu uso, sendo certo que esse montante global deveria situar-se sempre no limite máximo de €1.120,00, dado que, por um lado, esse período de privação do veículo nunca poderia estender-se para além da data de 24/12/2017 alegada para o efeito pelo A., e considerando, por outro, a atrás referida proporção (40 %) da responsabilidade pelo risco que deveria ser atribuída ao condutor do veiculo seu segurado na produção do acidente.

Apreciemos.

Com se escreveu no recente acórdão do STJ de 08/11/2018 (proc. 1069/16.1T8PVZ.P1.S1, disponível em dgsi.pt), face aos artºs. 562º a 564º e 566º do Código Civil, da imobilização de um veículo em consequência de acidente pode resultar: a) um dano emergente - a utilização mais onerosa de um transporte alternativo como o seria o aluguer de outro veículo; b) um lucro cessante - a perda de rendimento que o veículo dava com o seu destino a uma atividade lucrativa; c) um dano advindo da mera privação do uso do veículo que impossibilita o seu proprietário de dele livremente dispor com o conteúdo definido no artº. 1305º do Código Civil, fruindo-o e aproveitando-o como bem entender.

No caso em apreço é esta última situação de dano de privação do uso de veículo que está em causa.

Depois de alguma controvérsia, sobre a natureza de tal dano e da obrigação de o indemnizar, constitui hoje entendimento claramente dominante nos nossos tribunais superiores, e particularmente no nosso mais alto tribunal, e bem assim ainda da doutrina, que a privação do uso de veículo automóvel em tal situação constitui em si mesmo um dano autónomo, de expressão patrimonial, e como tal sujeito a avaliação pecuniária, que deverá ser ressarcido, bastando para tal tão só que o seu proprietário afetado demonstre a utilização que dele vinha fazendo à data do acidente (independentemente do seu fim, que tanto pode ser de trabalho, de lazer, ou outro qualquer) e que por força dessa privação, causada pelos danos nele provocados, deixou de o poder fazer, isto é, de dele livremente o poder dispor, gozar e fruir - nos termos que se encontram consagrados no artº. 1305º do CC. (Nesse sentido, vide, entre muitos outros, os recentes Acordãos do STJ de 25/09/2018, proc. 2172/14.8TBBRG.G1.S1; de 08/11/2018, proc. 1069/16.1T8PVZ.P1.S1; de 27/11/2018, proc. 78/13.7PVPRT.P1.S1 e de 25/10/2018, proc. 49/16.1T8FND.C1.S1; da RC de 30/1/2001 e da RLx de 14/12/2002 e da RP de 30/1/2000, todos disponíveis, inwww.dgsi.pt.” e ainda o cons. Abrantes Geraldes, in “ Temas da Responsabilidade Civil, I Vol., Indemnização do Dano da Privação do Uso, págs. 33 a 53”, os profs. Menezes Leitão, in “Direito das Obrigações, Vol. I, página 317, e “Cadernos de Direito Privado, anotação do Professor Júlio Gomes, nº. 3, pág. 62”).

Posto isto, há que atender aos factos dados como provados que relevam para o efeito e que constam dos pontos 11. e 16..

E da conjugação deles resulta:

Que autor esteve privado de utilizar aquele seu veículo acidentado (de marca Nissan, ligeiro de passageiros) desde o dia 19/03/2017 (dia do acidente) até ao dia 24/12/2017 (data em que, dada a recusa da ré em o fazer, apenas logrou obter a quantidade de dinheiro necessária para ordenar a sua reparação e proceder ao seu pagamento), num total de 280 dias.

Veículo esse que costumava utilizar para se deslocar a Tábua, pelo menos uma vez por semana, para idas ao supermercado (a fim de aí se abastecer de bens de consumo doméstico, pois que a aldeia onde reside com a sua mulher apenas é composta por casas de habitação e respetivos logradouros, sem mercearia ou café, distando 6 km daquela localidade) e ao centro de saúde, e bem assim a Coimbra (o que fazia, pelo menos, quatro vezes por ano, pois que, sendo ele e a sua mulher pessoas doentes, tinham necessidade de se deslocarem aos hospitais públicos dessa cidade a fim de frequentarem consultas de especialidade).

E que durante esse período de privação desse veículo as deslocações a tais locais foram asseguradas com o recurso a amigos e a táxis, pois que embora possuísse outro veículo automóvel, uma carrinha Citroen velha, só o destinava para se deslocar para os terrenos agrícolas, sendo, por isso, muito raro utilizá-lo para o conduzir até Tábua.

Ora, perante tais factos e as considerações que tal propósito supra foram expandidas, é inolvidável que o período de tempo durante o qual o A. esteve privado de utilizar, gozar e fruir aquele seu veículo acidentado comporta para o autor um dano, e do qual se impõe que seja indemnizado pela ré seguradora, e na sua plenitude, dado se ter concluído que o condutor do veículo motorizado nela segurado foi o exclusivo culpado na produção do acidente que originou também esse dano. Aliás, diga-se, que, como atrás se deixou exarado, a R./apelante aceita a existência do aludido dano e a sua obrigação de o indemnizar, só discutindo o seu montante (uma vez caída por “terra” a tese por si defendida de se estar, in casu, perante uma responsabilidade com base no risco, o mesmo acontecendo, adiante-se, em relação à pretensão relegar para posterior incidente de liquidação o apuramento desse montante, pois que, ao contrário  do por si defendido, manteve-se a decisão de facto, por si impugnada, que fixa o limite máximo da data dessa privação).

Importa, pois, in casu, fixar o quantum indemnizatório.

Os valores fixados na sentença e aqueles propugnados pelas partes já acima os deixámos referidos.

Como constitui entendimento praticamente pacífico (vide, a propósito, e a jurisprudência e doutrina acima citadas), em tais situações, o valor desse dano, como equivalente económico (compensatório), deve ser determinado/estimado com o recurso à equidade, num julgamento ex aequo et bono (artº. 566º, nºs. 1 e 3), numa ponderação das circunstâncias concretas que o motivaram e das realidades da vida.

A equidade, nas judiciosas considerações feitas no Ac. STJ de 10/2/98 (in “C.J. ano VI, tomo I, pág. 65”) “é a justiça do caso concreto, flexível, humana, independente de critérios normativos fixados na lei “, devendo o julgador “ ter em conta as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida” (cfr. ainda Karl Larenz, in “Metodologia da Ciência do Direito, pág. 335”).

Aqui chegados, e volvendo-nos ao caso em apreço, para além do período extenso em que o A. este ver privado daquele seu veículo, não poderemos deixar de considerar, por um lado, o fim para que o A. utilizava esse veículo, por outro, os meios alternativos que utilizou em sua substituição, para satisfazer as suas necessidades atrás descritas (deslocando-se em carros de pessoas amigas – deduzindo-se/presumindo-se daí que não lhe levavam nada, ou seja, que não lhes tinha de pagar qualquer preço/quantia nessas deslocações, aliás, se o fizesse certamente que o teria vindo reclamar nesta ação, sendo que, de qualquer modo, era sobre ele, se esse pagamento ocorresse, que incidia o ónus prova, muito embora, e tendo em conta a realidade da vida, não custe a admitir que nalgumas dessas deslocações, sobretudo naquelas a Coimbra e atenta a distância percorrida, alguma contribuição pecuniária desse a essas pessoas, nomeadamente ao nível do consumo de combustíveis - e em táxis – desconhecendo-se, todavia, o números de vezes em que tal aconteceu e os montantes pagos), e, por outro, os naturais incómodos ou desconforto – não estamos aqui a falar na conceção técnica/formal de danos não patrimoniais – que tal situação sempre lhe acarretaria, e, por fim, não poderemos deixar de considerar que muito embora a indemnização desse dano tenha por base a privação diária do referido veículo, todavia, essas deslocações nele feitas ocorriam, pelo menos, só uma vez por semana a Tábua e quatro vezes por ano a Coimbra, a fim dele e da sua mulher serem assistidos em consultas médicas da especialidade – sendo que no caso em apreço o tempo dc privação do veículo ocorreu durante 280 dias (desconhecendo-se se durante esse período tiveram ou não lugar todas essas consultas e as respetivas quatro deslocações).

Assim, numa ponderação do que se acabou de expressar a esse propósito, e num julgamento ex aequo et bono, afigura-se-nos ajustado, na falta de mais e melhores elementos probatórios, fixar o valor de tal dano no montante de €10,00 por dia (em vez dos €20,00, fixados pelo tribunal a quo, os quais, salvo o devido respeito, se nos afiguraram, no caso, pecar manifestamente por excesso), o qual multiplicado pelo período global de privação do veículo (280 dias) importa na quantia total de €2.800,00 (dois mil e oitocentos euros). Quantia em essa que, tal como foi feito na sentença, se mostra atualizada à data da presente decisão, e à qual acrescerão, a partir dela, os juros de mora, a taxa legal civil, fixados na sentença recorrida (note-se que caso fixássemos os juros de mora contados a partir da data da citação para a ação da ré – como se nos afigurava ser in casu legalmente possível, e caso o montante não fosse atualizado à data desta decisão -, violaríamos, no caso, o princípio da proibição da reformatio in pejus, cuja consagração encontra o seu resquício no artº. 635º, nº. 5, do CPC).

Assim, procederá em parte o recurso, e nessa medida se altera e revoga a sentença da 1ª. instância.


III- Decisão

Assim, em face do exposto, e na parcial procedência da ação e do recurso, acorda-se em:

a) Condenar a ré ao pagar ao autor, ambos acima identificados, a quantia total €2.800,00 (dois mil e oitocentos euros) a título de dano pela privação do uso daquele veículo, supramencionado, que sofreu no período compreendido ente 19 de março de 2017 e 24 de dezembro de 2017, a que acrescem juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a data da prolação do presente acórdão e a até ao seu integral pagamento.

b) Manter o demais decidido na sentença recorrida da 1ª. instância.

Custas da ação e do recurso pela R. e pelo A.. na proporção do respetivo decaimento. (artº. 527, nºs. 1 e 2, do CPC).

Sumário:

I- Da imobilização de um veículo em consequência de acidente de viação pode resultar: a) um dano emergente - a utilização mais onerosa de um transporte alternativo como o seria o aluguer de outro veículo; b) um lucro cessante - a perda de rendimento que o veículo dava com o seu destino a uma atividade lucrativa; c) um dano advindo da mera privação do uso do veículo que impossibilita o seu proprietário de dele livremente dispor, gozar e fruir, nos termos que se encontram plasmados no artº. 1305º do CC.

II- Ocorrendo a última situação referida em c), a privação do uso de veículo constitui em si mesmo um dano autónomo, de expressão patrimonial, que deverá ser ressarcido, bastando para tal tão só que o seu proprietário afetado demonstre a utilização que dele vinha fazendo à data do acidente (independentemente do seu fim, que tanto pode ser de trabalho, de lazer, ou outro qualquer) e que por força dessa privação, causada pelos danos nele provocados, deixou de o poder fazer, isto é, de dele livremente o poder dispor, gozar e fruir por certo período de tempo.

III- Em tais situações, o valor desse dano, como equivalente económico (compensatório), deve ser determinado/estimado com o recurso à equidade, num julgamento ex aequo et bono, com uma ponderação das circunstâncias concretas que o motivaram e das realidades da vida.

2019/05/08